31 de julho de 2017

A política de Narcos

No mundo de Narcos, os policiais malvados e os narco-capitalistas populistas tornam-se os heróis que precisamos.

Andrew Pendankis

Jacobin

Wagner Moura em Narcos (2015)

Tradução / Até pouco tempo atrás, falar de Medellín significava falar sobre a capital dos homicídios.

A violência era tamanha que se referir a ela exigia superlativos como “muitos” e “piores”. Os traficantes de cocaína e o Estado colombiano se uniram para criar um grande sistema de crueldade indiscriminada. Os métodos usados ​​pela polícia na busca por Pablo Escobar, o notório chefe de drogas, em nada se diferenciava daqueles usados ​​pelos sanguinários para punir e intimidar a polícia. Em 1991, dois anos antes da morte de Escobar, a cidade famosa por ter uma primavera de um ano teve sua taxa de homicídios referente a uma zona de guerra.

Sem surpresas, é provável que hoje em dia lembranças desse sofrimento sejam comercializadas. Um dia que começa com um passeio pelo Edificio Mónaco de Escobar – uma estrutura que agora é silenciosa, mas que ele costumava usar para torturar pessoas e ter refeições com a família – pode muito bem terminar em Comuna 13 – esse que já foi o bairro mais violento e inóspito a estrangeiros, mas que hoje atrai turistas com sua arte de rua brilhantemente pintada e guias locais encantadores.

Os turistas chegam a Medellín informados por seus guias de que o “Urbanismo Social” do Estado transformou a cidade em um modelo de inovação e paz. Alguns, em especial os estrangeiros de meia-idade com pouco interesse pela história da Colômbia, reafirmam que proclamar justiça nunca é tão simples quanto declarar o fim de uma guerra: para eles, a “paz” significa acesso a sexo com menores de idade e cocaína barata – os prazeres de um “Amsterdã sul-americana”, um assunto que surge com certa frequência quando se conversa com os visitantes da cidade.

Não por coincidência, o que os turistas do último período têm em comum é que chegam a este novo El Dorado após terem assistido Narcos.

A história contada pela polícia


Narcos não é uma biografia de Escobar, mas sim um tipo de retrato de sua época. Ao invés de desenvolver personagens através de uma seqüência de cenas diárias lentas, vagamente conectadas, o seriado se constrói cronologicamente em torno de uma historiografia complexa. A abertura intercalada imagens documentais elegantes com cenas dos instrumentos utilizados pela polícia na década de 1970 para detectar, confirmar e armazenar fatos. Dispositivos de escuta da época, mapas topográficos e documentos redigidos nos encorajam a antecipar o que vem a seguir, como um perito.

Esta ideia é reforçada pela evidente intenção do seriado de escapar dos limites da “história mais verídica possível”, que geralmente apresenta conhecimentos sobre pessoas e suas psicologias, não sobre estruturas ou eventos. Narcos, por sua vez, expande sua narrativa para incluir os detalhes geopolíticos mais gerais do período: Reagan, Noriega, os sandinistas – todos estão aqui. As coisas são apresentadas por um viés cru, grandioso e histórico.

É importante notar que Narcos conta sua história através da narração de Steve Murphy, um agente americano da DE1. É uma história contada pela polícia. As verdades fundamentais do seriado são os relatos de policiais que “viram um tipo de merda” que nós nem conseguimos imaginar: ter que lidar com as especificidades de cenas de crimes mostrou a eles que a última coisa que separa a natureza humana e o desastre é uma lei espinhosa.

Para pegar o que o narrador chama de “cara ruim”, os “bons moços” vão ter que sujar suas mãos. Qualquer um que duvide disso – aqueles que naturalmente se apegam aos princípios do devido processo legal ou do Estado de Direito – não “passou tempo suficiente com os bandidos”. Por essa lógica, o mal é uma espécie de escola ou campo de treinamento para autoritários. Embora seja dito que a linha entre o bem e o mal é relativa, nunca há dúvida de onde o último realmente se encontra.

