26 de novembro de 2016

A funda de Davi

Fidel Castro, líder da revolução cubana, morreu aos 90 anos. Nós apresentamos a introdução de Tariq Ali às Declarações de Havana, coleção de discursos de Fidel da editora Verso.

Tariq Ali

Verso


As interpretações acerca da relação senhor-escravo têm uma longa e eminente linhagem na literatura mundial. Suas contradições foram expostas por Al-Ma’ai, Dante, Shakespeare, Cervantes e Goethe, entre outros. Na obra-prima de Cervantes, por exemplo, um falso oráculo informa ao herói epônimo que sua bem-amada Dulcinéia só poderá ser libertada se ele se dispuser a sentenciar seu servo Sancho Pança a receber milhares de chicotadas. Desesperado por Dulcinéia, o senhor concorda, contanto que ele próprio se encarregue da punição. Numa noite quente, é vencido pela impaciência. Levanta-se da cama e prepara-se para açoitar o desavisado Sancho Pança. Imagine o espanto do senhor quando o servo, em vez de se submeter silenciosamente à violência, derruba-o no chão. Cervantes escreve:

Dom Quixote: Então te rebelas contra teu amo e senhor, não é, e ousas levantar a mão contra aquele que te alimenta? 
Sancho: Não faço nem desfaço um rei, eu simplesmente me defendo, pois sou meu próprio senhor.

Aqui está, em síntese, a história da Revolução Cubana. Na década seguinte ao fim da Segunda Guerra Mundial, com o término do domínio colonial direto, os países dos três continentes explorados, em sua esmagadora maioria, deixaram de ser colônias no sentido tradicional. Os Estados Unidos, ao contrário de seus primos europeus, sempre haviam preferido o modo indireto de dominação, aquele que logo se tornou norma: Estados independentes e soberanos do ponto de vista formal, mas fortemente dependentes de seus senhores metropolitanos. Uma máquina burocrática inflada e parasitária, herdada do período colonial, presidia uma estrutura socioeconômica retrógrada.

A função desses Estados formalmente independentes era servir às necessidades econômicas das potências imperiais, à custa de sua própria soberania política e econômica. Isso resultou muitas vezes numa cultura de plantation, caracterizada pelo cultivo de um único produto — cana-de-açúcar, no caso de Cuba —, ou extração de recursos minerais e petrolíferos — como na África e no Oriente Médio. Essa estrutura desestimulava qualquer tentativa concreta de desenvolver um processo autônomo de industrialização. A Índia e o Brasil foram exceções sob esse aspecto, mas a relativa autonomia desses países pouco fez para mudar a estrutura global de dominação.

Na América do Sul, uma elite governante nativa, de ascendência européia, que na maioria dos casos ocupava o poder com apoio político e militar dos Estados Unidos, dominou o continente com relativa facilidade. Rebeliões como a liderada por Sandino, na Nicarágua, eram isoladas e prontamente esmagadas. A repressão física e cultural da população indígena (com exceção do México) era considerada normal. Experiências populistas (Argentina e Brasil) não duraram muito. Poucos pensavam em Cuba como local provável para a primeira revolução anticapitalista. Em primeiro lugar, ficava perto demais dos Estados Unidos; além disso, a escala dos investimentos norte-americanos na ilha era tamanha que dificilmente as companhias abririam mão de seu controle. Se houvesse distúrbios efetivos, os fuzileiros navais sem dúvida seriam despachados para submeter os nativos da maneira tradicional.

As coisas não se passaram exatamente assim. O pequeno grupo de guerrilheiros liderado por Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos foi encarado, de início, como pouco mais que um motivo de irritação. Batista, o ditador apoiado pela Máfia e instalado em Havana, negou que houvesse qualquer agitação grave no país. Foi um ousado jornalista norte-americano que levou ao mundo as primeiras notícias sobre a luta armada em Sierra Maestra. O repórter Herbert Matthews, do New York Times, praticava seu ofício num mundo ligeiramente diferente do nosso. Por exemplo, o “jornal de registro”, como o Times se definia, costumava conceder a seus jornalistas a liberdade criativa para explorar novos terrenos ou investigar os efeitos da intervenção dos Estados Unidos em seu quintal latino-americano. A série de artigos que Matthews escreveu para o jornal anunciava o prólogo da Revolução Cubana.

