28 de dezembro de 2017

Bolchevismo, real e imaginado

Os críticos de Lenin gostam de pintá-lo como um autoritário feroz e absoluto. Mas essa imagem não combina a realidade.

Jason Schulman

Jacobin

V. I. Ulyanov entre os membros da "Liga de Luta de Petersburgo para a Emancipação da Classe Trabalhadora". No grupo da esquerda para a direita: em pé - A.L. Malchenko, P. K. Zaporozhets, A. A. Vaneyev; sentado - V. V. Starkov, G. M. Krzhizhanovsky, V. I. Ulyanov, Y. O. Martov - Tsederbaum. São Petersburgo. Não antes do dia 9 de dezembro (21) e não mais que 20 de dezembro (1 de janeiro de 1896).

Tradução / A grande falha do artigo "What Lenin’s Critics Got Right" [Onde os críticos de Lênin acertam] de Mitchell Cohen no número mais recente de Dissent é que repete o que Lars T. Lih, pesquisador independente e autor de Lenin Rediscovered: "What Is To Be Done" In Context [Lênin redescoberto: Que fazer? em contexto] (Haymarket, 2008) e de uma biografia de Lênin (Reaktion Books, 2011), chama de "interpretação pelo padrão de manual escolar" do pensamento de Lênin e, por extensão, de todo o bolchevismo como movimento.

Cohen retoma a versão sempre repetida segundo a qual, por causa da publicação de Que fazer?, em 1902 e 1904 o Partido Social-democrata Trabalhista Russo, Lênin e seus "Bolcheviques" (em 1904, o grupo majoritário) teriam criado um "partido de novo tipo" – partido de "vanguarda" despoticamente centralizado de "revolucionários profissionais" (supostamente de intelectuais ex-estudantes, não "trabalhadores de verdade") dominado por um comitê central todo poderoso.

Cohen contrasta essa visão "leninista" do partido marxista com a visão de um partido dito marxista democrático de minoria ("mencheviques") ao qual os bolcheviques fariam oposição, como queria Julius Martov. Lih chama isso de leitura que "se preocupa com os trabalhadores", baseado numa suposta posição de Lênin segundo a qual os trabalhadores jamais alcançariam "consciência revolucionária" mediante a luta política diária.

Temo que Cohen simplesmente não tenha sido informado sobre resultados das mais recentes pesquisas sobre Lênin e o bolchevismo; aliás, não cita e provavelmente não consultou fontes mais antigas, que poderiam desmontar sua tese, dentre outros, digamos, Orlando Figes. Pelo menos desde Leninism Under Lenin [Leninismo sob Lênin] (1975), de Marcel Liebman, já se sabe que o racha de 1904 entre Bolcheviques e Mencheviques não criou dois partidos separados mas, apenas duas fachadas públicas do mesmo Partido Social-democrata Trabalhista Russo. Assim sendo, o "partido de vanguarda" autoritário que estaria supostamente apresentado em Que fazer? não poderia existir e de fato jamais existiu na vida real antes de que o Terror Branco e a Guerra Civil Russa tivessem levado ao que se deve descrever como "pânico" na liderança bolchevique.

E considerando que o próprio Lênin desinteressou-se de fazer a defesa da tese que defendia em Que fazer?, segundo a qual em 1907 "O erro básico cometido pelos que polemizam contra Que Fazer? (...) é que extraem completamente a produção daquela reflexão, do seu específico contexto histórico, de um específico e hoje já muito distante período no desenvolvimento do Partido [Social-democrata Trabalhista Russo]," fica-se de fato sem entender muito bem o que se deve fazer desse panfleto evidente e ostensivamente muito importante, "do qual nasceu" o "leninismo".

Em Lenin Rediscovered, Lih oferece a primeira explicação lógica para a "peculiaridade" de Que fazer?: seria vítima de tradução viciosa de algumas palavras-chaves em russo. O que Lênin estava realmente defendendo, explica Lih, era um partido marxista da classe operária que seguisse o molde do Partido Social-democrata Alemão (PSDA). Lih classifica como "Erfurtiana" a posição de Lênin, que seguiria o Programa de Erfurt que o PSDA adotou em 1891.

