29 de março de 2017

A fome do capital na abundância

Enquanto a comida for produzida para o lucro e não para atender às necessidades, pessoas passarão fome.

Andrew Smolski

Jacobin

Foto: Nicolo Castellini | Flickr

Tradução / A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) estima que a produção mundial de alimentos é mais do que adequada para alimentar o mundo. Por exemplo, foram previstas 2,577 bilhões de toneladas de cereais de produção em 2016, com 13 milhões de toneladas de sobras após a satisfação da demanda.

Em todo o mundo, em média já produzimos mais de duas mil quilocalorias (kcal) por pessoa, o nível mínimo de energia que os humanos exigem de acordo com as normas do USDA para a dieta. Ainda assim, com toda essa produção, 780 milhões de pessoas vivem com fome crônica , muitas delas em áreas rurais dependentes da agricultura para sua subsistência.

As Nações Unidas afirmam que esse horrível paradoxo é em parte o resultado do “desperdício de alimentos”. As estimativas são que cerca de um terço dos alimentos são perdidos ou desperdiçados, e os pesquisadores de resíduos alimentares consideram esses números uma subestimação do problema. Hipoteticamente, se esse desperdício fosse eliminado, isso adicionaria outras oitenta e cinco milhões de toneladas de cereais.

O problema é penetrante. Como Lisa Johnson, uma pesquisadora de horticultura da Universidade Estadual da Carolina do Norte cujo foco de trabalho é o desperdício de alimentos, aponta, “[o desperdício de alimentos] acontece por todo o caminho [ao longo da cadeia de suprimentos] […] assim que a comida é gerada,” há desperdício. Em restaurantes, nos campos, com distribuidores, em supermercados e em casa, o desperdício é enorme. A FAO argumenta que “mesmo que apenas um quarto dos alimentos atualmente perdidos ou desperdiçados globalmente pudessem ser salvos, isso seria suficiente para alimentar 870 milhões de pessoas que hoje passam fome no mundo”.

A FAO não possui uma explicação social para o motivo do desperdício de alimentos. Em vez disso, ela busca correções e soluções baseadas no mercado. No fundo, isso significa procurar uma maneira de melhor medir o problema dos resíduos, de encontrar melhores técnicas de colheita, aumentar os incentivos e reduzir o risco para produzir frutas e vegetais, embalagens mais avançadas e melhor transporte para prevenir o estrago e uma campanha de educação pública que leve os consumidores a entender que, mesmo que um tomate não pareça esteticamente agradável, ele ainda pode ser comestível.

Essas soluções deixam intocadas a motivação do lucro que sustenta nosso sistema alimentar e a óbvia concentração oligopolística de poder sobre as cadeias de mercadorias primárias, que tornam todas as pessoas dependentes para o seu sustento de corporações que ninguém elegeu. Essas soluções abordam os resíduos alimentares do ponto de vista da eficiência econômica, mas nunca do ponto de vista da igualdade.

A tecnologia pode resolver muitos problemas enfrentados pela agricultura, mas não aborda a razão por que os produtores podem decidir deixar alimentos estragarem no campo em vez de trazê-los para o mercado, ou por que os distribuidores preferem jogar fora alimentos do que entregá-los aos mais necessitados. Ambos são atos absurdos se o seu objetivo for alimentar pessoas – mas esse não é o objetivo da produção de alimentos no capitalismo. A produção capitalista é animada por um impulso insaciável para lucrar e acumular.

A ONU e a FAO ignoram o fato de que nosso sistema alimentar mantém uma contradição estrutural. Os incentivos capitalistas levam à superprodução de alimentos que nunca são entregues, e ninguém possui qualquer obrigação de utilizar esse excedente, essa abundância para erradicar a fome. Uma vez que entendemos essa contradição, podemos ver o sistema alimentar capitalista como uma abundância absurda.

Comida, uma mercadoria ridícula

Vamos começar, como fez Marx, a partir de uma mercadoria. Uma mercadoria é produzida por causa de seu valor de troca – seu preço. Um capitalista usa dinheiro para que uma mercadoria seja fabricada, para poder vendê-la e obter mais dinheiro. A partir desta cadeia simples, várias razões econômicas surgem como explicação do por quê dos agricultores não colherem tudo o que cultivam.

O alimento que não vai para o mercado, que não se torna uma mercadoria, não tem valor para um capitalista, apesar do seu valor biológico para uma pessoa com fome. O valor de uso específico dos alimentos para essa pessoa não tem nenhuma conseqüência. O agricultor que não vê um uso para essa comida não está sendo malicioso, é claro – apenas está respondendo às pressões competitivas do mercado.

Johnson, a especialista em horticultura citada acima, relata que, conforme o preço flutua durante o período de crescimento, os agricultores vão colhendo menos culturas. No início da temporada, o preço das frutas e legumes é maior do que no final; assim, à medida que a estação avança, mais e mais produtos são deixados no campo. Os agricultores reconhecem o efeito do preço – eles são otimizadores econômicos em um mercado capitalista. Eles vão deixando cada vez mais produtos fora da cadeia de abastecimento em um esforço para inflar os preços dos alimentos. Os agricultores estão controlando a oferta para afetar o preço, independentemente da demanda.

Em seu livro Concentração e poder no sistema alimentar: quem controla o que nós comemos?, Philip H. Howard explica de maneira sucinta: “A demanda por produtos agrícolas é inelástica; produzir mais tem o objetivo de reduzir os preços”.

Além disso, como têm um valor de troca tão baixo no ponto de produção, os agricultores deixarão alimentos não comercializáveis ​​no campo. Lisa descreve como “na compra e venda de frutas e vegetais, muitas vezes é a aparência que importa; tamanho, forma, cor, tudo isso.” O consumidor desempenha um papel no que será uma fruta comercializável e o que será lançado no lixo, o que leva os distribuidores a padronizarem as frutas e verduras que compram, incentivando o agricultor a deixar certos produtos no campo.

Os agricultores não vão querer enviar um caminhão de vegetais – um custo de transporte – para um distribuidor que vai devolvê-los se eles não estiverem à altura de seus padrões estéticos. Não se trata de aferir se um tomate ou uma batata doce são comestíveis, mas se eles podem ser vendidos a um preço que gere lucro.

Além dos produtores e consumidores, há uma outra camada de política governamental que aumenta os incentivos perversos no sistema alimentar. Todos os pesquisadores de alimentos com quem conversei elaboraram sobre como os incentivos do mercado atual levam ao aumento da produção de insumos para “porcarias”, como o milho para o xarope de milho de alta frutose, às custas de culturas mais nutritivas.

De todas as culturas cultivadas, apenas 2% são frutas e vegetais. Lisa Johnson descreve uma realidade surpreendente: “se todos nós fôssemos comprar frutas e vegetais hoje, simplesmente não haveria o suficiente para todos”.

Isto se deve em parte ao seguro de colheita e outros subsídios inexistentes para produtores de frutas e legumes. Como assinala Marion Nestle em Política alimentar: Como a Indústria Alimentar Influencia a Nutrição e a Saúde, “do ponto de vista nutricional, preços altos para o açúcar podem representar um desincentivo ao consumo de refrigerantes, sobremesas e doces, mas, do ponto de vista financeiro, essa política é altamente desejável”. Na década de 1990, uma única empresa de cultivo de cana-de-açúcar, representando um terço da produção de cana-de-açúcar em todo o estado da Flórida, recebeu US$ 60 milhões em subsídios, enquanto a operação de frutas e vegetais não teve acesso a quase nada – uma tendência que continua até o presente.

Alex V. Barnard, sociólogo e autor de Freegans: Mergulhando na Riqueza da Comida Desperdiçada na América, elaborou sobre um exemplo adicional: uma empresa como a Dunkin ‘Donuts realiza uma superprodução de donuts, mesmo sabendo que muitas serão jogadas fora. Para a empresa, na verdade isso é altamente eficiente, porque a preocupação é não perder uma venda ao invés de conservar suprimentos.

O absurdo realmente se torna aparente quando entendemos, como descreve Barnard, que “produzimos 3.700 calorias de comida por pessoa por dia nos EUA e não conseguimos comer tudo isso.” E enquanto produzimos isso tudo, muito disso é “porcaria” que não é saudável, com “estatísticas do USDA que mostram que cerca de 50% dos alimentos que estamos jogando fora neste país ou são excessivos em gordura ou excessivos em açúcares”. A superprodução é a norma do sistema, porque os capitalistas preferem ter algum custo adicional produzindo muito do que perder uma venda.

Então, em suma, não estamos alimentando os famintos, não estamos cultivando alimentos nutritivos, mas estamos aumentando o valor agregado, tornando a comida uma boa mercadoria. Barnard considera corretamente que “simplesmente há uma contradição entre um modelo baseado em crescimento e um produto que você só pode consumir em um tempo finito”.

Assim, o argumento de que os mercados capitalistas seriam eficientes só funciona se por “eficiente” queremos dizer uma coisa: produzir lucro em mercados altamente oligárquicos.

E assim, a comida é tratada como uma mercadoria, e no momento em que ela não tem valor de troca, torna-se desperdício. Neste momento, quando perde todo o valor de troca, torna-se o que Barnard chama de ex-mercadoria.

Uma ex-mercadoria

Barnard explica quando o sistema alimentar capitalista considera uma comida como mercadoria e quando não considera; todos os alimentos que não são vendidos são desperdício. Não porque não sejam comestíveis, mas porque não foram trocados em um mercado. Ele diz que isso faz dos alimentos comestíveis numa lata de lixo uma ex-mercadoria.

Uma mercadoria é apenas uma questão de relações sociais. Os alimentos podem produzidos para troca ou para uso. Isto significa, é claro, que a comida poderia ser algo diferente de uma mercadoria, que ela poderia ter um objetivo diferente de produzir lucros. E se nosso objetivo fosse alimentar as pessoas ao invés do lucro, no que isso implicaria? No fundo, isso significaria fazer com que os alimentos deixassem de ser uma mercadoria e se tornassem um direito.

Certos movimentos surgiram para lidar com o desperdício de alimentos e para trabalhar em direção ao ideal da comida como um direito. Alguns desses movimentos, como o “coleta”, abordam o assunto através daquilo que Jacob Rutz, um agroecologista da Universidade Estadual da Carolina do Norte focado em segurança alimentar, explica como auto-realização individual. Ao recuperar alimentos como ex-mercadorias, o ato foca em eventos voluntários, sem críticas ou discussões sobre por que os alimentos são deixados no campo. Além disso, torna invisível todo o trabalho que passou pelos campos, transformando o seu trabalho exaustivo em uma atividade de caridade.

Para Rutz, o “coleta” confunde o individual com o político, o que ele argumenta é que na realidade “todas essas ações têm repercussões políticas” fora do indivíduo “na estrutura social.” Para explicar seu ponto, ele faz uma distinção entre dois tipos de mobilização em torno do desperdício de alimentos: a diferença entre um grupo cristão que coletava comida que seria jogada fora por mercearias e que a compartilhava com estudantes e pessoas sem-teto; e uma ideia muito mais radical de “compartilhamento, e comunidades cristãs intencionais, que eram basicamente comunistas” – por exemplo, a casa da fazenda da Comunidade da Via Franciscana na Carolina do Norte. Nessas comunidades intencionais, a comida é cultivada e a auto-suficiência permite que a comunidade se reproduza.