Não há nada de novo nisso. Os dramas policiais sempre esconderam o seu conservadorismo – um gosto pela lei e pela ordem, pela justiça como forma de punição – por trás de uma imagem de rebeldia. Brash, um policial rebelde alérgico à autoridade e propenso a bebidas alcoólicas e brigas, é um personagem que permite que o espectador sacie seu prazer de quebrar regras sem realmente desafiá-las.

É verdade que somos apresentados aos pontos cegos do narrador. O espanhol de Murphy é terrível. Ele só consegue ter uma compreensão melhor quando tem um breve histórico dos crimes americanos na região. No entanto, sua ignorância não é considerada uma fraqueza – na verdade, ela permite que ele tenha um melhor diagnóstico dos problemas da região.

Murphy não é um gênio, é um homem intuitivo. O gênio se perde em abstrações e age conforme o que for mais confortável. O policial rebelde mergulha de cabeça na toca do coelho com base em palpites.

É a ordem com roupagem rebelde, a estupidez vendida como intuição “fora da caixa”, a agressão como um requisito para ganhar. Em tempos de Trump e populismo de extrema direita, a autoridade não seria exatamente isso?

Narco-revolução


Ao lado do controverso policial não conformado, Narcos configura um segundo eixo com ambição política: o narco-revolucionário.

Desde o princípio somos encorajados a ver Escobar como uma figura de revolta, um revolucionário cujas origens na pobreza extrema o diferenciam de um capitalista gângster medíocre. Depois de atribuir um único episódio à história inicial do real “negócio” de Escobar – a fase entre 1975 e 1982 na qual ele constrói um sistema de clientes, laboratórios e rotas comerciais sob o mote “plata o plomo”, “prata ou chumbo” (no qual este último significa bala) – o seriado começa a narrar sua campanha de 1983 para o Congresso.

Esta decisão revela Escobar como alguém menos interessado em dinheiro e mais interesse em justiça. Dessa forma, o narco-império de Escobar aparece como uma revolta da classe trabalhadora contra o governo dos oligarcas.

Não é só que Escobar tenha uma mera ambição política. Ele é retratado como alguém que fez com que a paixão pela política colocasse em perigo seu negócio e sua própria família. Para que a trajetória de Escobar por uma vaga no Congresso (e além disso, pela própria presidência) não seja interpretada como resultante de um realismo político vazio – uma estratégia de sobrevivência, uma ambição pessoal por poder – o seriado insiste que, em última instância, Escobar é motivado por justiça. “O que eu quero, sinceramente, é ajudar os pobres desse país”, ele diz em particular a um amigo.

Este fato ganha grande relevância quando analisamos como o seriado representa a esquerda extraparlamentar. Em uma cena bizarra, vemos Escobar aceitando solenemente a espada de Simón Bolívar do líder do M-19, um grupo de guerrilha socialista ativo na época. Em 1974, quando o M-19 roubou esta relíquia de um museu em Bogotá, ele o fez para evidenciar seu desejo de completar a revolução iniciada, porém deixada inacabada, por Bolívar.

Desta forma, Narcos dá as credenciais revolucionárias do comunismo para legitimar a política de Escobar, ao mesmo tempo em que nega a esquerda ao vincular a militância a um idealismo cego e a algo infantil. A série sugere que o comunismo é um sonho eterno de estúpidos, crianças tolas, mulheres e também daquilo que é tido como a figura mais infantil e frágil: o homem intelectual de esquerda.

Se o gênio burocrata desafia constantemente a ação, a criança comunista sempre age de forma precipitada. Composto por estudantes universitários de classe média que “leem muito Karl Marx” e liderados por um professor de história maluco (Iván Marino Ospina), os guerrilheiros são enquadrados como vítimas ingênuas dos livros. Em um clássico gesto liberal-pragmático, o ativismo de esquerda é retratado como dogmático e refém da teoria.

A série denuncia os guerrilheiros por evitar a paz e o parlamento, ao mesmo tempo que zomba deles por não conseguirem ser violentos o suficiente. Embora a direita militar seja descrita como “psicopata”, ao menos ela recebe a dignidade de ser competente – ela mata com uma eficiência meticulosa, mesmo que tenha um prazer além da conta em realizar esse trabalho.

