28 de novembro de 2016

Socializar as finanças

Nós já vivemos em uma economia planejada. Por que não torná-la democrática?

J.W. Mason

Jacobin

Kota Ezawa, "Hand Vote", 2012

Tradução / No seu nível mais básico, as finanças são simplesmente contabilidade – um registro de obrigações e compromissos em dinheiro. Mas as finanças também são uma forma de planejamento – um conjunto de instituições para alocar reivindicações sobre o produto social.

A fusão dessas duas funções logicamente distintas – contabilidade e planejamento – é tão velha quanto o capitalismo, e tem perturbado a consciência burguesa por quase tanto tempo. A criação de poder de compra através de empréstimos bancários é difícil de se enquadrar com a reivindicação ideológica central sobre o capitalismo, de que os preços de mercado oferecem uma medida neutra de alguma realidade material preexistente. O fracasso manifesto do capitalismo em funcionar conforme as ideias de como este “sistema natural” deveria se comportar tem sua culpa lançada sobre a capacidade dos bancos (encorajados pelo Estado) a afastar os preços do mercado de seus “valores verdadeiros”.

De alguma forma, separando essas duas funções do sistema bancário – contabilidade e planejamento – está o fio central que atravessa 250 anos de propostas de reforma monetária por economistas burgueses, populistas e excêntricos. Podemos traçá-lo de David Hume, que acreditava que uma “circulação perfeita” seria aquela em que apenas o ouro fosse usado para pagamentos e que tinha dúvidas se empréstimos bancários deveriam sequer ser permitidos; passando pelos defensores do século XIX de um padrão ouro rígido ou a doutrina das contas reais, duas formas de controle concorrentes que, se supunha, deveriam restaurar a automaticidade da criação do crédito bancário; pelas propostas de Proudhon para dar ao dinheiro uma base objetiva no tempo de trabalho; pelos receios premonitórios de Wicksell sobre a instabilidade de um sistema não-regulamentado de dinheiro bancário; pelas propostas frequentemente revividas de atividades bancárias com 100% de reservas; pelas propostas de Milton Friedman para um controle rígido do crescimento da oferta de dinheiro; e chegando à ortodoxia de hoje que sonha com um banco central que siga um “controle inviolável das políticas” que reproduza a “taxa de juros natural”.

O que todas essas advertências e propostas têm em comum é que elas buscam restaurar a objetividade ao sistema monetário, e criar legislação para trazer à existência os valores supostamente reais que estariam por trás dos preços do dinheiro. Elas buscam obrigar o dinheiro a ser, de verdade, o que a sua ideologia imagina que ele seja: uma medida objetiva de valor que reflete o valor real das mercadorias, livre dos julgamentos humanos de banqueiros e políticos.

Os socialistas rejeitam essa fantasia. Nós sabemos que o desenvolvimento do capitalismo tem sido, desde o início, um processo de “financeirização” – da extensão de reivindicações monetárias sobre a atividade humana e da representação do mundo social em termos de pagamentos e compromissos em dinheiro.

Nós sabemos que nunca houve um mundo pré-capitalista de produção e trocas sobre o qual o dinheiro e, em seguida, o crédito foram posteriormente sobrepostos: redes de reivindicações monetárias são o substrato sobre o qual a produção de mercadorias cresceu e foi organizada. E sabemos que o excedente social no capitalismo não é alocado por “mercados”, apesar dos contos de fadas dos economistas. O excedente é alocado por bancos e outras instituições financeiras, cujas atividades são coordenadas por planejadores e não por mercados.