Lênin talvez tenha realmente falado de "partido de vanguarda", mas, como Lih explica, o termo simplesmente descreve "a compreensão comum de o que seria a própria social-democracia (...). Que fazer? não pregou algum hipercentralismo ou algum partido de elite, quase conspiracional, restrito a revolucionários profissionais da intelligentsia. As posições que se leem em Que fazer? não foram a causa da divisão do Partido Social-democrata Trabalhista Russo em 1904. A centralidade da liberdade política na plataforma de Lênin torna impossível traçar qualquer conexão direta entre Que fazer? e o stalinismo", como Cohen tenta traçar.

Sim, marxistas russos enfrentaram condições de ilegalidade e perseguição policial. Daí que construir um partido revolucionário envolvia que um quadro ativista importante tivesse de ser professial’nyi revoliutsioneri. Normalmente traduzida como "revolucionários profissionais", a expressão realmente significa "revolucionários bem treinados". No final do século 19 e início do 20, professii ou professial’nyieram termos que se aplicavam em russo a profissionais de alta capacitação "numa organização eficiente".

Nada há de inerentemente elitista nesses termos. Acompanhando o modelo do PSD alemão, esses ativistas que devem operar na clandestinidade "brotarão das fileiras dos trabalhadores". Esses revolucionários devem tornar-se especialistas nas artes e habilidades da konspiratsiia. A palavra não significa qualquer tipo de "conspiração" elitista; mas simplesmente "as técnicas do trabalho político ilegal". Se para os clandestinos em geral como Lih escreve, o "revolucionário profissional" ganha autoridade porque é "duro o suficiente para ser preso e conseguir escapar", no caso de Lênin "o revolucionário bem treinado ganha autoridade porque é suficientemente esperto, antes de tudo, para não ser preso."

E o que dizer sobre o desprestígio do "sindicalismo" e da "espontaneidade" em Que fazer? Será que Lênin então não disse que o sindicalismo "espontâneo" reforçaria a dominação pela burguesia? Não disse. Porque Tred-iunionizm não significa ("trade unionism" [tradicionalmente traduzido ao português como "sindicalismo"] no sentido genérico de apoiar ou criar sindicatos, mas designava a específica política da ala direitista do movimento trabalhista britânico o qual — quando Que fazer? foi escrito – se opunha à formação de um partido trabalhista e não orientava suas políticas pela luta de classes. Hoje essa orientação poderia ser chamada de "business unionist" [alguma coisa como "sindicalista pró-business"].

Esse específico tipo de sindicalismo é que Lênin considera "burguês" e, de fato, apolítico, não todo o sindicalismo. Acima de tudo, Lênin acredita que os marxistas russos podem efetivamente enfrentar e superar o tred-iunionizm precisamente porque, nas palavras de Lih, Lênin tem "mais confiança nos trabalhadores [russos] que seus opositores [no movimento revolucionário russo]."

Quanto à "espontaneidade", o termo original em russo é stikhiinost. Lih explica que stikhiinost refere-se a forças elementais: "stikhiinost conota com a impossibilidade de o ego controlar o mundo; e "espontaneidade" conota com a impossibilidade de o mundo controlar o ego". Marxistas russos usaram as palavras stikhiinyi e stikhiinost antes de Que fazer? em duas acepções: numa acepção negativa, referidas a erupções "elementais", sem propósito, de fúria das massas, que não representavam a auto-organização da classe trabalhadora; e numa acepção positiva, em referência à ascensão das "massas trabalhadoras que pressionam o máximo possível na direção do socialismo e da luta política." Na verdade Lênin estava argumentando a favor da noção de que os social-democratas deviam unir-se àqueles trabalhadores cuja luta "espontânea" avançava rapidamente e poderia deixar para trás o Partido Social-democrata Trabalhista Russo.

E o que dizer do partido "centralista democrático" que – mesmo antes da Guerra Civil – supostamente envolveria disciplina quase militar, garantiria poderes extraordinários ao próprio comitê central e – se de algum modo admitia o dissenso interno – absolutamente não admitia que os dissidentes expressassem publicamente suas ideias?