Narcos não traça as origens da militância de esquerda contra o anti-comunismo repressivo do Estado colombiano ou contra as desigualdades provindas da economia política rural da Colômbia. Em vez disso, enquadra o comunismo como patologia nacional, como um reflexo da mais antiga neurose cultural da Colômbia: o Realismo Mágico. Afinal, a Colômbia é “um país onde os sonhos e a realidade se confundem, onde, em suas cabeças, as pessoas voam tão alto quanto Ícaro”.

Uma oposição começa a ganhar corpo. A narco-revolução é inconsciente e orgânica ao invés de utópica e reprimida, um movimento autêntico da classe trabalhadora em vez de ingenuamente vanguardista e atua diretamente contra o Estado e o modelo vigente de distribuição de riqueza ao invés de esperar por uma revolução que nunca chega.

Se o comunismo fala sobre a moradia simplesmente como um problema social e histórico, a narco-revolução constrói casas para os pobres. Narco-revolução é o machismo robusto, uma anti-ideologia emocionante. O comunismo, por outro lado, é maçante, um longo zumbido ideológico.

Se os guerrilheiros são ignorados pela maioria ou simplesmente desprezados – a série diz ao espectador que os camponeses e os agricultores vivem em um estado de “subjugação comunista” definitiva – Escobar consegue evitar ser capturado, transitando pelos bairros mais pobres como um fantasma.

A maneira como o seriado escolhe representar o Holocausto do Palácio da Justiça, de 1985, é especialmente importante. Ao lado do assassinato de Jorge Eliécer Gaitán em 1948, este foi o evento político mais emblemático do século na Colômbia. Narcos representa o caso como orquestrado por Escobar e os guerrilheiros simplesmente para atender ao seu desejo de destruir uma evidência contra ele que estava dentro no prédio.

Embora isso esteja mais para uma teoria da conspiração – essa evidência realmente existia e foi destruída durante o ataque – a maioria dos historiadores acredita que os documentos foram incendiados quando os militares colombianos decidiram abrir fogo de forma indiscriminada no Palácio, usando tanques e matando senadores, guerrilheiros e funcionários administrativos.

Embora as guerrilhas tivessem anunciado um conjunto de demandas “referentes à redistribuição de riqueza e o fim da injustiça e da tirania”, a narrativa cinicamente realista diz que tudo isso era apenas uma “besteira”. Somos então lembrados de uma das ideias mais reforçadas de nossa cultura: a injustiça está tão enraizada na sociedade capitalista que aqueles que falam de aboli-la só podem estar mentindo.

As afirmações de Narcos podem ser levadas a sério porque não fingem ser puras. Assim como Trump, Escobar é um negociador, uma figura cuja potência se baseia em reproduzir, e não resistir, a corrupção no centro da vida mercantilizada. Em um mundo de acordos e negócios, só podemos confiar que os desonestos não irão mentir sobre a existência de utopias.

A política de centro como o futuro


Quando Narcos não está oferecendo uma visão romantizada de Escobar, a série foca no que há de mais pretensioso na política colombiana: o Partido Liberal. À medida que a violência narco-revolucionária se desliza para a incoerência e a crueldade niilista, a série apresenta um novo herói: o Dr. César Gaviria, presidente da Colômbia de 1990 a 1994 e o principal arquiteto da reforma neoliberal no país.

Como Escobar, ele é vendido como um revolucionário outsider, um anti-oligarca diligente capaz de atacar a corrupção burocrática por dentro. Se Escobar ataca o Estado colombiano corrupto com explosivos – uma violência narcisista que acaba por destruí-lo – Gaviria, por outro lado, escolhe observar rigorosamente os princípios da política. Ele é um respeitável liberal de centro.

Transformar o Partido Liberal Colombiano em um condutor da pureza transformadora é um ato de ficção política incrivelmente desonesto por parte da série. Durante a maior parte do século XX, o poder político na Colômbia foi dividido entre dois partidos: O Partido Conservador Colombiano – tradicionalmente ligados à elite latifundiária do país – e o Partido Liberal Colombiano – um partido associado aos interesses da burguesia industrial, trabalho institucionalizado (às vezes) e a classe média profissional do país.