Embora descentralizada na teoria, a produção de mercado é de fato organizada através de um sistema financeiro altamente centralizado. E onde mercados competitivos realmente existem, isso geralmente se dá graças ao gerenciamento extensivo pelo Estado, desde leis antitruste até todo o elaborado maquinário criado pelo ACA para sustentar um frágil mercado para o seguro de saúde privado. Como tanto Marx quanto Keynes reconheceram, a tendência do capitalismo é desenvolver formas mais sociais e coletivas de produção, ampliando o domínio do planejamento consciente e diminuindo a zona do mercado. (Um ponto também compreendido por alguns economistas liberais mais inteligentes e com mais visão histórica hoje em dia.) A preservação da forma de mercado se torna um projeto cada vez mais utópico, exigindo uma intervenção cada vez mais ativa do governo. Pense no enorme financiamento, investimento e regulamentação públicas necessários para a nossa provisão “privada” de habitação, educação, transporte, etc.

Em um mundo onde a produção é guiada por um planejamento consciente – público ou privado – simplesmente não faz sentido pensar em valores monetários como refletindo o resultado objetivo dos mercados, ou em reivindicações financeiras como simplesmente um registro de fluxos “reais” de receitas e despesas.

Mas é muito difícil de resistir à “ilusão do real”, como Perry Mehrling a chama. Precisamos nos lembrar constantemente que os valores de mercado nunca foram, e nunca poderão ser, uma medida objetiva das necessidades e possibilidades humanas. Precisamos nos lembrar que os valores medidos em dinheiro – preços e quantidades, produção e consumo – não possuem existência independente das transações de mercado que lhes dão uma forma quantitativa.

Segue-se que o socialismo não pode ser descrito em termos da quantidade de mercadorias produzidas, ou da distribuição delas. O socialismo é a libertação da forma da mercadoria. É definido não pela disposição das coisas, mas pela condição dos seres humanos. É a extensão progressiva do domínio da liberdade humana, daquela parte de nossa vida governada pelo amor e pela razão.

Há muitos críticos das finanças que as vêem como inimigo de um capitalismo mais humano ou autêntico. Podem ser reformadores gerenciais (o “soviete de engenheiros” de Veblen) que se opõem às finanças como parasitas das iniciativas produtivas; populistas que odeiam as finanças como a destruidora de seus próprios pequenos capitais; ou crentes sinceros na concorrência no mercado que veem as finanças como um coletor de rendas ilegítimas. Em um nível prático, há muito terreno comum entre essas posições e um programa socialista. Mas não podemos aceitar a ideia de que o setor de finanças é uma distorção de alguns valores de mercado verdadeiros, naturais, objetivos ou justos.

As finanças devem ser vistas como um momento no processo capitalista, parte integrante dele, mas com duas faces contraditórias. Por um lado, são as finanças (como instituição concreta) que geram e fazem cumprir as reivindicações monetárias contra pessoas sociais de todos os tipos – seres humanos, empresas, nações – que estendem e mantêm a lógica da produção de mercadorias. (empréstimos estudantis reforçam a disciplina do trabalho assalariado; dívida soberana sustenta a divisão internacional do trabalho).

No entanto, por outro lado, o sistema financeiro é também onde o planejamento consciente toma sua forma mais desenvolvida no capitalismo. Os bancos são, na frase de Schumpeter, o equivalente privado da Gosplan, a agência de planejamento soviética. Suas decisões de empréstimo determinam quais novos projetos receberão uma parte dos recursos da sociedade e suspendem – ou reforçam – o “julgamento do mercado” sobre as empresas que andam perdendo dinheiro.

Um programa socialista deve responder a ambas as faces das finanças. Nós nos opomos ao poder do sistema financeiro se quisermos reduzir progressivamente a extensão em que a vida humana é organizada em torno da acumulação de dinheiro. Adotamos o planejamento já inerente às finanças porque queremos expandir o domínio da escolha consciente e reduzir o domínio da necessidade cega.

