13 de abril de 2022

Anita, Tarsila e Pagu foram essenciais na construção da identidade do modernismo


Depois da Semana de 22, quase misógina, a trinca feminina participou ativamente na elaboração teórica do movimento


Marcia Camargos
Doutora em história social pela USP, escritora e especialista na Semana de 1922, realizou pós-doutorado na Universidade Sorbonne sobre os modernistas em Paris nos anos loucos

[RESUMO] Embora as mulheres, de modo geral, tenham sido excluídas dos eventos da Semana de 22, três delas tiveram participação ativa na construção da identidade modernista nos anos seguintes: Anita Malfatti, com papel de destaque no evento centenário, Tarsila do Amaral, retrabalhando em suas pinturas os dilemas do movimento, e Pagu, que levou à vanguarda o engajamento social.

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No balanço dos cem anos da Semana de 22, uma profusão de iniciativas procurou esmiuçar cada aspecto do evento que, gostemos ou não, entrou para os anais das artes brasileiras. Críticas tampouco faltaram, redundando, às vezes, em um bairrismo infrutífero, na exploração da suposta rivalidade entre Rio e São Paulo.

Ora, sabemos que o Festival de Arte Moderna, nome que a Semana levava na época, nunca foi um exemplo de diversidade e abrangência. Nem poderia. Articulado entre jovens talentosos e a elite cafeeira, que viu ali a oportunidade de valorizar a "capital bandeirante", teve pouquíssimo tempo de preparo. Não contou com um planejamento nem com uma curadoria centralizada, e a seleção dos convidados deu-se na base do improviso.

Na verdade, tudo começou em novembro de 1921, na casa editora de Jacinto Silva, onde Di Cavalcanti expunha desenhos para seu livro "Fantoches da Meia-noite", quando recebeu a visita de Graça Aranha, acompanhado de Oswald e Mário de Andrade, além de Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida.

Apresentado ao mecenas Paulo Prado, Di foi levando o restante da roda à mansão do futuro patrocinador da Semana. Ali, em um dos almoços de domingo, por sugestão da esposa francesa do anfitrião, Marinette Prado, muito culta e atualizada, combinaram fazer algo nos moldes da Semaine de Fêtes de Deauville, balneário francês da costa normanda, um sarau que reunia exposições de pintura, concertos, declamação de poesias e até desfiles de moda.

Entre as conversas preliminares e a execução da Semana, transcorreram menos de três meses. Por que a pressa? De novo prevaleceu o voluntarismo da classe dirigente paulista, decerto antevendo a chance de chamar a atenção ao inaugurar, de forma ruidosa, as celebrações do centenário da Independência, a ser comemorado em setembro.

Seja pelo motivo que for, tanta precipitação resultou em um projeto desequilibrado. O ingrediente popular, o repertório negro, as produções dos centros culturais operários, então bastante ativos, instrumentos como violão, cavaquinho, bandolim, ganzá e reco-reco —tudo isso ficou de fora. Ausentes também a arte dramática, o cinema, a fotografia, e incontáveis pintores, literatos e escultores de outros estados, cuja presença teria enriquecido e ampliado o alcance daquela ação.

Na questão de gênero, o festival beirou a misoginia. Em um universo de cerca de 30 integrantes, número que jamais saberemos com segurança, pouco mais de 10% eram mulheres.

Ao piano, a consagrada Guiomar Novais suscitou princípios de vaia ao abster-se de tocar Chopin, de quem era a maior intérprete no país. Disciplinada, mesmo a contragosto limitou-se ao programa, focando Villa-Lobos, que soava ousado demais para a maioria da plateia provinciana em termos musicais.

No mesmo palco que ela, Yvonne Daumerie teria ensaiado uns passos de dança moderna em homenagem a Isadora Duncan. Fantasiada de borboleta, não entusiasmou o auditório.

Já na exibição aberta de segunda-feira a sábado, no hall de entrada do Theatro Municipal de São Paulo, a disparidade persistia, com 12 homens e apenas Zina Aita e Anita Malfatti. A primeira, nascida em Belo Horizonte, filha de empresários imigrados da Itália, mostrou oito telas de viés decorativo, flertando com o impressionismo. Antes, havia realizado uma individual em janeiro 1920, nas Salas do Conselho Deliberativo da capital mineira. Do mesmo modo que a Anita de 1917 provocou ataques da imprensa, que condenou as cores "bizarras" para "ferir a vista do público".

A artista plástica Anita Malfatti em 1955 - Folhapress

Viajando para São Paulo, conheceu Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira, sendo convidada para a Semana de 22. Ela ainda cooperou com ilustrações para a Klaxon, revista-símbolo do modernismo, antes de se mudar em definitivo para a Itália. Em Nápoles, trocou a pintura pela cerâmica industrial, dirigiu uma fábrica, ganhou renome e prêmios internacionais.

Hoje, percebe-se que a historiografia pouco se preocupou com a artista. Raríssimos são os quadros de Zina que sobreviveram no Brasil, e são quase inexistentes os dados sobre a sua vida pessoal.

Anita Malfatti, por sua vez, havia superado as duras críticas de Monteiro Lobato à sua vernissage e até desenhava capas para a editora do suposto "algoz". Eleita estrela-guia do grupo, arrancaria defesas apaixonadas de Oswald de Andrade nas páginas do Jornal do Comércio, imitado por Menotti del Picchia no Correio Paulistano.

Seu pioneirismo seria amplamente reconhecido pelos companheiros, posto que, das 100 obras da mostra no Municipal, 20 eram de sua autoria. Dentre elas, o polêmico "Homem Amarelo", adquirido por Mário de Andrade.