Seguindo nessa direção mais radical também está o “freeganismo” (estilo de vida alternativo baseado no boicote ao consumo, neologismo surgido da junção das palavras “free” e “vegan” em inglês) e o “Food Not Bombs” (“Comida ao Invés de Bombas”, um grupo de coletivos independentes, que servem comida vegana e vegetariana grátis a outras pessoas), estratégias de ação direta relacionadas com a justiça alimentar anticapitalista. O freeganismo envolve o ato de reivindicar alimentos desperdiçados ainda comestíveis como um ato de crítica política, demonstrando como o valor capitalista não equivale ao valor social ou biológico. Recuperados como uma ex-mercadorias, os alimentos podem retornar ao seu valor de uso de satisfazer a fome das pessoas.

Para o ativismo e a pesquisa de Barnard, ele participou de passeios de ativistas que ensinam as pessoas onde “mergulhar nas lixeiras”; a entender a escala de “ex-mercadorias” de alimentos e a ficar horrorizados com essa contradição grotesca. O freeganismo produziu uma economia periférica que em larga medida evita as trocas em dinheiro, e que se subsidia com os excessos de um sistema capitalista baseado em superprodução.

O “Food Not Bombs” funciona de maneira semelhante, como um exemplo visível de ajuda mútua, demonstrando alternativas. É uma organização transnacional e descentralizada, onde as pessoas se reúnem e compartilham comida vegana com pessoas, estejam elas em situação de rua ou não. Às vezes, é comida recuperada, outras, comida comprada e preparada para o compartilhamento, e até comida que eles mesmos cultivaram. O objetivo é envolver-se em ajuda mútua e abordar as prioridades de uma sociedade que constrói bombas e não moradias, que mutila, mas não alimenta.

Ao redor do mundo, de Tijuana a Manila e a Houston, esses grupos operam. Às vezes eles combatem determinações governamentais que criminalizam a atividades de sobrevivência, como a proibição da distribuição direta de alimentos aos sem-teto e outras vezes eles desempenham um papel em protestos e organização. Atualmente, o co-fundador Keith McHenry está construindo um fazenda educacional para continuar esse trabalho e se conectar mais diretamente com a construção de formas alternativas de produção.

Todas essas ações são significativas e mantêm uma trincheira contra um sistema absurdo. No entanto, embora esses modelos ofereçam espaços para ajuda mútua e demonstrem a insensatez fundamental do sistema, eles não criam alternativas de longo prazo para a produção de alimentos como um direito ao invés de como uma mercadoria. Isso exigiria uma reimaginação radical do sistema alimentar.

Atualmente, o movimento pela soberania alimentar, liderado pela Via Campesina e outras organizações, propõe integrar as idéias de ajuda mútua e autonomia no desenvolvimento de modelos alternativos de produção capazes de suplantar o atual sistema alimentar capitalista. Em sua Declaração de Nyeleni, eles descrevem o direito universal à alimentação: que “todos os povos, nações e Estados possam decidir seus próprios sistemas de produção de alimentos e políticas que proporcionem a cada um de nós alimentos de boa qualidade, adequados, acessíveis, nutritivos e culturalmente adequados”. No fundo, isso implica que as pessoas retomem a propriedade sobre os sistemas alimentares, gerenciando as próprias culturas por si mesmas ou em comunidade, para o bem comum.

Ações como o “Food Not Bombs” e o “freeganismo” trazem o núcleo dessa idéia, o estabelecimento de uma alimentação comum (coletiva), mas ainda precisam propor alternativas em grande escala capazes de suplantar o atual sistema alimentar capitalista de massa (embora os ativistas envolvidos nessas lutas sejam essenciais para qualquer construção futura de alternativas sustentáveis ​​e justas).

Não podemos dar continuidade a um modelo fracassado

No fim das contas, a principal diferença nas abordagens estratégicas para lidar com a fome não está entre essas estratégias anarquistas e outros programas socialistas de soberania. A divisão principal é entre uma facção liberal de esquerda que se apega à ideia errônea de que este sistema poderia ser reformado para servir às necessidades humanas e os radicais que insistem que isso não é possível.

A maioria dos formuladores de políticas não pretende lidar com o problema da escolha se os alimentos deveriam ser uma mercadoria ou um direito. A ONU e a FAO adotam estratégias que ignoram completamente a realidade dos imperativos capitalistas, enfatizando a tecnologia, os mercados e as políticas como panaceias para reorientar o sistema alimentar para ser mais justo e ecologicamente sustentável. Eles propõem que as pessoas apoiem “agricultores ou mercados locais e escolhas alimentares sustentáveis”, juntamente com “[o uso de] seu poder como consumidor e eleitor” – todas ações individualizadas que equivalem ao clichê “vote com o garfo”. Ou pegue o “objetivo do projeto” número três da iniciativa “Economize alimento”:

Aumentar a adoção de boas práticas para reduzir as perdas de alimentos em cadeias de valor específicas. Isso será feito por meio do fornecimento de uma plataforma para centralizar e compartilhar informações, desenvolver análises, criar os mecanismos de coordenação necessários e dar suporte à capacitação em Redução [de Perda e Desperdício de Alimentos].

Nem sinal do reconhecimento de que a própria estrutura do sistema alimentar produz o próprio problema que eles afirmam querer resolver.

Considerando o absurdo do sistema alimentar atual, isso está errado. Movimentos como o “freeganismo” e o “Food Not Bombs” têm destacado esses absurdos, não apenas dentro do sistema alimentar, mas também em como as decisões do tipo “armas versus pão com manteiga” levam a pessoas famintas.

Precisamos ir ainda mais longe: começar a construir organizações socialistas de alimentos capazes de produzir e distribuir alimentos desmercadificados.

O movimento pela soberania alimentar tem estado na liderança, descrevendo e implementando como isso pode ser. Sua visão envolve a reintegração do sistema alimentar na vida das comunidades, em oposição às cadeias de mercadorias globais isoladas das quais somos dependentes e alienados.

Embora não seja um modelo perfeito, a implementação do Período Especial do programa de soberania alimentar em Cuba demonstra possibilidades. Fábricas, escolas, hospitais e outras instituições-âncora de grande escala hoje possuem seus próprios jardins em funcionamento, capazes de fornecer produtos aos refeitórios. Comunidades de grande escala como o bairro de Alamar têm fazendas urbanas e apartamentos mantêm canteiros de culturas orgânicas de pequena escala.

As terras em usufruto foram ainda mais cooperativizadas e foram abertos espaços para a posse de terras em pequena escala. Tudo isso foi coordenado por uma legião de cientistas de várias disciplinas trabalhando por meio de um sistema participativo que vincula o conhecimento científico moderno ao conhecimento ecológico-cultural tradicional. O objetivo era alimento para uso, como um valor biológico que alimenta o corpo – sem lucro. Por meio desse programa, Cuba passou de uma redução de 30% nas calorias e proteínas diárias no início da crise, no início da década de 1990, para seus níveis mais altos de produção em 1997, segundo o estudioso Peter M. Rosset.

Outro exemplo é Basiléia, na Suíça, lar de uma bela experiência em economia social e solidária urbana, sobre a qual aprendi com Isidor Wallimann, sociólogo da Universidade de Syracuse. Em Basileia eles formaram a Basiléia de Economia Social, começando pela Associação de Economia Social em 1996. Isso gerou um município com sua própria moeda e crédito, capaz de sustentar uma economia local.

Esse controle direto sobre as forças de mercado deu à AES autonomia na resolução de problemas e gestão de recursos. Internamente para a AES, a rede de economia social é agora composta por 120 empresas e organizações sem fins lucrativos que utilizam a moeda alternativa e o sistema de crédito. Importante para os alimentos, a AES fundou a Associação da Rede de Agricultura Urbana da Basiléia (UAB, na sigla em inglês) em 2010 para “levar a cidade de Basileia em direção a uma política alimentar de ‘soberania alimentar’ em oposição a de ‘segurança alimentar’”.

Isso levou a mais de quarenta projetos no sistema alimentar, desde o modelo de agricultura apoiada pela comunidade (CSAs na sigla em inglês) – que conecta mais estreitamente o produtor e os consumidores no sistema alimentar, permitindo que o consumidor assine a colheita de uma determinada fazenda ou grupo de fazendas – até cooperativas, e a criação de mais de cinco mil hortas, tudo trabalhando em conjunto para produzir uma estrutura paralela de sistema alimentar.

Esses exemplos, e mais muitas outras lutas para construir sistemas alimentares alternativos, demonstram a capacidade que temos para nos afastar de nosso absurdo atual. Podemos alinhar os imperativos de produção e a inovação tecnológica na agricultura com uma lógica que busque alimentar as pessoas em vez do lucro. Fazendo isso, poderemos corrigir o principal motivo do desperdício de alimentos.

A fome não é uma inevitabilidade, ela é uma escolha. Podemos escolher acabar com ela.

Sobre o autor

Andrew Smolski é um escritor que vive no Texas e que contribui de maneira regular com o portal CounterPunch.

24 de março de 2017

Oscar Romero, presente

Neste dia, em 1980, o arcebispo salvadorenho Oscar Romero foi assassinado enquanto celebrava uma missa em uma conspiração arquitetada pela extrema direita apoiada pelos EUA. Ele dedicou sua vida à justiça social e à paz e seus assassinos nunca foram levados à justiça.

Micah Uetricht

Jacobin

A igreja conservadora escolheu Oscar Romero como arcebispo porque ele não tinha histórico de ativismo político ou opiniões políticas visíveis / Reprodução.

Tradução / Hoje, há 41 anos, Oscar Romero, o arcebispo católico de El Salvador, foi assassinado enquanto celebrava uma missa em uma conspiração arquitetada e executada por forças de extrema direita apoiadas pelos Estados Unidos.

Apesar da crescente onda de violência e repressão perpetrada por essas forças em seu país, a maior parte da vida de Romero como padre foi apolítica. Em um momento em que grande parte da liderança católica e leigos estavam sendo radicalizados e se juntando à luta contra a miserável desigualdade orquestrada pelas elites governantes militares salvadorenhos, a hierarquia da igreja conservadora o escolheu como arcebispo porque ele não tinha histórico de ativismo político ou opiniões políticas visíveis.

Mas quando um amigo próximo e companheiro do padre, Rutilio Grande, foi assassinado pela direita em 1977 por se organizar com os pobres, Romero mudou. Ele começou a usar sua posição para se manifestar contra o regime dominante e seus principais apoiadores, os Estados Unidos. Essa defesa levou ao seu assassinato apenas três anos depois.