O país aonde Matthews chegou em 1957 era o produto de um passado turbulento. “La Isla Fiel” do folclore imperial hispânico, nos anos 1860, sob a liderança da aristocracia fundiária, havia se unido contra o domínio espanhol. Após uma década de brutal repressão por parte da metrópole, a revolta foi esmagada. O declínio dos preços do açúcar desencadeou uma nova insurreição em 1895, quando os donos de plantations aderiram à causa da independência. Os espanhóis lutaram encarniçadamente e aprisionaram centenas de milhares de cubanos em reconcentrados, ou campos de concentração (sua primeira ocorrência no planeta), onde eles definharam e morreram. Vinte por cento da população de Cuba (350 mil pessoas) morreram durantes os três anos de conflito. A entrada dos Estados Unidos na guerra levou à derrota espanhola, mas a provação havia enfraquecido seriamente a classe de proprietários de terras, que se tornou incapaz de resistir a um protetorado norte-americano de facto, com uma base militar permanente em Guantánamo. A igreja católica era frágil (três quartos dos padres eram estrangeiros) e incapaz de sustentar o novo regime. A oligarquia fundiária praticamente desaparecera da paisagem política depois de mais uma queda catastrófica dos preços do açúcar após a Primeira Guerra Mundial. Isso liquidou a única força local capaz de impedir uma revolução — o mesmo que já acontecera em outros lugares do continente.

Desprovidos de coesão, os ricos urbanos de início se tornaram felizes subalternos das companhias norte-americanas que ocupavam a ilha. O capital americano investido em Cuba era sete vezes maior que o aplicado no resto da América Latina. Na década de 1950, um boom imobiliário ajudou a criar uma nova classe de homens de negócios em Cuba. Ocasionalmente, eles tinham sonhos de grandeza e usavam suas grandes fortunas para comprar de volta as antigas plantations das mãos de companhias norte-americanas, mas sempre enfatizavam sua própria subordinação à presença imperial. Eram parasitas e estavam felizes com o nicho que lhes fora concedido. O tédio que impregnava essa classe constitui o tema de muitos romances cubanos do período. O falso regime parlamentar de Cuba era venal. Seus políticos saqueavam regularmente o tesouro do país, e as guerras de facções devastavam as cidades. Era, em suma, uma completa anarquia. Como não é de surpreender, o segundo golpe do general Batista, em 1952, não encontrou qualquer resistência do establishment político, mas este tampouco lhe deu pleno apoio. Batista era visto como um aventureiro (em 1933, como sargento, organizara, com grupos estudantis, uma revolta bem-sucedida contra seu próprio Alto Comando) e considerado indigno de confiança. Em razão de sua pele escura, não lhe era permitido entrar no Havana Club, onde os ricos realizavam seus negócios misturando-os ao prazer.

A situação do país continuou a se deteriorar, e o regime de Batista, detestado pela população, sem apoio sério dos abastados, super-dependente de Washington e da Máfia, viu-se rapidamente isolado. Sem dúvida era o elo mais fraco da cadeia de regimes militares que se estendia por toda a América Latina.

Em 26 de julho de 1953, um jovem advogado enfurecido, Fidel Castro, liderou um pequeno grupo de homens armados numa tentativa de tomar o quartel Moncada, em Santiago de Cuba, na província de Oriente. A maioria dos guerrilheiros foi morta. Fidel foi julgado e se defendeu com o discurso magistral aqui reproduzido no Capítulo 1, repleto de referências clássicas, citações de Balzac e Rousseau, e que se encerrava com as palavras: “Condenai-me. Não importa. A história me absolverá.” Esse discurso lhe valeu grande fama e popularidade.