O desenvolvimento das finanças revela a substituição progressiva da coordenação do mercado pelo planejamento. Capitalismo significa produção com fins lucrativos; mas, na realidade concreta, os critérios de lucro estão sempre subordinados a critérios financeiros. O julgamento do mercado só tem força na medida em que é executado pelas finanças. O mundo está cheio de negócios cujas receitas excedem seus custos, mas que são obrigados a reduzir sua escala ou fechar devido às reivindicações financeiras contra eles. O mundo também está cheio de negócios que operam por anos, ou indefinidamente, com custos superiores às suas receitas, graças ao seu acesso a financiamento. E as instituições que tomam essas decisões de financiamento o fazem com base em seu próprio julgamento subjetivo – limitadas, em última análise, não por algum critério objetivo de valor, mas pelos termos estabelecidos pelo banco central.

Existe uma contradição básica entre os princípios da concorrência e das finanças. Supostamente, a concorrência seria uma forma de seleção natural: empresas que geram lucros os reinvestem e, assim, crescem, enquanto as empresas que dão prejuízo não podem investir e devem encolher e eventualmente desaparecer. Se supõe que isto seja uma grande vantagem dos mercados em relação ao planejamento. Mas todo o ponto das finanças é quebrar este vínculo entre lucros ontem e investimento hoje. O excedente pago como dividendos e juros está disponível para investimento em qualquer lugar da economia, não apenas onde foi gerado.

Por outro lado, os empresários podem realizar novos projetos que nunca foram lucrativos no passado, se puderem convencer alguém a financiá-los. A concorrência olha para trás: os recursos que você possui hoje dependem da sua performance no passado. As finanças olham para frente: os recursos que você possui hoje dependem de como é esperado (por alguém!) que seja a sua performance no futuro. Então, contrariamente à ideia de empresas subindo e caindo por seleção natural, os queridinhos das finanças – da Amazon ao Uber e todo o “rebanho de unicórnios” – podem investir e crescer indefinidamente sem nunca ter lucro. Supostamente, isso também seria uma grande vantagem dos mercados.

No mundo sem atritos imaginado pelos economistas, a suplantação da concorrência pelas finanças já foi levada ao seu limite. As empresas não controlam ou dependem do seu próprio excedente. Todo o excedente é alocado centralmente, pelos mercados financeiros. Todos os fundos para investimento provêm dos mercados financeiros e todos os lucros retornam imediatamente na forma de dinheiro para esses mercados. Isso tem duas implicações contraditórias. Por um lado, elimina qualquer percepção da empresa como um organismo social, da atividade que a empresa realiza para se reproduzir, da sua busca de fins outros que não o lucro máximo para seus “proprietários”.

A empresa, de fato, renasce a cada dia pela graça daqueles que a financiam. Mas, pela mesma razão, a lógica da maximização do lucro perde sua base objetiva. O processo quase-evolutivo da concorrência deixa de operar se os próprios lucros da empresa não são mais a fonte de financiamento de investimento, mas, em vez disso, se acumulam em um repositório comum. Neste mundo, quais empresas crescem e quais encolhem depende das decisões dos planejadores financeiros que alocam o capital entre elas.

A contradição entre a produção para o mercado e finanças socializadas se torna mais aguda à medida que os repositórios de finanças se combinam ou se tornam mais homogêneos. Este era um ponto-chave para marxistas do final do século XIX/início do século XX como Hilferding (e Lenin), mas também está por trás do recente barulho na imprensa empresarial sobre o aumento dos fundos indexados. Esses fundos possuem ações de todas as corporações listadas em um determinado índice de ações; ao contrário de fundos gerenciados ativamente, eles não fazem nenhum esforço para escolher vencedores, mas detêm ações de múltiplas empresas concorrentes.

Segundo um estudo recente, “A probabilidade de duas empresas da mesma área selecionadas aleatoriamente dentro do índice S&P 1500 ter um acionista comum com pelo menos 5% de participação em ambas as empresas aumentou de menos de 20% em 1999 para cerca de 90% em 2014.” O problema é óbvio: se as empresas trabalham para seus acionistas, então, por que elas competiriam umas contra as outras se suas ações são mantidas nas mãos dos mesmos fundos?