Embora a diarquia tenha sido efetivamente real na Colômbia desde 1849, este arranjo foi explicitamente institucionalizado durante os anos do Frente Nacional (1958-74), um acordo pelo qual a cada quatro anos seria alternado mecanicamente (e não democraticamente) o poder entre os dois partidos. Alternativas de esquerda, quando não banidas, foram tradicionalmente reprimidas, seja por meio da violência direta do Estado ou por ordem dos militares.

Narcos representa Gaviria como um reformista altamente qualificado, cuja formação em Economia lhe dá base para administrar a política colombiana com uma integridade moral própria da classe média. Ele é retratado como alguém que tem a vontade política de enfim libertar a Colômbia de seu longo ciclo de corrupção e violência, apesar disso implicar um grande risco pessoal.

A série deixa completamente de lado o papel que Gaviria cumpriu para implementar reformas de Livre Mercado na economia colombiano.

Gaviria aprovou uma legislação para flexibilizar o trabalho (Lei 50) e enfraquecer os sindicatos, privatizar ativos e pensões, mercantilizar a saúde (Lei 100) e mudar a economia do intervencionismo para um modelo de desenvolvimento do Livre Mercado. Em consequência dessa reforma neoliberal, em muitos lugares o aumento do desemprego e o sofrimento social – decorrente da redução de serviços – foram mascarados pela alta taxa de crescimento econômico.

A “Revolución Pacífica” de Gaviria definiu como seu tema principal o slogan “Habrá Futuro!” – um sentimento que a série imprime com grande importância histórica e afetiva.

Este é o slogan neoliberal definitivo de uma época que obriga as pessoas a escolher entre vários tipos de catástrofes – catástrofe ecológica, desemprego em massa, novas formas de violência social e alienação – e ajustes tecnocráticos ao sistema. O progresso não é um futuro mais justo – é simplesmente qualquer futuro.

Bad boy e bigode dos anos 70


Vinte e cinco anos após a morte de Escobar, Medellín mudou. É comum ver casais de mãos dadas andando de patins e pessoas correndo sem camisa. O número de assassinatos por ano na cidade felizmente caiu. Por toda a cidade encontramos arte e bibliotecas novas, brilhantes e modernas. Ninguém confunde o barulho de um trovão com o de um carro-bomba.

No entanto, os salários são baixos e os aluguéis são caros. São poucos os empregos bons. As “Fronteras Invisibles” – zonas controladas por gangues locais – ainda dividem os bairros com fronteiras fatais. Somos levados a crer que à medida que as mortes violentas diminuíram, o número de pessoas forçadas fisicamente a sair dos bairros aumentou: o deslocamento parece ser parte de um acordo entre o Estado e as gangues para melhor gerenciar a marca internacional da cidade. Alguns chegam a pensar que as gangues estão simplesmente matando de forma mais aperfeiçoada.

Narcos surge em um momento que Medellín se classifica como um dos destinos mais procurados da América Latina. Para quem quer uma viagem fora do padrão, porém progressista, Narcos vende uma ideia de politicamente diligente. Estes turistas podem deixar a cidade sentindo que desempenharam um papel em sua renascimento: os dólares gastos localmente em artesanato ajudam a movimentar a economia e a enterrar os velhos tempos de violência.

Ao mesmo tempo, Narcos passa a imagem de Medellín como uma utopia machista e niilista. Bebidas e cocaína à vontade, ignorância tida como charme ou intuição “fora da caixa”, um mundo organizado em torno de uma glória mesquinha e masculina por vingança – tudo isso é combinado para produzir uma atmosfera de rebeldia contra os limites de um presente sufocado.

Narcos sonha com uma Medellín que não existe mais. No entanto, seu desejo de ressonar um populismo de direita que anseia poder desenfreado e o espetáculo fascista de um homem sem limites, significa que pode ser mais uma imagem do futuro do que do passado.

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