Libertado na anistia de 1954, Fidel deixou a ilha e começou a organizar uma rebelião a partir do México. Durante algum tempo ficou na fazenda que pertencera outrora ao lendário rebelde Emiliano Zapata. No fim de novembro de 1956, 82 pessoas, entre elas Fidel Castro e Che Guevara, embarcaram no México, num pequenino iate, o Granma, rumo aos impenetráveis montes cobertos de florestas em Sierra Maestra, na província de Oriente. Emboscados por homens de Batista depois que desembarcaram, 12 sobreviventes chegaram a Sierra Maestra e deram início a uma guerra de guerrilha. Tiveram o apoio de uma forte rede urbana de estudantes, trabalhadores e empregados públicos que se tornou a espinha dorsal do Movimento 26 de Julho. Em 1958, os exércitos guerrilheiros começaram a se deslocar das montanhas para as planícies: uma coluna comandada por Fidel se apoderou de vilas em Oriente, enquanto as tropas irregulares de Che Guevara tomavam de assalto e assumiam o controle da cidade de Santa Clara, na região central. No dia seguinte Batista e seus comparsas fugiram da ilha, enquanto o exército rebelde, agora acolhido como libertador, marchava em direção a Havana. A popularidade da Revolução era evidente para todos.

A vitória de Fidel Castro deixou os norte-americanos atordoados. Logo se tornou óbvio que aquele não era um acontecimento corriqueiro. Qualquer dúvida com relação aos propósitos da Revolução foi dissipada pela “Primeira Declaração de Havana” (Capítulo 2), a proclamação, feita por Fidel, de total independência em relação aos Estados Unidos, perante um público de um milhão de pessoas reunidas na Praça da Revolução. Washington reagiu com irritação e açodamento, tentando isolar o novo regime do resto do continente. Isso levou a uma reação radical da liderança cubana, que decidiu nacionalizar indústrias norte-americanas, sem indenização. Três meses depois, em 13 de outubro de 1961, os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Cuba; subseqüentemente, armaram os exilados cubanos na Flórida e deram início à invasão da ilha perto da baía dos Porcos, que foi derrotada. O presidente John Kennedy impôs então a Cuba um bloqueio econômico total, o que levou à aproximação entre cubanos e Moscou. Em 4 de fevereiro de 1962, a “Segunda Declaração de Havana” (Capítulo 3) condenava a presença norte-americana na América do Sul e conclamava a libertação de todo o continente.

Quarenta anos mais tarde Fidel Castro explicou a necessidade das duas declarações:

No início da Revolução ... fizemos duas declarações, que chamamos de “Primeira Declaração de Havana” e “Segunda Declaração de Havana”, durante um comício-monstro de mais de um milhão de pessoas na Praça da Revolução. Com essas declarações, respondíamos aos planos tramados nos Estados Unidos contra Cuba e contra a América Latina — porque os Estados Unidos obrigaram todos os países latino-americanos a romper relações com Cuba. ... [Essas declarações] afirmavam que não se iniciaria uma luta armada se existissem condições legais e constitucionais para uma luta cívica pacífica. Essa era nossa tese em relação à América Latina.

Enquanto os rebeldes permaneceram em Sierra Maestra, ainda não estava claro o rumo que a Revolução tomaria — nem para Fidel. Até aquele momento, ele nunca fora socialista, e suas relações com o Partido Comunista oficial de Cuba eram muitas vezes tensas. Foi a reação daquele ruidoso e influente vizinho do norte que ajudou a determinar os rumos da Revolução. Os resultados foram confusos. Politicamente, a dependência em relação à União Soviética levou à reprodução das instituições soviéticas e a tudo que isso acarretava. Socialmente, a Revolução Cubana criou um sistema educacional e um serviço de saúde que continuam a dar inveja em grande parte do mundo neoliberal. A história será o juiz supremo, mas Fidel Castro já foi elevado, por um vasto número de latino-americanos, ao pedestal ocupado pelos grandes libertadores como Bolívar, San Martín, Sucre e José Martí.

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