Naturalmente, uma solução proposta seria mais intervenção estatal para preservar a forma dos mercados, limitando ou desfavorecendo a participação em ações através de fundos amplos. Outra resposta (e talvez mais lógica) seria: se nós já estamos confiando em gerentes corporativos para serem agentes fiéis da classe rentista como um todo, por que não dar o próximo passo e torná-los agentes da sociedade em geral?

E, em qualquer caso, os termos em que o sistema financeiro direciona o capital são, em última instância, definidos pelo banco central. Suas decisões – política monetária no sentido estrito, mas também os termos em que as instituições financeiras são reguladas e resgatadas em crises – determinam não só o ritmo global da expansão do crédito, mas também os critérios de lucratividade. Isso é bastante evidente durante as crises, mas também está implícito na política monetária de rotina. A menos que taxas de juros mais baixas transformem projetos anteriormente não lucrativos em rentáveis, como eles poderiam funcionar?

Ao mesmo tempo, a legitimidade do sistema capitalista – a justificativa ideológica de sua óbvia injustiça e desperdício – vem da idéia de que os resultados econômicos são determinados pelo “mercado”, não pela escolha de ninguém. Portanto, o papel de planejamento do banco central precisa ser mantido fora de vista.

Os próprios banqueiros centrais estão bem conscientes deste aspecto do seu papel. No início dos anos 80, quando o Fed [Banco Central estadunidense] estava mudando o principal instrumento que utilizava para realizar a política monetária, os funcionários estavam preocupados que sua escolha preservasse a ficção de que as taxas de juros estavam sendo estabelecidas pelos mercados. Como afirmou Wayne Angell, governador do Fed de 86 a 94, era essencial escolher uma técnica que “tenha a camuflagem das forças do mercado em funcionamento”.

Os livros didáticos da linha dominante na Economia [a Escola Neoclássica] descrevem explicitamente a trajetória de longo-prazo das economias capitalistas em termos de um planejador ideal, que estaria estabelecendo níveis de produção e preços por toda a eternidade, a fim de maximizar o bem-estar geral. A contradição entre essa visão macro e a ideologia da concorrência no mercado é encoberta pelo pressuposto de que, no longo prazo, esse caminho seria o mesmo daquele obtido “naturalmente” em um sistema de mercado competitivo perfeito, sem dinheiro ou bancos.

Fora da academia, é mais difícil sustentar a fé de que os planejadores no banco central estão infalivelmente escolhendo os resultados nos quais o mercado teria [supostamente] chegado por conta própria. Os críticos dos bancos centrais na direita – e muitos na esquerda – compreendem claramente que os bancos centrais estão envolvidos em planejamento ativo, mas veem isso como intrinsecamente ilegítimo. Suas crenças em resultados “naturais” de mercado vêm acompanhadas de fantasias sobre um retorno a algum padrão monetário independente de julgamento humano – ouro ou bitcoin.

Socialistas, que enxergam através da fachada de expertise neutra dos dirigentes dos bancos centrais e reconhecem sua estreita associação com as finanças privadas, podem ser tentados por idéias semelhantes. Mas o caminho para o socialismo segue por outro direção. Não buscamos organizar a vida humana em uma “grade objetiva” de valores de mercado, livre da influência de distorção das finanças e dos bancos centrais. Buscamos trazer à luz esse planejamento consciente já existente, para transformá-lo em um terreno da política, e direcioná-lo para atender às necessidades humanas, em vez de reforçar relações de dominação. Em resumo: buscamos a socialização das finanças.

No contexto estadunidense, esta análise sugere um programa de transição talvez nas linhas seguintes:

Desmercantilizar o dinheiro

Embora não haja maneira de separar dinheiro e mercados das finanças, isso não significa que as funções de rotina do sistema monetário devam ser uma fonte de lucro privado. A mudança da responsabilidade pelo encanamento monetário básico do sistema para órgãos públicos ou quase públicos é uma reforma não-reformista – ela lida com alguns dos abusos e instabilidade diretamente visíveis no sistema monetário existente, ao mesmo tempo em que aponta o caminho para transformações mais profundas.