Na véspera de seu assassinato, Romero fez seu discruso mais famosa na catedral nacional de San Salvador, transmitida por rádio para todo o país, na qual falou diretamente aos soldados do país:

Gostaria de fazer um apelo especial aos homens do exército e, em particular, às tropas da Guarda Nacional, à polícia, às guarnições. 
Irmãos, vocês são parte de nosso próprio povo. Você mata seus próprios irmãos camponeses. Diante de uma ordem dada por um homem, a lei de Deus que diz “não matarás” deve prevalecer. 
Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem contrária à lei de Deus. Ninguém precisa cumprir uma lei imoral. 
Chegou a hora de você recuperar sua consciência e obedecer aos seus ditames, em vez da ordem do pecado. A Igreja, defensora dos direitos de Deus, da lei de Deus, da dignidade humana, da dignidade pessoal, não pode calar-se perante tal abominação. Queremos que o governo leve a sério que suas reformas não significam nada se vierem banhadas em tanto sangue. 
Em nome de Deus, então, e em nome deste povo sofredor cujos gritos sobem ao céu cada vez mais tumultuosamente, eu te imploro, eu te imploro, eu te ordeno, em nome de Deus, pare com a repressão!

Como a morte de Romero ocorreu no momento em que a guerra civil salvadorenha estava começando, e El Salvador continuou a ser governado por um regime de extrema direita que tinha pouco interesse em expor a verdade sobre sua morte até 2009, ninguém foi responsabilizado pelo assassinato até um grupo de direitos humanos com sede nos Estados Unidos, o Center for Justice and Accountability, começar a montar um processo contra os homens responsáveis pelo assassinato. Matt Eisenbrandt foi um desses advogados, e ele conta a história da morte de Romero e o caso contra seus assassinos em Assassination of a Saint: The Plot to Murder Oscar Romero and the Quest to Take Your Killers to Justice.

Em fevereiro, entrevistei Eisenbrandt sobre o livro, discutindo a transformação e o assassinato de Romero, a história da guerra civil salvadorenha e a responsabilidade dos Estados Unidos num conflito que viu alguns dos abusos mais brutais dos direitos humanos do século XX.

Você pode escutar a entrevista aqui.

Sobre o autor

Micah Uetricht é o editor-chefe de Jacobin e apresentador de The Vast Majority, da Jacobin Radio. Ele é o autor de Strike for "America: Chicago Teachers Against Austerity" e co-autor de "Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism".

20 de março de 2017

A China regrediu ao capitalismo? Reflexões sobre a transição do capitalismo para o socialismo

Domenico Losurdo


International Critical Thought, Volume 7, Issue 1 (2017)

1. A Rússia Soviética e as várias experiências no pós-capitalismo

Tradução / Hoje em dia é comum falar sobre a restauração do capitalismo na China como resultado da Reforma e Abertura de Deng Xiaoping. Mas qual é a base desse julgamento? Existe algum tipo de socialismo que pode ser comparado com a realidade da atual situação socioeconômica na China hoje? Vamos dar uma rápida olhada no histórico de tentativas de criar uma sociedade pós-capitalista. Se analisarmos os primeiros 15 anos da Rússia soviética, vemos o comunismo de guerra, então a Nova Política Econômica (NEP) e, finalmente, a completa coletivização da economia (incluindo a agricultura) em rápida sucessão. Estes foram três experimentos totalmente diferentes, mas todos eles foram uma tentativa de construir uma sociedade pós-capitalista. Porque deveríamos ficar chocados que, ao longo dos mais de 80 anos que se seguiram dessas experiências, outras variações como socialismo de mercado e o socialismo chinês surgiram? Vamos nos concentrar por enquanto na Rússia soviética: qual dos três experimentos mencionados é o mais próximo do socialismo defendido por Marx e Engels? O comunismo de guerra foi recebido pelo devoto católico francês Pierre Pascal, então em Moscou, como uma: “única e extasiante realização [...] Os ricos se foram: restam somente os pobres e os muito pobres [...] altos e baixos salários se aproximam. O direito de propriedade é reduzido a bens pessoais” (cf. Losurdo 2013, 185).

Este autor leu a pobreza e a privação generalizadas, não como miséria causada pela guerra, a ser superada o mais rápido possível; aos olhos dele, desde que sejam distribuídas de forma mais ou menos igual, pobreza e carência são uma condição de pureza e excelência moral; pelo contrário, riqueza e fartura são pecados. É uma visão que podemos chamar populista, que foi criticada com grande precisão pelo Manifesto Comunista: não há “nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão um verniz socialista”; “os primeiros movimentos do proletariado” frequentemente apresentam reivindicações em nome de um “ascetismo universal e um igualitarismo grosseiro” (Marx e Engels 1955-89, vol. 4, 484, 489;). A orientação de Lenin era o oposto da de Pascal, pois ele estava longe de considerar que o socialismo seria a coletivização da pobreza, uma distribuição mais ou menos igualitária da privação. Em outubro de 1920 (“As tarefas das Uniões da Juventude”) Lenin declarou: “Queremos transformar a Rússia de um país pobre e miserável em um país rico” (Lenin 1955-70, vol. 31, 283–84;). Primeiro, o país precisava ser modernizado e conectado com eletricidade; portanto, necessitava de “trabalho organizado” e “consciência de trabalho disciplinado”, superando a anarquia no local de trabalho, a partir da assimilação das “últimas realizações técnicas”, se necessário, importando-as dos países capitalistas mais avançados (Lenin 1955-70, vol. 31, 283–84;). Alguns anos depois, a NEP entrou em vigor. Era essencial superar a desesperada pobreza e fome em massa que se seguiram à catástrofe da Primeira Guerra Mundial e a guerra civil, e para reiniciar a economia e desenvolver as forças produtivas.

Isso foi necessário não apenas para melhorar as condições de vida das pessoas e ampliar a legitimidade do poder revolucionário; também foi sobre evitar o aumento do atraso no desenvolvimento da Rússia em comparação com os países de capitalismo avançado, o que poderia afetar a segurança nacional do país que acabara de emergir da Revolução, afinal estavam sob o cerco das potências imperialistas. Para atingir esses objetivos, o governo soviético utilizou a iniciativa privada e uma parte (limitada) da economia capitalista; usou especialistas “burgueses” que foram recompensados generosamente, e procurou obter tecnologia e capital avançados, que também seriam compensados generosamente, do Ocidente capitalista. A NEP teve resultados positivos: a produção foi retomada, e um certo desenvolvimento das forças produtivas começou a ocorrer. No geral, a situação na Rússia soviética melhorou notavelmente: e a nível internacional não houve uma deterioração; na verdade, o atraso no desenvolvimento da Rússia começou a diminuir em comparação com os países capitalistas bem-sucedidos. Internamente, as condições de vida das massas melhoraram significativamente. Precisamente porque a riqueza social aumentou, havia mais do que “os pobres e os muito pobres”, como no comunismo de guerra comemorado por Pierre Pascal; a miséria e a fome desapareceram, mas as desigualdades sociais aumentaram.

Essas desigualdades na Rússia soviética provocaram um sentimento generalizado e intenso de traição aos ideais originais. Pierre Pascal não foi o único a querer abandonar o Partido Comunista da União Soviética; havia literalmente dezenas de milhares de trabalhadores bolcheviques que rasgaram suas cartas do partido com repulsa da NEP, que rebatizaram de “Nova Extorsão do Proletariado”. Na década de 1940, um militante comum descreveu com muita proeza a atmosfera espiritual que prevalecia logo após a Revolução de Outubro – a atmosfera surgiu do horror da guerra causado pela competição imperialista pelas colônias para conquistar mercados e adquirir matérias-primas, bem como pelos capitalistas em busca de lucro e super lucro:

Nós, jovens comunistas, todos crescemos na crença de que o dinheiro seria descartado uma vez por todas. [...] Se o dinheiro estivesse reaparecendo, as pessoas ricas não reapareceriam também? Nós não estaríamos descendo a tortuosa ladeira que levaria de volta ao capitalismo? (Figes 1996, 771)

Portanto, pode-se entender o escândalo e o sentimento persistente de repugnância pelo mercado e pela economia mercadológica na introdução da NEP; foi principalmente o crescente perigo de guerra que causou o abandono da NEP e a remoção de todos os vestígios da economia privada. A coletivização forçada da agricultura do país provocou uma guerra civil que foi travada sem piedade por ambos os lados. E, no entanto, após essa terrível tragédia, a economia soviética pareceu prosseguir maravilhosamente: o rápido desenvolvimento da indústria moderna se entrelaçou com a construção de um estado de bem-estar social que garantiu direitos econômicos e sociais dos cidadãos de uma maneira sem precedentes. Este, no entanto, foi um modelo que entrou em crise após algumas décadas.

Com a transição da grande crise histórica para um período mais tranquilo (“coexistência pacífica”), o entusiasmo e o comprometimento das massas com a produção e o trabalho enfraqueceram e desapareceram. Nos últimos anos de sua existência, a União Soviética foi caracterizada por ausências e desengajamento maciço no local de trabalho: não apenas o desenvolvimento da produção estagnou, mas não havia mais nenhuma aplicação do princípio segundo o qual Marx afirmava impulsionar o socialismo — remuneração de acordo com a quantidade e qualidade do trabalho entregue. Era possível dizer que, durante o estágio final da sociedade soviética, a dialética da sociedade capitalista que Marx descreveu em A Miséria da Filosofia foi derrubada:

Enquanto que no interior da oficina moderna a divisão do trabalho é minuciosamente regulada pela autoridade do industrial, a sociedade moderna não tem outra regra, outra autoridade, para distribuir o trabalho, senão a livre concorrência. […] Pode-se, mesmo, estabelecer como regra geral, que quanto menos a autoridade preside à divisão do trabalho no interior da sociedade, mais a divisão do trabalho se desenvolve no interior da oficina, e mais ela é aí submetida à autoridade de um só. Assim, a autoridade na oficina e a autoridade na sociedade, em relação à divisão do trabalho, estão em relação inversa uma da outra.

Nos últimos anos da União Soviética, o rígido controle exercido pelo poder político sobre a sociedade civil coincidiu com uma quantidade substancial de anarquia nos locais de trabalho. Foi a reversão da dialética da sociedade capitalista, mas a derrubada da dialética da sociedade capitalista não era socialismo e, portanto, produziu uma ordem econômica fraca, incapaz de resistir às ofensivas ideológicas e políticas do mundo capitalista-imperialista.

2. A peculiaridade da experiência chinesa

A história da China é diferente. Embora o Partido Comunista da China tenha tomado o poder no nacional em 1949, 20 anos antes, já havia começado a exercer seu poder em uma região ou outra, regiões cujo tamanho e população eram comparáveis às de um pequeno ou médio país europeu. Durante esses 85 anos no poder, a China, governada parcial ou totalmente pelos comunistas, caracterizou-se pela coexistência de diferentes formas de economia e propriedade. Foi assim que Edgar Snow descreveu a situação no final da década de 1930 nas áreas “liberadas”:

Para garantir o sucesso nessas tarefas, era necessário que os comunistas, desde os primeiros dias, iniciassem algum tipo de construção econômica. [...] A economia soviética no noroeste era uma curiosa mistura de capitalismo privado, capitalismo de Estado e socialismo primitivo. As empresas e as indústrias privadas foram permitidas e incentivadas, e as transações privadas relacionadas à terra e seus produtos foram permitidas com restrições. Ao mesmo tempo, o Estado possuía e explorava empresas como petroleiras, refinarias de sal e mineradoras de carvão, além disso, comercializava gado, couro, sal, lã, algodão, papel, e outras matérias-primas. Mas o Estado não estabeleceu um monopólio nesses artigos e em todos eles as empresas privadas poderiam, em até certo ponto, competir. Um terceiro tipo de economia foi criado pelo estabelecimento de cooperativas, nas quais o governo e as massas participavam como parceiros, competindo não apenas com o capitalismo privado, mas também com o capitalismo de Estado! (Snow [1937] 1972, 262)

Este retrato é confirmado por um historiador moderno: em Yan’an, a cidade onde Mao Zedong dirigiu a luta contra o imperialismo japonês e promoveu a construção da Nova China, o Partido Comunista da China(PCCh) não pretendia “controlar toda a base econômica da área ”. Ele supervisionava uma ”significativa economia privada”, que também incluía “grandes propriedades privadas” (Mitter 2014, 192).