Tal assimetria, em um acontecimento que pretendia quebrar paradigmas, em busca de horizontes libertários, em sintonia com os progressos tecnológicos e a mudança de mentalidade do entreguerras, provou como a vanguarda ainda estava presa às amarras do patriarcalismo.

DEPOIS DAQUELAS VAIAS

Após a tumultuada Semana, no rescaldo dos insultos e dos raros aplausos, teve início a elaboração teórica do modernismo. Por meio de revistas, livros e manifestos, seus principais articuladores foram estruturando os ideais lançados a esmo, de forma espontânea e caótica, no suntuoso Theatro Municipal.

Nesse processo de construção da identidade cultural, as mulheres tiveram papel basilar. Ou melhor, três delas.

No ciclo introdutório, Anita despontou como uma promessa, elemento aglutinador das fileiras modernistas, que repudiavam qualquer comentário desabonador às suas pinceladas vigorosas, impactadas pelo expressionismo alemão.

Ao lado de Zina Aita, ela colaborou na Klaxon na etapa de consolidação do movimento. Em seguida, com bolsa concedida pelo Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, zarpou para Paris para beber direto na fonte de inspiração europeia, como era praxe entre os sul-americanos.

Lá, porém, parece não ter apreendido os influxos das vanguardas e acabou por trilhar um caminho intimista e simbólico. Optou por um traço acomodado, brando, respeitador dos cânones conservadores. Na contramão do período de rasgos decididos, enérgicos, suavizou as técnicas com as quais havia se envolvido na Alemanha e nos Estados Unidos, entabulando um retorno à ordem.

Tal escolha decepcionou seus amigos Oswald e Mário de Andrade. A este, Sérgio Milliet escreveria em junho de 1924 desqualificando-a impiedosamente em carta sobre os conterrâneos em Paris: "Brecheret tem uma Samaritana boa para o Salon d’Automne e um fauno trabalhado diretamente no granito excelente. [...] Um grande espírito de síntese. Di com desenhos à la Picasso!!! Anita, a verdadeira dégringolade. Não se aproveita nada".

Com isso, Anita perdeu o lugar de preferência, logo preenchido por Tarsila do Amaral, que não participou da Semana, mas foi se transformando, a si e à sua obra, no confronto com as vanguardas da capital francesa, onde esteve repetidas vezes.

Ela absorveu e retrabalhou os dilemas da Semana —a saber, o antagonismo "nacional versus estrangeiro", "erudito contra popular"— tanto na fase pau-brasil, quanto na antropofagia. No diálogo com o cubismo e as demais correntes estéticas, soube manter as raízes fincadas em solo natal.

Artista de sucesso, contribuiu para mudar a imagem do feminino, e fez prova do caráter independente ao livrar-se de um marido castrador para, na maturidade dos 34 anos, cruzar o Atlântico a fim de aperfeiçoar o talento tardiamente assumido.

A artista plástica Tarsila do Amaral em 1923, vestida pelo estilista francês Paul Poiret - Acervo Folha da Manhã/Folhapress

A exemplo de Tarsila, as mulheres iam conquistando espaço ao redor do mundo. Na greve geral de 1917, em São Paulo, as operárias do setor têxtil ocuparam a linha de frente. Uma série de feministas, dentre as quais Maria Lacerda de Moura e Bertha Lutz, batalhavam pelo direto ao voto. Esta, no ano da própria Semana, criava a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Em Paris, onde Tarsila e Anita moraram, os salões das escritoras Natalie Barney e de Gertrude Stein acolhiam a nata da vanguarda mundial. Espelhados em Josephine Baker, os costureiros Jean Patou, Jeanne Lanvin e Coco Chanel faziam da moda sinônimo de simplicidade, convertendo-a em ponta de lança da liberação feminina.

Elas passaram a cortar o cabelo, fumar em público e dirigir automóvel, o carro-chefe da modernidade. Nesse contexto, ao se desquitar e impor-se como pintora de prestígio, Tarsila encarnou a precursora, provando que a mulher podia realizar-se fora do binômio casamento-maternidade.

De uma geração mais nova, aos 18 anos Patrícia Galvão diplomava-se na Escola Normal, que formava professoras para ensinar nas turmas do primário. Fenômeno inédito, o curso atraía multidões de alunas, pois ele abria a perspectiva da emancipação pelo trabalho.

Por essa ocasião, Raul Bopp apresentou-a a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade e, com seu charme e modos anticonvencionais, Pagu desestabilizou a harmonia do ilustre casal.

Ela não apenas defendia as causas feministas, mas as colocava em prática, adotando um estilo de vida livre nas esferas intelectuais, políticas e sexuais. Nada a estranhar que tal comportamento, considerado extravagante e inapropriado a uma moça de família, causasse escândalo nas altas rodas.

Pivô da separação de Oswald, que largou Tarsila para morar com ela, a jovem rebelde acrescentaria o toque final para converter a vanguarda artística em vanguarda política: o engajamento nas causas sociais. Levando o ativismo às últimas consequências, mergulhou de corpo e alma na militância.

Nessa guinada radical à esquerda, arrastaria o companheiro, que passou a classificar o modernismo como um equívoco, em que o contrário do burguês não era o proletário, e sim o boêmio, em um território em que as massas continuavam ignoradas, enquanto os intelectuais brincavam e de vez em quando "davam tiros entre rimas".

A década de 1920 chegava ao cabo, encerrando os tempos de apogeu do modernismo, que surgiu a partir de indagações estéticas e terminou preocupado com as necessidades culturais do povo. Pilares desse movimento, Anita personifica a mártir, Tarsila, a musa, e Pagu, a revolucionária da notável trinca feminina.

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