Em particular, isso poderia envolver:

1. Um sistema público de pagamentos.

No passado não muito distante, se eu quisesse te dar algum dinheiro e você quisesse me dar um bem ou um serviço, não precisávamos pagar um terceiro pela permissão para fazer a operação. Mas como pagamentos eletrônicos substituíram o dinheiro, pagamentos rotineiros se tornaram uma fonte de lucro. Intercâmbios e o resto do encanamento de rotina do sistema de pagamentos deveria ser um monopólio público, assim como a moeda o é.

2. Banco Postal.

Serviços bancários também deveriam ser fornecidos através de agências postais, como em muitos outros países. A contabilidade de transações de rotina (cheques e poupança) é um serviço que pode ser fornecido pelo Estado sem dificuldades.
3. Classificação pública de risco, tanto para títulos quanto para pessoas físicas.

Como informação que, para desempenhar sua função, deve estar amplamente disponível, classificações de crédito são um objeto natural para a provisão pública, mesmo dentro da lógica geral do capitalismo. Este também é um desafio para a função coercitiva e disciplinar crescentemente realizada por agências privadas de classificação de risco nos Estados Unidos.
4. Financiamento público de moradia.

Hipotecas para residências ocupadas pelos proprietários é outra área onde uma camada de transações de mercado é pintada sobre um sistema que já é substancialmente público. O mercado hipotecário de trinta anos é, inteiramente, uma criação de regulação – é mantido por agentes públicos trabalhando ativamente para criar mercados, e são órgãos públicos, amplamente e cada vez mais, os principais credores. Socialistas não têm interesse no cultivo de uma pequena burguesia através da propriedade de lares; mas, enquanto o Estado o fizer, exigimos que seja abertamente e diretamente, ao invés de sob o disfarce de transações privadas.

5. Previdência/aposentadoria pública

Garantir o necessário para os idosos é a outra área, juntamente da moradia, onde o Estado faz o máximo para promover o que Gerald Davis chama de “ficção de capital” – a concepção do relacionamento de uma pessoa com a sociedade em termos de propriedade de ativos.

Mas aqui, ao contrário do caso da propriedade da casa, a provisão social sob a aparência de reivindicações financeiras tem fracassado mesmo em seus próprios termos estreitos. Muitas famílias da classe trabalhadora nos Estados Unidos e em outros países ricos possuem suas próprias casas, mas apenas uma pequena fração pode satisfazer as suas necessidades de subsistência na velhice à partir de uma poupança privada. Ao mesmo tempo, sistemas públicos de aposentadoria estão muito mais desenvolvidos do que o fornecimento público de moradia. Isso sugere um programa de eliminação de programas existentes de incentivo à previdência privada e a expansão da previdência social e sistemas similares de poupança social.

Reprimir as finanças

Não é tarefa dos socialistas manter o grande cassino funcionando sem problemas. Mas, enquanto existam instituições financeiras privadas, não podemos fugir da questão de como regulá-las. Historicamente, a regulação financeira às vezes têm assumido a forma de “repressão financeira”, onde os tipos de ativos nas mãos das instituições financeiras são substancialmente ditados pelo Estado.

Isso permite que o crédito seja direcionado de forma mais efetiva para investimentos socialmente úteis. Também permite que os formuladores de políticas reduzam as taxas de juros do mercado, o que – especialmente no contexto de uma inflação maior – diminui o fardo da dívida e o poder dos credores. O sistema financeiro desregulado existente já possui críticos muito articulados; não há necessidade de duplicar seu trabalho com uma proposta detalhada de reforma. Mas podemos estabelecer alguns princípios gerais:

1. Se não for permitido, é proibido.

A regulação efetiva sempre dependeu de enumerar funções específicas para instituições específicas e proibir qualquer outra coisa. Caso contrário, é muito fácil passar por cima dela com algo que é formalmente diferente, mas substancialmente equivalente. E com os bancos centrais continuando ou não em seu papel como principais gerentes da demanda agregada, eles também precisam desse tipo de regulamentação para controlar efetivamente o fluxo de crédito.
2. Proteger funções, não instituições.