Em um ensaio de janeiro de 1940 (“A Nova Democracia na China”), Mao Zedong esclareceu as significado da revolução ocorrendo na época:

Ainda que, de acordo com o seu caráter social, a primeira fase da primeira etapa desta revolução colonial e semi-colonial seja fundamentalmente democrático-burguesa, e seus objetivos concretos sejam afastar os obstáculos que impedem o desenvolvimento do capitalismo, esta espécie de revolução não é mais do velho tipo, dirigido somente pela classe burguesa e visando simplesmente o estabelecimento de uma sociedade capitalista ou de um país sob a ditadura da classe burguesa, mas sim de um novo tipo dirigido inteira ou parcialmente pelo proletariado e objetivando o estabelecimento de uma nova sociedade democrática ou de um país governado, em sua primeira etapa, pela aliança de diversas classes revolucionárias. Este tipo de revolução, devido às variações da situação do inimigo e nas condições desta aliança, pode ser dividido num certo número de fases durante o seu processo, mas nenhuma mudança ocorrerá em seu caráter fundamental, que será o mesmo até o advento da revolução socialista.

Esse era um modelo caracterizado, no nível econômico, pela coexistência de diferentes formas de propriedade; no nível do poder político, era uma ditadura exercida pelas “classes revolucionárias”, bem como pela liderança do Partido Comunista da China. Um padrão confirmado 17 anos depois, embora neste período de tempo a República Popular da China tenha sido fundada, em um discurso no dia 18 de janeiro de 1957 (“Discursos na conferência de Secretários dos Comitês Partidários de províncias, municípios e regiões autônomas”):

Quanto à acusação de que nossa política urbana se desviou para a direita, esse parece ser o caso, afinal nos comprometemos a oferecer aos capitalistas uma taxa de juros fixa por um período de sete anos. O que deve ser feito após esses sete anos? Isso deve ser decidido de acordo com as circunstâncias prevalecentes na época. É melhor deixar o assunto em aberto, ou seja, continuar dando a eles uma certa quantia em juros fixos. A este pequeno custo, estamos comprando esta classe. [...] Ao comprar essa classe, nós os privamos de seu capital político e mantemos suas bocas fechadas. [...] Assim, o capital político não estará em suas mãos, mas nas nossas. Devemos privá-los de cada parte de seu capital político e continuar a fazê-lo até que não lhes reste nada. Portanto, não se pode dizer que nossa política urbana se desviou para a direita. (Mao 1965–77, vol. 5, 357)

Trata-se, portanto, de distinguir entre a expropriação econômica e a expropriação política da burguesia. Somente este último deve ser realizado até o fim, enquanto o primeiro, se não for feito sob limites bem definidos, pode comprometer o desenvolvimento das forças produtivas. Ao contrário do “capital político”, o capital econômico da burguesia não deve estar sujeito à desapropriação total, pelo menos enquanto servir para o desenvolvimento da economia nacional e, portanto, indiretamente, à causa do socialismo.

Após nascer na segunda metade da década de 1920, este modelo demonstrou uma notável capacidade de continuidade e ofereceu grande vitalidade econômica antes de 1949 às áreas “liberadas” governadas pelos comunistas e depois pela República Popular da China como um todo. O momento dramático ocorreu com o Grande Salto Adiante de 1958–59 e com a Revolução Cultural desencadeada em 1966. A coexistência de diferentes formas de propriedade e o uso de incentivos materiais foram descartados radicalmente. Houve uma ilusão de acelerar o desenvolvimento econômico através de apelos à mobilização em massa e ao entusiasmo das massas, mas essa abordagem e essas tentativas falharam miseravelmente. Além disso, a luta de todos contra todos aumentou a anarquia nas fábricas e locais de produção.

A anarquia era tão difundida e profundamente enraizada que não desapareceu imediatamente após as reformas introduzidas por Deng Xiaoping. Por algum tempo, a alfândega funcionou, no setor público, como descrito por uma testemunha e um estudioso ocidental: “o último atendente [...], caso queira, pode decidir não fazer nada, ficar em casa por um ano ou dois e ainda receber seu salário no final do mês.”

A “cultura da preguiça” também infectou o setor privado, em expansão, da economia.

“Os ex-funcionários do Estado [...] chegam tarde, depois leem o jornal, vão à cantina meia hora mais cedo, saem do escritório uma hora mais cedo” e muitas vezes se ausentavam por razões familiares, como por exemplo, “minha esposa está doente”. Os executivos e técnicos que tentaram introduzir disciplina e eficiência no local de trabalho foram forçados a enfrentar não apenas a resistência e a indignação moral dos funcionários (que achavam infâmia a aplicação de uma multa a um trabalhador ausente que cuida de sua esposa), mas às vezes até ameaças de violência (Sisci 1994, 86, 89, 102).

Assim, houve um paradoxo. Depois de se distinguir por décadas por sua história peculiar e seu compromisso de estimular a produção através da competição, não apenas entre indivíduos, mas também entre diferentes formas de propriedade, a China que surgiu da Revolução Cultural assemelhava-se e muito à União Soviética em seus últimos anos de existência: o princípio socialista da compensação baseado na quantidade e na qualidade do trabalho exercido foi substancialmente liquidado e o descontentamento, o desengajamento, absenteísmo e anarquia reinaram no local de trabalho. Antes de serem expulsos do poder, a “Camarilha dos Quatro” tentou justificar a estagnação econômica, defendendo a ideia de um socialismo que é ‘pobre’, mas ‘bonito’, o “socialismo” populista que nos primeiros anos da Rússia soviética eram queridos por Pierre Pascal, o fervoroso católico a quem conhecemos anteriormente.

O populismo se tornou o alvo das críticas de Deng Xiaoping. Ele pediu aos marxistas que percebessem “que pobreza não é socialismo, que socialismo significa eliminar a pobreza”.

Ele queria que uma coisa fosse absolutamente clara: “A menos que você esteja desenvolvendo as forças produtivas e elevando o padrão de vida das pessoas, não pode dizer que está construindo o socialismo”. […] não pode haver comunismo com pauperismo ou socialismo com pauperismo. Então, tornar-se rico não é pecado ” (Deng 1992–95, vol. 3, 122, 174).

Deng Xiaoping teve o mérito histórico de entender que o socialismo nada tinha a ver com a distribuição mais ou menos igualitária de pobreza e privação. Aos olhos de Marx e Engels, o socialismo era superior ao capitalismo, não apenas porque assegurava uma distribuição mais equitativa dos recursos, mas também, e principalmente, porque assegurava um desenvolvimento mais rápido e igualitário da riqueza social e, para atingir esse objetivo, o socialismo estimularia a concorrência afirmando e pondo em prática o princípio da remuneração de acordo com a quantidade e a qualidade do trabalho exercido.

As reformas de Deng Xiaoping reintroduziram na China o modelo que já conhecemos, embora dando a ele mais coerência e radicalismo. O fato é que a coexistência de diferentes formas de propriedade foi contraposta por um rígido controle estatal dirigido pelo Partido Comunista da China. Se analisarmos a história da China, não a partir da fundação da República Popular, mas logo que as primeiras áreas “liberadas” foram criadas e governadas por comunistas, descobriremos que não foi a China das reformas de Deng Xiaoping, mas a China nos anos do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural que foram a exceção ou a ‘anomalia’.

3. Marxismo ou Populismo? Um confronto de Longa Duração

Muito além das fronteiras da Rússia e da China, durante o século XX e até agora, o populismo influenciou e ainda influencia negativamente a leitura das grandes revoluções que mudaram radicalmente a face do mundo. Nesse sentido, podemos dizer que, depois de ter desempenhado um papel essencial no século XX, o conflito entre populismo e marxismo está longe de terminar.

Pascal condenou o abandono do comunismo de guerra, ou da sociedade em que existem “apenas os pobres e os muito pobres”, e é exatamente por isso que aquela estava livre das tensões e brechas causadas pela desigualdade e pela polarização social. A atitude adotada pelos cristãos fervorosos da época em Moscou não se limitava à Rússia soviética. Traços de populismo podem ser achados no jovem Ernst Bloch. Em 1918, quando publicou a primeira edição do Espírito da Utopia, ele pediu aos soviéticos que realizassem uma “transformação do poder em amor” e pusessem fim não apenas a “toda economia privada”, mas também a qualquer “economia monetária” e com ela os “valores mercantis que consagram o que há de mais mau no homem”(Bloch [1918] 1971, 298). Aqui, a tendência populista estava entrelaçada com o messianismo: não foi dada atenção à tarefa de reconstruir a economia e desenvolver as forças produtivas de um país destruído pela guerra e com um histórico marcado por fomes recorrentes e devastadoras. O horror sanguinário da Primeira Guerra Mundial estimulou o sonho de uma comunidade satisfeita com os escassos recursos materiais disponíveis e que somente nessa circunstância, livre de preocupações com riqueza e poder, as pessoas podem viver protegidas da “economia monetária” e viver “em amor”

Quando ele publicou a segunda edição do Espírito da Utopia, em 1923, Bloch acreditava que era apropriado excluir as passagens populistas e messiânicas, como mencionado anteriormente. No entanto, o estado de espírito e a visão que inspiraram essas passagens não desapareceram nem na União Soviética nem fora dela. A transição para a NEP encontrou talvez seus críticos mais sentimentais entre os militantes e também entre os líderes comunistas do ocidente. Quanto a eles, no “Relatório Político” apresentado ao XI Congresso do Partido Comunista, realizado em 27 de março de 1922, Lenin escreveu sarcasticamente:

Vendo que estávamos recuando, alguns deles causaram agitação, infantilmente e vergonhosamente, até mesmo chorando, como aconteceu na última grande sessão do Comitê Executivo da Internacional Comunista. Motivados pelos melhores sentimentos comunistas e pelos mais ardentes aspirações comunistas, alguns amigos começaram a chorar. (Lenin 1955–70, vol. 33, 254–55;)

Antonio Gramsci teve uma posição diferente, que foi expressa dessa forma:

O coletivismo da pobreza e do sofrimento será o começo. Mas essas mesmas condições de pobreza e sofrimento seriam herdadas de um regime burguês. O capitalismo não pôde fazer mais do que o coletivismo fez na Rússia. Hoje, faria ainda menos, porque iria de encontro a uma massa de proletários infelizes e frenéticos, agora incapazes de suportar a dor e a amargura que as dificuldades econômicas poderiam trazer. [. . .] O sofrimento que virá depois da paz será tolerado apenas porque os trabalhadores sentem que é sua vontade e sua determinação trabalhar para suprimi-lo o mais rápido possível. (Gramsci
1982, 516;)

Nesse contexto, o comunismo de guerra prestes a prevalecer na Rússia soviética era ao mesmo tempo legitimado taticamente e deslegitimado estrategicamente, legitimado imediatamente e deslegitimado ao se tomar em conta o futuro. O “coletivismo da pobreza e do sofrimento” é justificado pelas condições específicas vigentes na Rússia na época: o capitalismo não seria capaz de fazer qualquer coisa melhor. Entendeu-se, no entanto, que a privação de bens tinha que ser superada o mais rápido possível.