Cita-se com frequência a crítica que Rosa Luxemburgo fez contra o "ultra-centralismo" de Lênin (Cohen cita a Luxemburgo de 1918, não de 1904, mas o objetivo dele é o mesmo). Tudo faz pensar que Cohen ainda não saiba que os mencheviques foram os primeiros socialistas russos a invocar o "centralismo democrático". Lênin apenas adotou a ideia para os bolcheviques.

Antes do Segundo Congresso do Comintern em 1920, quando foi redefinido para as duas alas do Partido Social-democrata Trabalhista Russo, o "centralismo democrático" significava simplesmente que congressos democraticamente eleitos pelo Partido tinham o poder de tomar decisões que se aplicavam a todos os comitês e membros do Partido. Isso não é e nunca foi autoritarismo.

Além do mais, já em The Bolcheviks Come to Power (1976) [Os bolcheviques chegam ao poder], Alexander Rabinowitch deixara claro que, sim, os bolcheviques tinham debates públicos. Por que Cohen repete ideias há tanto tempo desacreditadas? Por que não questiona a incongruência entre o objetivo inicial de Lênin, de liberdade política na Rússia, e a estratégia de "vanguardismo" que ele teria supostamente favorecido como meio para alcançar aquele objetivo? Lênin seria perfeito estúpido? De modo algum jamais foi suficientemente estúpido a ponto de defender "socialismo num só país" à moda Stalin, como Cohen sugere. (E será que afinal podemos admitir que Luxemburgo, sim, estava mal informada sobre o "leninismo" em 1904?)

A prova é clara: durante a maior parte da vida, Lênin foi mero "Erfurtiano," um "Kautskyista," não mais autoritário que o próprio Karl Kautsky (Lênin jamais diria de Kautsky que se tornara um "renegado" do marxismo, se não tivesse apreciado por tanto tempo os escritos de Kautsky). E nunca foi criador de teoria política, autor de teoria original.

O pouco espaço não permite investigar mais a fundo O Estado e a Revolução (1918) de Lênin e suas falhas (por exemplo, a ingenuidade), ou outros escritos, a maior parte dos quais não têm relevância hoje. Mas é preciso afirmar alguns fatos. Os sovietes de 1917 até meados de 1918 consistiam de partidos rivais legais. Em novembro de 1917 Lênin também promoveu a ideia de que as organizações dos trabalhadores e dos camponeses deviam receber recursos para construir imprensa livre. (Cohen também deveria investigar o modo como foram tratados o general Krasnov e seus soldados, que tentaram um golpe armado para derrubar o governo soviético dia 31 de outubro. Receberam tratamento muito, muito "soft.")

Não justificarei cada uma e todas as ações dos bolcheviques durante a Guerra Civil. E é claro que a Revolução de Outubro foi uma aposta na revolução dos proletários da Europa Ocidental. Falhou. Mas a alternativa de Martov – um governo revolucionário socialista-menchevique baseado na Assembleia Constituinte – era impossível. Alternativa real tampouco foram muitas das políticas que os bolcheviques implementaram, incluindo coagir os camponeses para que provessem alimentos; o Terror Vermelho (concebido em parte para controlar e limitar o terror que viesse "de baixo", dos camponeses), etc., ou o governo dos generais Brancos e o Terror Branco.

A principal "tragédia" não foi as ações dos Bolcheviques, mas as justificativas inventadas ad hoc para aquelas ações, apresentadas como se fossem normas em resoluções do Comintern, adotadas por organizações "leninistas". São justificativas que evidentemente têm de ser todas elas rejeitadas, se realmente queremos ter uma esquerda democrática radical.

Cohen com certeza discordará, mas Lênin simplesmente jamais foi teoricista suficientemente inovador para merecer seu próprio "ismo".  Mesmo assim, para os que dentre nós estão sinceramente convencidos de que a única escolha que resta para a humanidade é ou socialismo ou barbárie, e de que, se a classe trabalhadora global (hoje maior do que jamais antes em toda a história) não tomar o poder político, estamos todos condenados a crises econômicas e ecológicas perenes –, é absolutamente necessário estudar a história do bolchevismo –, seja pelas lições negativas, seja pelas lições positivas.

Colaborador

Jason Schulman faz parte do conselho editorial da New Politics, é editor de Rosa Luxemburg: Her Life and Legacy e autor de Neoliberal Labour Governments and the Union Response: The Politics of the End of Labourism.

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