O poder político das finanças vem da sua capacidade de ameaçar a contabilidade social de rotina e a segurança dos pequenos proprietários. (“Se não resgatarmos os bancos, os caixas eletrônicos serão desligados! O que será dos seus $401(000)? “)

Enquanto instituições financeiras privadas desempenharem funções socialmente necessárias, a política para elas deve se concentrar em preservar essas funções, e não as instituições que as realizam. Isso significa que as intervenções devem estar tão próximas quanto possível do usuário final não-financeiro, e não dos jogos em que os bancos tomam parte entre si. Por exemplo: seguro de depósito.

3. Exigir grandes participações em títulos de dívida pública.

A ameaça dos “vigilantes dos títulos” contra o governo federal dos EUA tem sido extremamente exagerada, como foi demonstrado, por exemplo, pela farsa do teto da dívida e rebaixamento de 2012. Mas para governos menores – incluindo governos estaduais e locais nos Estados Unidos – os mercados de títulos não podem ser tão facilmente ignorados. E grandes carteiras em dívida pública também reduzem a frequência e a gravidade das crises financeiras periódicas que são, perversamente, uma das principais formas pelas quais o poder social das finanças é mantido.

4. Controlar os níveis gerais de dívida com taxas de juros menores e inflação maior.

As dívidas familiares nos Estados Unidos aumentaram dramaticamente nos últimos trinta anos; alguns acreditam que isso se deu porque a dívida era necessária para aumentar os padrões de vida em face de rendimentos reais estagnados ou em declínio.

Mas este não é o caso; um crescimento mais lento da renda significou simplesmente um crescimento mais lento no consumo. Em vez disso, a principal causa do aumento da dívida das famílias nos últimos trinta anos tem sido a combinação de inflação baixa e taxas de juros continuamente altas para os agregados familiares. Por outro lado, a maneira mais eficaz de reduzir o ônus da dívida – para as famílias e também para os governos – é manter as taxas de juros baixas ao mesmo tempo em que permitindo que a inflação aumente.

Como corolário da repressão financeira, podemos rejeitar quaisquer reivindicações morais em nome da receita de juros como tal. Não há direito de exercer uma reivindicação sobre o trabalho de terceiros através da propriedade de ativos financeiros. Na medida em que a provisão privada de serviços socialmente necessários (como seguros e pensões) é minada por baixas taxas de juros, isto se torna um argumento para transferir esses serviços para o setor público, não para aumentar as reivindicações dos rentistas.

Democratizar os bancos centrais

Os bancos centrais sempre foram planejadores centrais. Escolhas sobre as taxas de juros e os termos em que as instituições financeiras serão reguladas e resgatadas condicionam inevitavelmente a rentabilidade e a direção, bem como o nível de atividade produtiva. Este papel tem sido escondido por trás de uma ideologia que imagina o banco central se comportando automaticamente, de acordo com alguma regra que de alguma forma reproduziria o comportamento “natural” dos mercados.

As próprias ações dos bancos centrais desde 2008 deixaram esta ideologia em frangalhos. A resposta imediata à crise obrigou os bancos centrais a intervir mais diretamente nos mercados de crédito, comprando uma ampla gama de ativos e até mesmo substituindo instituições financeiras privadas para emprestar diretamente a empresas não financeiras. Desde então, o fracasso da política monetária convencional tem forçado os bancos centrais a ceder involuntariamente a um ampla conjunto de intervenções, canalizando crédito diretamente os para os emprestadores selecionados.