Precisamente por esse motivo, Gramsci não teve dificuldade em se reconhecer na NEP, cujo significado ele deixou bem claro em sua postura de outubro de 1926: a realidade da União Soviética nos colocou na presença de um fenômeno “nunca antes visto na história”. A classe politicamente “dominante”, “como um todo”, se encontra “em condições de vida inferiores a certos elementos e estratos da classe [politicamente] dominada” (Gramsci [1926] 1971, 129–30). A grande massa de pessoas que continuaram sofrendo uma vida de dificuldades ficaram confusas com o espetáculo do “NEPman bem-vestido que tem à sua disposição todos os bens da terra” (129–30). E, no entanto, isso não deve constituir motivo para um escândalo ou sentimentos de repugnância, porque o proletariado, como não pode ganhar poder, também não pode manter o poder, se não for capaz de sacrificar seus interesses individuais e imediatos aos “interesses permanentes da classe” (129–30). Quem vê a NEP como sinônimo de um retorno ao capitalismo cometeu dois erros graves: ignorar a questão da luta contra a pobreza generalizada e, portanto, o desenvolvimento das forças produtivas; eles também erroneamente identificaram a classe economicamente privilegiada e a classe politicamente dominante.

Uma leitura da NEP não muito diferente da de Gramsci veio de outro grande intelectual do século XX. Walter Benjamin, que, depois de voltar de uma viagem para Moscou em 1927, resumiu suas impressões:

Numa sociedade capitalista, poder e dinheiro tornaram-se de igual dimensão. Qualquer quantia de dinheiro pode ser convertida em uma porção bem definida de poder e o valor de troca de todo poder é calculável. [. . .] O estado soviético interrompeu essa relação de dinheiro e poder. O Partido, é claro, reserva poder para si; no entanto, deixa o dinheiro para o NEPman. (citado em Losurdo 2013, 227–28;)

Este último, no entanto, passou por um “terrível isolamento social”. Para Benjamin também não havia correspondência entre riqueza econômica e poder político. A NEP não tinha nada a ver com a restauração do poder burguês e capitalista. A Rússia soviética não tinha opção a não ser se engajar na reconstrução da economia e no desenvolvimento das forças produtivas. A tarefa foi dificultada pela persistência de costumes que não eram adequados para uma sociedade industrial moderna. Em Moscou, Benjamin foi testemunha direta de uma exibição muito instrutiva:

Nem mesmo na capital russa existe, apesar de toda a ‘racionalização”, uma noção do valor do tempo. O Instituto Sindical do Trabalho, por meio de pôsteres, travou [. . .] uma campanha por pontualidade [. . .] ‘tempo é dinheiro’; para dar crédito a um elemento tão estranho, eles tiveram que recorrer à autoridade de Lenin nos pôsteres. Então, essa mentalidade é estranha para os russos. Seu instinto lúdico prevalece sobre tudo [. . .] Se, por exemplo, uma cena de filme está sendo filmada na rua, eles esquecem para onde estão indo e por quê, ficam na fila atrás da equipe por horas e chegam ao trabalho confusos. (citado em Losurdo 2013, 184; traduzido do italiano)

Pascal também testemunhou os desenvolvimentos na Rússia soviética, formando uma opinião de forte condenação: agora em Moscou e no resto do país, tudo girava em torno da questão de se “a industrialização deve ser um pouco mais rápida ou um pouco mais lenta”, em torno do problema de “como conseguir o dinheiro necessário”. As conseqüências dessa nova abordagem, que deixou de lado “todo propósito revolucionário”, foram devastadoras: sim, “no nível material, nos aproximamos da americanização, um grande desenvolvimento da riqueza nacional”, mas qual custo disso?

“A massa dócil se tornou escrava da riqueza nacional, de seu trabalho, de sua exploração. Há uma recuperação econômica, mas a revolução está enterrada ”(Pascal 1982, 33–34;).

O grande escritor austríaco Joseph Roth, não envolvido no movimento comunista, chegou às mesmas conclusões. Ao visitar a terra dos soviéticos entre setembro de 1926 e janeiro de 1927, ele expressou sua decepção com a “americanização” em andamento. “Eles desprezam a América, lugar do capitalismo desalmado; o país onde o ouro é Deus. Mas eles admiram a América, ou seja, admiram o progresso, o ferro elétrico, a higiene e o sistema hidráulico” (citado em Losurdo 2013, 192;). Concluindo: “Esta é uma Rússia moderna, tecnicamente avançada, com ambições americanas. Isto não é
mais a Rússia” (citado em Losurdo 2013, 192;). O “vazio espiritual” se abriu em um país que inicialmente despertou muitas esperanças[1].

Como Pascal, Roth também expressou seu desagrado pela “americanização” em andamento. Esses foram os anos em que os bolcheviques se engajaram na reconstrução e desenvolvimento da economia para tentar aprender com os países capitalistas mais avançados e os Estados Unidos em particular. Em março e abril de 1918 (“As Tarefas Imediatas do Poder Soviético”), Lenin observou que “Em comparação com as nações avançadas, o russo é um mau trabalhador”; portanto, ele deve “aprender a trabalhar”, assimilando criticamente os “ o que há de científico e progressivo no sistema de Taylor” desenvolvido e implementado na República da América do Norte (Lenin 1955–70, vol. 45, 27, 231). Na mesma onda, Bukharin proclamou em 1923: “Precisamos adicionar o americanismo ao marxismo” (citado em Losurdo 2007, capítulo III, § 2). No ano seguinte, Stalin fez um apelo significativo aos quadros bolcheviques: se eles realmente queriam estar no auge dos “princípios do leninismo”, deveriam tentar tecer “impulsos revolucionários russos” com “a abordagem prática americana” (citado em Losurdo 2007, capítulo III, § 2). “Americanismo” e “a abordagem prática americana” eram aqui sinônimos para o desenvolvimento de forças produtivas e a fuga da pobreza ou escassez: o socialismo não é o compartilhamento igualitário da pobreza ou privação, mas a superação definitiva e generalizada dessas condições.

Fora da Rússia, Gramsci combatia o populismo com rigor e consistência. Como sabemos, ele enfatizou desde o início a necessidade de um fim rápido para esse “coletivismo da pobreza e sofrimento”. Era uma posição política que tinha como fundamento uma visão teórica mais ampla. L’Ordine Nuovo (a Nova Ordem) — o semanário que ele fundou na esteira da Revolução de Outubro na Rússia — junto com o movimento para ocupar fábricas na Itália, pediu aos trabalhadores revolucionários que lutassem por salários e, portanto, por uma distribuição mais equitativa da riqueza social, mas também, principalmente, que os “produtores” assumissem o “controle da produção” e do “desenvolvimento de planos de trabalho”. Ao fazer isso, para promover também o desenvolvimento das forças produtivas, os trabalhadores revolucionários devem saber como fazer uso da “mais avançada tecnologia industrial” que “(de certo modo) é independente do método de apropriação dos ativos produzidos”, ou seja, possui autonomia do capitalismo ou do socialismo (Gramsci 1987, 622, 607–8, 624;). Não por acaso, entre outubro e novembro de 1919, L’Ordine Nuovo dedicou vários artigos ao taylorismo, a análise começou com a mais análise da distinção entre “ricas conquistas científicas” (mencionadas por Lenin) e seu uso capitalista. Nesse sentido, os Cadernos do Cárcere mais tarde observaram que L’Ordine Nuovo já havia reivindicado seu “americanismo” (Gramsci 1975, 72;). Era o americanismo que Lenin, Bukharin e Stalin se referenciavam, direta ou indiretamente.

Deve ficar claro que este é um americanismo que de forma alguma descarta um julgamento e uma clara condenação do capitalismo e imperialismo dos EUA. Aos olhos de Gramsci, este era um país que, apesar de suas profissões de fé democrática, impôs escravidão aos negros por um longo tempo e que, mesmo após a Guerra Civil, foi caracterizado por um regime de supremacia branca, como mostrado pelo “linchamento de negros levados a cabo por multidões incitadas por comerciantes atrozes despojados de carne humana” (Losurdo 1997, capítulo II, 11–12;). Esse terrorismo também se manifestou em termos de política externa: os EUA ameaçaram privar os russos do grão necessário para sua sobrevivência e, portanto, matar de fome as pessoas que sentiram a força da Revolução de Outubro e foram tentadas a seguir seu exemplo.

O “americanismo”, entendido como elemento do desenvolvimento das forças produtivas, levou Gramsci, no início dos anos 30, a saudar com entusiasmo o lançamento do primeiro plano quinquenal soviético: o desenvolvimento econômico e industrial do país que emergiu da Revolução de Outubro foi a prova de que, longe de estimular “fatalismo e passividade”, de fato, “o conceito de materialismo histórico [. . .] dá origem a um florescimento de iniciativas e empresas que surpreendem muitos observadores ”(Gramsci 1975, 893, 2763–64;). O materialismo e o marxismo mostraram a capacidade de influenciar concretamente a realidade, não apenas inspiradoras revoluções como a que ocorreu na Rússia, mas também promovendo o crescimento da riqueza social e libertando as massas de séculos de pobreza e privação.

Mais desapontada do que nunca, até mesmo indignada com os desenvolvimentos na Rússia soviética, no entanto, foi Simone Weil que em 1932 procedeu a um confronto final com o país que ela olhava inicialmente com simpatia e esperança: a Rússia soviética acabou tomando da América, a eficiência, a produtividade e o “taylorismo” como seus modelos. Já não havia mais dúvidas.

O fato de Stalin, sobre esta questão, que está no centro do conflito entre capital e trabalho, ter abandonado a visão de Marx e ter sido seduzido pelo sistema capitalista em sua forma mais perfeita, mostra que a URSS ainda está longe de ter uma cultura proletária. (Weil 1989–91, 106–7)

De fato, a posição adotada aqui não tinha nada a ver com Marx e Engels: de acordo com o Manifesto Comunista, o capitalismo está destinado a ser superado porque, após o rápido desenvolvimento das forças produtivas, estas tornariam-se um obstáculo a seu contínuo desenvolvimento, como confirmado pelas crises recorrentes de superprodução. Esta, profundamente cristã, filósofa francesa, também inclinada ao populismo, reconheceu o país que emergiu da Revolução de Outubro apenas até o estágio de distribuição mais ou menos igual da pobreza ou privação; depois, além de romper com a Rússia soviética, Weil também rompeu com Marx e Engels.

4 – Desigualdade Global e Desigualdade na China

O populismo continua a influenciar fortemente o julgamento desdenhoso que a esquerda ocidental transmite a China de hoje. Um fato é que as reformas introduzidas por Deng Xiaoping estimularam um boom econômico sem precedentes na história, com milhões de pessoas libertadas da pobreza, mas isso é basicamente irrelevante para os populistas.

A eliminação da extrema pobreza em massa aconteceu concomitantemente ao aumento da desigualdade? A resposta dessa pergunta é menos óbvia do que pode parecer à primeira vista. Ao longo da história, os partidos comunistas conquistaram o poder apenas em países relativamente subdesenvolvidos econômica e tecnologicamente; por esse motivo, eles tiveram que lutar contra não um, mas dois tipos de desigualdade: 1) a desigualdade existente em escala global entre os países mais e menos desenvolvidos; e 2) a desigualdade existente internamente em cada país. Somente se levarmos em consideração os dois lados da luta, podemos fazer um balanço sóbrio da política de Reforma e Abertura. No que diz respeito ao primeiro tipo de desigualdade, não há dúvida: internacionalmente, a desigualdade global está se nivelando. Sim, a China está gradualmente alcançando os países capitalistas ocidentais mais avançados. É um ponto de virada!

Nos últimos anos do século XX, um proeminente cientista político americano observou que, se o processo de industrialização e modernização iniciado com Deng Xiaoping fosse bem-sucedido:

“O surgimento da China como uma das principais potências superará qualquer fenômeno até a metade do segundo milênio” (Huntington 1996, 231).

Cerca de 15 anos depois, novamente com referência ao prodigioso desenvolvimento desse grande país asiático, um historiador britânico não menos ilustre observou:

“O que estamos vivendo agora é o fim de 500 anos de predominância ocidental” (Ferguson 2011, 322).

Os dois os autores citados aqui compartilham a mesma visão enfática do tempo. Cerca de cinco séculos atrás, a descoberta/conquista da América ocorreu. Em outras palavras, o extraordinário desenvolvimento da China está terminando ou promete terminar a “época colombiana”, um período caracterizado pela desigualdade extrema nas relações internacionais: a liderança hegemônica do Ocidente na economia, tecnologia e poderio militar permitiu subjugar e saquear o resto do mundo por séculos.

A luta contra a desigualdade global faz parte da luta contra o colonialismo e o neocolonialismo. Mao entendeu bem isso e, em um discurso proferido em 16 de setembro de 1949 (“A falência da concepção idealista da história”) alertou que Washington quer a China dependente “da farinha americana, em outras palavras, para se tornar uma colônia americana” (Mao 1965–1977, vol. 4, 453). De fato, a recém-fundada República Popular da China tornou-se alvo de um embargo mortal imposto pelos Estados Unidos. Seus objetivos são claros nos estudos realizados pela administração Truman e as confissões e declarações das figuras mais importantes. Começou a partir da premissa de que o tipo de medida que poderia derrotar e derrubar o governo comunista “é econômico e não militar ou político.” E, portanto, eles precisavam garantir que a China sofresse o flagelo de um “padrão geral de vida ao redor ou abaixo do nível mínimo de subsistência”; Washington estava comprometida a causar “atraso econômico” e “atraso cultural” e conduzir um país de “necessidades desesperadas” para “uma situação econômica catastrófica”, rumo ao “desastre” e “colapso” (Zhang 2002, 20–22, 25, 27). Na Casa Branca, um presidente sucede a outro, mas o embargo permanece, e é tão implacável que inclui remédios, tratores e fertilizantes (Zhang 2002, 83, 179, 198). Em resumo: no início dos anos 60, um colaborador do governo Kennedy, Walt W. Rostow, apontou que, graças a essa política, o desenvolvimento econômico da China foi adiado por pelo menos “dezenas de anos” (Zhang 2002, 250).

Não há dúvida: as reformas de Deng Xiaoping estimularam a luta contra a desigualdade global e, assim, colocaram a independência econômica (e política) da China em destaque. A alta tecnologia também não é mais monopólio do Ocidente. Agora, vemos a possibilidade de superar a divisão internacional do trabalho, que há séculos sujeita pessoas fora do Ocidente a uma condição servil ou semi-servil ou as relegam para o “fundo” do mercado de trabalho. Assim, está delineando uma revolução mundial que a esquerda ocidental não parece estar percebendo. Evidentemente, consideram uma greve que obtém melhores salários ou melhores condições de trabalho em uma fábrica como parte integrante do processo de emancipação, ou discutem isso no contexto da divisão patriarcal do trabalho. É muito estranho, por conseguinte, que a luta para acabar com a divisão internacional opressiva do trabalho que foi estabelecida através da força armada durante a “época Colambiana” seja considerada algo alheio ao processo de emancipação.

De qualquer forma, aqueles que condenam, em sua totalidade, a China hoje devido a suas desigualdades fariam bem em considerar que Deng Xiaoping também promoveu suas políticas de reforma como parte da luta contra a desigualdade planetária. Em uma conversa em 10 de outubro de 1978, ele observou que a “lacuna” tecnológica estava se expandindo em comparação com os países mais avançados; estes estavam se desenvolvendo “com tremenda velocidade”, enquanto a China não conseguia acompanhar. E, 10 anos depois, “a alta tecnologia está avançando em um ritmo tremendo”; ou seja, havia o risco de que “a lacuna entre a China e outros países aumentasse” (Deng Xiaoping 1992–95, vol. 2, 143; vol. 3, 273).

5. Desigualdade quantitativa e qualitativa

Chamar a atenção para a importância da desigualdade global não significa perder de vista o segundo tipo de desigualdade. Então, o que está acontecendo com a desigualdade existente na China? As reformas introduzidas por Deng Xiaoping a levaram a um ponto intolerável?

Antes de responder a essas perguntas, devemos fazer uma observação preliminar: tanto a NEP soviética quanto o novo curso chinês foram precedidos por pobreza e escassez aguda e generalizada o suficiente para causar fome em larga escala; essa situação teve que terminar e a repetição dessa situação deveria ser prevenida, e isso marcou o ponto de virada na Rússia soviética e na China. Mas como a desigualdade é combatida em uma situação econômica tão desesperadora? No sentido quantitativo, a distribuição dos escassos recursos disponíveis pode ser inspirada enfatizando o igualitarismo, de modo a tentar alimentar os indivíduos, famílias e aldeias de maneira uniforme; no entanto, a inadequação geral dos recursos disponíveis não muda, nem o grau diferente de necessidade (os indivíduos mais frágeis sucumbem mais facilmente que os outros); em tais condições, a fome pode ser contida, mas não eliminada. Bem, o pedaço de pão que permite aos mais afortunados sobreviver, por mais modesto e reduzido que seja em quantidade, sanciona uma desigualdade absoluta em termos de qualidade, a desigualdade absoluta que existe entre a vida e a morte. Em outras palavras, quando a escassez atinge um nível extremo, a luta contra a desigualdade só pode ser combatida de maneira eficaz, concentrando-se no desenvolvimento das forças produtivas. Ou seja, mesmo com relação ao segundo tipo de desigualdade, a desigualdade dentro do país, as reformas de Deng Xiaoping eliminaram de uma vez por todas a desigualdade qualitativa inerente à fome e ao risco de fome.

É claro que, uma vez terminado este empecilho de uma vez por todas, é hora de abordar o problema da luta contra a desigualdade quantitativa, bem como alcançar o que Deng Xiaoping chamou de “prosperidade comum” (Deng Xiaoping 1992–95, vol. 3 174). Não há dúvida: a realização desse objetivo ainda está longe. De acordo com o coeficiente de Gini, que mede a distribuição de renda em um único país, a polarização social atingiu níveis alarmantes na China. Obviamente, devemos prestar muita atenção ao coeficiente de Gini, mas sem enfatizar demais seu significado. Apesar de sua utilidade, possui limitações fundamentais: não apenas não distingue os dois tipos de desigualdade (global e local), como também não diz nada sobre o caminho cuja desigualdade local em um determinado país vem percorrendo.

As mudanças que ocorreram nas últimas décadas na China podem ser ilustradas com uma metáfora. Existem dois trens partindo de uma estação chamada “subdesenvolvimento” e indo em direção a uma estação chamada “desenvolvimento”. Um dos dois trens é muito rápido, enquanto o outro é mais lento: consequentemente, a distância entre os dois aumenta progressivamente. Essa discrepância pode ser explicada facilmente se você tiver em mente o tamanho da China continental e sua história: as regiões costeiras, que já possuíam infraestrutura (embora elementar), desfrutando de acesso mais fácil e possibilidade de comércio com áreas desenvolvidas, estão em uma situação melhor do que as regiões tradicionalmente menos desenvolvidas, sem litoral e que possuem países e áreas vizinhas marcadas por estagnação econômica. É claro que a distância entre os dois trens que viajam em velocidades diferentes aumenta, mas não devemos perder de vista três pontos fundamentais: em primeiro lugar, a direção (o desenvolvimento) é a mesma; segundo, hoje algumas regiões do interior estão vendo sua renda crescer mais rapidamente do que a das regiões costeiras; terceiro, devido ao impressionante processo de urbanização (que leva a população às áreas urbanas e regiões mais desenvolvidas), o trem mais rápido tende a transportar mais passageiros. Não é de surpreender que, se considerarmos a China como um todo, vemos um crescimento constante e considerável da classe média, bem como uma difusão mais ampla de proteção social e das características do Estado de Bem-Estar Social.

No entanto, o conteúdo implícito nos valores relatados pelo coeficiente de Gini ainda se aplica: se não contida de maneira adequada e oportuna, a desigualdade quantitativa também pode resultar em desestabilização social e política.

6 – Riqueza e poder político: uma relação adversa

A desestabilização social e política também pode vir de outra frente. Por quanto tempo os novos ricos continuarão aceitando uma situação em que podem desfrutar tranquilamente de sua riqueza econômica (acumulada legitimamente), mas não podem transformá-la em poder político?

Mao estava ciente desse problema. Em 1958, ele respondeu às críticas da União Soviética sobre a persistência de áreas capitalistas na economia chinesa, dizendo:

“Ainda existem capitalistas na China, mas o estado está sob a liderança do Partido Comunista” (Mao 1998, 251).

Quase 30 anos depois, para ser exato, em agosto de 1985, Deng Xiaoping (1992–95, vol. 3, 143) fez uma observação que devemos ponderar:

“Talvez Lenin tenha tido uma boa idéia ao adotar a Nova Política Econômica”.

Aí reside uma comparação indireta entre a NEP soviética e as políticas de reforma adotadas por Deng Xiaoping na China. É óbvio o que os dois têm em comum: a total expropriação política da burguesia não é igual à total expropriação econômica. Claro que também existem diferenças. A NEP envolvia uma parte muito pequena da economia privada e foi pensada como uma estratégia de “recuo” temporário. Em outras palavras, o que estava impulsionando a NEP soviética era a necessidade de encontrar uma maneira de sair de uma situação economicamente desesperadora. Não havia uma reflexão abrangente sobre qual modelo econômico seguir: não surpreendentemente, de acordo com o testemunho de Benjamin, que já vimos, o rico homem da NEP, que também deveria contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas, estava enfrentando um “terrível isolamento social”. A política adotada por Deng Xiaoping, por outro lado, supera um problema histórico claro: a experiência mostra que a economia completamente coletivizada apaga todos os incentivos e motivos materiais para a competição, abrindo o caminho (como visto anteriormente) para o descontentamento em massa e absentismo; além disso, o populismo que via riqueza e ganho como um pecado impedia o desenvolvimento do empreendedorismo e da inovação tecnológica.