Esta reviravolta para uma “política de crédito” representa uma admissão – relutante, mas forçada pelos eventos – que a anarquia da competição é incapaz de coordenar a produção. Bancos centrais não podem – como os livros didáticos de economia imaginam – estabilizar o sistema capitalista girando um único botão rotulado “oferta monetária” ou “taxa de juros”. Eles devem substituir seu próprio julgamento pelos resultados do mercado em uma gama ampla e crescente de mercados de ativos e crédito. Eles precisam substituir resultados do mercado por seu próprio julgamento em uma gama ampla e crescente de mercados de ativos e de crédito.

O desafio agora é politizar os bancos centrais – torná-los objeto de debate público e pressão popular. Na Europa, os bancos centrais nacionais – que ainda desempenham suas antigas funções, apesar da errada percepção comum de que o Banco Central Europeu (BCE) é agora o banco central da Europa – serão um terreno central de luta para o próximo governo de Esquerda que procurar romper com a austeridade e o liberalismo econômico.

Nos Estados Unidos, podemos dispensar de uma vez por todas a ideia de que a política monetária seja um domínio de expertise tecnocrática e trazer à descoberto o seu programa de manutenção de desemprego elevado, a fim de conter o crescimento salarial e o poder dos trabalhadores. Como um programa positivo, podemos exigir que o Fed use agressivamente sua autoridade legal já existente para comprar dívidas municipais, privando os rentistas de seu poder sobre governos locais com restrições financeiras, como em Detroit e Porto Rico – e, mais amplamente, atenuando o poder dos “mercados de dívidas” como uma restrição à política popular em nível estadual e local. De forma mais ampla, bancos centrais devem ser responsabilizados por direcionar ativamente o crédito para fins socialmente úteis.

Desempoderar os acionistas

O capitalismo realmente existente consiste de estreitos fluxos de transações de mercado que circulam por entre vastas áreas de coordenação fora do mercado. Uma das funções centrais do sistema financeiro é atuar como a arma nas mãos da classe capitalista para impor a lógica do valor sobre essas estruturas fora do mercado. As reivindicações [títulos e ações] dos acionistas sobre os negócios não-financeiros e dos detentores de títulos sobre os governos nacionais asseguram que todos esses domínios da atividade humana permaneçam subordinados à lógica da acumulação. Queremos ver defesas mais fortes contra essas reivindicações – não porque tenhamos qualquer fé em capitalistas produtivos ou burguesias nacionais, mas porque eles ocupam o espaço em que a política é possível.

Especificamente, deveríamos ficar do lado das corporações, contra os acionistas. A corporação, como Marx observou há muito tempo, é “a abolição do modo de produção capitalista dentro do próprio modo de produção capitalista”. Dentro da corporação, a atividade é coordenada através de planos e não de mercados; e a orientação desta atividade é para a produção de um determinado valor de uso em vez de simplesmente dinheiro.

“A tendência da grande empresa”, escreveu Keynes, “é se socializar”. A função política fundamental das finanças é manter essa tendência sob controle. Sem a ameaça de aquisições e a pressão dos acionistas ativos, a corporação se torna um espaço onde trabalhadores e outras partes interessadas podem contestar o controle sobre a produção e o excedente que ela gera – uma possibilidade que os capitalistas nunca perdem de vista.

Nem seria preciso dizer, isso não implica nenhum apego aos indivíduos particulares no topo da hierarquia corporativa, que hoje são, na maioria das vezes, rentistas reais ou aspirantes, sem qualquer conexão orgânica com o processo de produção. Em vez disso, é um reconhecimento do valor da corporação como um organismo social; como um espaço estruturado por relações de confiança e lealdade, e por motivação intrínseca e “consciência profissional”; e como o local de produção conscientemente planejada de valores de uso.

O papel das finanças em relação à corporação moderna não é fornecer recursos para o investimento, mas garantir que a sua orientação condicional em direção à produção como um fim em si esteja, em última instância, subordinada à acumulação de dinheiro.

Resistir a essa pressão não substitui outras lutas, sobre o processo de trabalho, a divisão dos recursos e a autoridade dentro da corporação. (A história nos dá muitos exemplos de produção de valores de uso como um fim em si mesmo, que são realizados sob condições tão coercitivas e alienadas como sob a produção pelo lucro). Mas resistir à pressão das finanças cria mais espaço para essas lutas e para a evolução do socialismo no interior da forma corporativa.