Ao iniciar suas políticas de Reforma e Abertura, Deng estava ciente de seus riscos inerentes. Em outubro de 1978, ele advertiu:

“Não permitiremos que uma nova burguesia tome forma”.

Esse objetivo não é negado pela tolerância concedida aos indivíduos capitalistas. A eles, deve ser dado muita consideração. No entanto, um ponto é crucial:

“a luta contra esses indivíduos é diferente da luta de uma classe contra outra classe, como houve no passado (esses indivíduos não podem formar uma classe coesa e aparente)” (Deng 1992–95, vol. 2 144, 178).

Embora existam resíduos da luta de classes antiga, no geral, com o fortalecimento da revolução e do poder do partido comunista, uma nova situação foi criada. “É possível que uma nova burguesia surja? Um punhado de elementos burgueses pode aparecer, mas eles não formarão uma classe”, especialmente porque existe um “aparato estatal” que é “poderoso” e capaz de controlá-los (Deng 1992–95, vol. 3, 142–43) . Além do poder do Estado, a ideologia desempenha um papel importante: muitos dos novos ricos, embora não sejam comunistas, se sentem patrióticos e compartilham o horror do “século de humilhação” que começou com as Guerras do Ópio e terminou com a vitória da revolução, ou seja, esses novos ricos também compartilham o sonho de “rejuvenescimento da nação chinesa”.

E, no entanto, precisamente como resultado do sucesso das reformas políticas e do extraordinário crescimento econômico da China, o número de milionários e bilionários está crescendo dramaticamente; a riqueza acumulada pelos novos capitalistas influenciará a política? É à luz dessa preocupação que você pode compreender completamente a campanha em andamento contra a corrupção. O processo de “limpeza” não visa apenas consolidar o consenso social sobre o Partido Comunista da China e o governo; significa implementar a recomendação de Deng Xiaoping e, assim, impedir que os “elementos burgueses” formem uma classe organizada capaz de tomar o poder.

7. O objetivo do Ocidente: “democratização” ou “plutocratização” da China?

Os capitalistas que se estabeleceram e continuam se estabelecendo só podem ser um perigo real caso se aliarem aos círculos imperialistas ou pró-imperialistas comprometidos em promover uma “revolução colorida” na China. Fortalecido pelo gigantesco aparato midiático, há muito tempo os Estados Unidos tentam consolidar sua hegemonia mundial, a fim de impor uma “democracia” à China, sob as rédeas de Washington.

A partir disso, os Estados Unidos mostram ignorância das lições oferecidas pelo liberalismo e por sua própria história nacional, isto é, da escola de pensamento que afirmam representar. Em 1787, pouco antes da implementação da Constituição Federal, Alexander Hamilton explicou que os limites de poder e o estabelecimento do Estado de Direito foram bem-sucedidos em dois países “insulares”, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, graças à proteção dada pelo oceano e sua posição geopolítica protegendo-os de ameaças de potências rivais. Se os planos para uma União Federal fracassassem e um sistema de Estados semelhante ao da Europa tivesse se formado a partir de suas ruínas, os Estados Unidos logo teriam visto um exército permanente, um forte poder central e absolutista independentemente.

“Assim, em pouco tempo, deveríamos ver estabelecido em todas as partes deste país os mesmos mecanismos de despotismo, que têm sido o flagelo do mundo antigo” (Hamilton 2001, 192).

Hamilton atribuiu tanto peso à segurança geopolítica na criação de um sistema baseado no Estado de Direito que ele escreveu como se, ao invés de ser uma ilha cercada e protegida pelo mar, a Grã-Bretanha pertencesse ao continente, “provavelmente, seria mais uma vítima do poder absoluto de um único homem”, assim como as outras potências continentais europeias (194). Por outro lado, segundo Hamilton, sempre que “a preservação da paz pública” é ameaçada por “ataques externos” ou “convulsões internas”, mesmo um país como os Estados Unidos, que também goza de uma posição geopolítica extremamente afortunada, está autorizado a recorrer a uma força “sem limitações” e sem “grilhões constitucionais” (253).

De fato, mesmo protegido pelo Atlântico e pelo Pacífico, toda vez que se sente em perigo, certo ou errado, os EUA fortalecem um tanto quanto drasticamente o poder executivo e a liberdade de associação e expressão é restringida. Esse foi o caso nos anos imediatamente após a Revolução Francesa (quando seus apoiadores nos Estados Unidos foram afetados pelas duras medidas impostas pelos Acordos de Alien e Sedição), durante a Guerra Civil, a Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e a situação criada pelo ataque às Torres Gêmeas. Para dar um exemplo: O que aconteceu com as liberdades liberais tradicionais após a aprovação, em 16 de maio de 1918, da Lei de Espionagem? Com base nesse ato, uma pessoa pode ser condenada a até 20 anos de prisão por ter expressado:

qualquer fala desleal, profana, escandalosa ou abusiva sobre a forma de governo dos Estados Unidos, ou a Constituição dos Estados Unidos, ou as forças militares e navais dos Estados Unidos ou a bandeira [...] ou o uniforme do Exército ou da Marinha dos Estados Unidos. (Commager 1963, vol. 2, 146)

Se os líderes em Washington fossem realmente sérios no que tange aos princípios democráticas, que nunca se cansam de defender, procurariam de alguma maneira reforçar a paz geopolítica e um senso de segurança nos países que afirmam querer ver se tornarem democráticos. No final da Guerra Fria (como foi reconhecido por um estudioso que era consultor do vice-presidente Dick Cheney), a única superpotência usou suas forças navais e aéreas para violar “o espaço aéreo e as águas territoriais da China com pouco medo de assédio e retaliação”, sem medo de uma possível punição. O grande país asiático estava impotente naquela época. Hoje, a situação mudou significativamente. Os Estados Unidos ainda são capazes de controlar os canais de comunicações marítimas. Portanto, “a China já é vulnerável aos efeitos de um bloqueio naval e se tornará ainda mais à medida que sua economia cresce”; de fato, “seu destino poderia depender da complacência americana” (Friedberg 2011, 217, 228, 231). E é essa situação que os Estados Unidos se esforçam para perpetuar. Tudo isso não é propício ao desenvolvimento do Estado de Direito.

A campanha do Ocidente pela “democratização” da China está ocorrendo, ao mesmo tempo em que muitos analistas políticos são forçados a ver o declínio da democracia no Ocidente. Alguns anos antes da crise econômica, era possível ler no International Herald Tribune que os Estados Unidos haviam se tornado uma “plutocracia”; agora as forças da riqueza privada e corporativa já se apossaram de instituições políticas, enquanto o restante da população é ignorado (Pfaff, 2000). Hoje em dia, tanto na esquerda quanto entre aqueles completamente opostos à tradição marxista, é comum ler que no Ocidente, e principalmente nos Estados Unidos, a plutocracia tomou o lugar da democracia. Podemos concluir que a campanha em andamento para a “democratização” da China é na verdade uma campanha para sua plutocratização, para virar na direção oposta a “expropriação política” da burguesia que ocorre desde 1949 no grande país asiático.

Uma segunda campanha, conduzida por Washington e Bruxelas, como de costume, exige a liquidação substancial do setor estatal e da economia pública, que desempenham um papel muito importante na luta contra duas grandes desigualdades: no cenário internacional, esse setor está fazendo uma grande contribuição para o desenvolvimento tecnológico da China, que está cada vez mais diminuindo a distância dos países avançados; internamente, o setor estatal e a economia pública reduzem as desigualdades entre diferentes regiões, acelerando o desenvolvimento das regiões menos desenvolvidas da China, que agora estão crescendo em um ritmo muito mais rápido do que as regiões costeiras. Se essa segunda campanha lançada pelo Ocidente tivesse sido bem-sucedida, a expropriação “econômica” da burguesia, já reduzida, teria sido cancelada por completo, de modo que a burguesia pudesse aumentar enormemente sua influência na sociedade e abrir novamente o caminho para a conquista do poder político. É muito claro quais armas serão usadas para combater o país que surgiu da maior revolução anticolonial da história para se engajar em um processo de longo prazo de uma sociedade pós-capitalista e socialista. Qual lado a esquerda ocidental tomará?

Notas:

[1] Sobre Benjamin e Roth, ver Losurdo (2013, capítulo VII, § 3); neste livro, aprofundo os problemas discutidos neste ensaio.

Referências:

Bloch, E. (1918) 1971. Geist der Utopie [Spirit of Utopia]. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

Commager, H. S., ed. 1963. Documents of American History. 7th ed. New York: Appleton-Century-Crofts.

Deng, X. 1992–95. Selected Works. Beijing: Foreign Languages Press.
Ferguson, N. 2011. Civilization: The West and the Rest. London: Penguin Books.

Figes, O. 1996. A People’s Tragedy: The Russian Revolution 1891–1924. London: Pimlico Random House.

Friedberg, A. L. 2011. A Contest for Supremacy: China, America, and the Struggle for Mastery in Asia. New York, NY: Norton.

Gramsci, A. (1926) 1971. “Lettera dell’Ufficio Politico del PCI al Comitato Centrale del Partito Comunista Sovietico” [Letter of the Politburo of the Italian Communist Party to the Central Committee of the Soviet Communist Party]. In La Costruzione del Partito Comunista [Building the Communist Party], 124–31. Turin: Einaudi.

Gramsci, A. 1975. Quaderni del Carcere [Prison Notebooks]. Edited by V. Gerratana, critical edition. Turin: Einaudi.

Gramsci, A. 1982. La Città Futura 1917–1918 [The Future Society 1917–1918]. Edited by S. Caprioglio. Turin: Einaudi.

Gramsci, A. 1987. L’Ordine Nuovo 1919–1920 [The New Order 1919–1920]. Edited by V. Gerratana and A. Santucci. Turin: Einaudi.

Hamilton, A. 2001. Writings. Edited by J. B. Freeman. New York: The Library of America.

Huntington, S. 1996. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York: Simon & Schuster.

Lenin, V. I. 1955–70. Opere Complete [Collected Works]. Rome: Editori Riuniti.

Losurdo, D. 1997. Antonio Gramsci dal Liberalismo al “Comunismo Critico” [Antonio Gramsci from Liberalism to “Critical Communism”]. Rome: Gamberetti.

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Losurdo, D. 2013. La Lotta di Classe. Una Storia Politica e Filosofica [Class Struggle: A Political and Philosophical History]. Rome: Laterza.

Mao, Z. 1965–77. Selected Works of Mao Tse-Tung. Beijing: Foreign Languages Press.

Mao, Z. 1998. On Diplomacy. Beijing: Foreign Languages Press.

Marx, K., and F. Engels. 1955–89. Werke [Works]. Berlin: Dietz.

Mitter, R. 2014. China’s War with Japan, 1937–1945: The Struggle for Survival. London: Penguin Books.

Pascal, P. 1982. Russie 1927 [Russia 1927]. Vol. 4 of Mon Journal de Russie [My Diary in Russia]. Lausanne-Paris: L’Age d’Homme.

17 de março de 2017

Entre estudantes e trabalhadores

No auge do movimento anti-guerra dos anos 60, os radicais estudantes realizaram um acalorado debate sobre seu papel nas lutas trabalhistas. Esse debate continua a ser relevante hoje.

Joe Allen

Jacobin

Um protesto estudantil anti-guerra na Universidade de Michigan, em março de 1970. Créditos: Washington Area Spark / Flickr

Em agosto de 1966, delegados de todos os Estados Unidos participaram da anual Convenção da Students for a Democratic Society (SDS) em Clear Lake, Iowa. Localizado no norte-central de Iowa e realizada em um campo metodista, a organização começou a debater o seu futuro.

A SDS estava em uma encruzilhada em 1966. Tinha evoluído para a maior organização estudantil radical nos Estados Unidos e estava passando por uma grande adesão e transformação política, de acordo com historiador da SDS Kirkpatrick Sale.

Para os participantes, a Convenção de Clear Lake, que contou com 350 delegados de 140 capítulos, foi simbólica. A liderança foi transferida dos membros originais da organização para os mais novos; Desde os nascidos nas tradições de esquerda das costas até os ativistas do meio-americano. Era a ascensão do "poder da pradaria".

O maior tópico da convenção era qual a direção que a SDS deveria tomar. A pequena delegação dos Clubes Socialistas Independentes (ISCs, precursor dos Socialistas Internacionais de 1970) fez uma proposta para a convenção.

"A visão socialista da classe trabalhadora como uma classe potencialmente revolucionária baseia-se no fato mais óbvio sobre a classe trabalhadora, de que ela está socialmente situada no coração da indústria básica e, de fato, definidora da indústria", escreveu Kim Moody , Fred Eppsteiner e Mike Pflug em "Towards the Working Class: An SDS Convention Position Paper (TTWC)".

Foi uma das primeiras tentativas de orientar a Nova Esquerda em torno das lutas de base dos trabalhadores norte-americanos. O panfleto de Stan Wier, "USA: The Labour Revolt", era o roteiro que muitos socialistas usavam para entender a crescente rebelião de base que começou em meados da década de 1950, longe do foco da mídia, mas em meados da década de 1960 visível para todos ver. Era notícia de primeira página.

As configurações são muito diferentes, mas são os debates de meio século atrás ainda são relevante hoje?

O ano de 1966 pode ser lembrado como o ano em que, durante a Meredith March Against Fear no Mississippi, o líder do SNCC, Stokely Carmichael (mais tarde conhecido como Kwame Touré) declarou: "O que precisamos é de poder negro". Esse slogan capturou a imaginação de uma geração de jovens revolucionários negros frustrados pelas promessas quebradas do liberalismo norte-americano que exigiam uma transformação radical da sociedade. Muitos outros povos longamente oprimidos - mulheres, chicanos, nativos americanos, gays e lésbicas - seguiram.

Moody, Eppsteiner e Pflug não estavam menos interessados ​​nas questões de poder e libertação. Todos os três eram veteranos do movimento de direitos civis em Baltimore, e ativos em ou em torno do Baltimore SDS na Universidade Johns Hopkins. A Moody também atuou no projeto comunitário da SDS de Baltimore, U-Join (União para Emprego e Renda Agora). Moody e Eppsteiner eram membros do ISC, enquanto Pfug era membro da News and Letters.

O ISC surgiu de uma divisão na ala direita do Partido Socialista. A inspiração política para o ISC foi Hal Draper, veterano socialista revolucionário e autor do popular panfleto "A Mente de Clark Kerr". EraFoi um exame do presidente do sistema da Universidade da Califórnia e suas idéias para a universidade moderna. Tornou-se a Bíblia do Movimento de Liberdade de Expressão em Berkeley.

Mais tarde Draper também popularizou a frase "socialismo de baixo" na revista New Politics, reivindicando o espírito democrático revolucionário da crença de Karl Marx de que o socialismo só poderia ser alcançado através da "auto-emancipação da classe trabalhadora". Uma frase rápida e clara para distinguir a política socialista revolucionária do "socialismo de cima" da social-democracia e do stalinismo. Em uma época em que um revolucionário era considerado um guerrilheiro com um AK-47 lutando nas selvas de um país distante, o apoio a esse tipo de marxismo "clássico" estava indo contra a corrente.

Os autores da TTWC chamavam-se "radicais que apoiam o conceito de poder negro", mas olhavam a questão do poder e da libertação sob um ângulo diferente. "Nós, socialistas e radicais, olhamos para os trabalhadores de base como nossos aliados potenciais", declararam.

Um poderoso exemplo desse potencial citado foi a greve dos operadores que paralisou as viagens aéreas de passageiros pelos Estados Unidos.

Para aqueles que têm dúvidas sobre a disposição dos trabalhadores para lutar por fins progressistas, dê uma olhada na recente greve de companhias aéreas da Associação Internacional de Operadores (IAM). Não somente a greve resistiu às ameaças de uma liminar do Congresso; Mas a base tinha a coragem de rejeitar categoricamente um acordo empurrado pelo próprio Presidente Johnson. Uma luz interessante sobre o lado político é que quatro IAM locais recentemente pediram uma ruptura com o Partido Democrata e a formação de um terceiro partido. 
Tenha em mente que esta foi uma luta que ocorreu sem o benefício de organizadores radicais; Era, em muitos aspectos, um ato espontâneo.

Relativamente ao movimento operário quase exclusivamente como partidários externos tinham seus limites, de acordo com os autores do ISC:

Acreditamos que apoiar greves e organizar trabalhadores para sindicatos independentes ou mesmo sindicatos existentes é bom, mas não é suficiente. Além disso, há uma espécie de hierarquia de valor nessas atividades. Trabalhar em uma equipe de funcionários da união pode fornecer a boa experiência para um estudante ou um ex-estudante, mas não pode ser um lugar a partir do qual o trabalho político possa ser feito.

Eles queriam deixar claro aos delegados que não estavam denegrindo a organização sindical, "mas que não se pode fazer um trabalho político radical sério a partir dessa posição".

Para se engajar nesse "trabalho político radical e sério", os autores argumentavam, seria necessário que os estudantes assumissem uma mudança séria: "A SDS, como organização, e os membros da SDS devem orientar-se para a classe trabalhadora como o setor social decisivo na transformação da sociedade americana ".

O cenário era muito diferente em 1966 para se debater uma perspectiva de base em relação a hoje. Os sindicatos eram instituições importantes - "grande trabalho", como era chamado então - na vida econômica e política dos EUA. A revolta de base entre os trabalhadores inquietos em todo o país estava causando grande preocupação política e uma crise para os líderes entrincheirados dos sindicatos dos EUA.

A capa da revista Life capturou bem o cenário com a manchete "Strike Fever", mostrando a imagem de um grevista com a demonstração negativa com os dois polegares para baixo e uma barra lateral com os dizeres "Líderes Trabalhistas em Dilema" e "Desenfreada Nova Militância".

Apesar das circunstâncias favoráveis, a co-autora do TTWC, Kim Moody, disse-me recentemente: "Nosso papel de posição recebeu pouca atenção, pois o principal negócio subjacente era a transição da liderança da "velha guarda para a "nova geração" que inundava a SDS. Esperávamos influenciar algumas das pessoas mais jovens que entravam na SDS."

"Para a classe trabalhadora" apareceu em New Left Notes na edição de 9 de setembro de 1966 - depois da convenção. A proposta perdeu para a proposta de Carl Davidson para um novo movimento sindicalista estudantil que enfatizava o foco da SDS principalmente nos campi.

Em retrospectiva, provavelmente era errado esperar a SDS reorientar-se completamente em um período tão curto de tempo. Havia ainda uma abundância de razões para um movimento estudantil crescer, especialmente com o florescente movimento anti-guerra nos campi em que a SDS estava situada.

No entanto, não podemos deixar de olhar para trás e sentir que houve uma oportunidade perdida aqui. Quando as várias organizações comunistas e socialistas que emergiram da Nova Esquerda vários anos depois, no final dos anos 60 e início dos anos 70, fizeram uma volta para se organizar na classe operária industrial, já era tarde demais?

Revivendo o debate

Durante as últimas quatro décadas, as mudanças desastrosas para a classe operária industrial enfraqueceram, se não destruíram, os sindicatos industriais, outrora poderosos, em muitas partes da economia industrial dos EUA. A esquerda que tentou construir nos sindicatos industriais permaneceu marginalizada.

No entanto, um dos legados do trabalho político dos socialistas internacionais foi um movimento de reforma dentro dos Teamsters na década de 1970. Os Teamsters para a União Democrática (TDU) desempenharam um papel importante na eleição do primeiro presidente da reforma dos Teamsters em 1991, na greve da UPS em 1997 e na recente e quase derrotada presidência dos Teamsters, James P. Hoffa.

Hoje, mais uma vez, uma nova geração de radicais está discutindo a questão da opressão, do poder e da mudança radical. Como podemos ter um debate semelhante hoje ao que a SDS teve em 1966, mas com um público mais amplo?

Hoje, a economia industrial moderna gira em torno da indústria de logística. Como Kim Moody escreveu no ano passado:

85 por cento dos quase três milhões e meio de trabalhadores empregados em logística nos Estados Unidos estão localizados em grandes áreas metropolitanas - recriando inadvertidamente enormes concentrações de trabalhadores em muitas dessas áreas que deveriam ser "esvaziadas" de trabalhadores industriais. Existem cerca de sessenta desses "clusters" nos Estados Unidos, mas são os principais locais em Los Angeles, Chicago e New York-New Jersey, cada um dos quais emprega pelo menos cem mil trabalhadores e outros, como a UPS Louisville "Worldport" e o cluster Memphis da FedEx que exemplificam a tendência. 

Se a Amazon cumprir sua promessa até 2018, acrescentará mais 100 mil trabalhadores à sua força de trabalho nos EUA, elevando o número total para mais de duzentos mil. Será uma dos maiores empregadoras nos Estados Unidos e uma das maiores empregadoras sem sindicatos.

Uma nova geração de ativistas socialistas tem de aprender a organizar estes locais de trabalho.

Essa geração está começando a se organizar. Uma nova esquerda está surgindo nos Estados Unidos. Os milhões que participaram das grandes manifestações que recepcionaram as primeiras semanas de trabalho de Trump foram o sinal mais visível e espetacular disso. O mesmo ocorre com o rápido crescimento dos socialistas democratas da América (DSA), juntamente com o interesse generalizado pelas idéias socialistas gerais, pela história e pelas organizações. Radicais que são energizados por tudo isso deve ter uma página do livro de Moody, Eppsteiner, Pflug e direcionar a energia para a classe trabalhadora.

Não devemos subestimar os obstáculos que enfrentamos, é claro. A tarefa é assustadora: criar um novo movimento socialista e um novo movimento sindical industrial praticamente a partir do zero. Precisamos iniciar campanhas de defesa de idéias socialistas e organização na indústria de logística em cidades selecionadas.

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