Fechar as fronteiras para o dinheiro (e abri-las para as pessoas).

Assim como o poder do acionista reforça a lógica da acumulação sobre as corporações, a mobilidade de capital faz o mesmo sobre os Estados. Nas universidades, ouvimos sobre a suposta eficiência dos fluxos irrestritos de capital, mas no domínio político ouvimos mais o seu poder para “disciplinar” governos nacionais. As ameaças de crises de fuga de capitais e de balança de pagamentos protegem a lógica da acumulação contra incursões pelos governos nacionais.

Estados podem ser veículos para o controle consciente da economia somente na medida em que as reivindicações financeiras através das fronteiras sejam limitadas. Em um mundo onde os fluxos de capital são enormes e irrestritos, as atividades concretas de produção e de reprodução devem se ajustar constantemente aos caprichos volúveis de investidores estrangeiros.

Isto é incompatível com qualquer estratégia de desenvolvimento das forças de produção em nível nacional; todo caso bem sucedido de industrialização tardia dependeu de direção consciente do crédito através do sistema bancário nacional. Mais do que isso, a exigência de que a atividade real acomode fluxos financeiros transfronteiriços é incompatível até mesmo com a reprodução estável do capitalismo na periferia. Aprendemos esta lição muitas vezes na América Latina e em outros lugares do Sul Global, e agora estamos aprendendo novamente na Europa.

Portanto, um programa socialista sobre finanças deve incluir o apoio aos esforços dos governos nacionais para se desvincular da economia global [em sua variante neoliberal] e para manter ou recuperar o controle sobre seus sistemas financeiros. Hoje, tais esforços estão freqüentemente ligados a uma política de racismo, nativismo e xenofobia que devemos rejeitar de forma intransigente. Mas é possível avançar na direção de um mundo em que fronteiras nacionais não constituam barreira para pessoas e idéias, mas limitem a circulação de mercadorias e sejam barreiras impassíveis às reivindicações financeiras privadas.

Nos Estados Unidos e em outros países ricos, também é importante se opor a qualquer uso da autoridade – legal ou não – desses Estados para fazer valer reivindicações financeiras contra Estados mais fracos. A Argentina e a Grécia, para tomar dois exemplos recentes, não foram obrigadas a aceitar os termos de seus credores pelas ações de indivíduos privados dispersos através de mercados financeiros – mas, respectivamente, pelas ações do juiz Griesa do Segundo Circuito dos EUA e por Trichet e Mario Draghi do BCE. Para que Estados periféricos promovam desenvolvimento e sirvam de veículo para a política popular, eles precisam se isolar dos mercados financeiros internacionais. Mas o poder desses mercados vem, em última instância, das canhoneiras – figurativas ou literais – pelas quais são feitas valer as reivindicações financeiras privadas.

Com relação aos próprios Estados fortes, os mercados não possuem controle, exceto sobre a imaginação. Como vimos repetidamente nos últimos anos – mais dramaticamente no vaudeville do limite de dívida entre 2011-2013 – não existem “vigilantes das dívidas”; os termos sob os quais os governos emprestam são totalmente determinados pela sua própria autoridade monetária. Tudo o que é necessário para quebrar o poder do mercado de títulos de dívida aqui é reconhecer que ele já não tem poder real.

Resumindo, devemos rejeitar a ideia das finanças como um intruso em uma ordem de mercado pré-existente. Devemos resistir ao poder das finanças para forçar a adoção da lógica da acumulação. E devemos reivindicar como um lugar para a política democrática o planejamento social já realizado através das finanças.

Sobre o autor

J.W. Mason é professor assistente de economia da John Jay College, Universidade da Cidade de Nova York e membro do Instituto Roosevelt. Ele mantem o blog The Slack Wire.

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