30 de novembro de 2016

Votando sob o socialismo

Vai ser mais significativo – mas esperamos que não envolva assembleias sem-fim.

Peter Frase

Jacobin

Tradução / Depois de assistir meses de cobertura na mídia, você vai para as urnas por alguns minutos e deposita seu voto para alguém te representar... E então acabou. Isso é o que “democracia” significa hoje.

Certamente, conquistar mesmo esta forma limitada de democracia eleitoral foi uma importante vitória da classe-trabalhadora. E o acesso às urnas permanece uma questão importante. Conservadores continuam seus esforços para reverter direitos de voto de pessoas negras nos Estados Unidos. Outras populações, tais como condenados, residentes sem a condição de cidadãos e adolescentes com menos de 18 anos estão inteiramente por fora dessa concessão.

A questão permanece, porém, se estas são algo mais do que batalhas táticas, formas de conquistar vantagens na luta contra o capital. Em um mundo melhor, democracia não significaria mais do que isso? Que tipo de organização política é adequada para uma sociedade socialista?

Historicamente, socialistas tem argumentado que a democracia deveria ser estendida para algumas das partes menos democráticas da sociedade capitalista: a economia e o espaço de trabalho. Nós já temos instituições como sindicatos que fazem isso de uma maneira limitada. Mas como poderíamos democratizar a economia como um todo?

Alguns advogam pela democracia direta, em que as próprias pessoas desenvolvem e votam em iniciativas, ao invés de escolher representantes baseadas em plataformas gerais e garantindo a eles o direito de estabelecer políticas.

Um dos argumentos recentes mais influentes por uma democracia direta pós-capitalista é o livro de Michael Albert e Robin Hahnel, Parecon: Life After Capitalism. Nele, os autores concebem um mundo em que cada possível tarefa é classificada em termos de seu nível de força necessária para que o fardo do trabalho seja distribuído igualmente. Além disso, todo mundo registra suas preferências de consumo e de tempo de trabalho a fim de garantir que recebam uma alocação ótima de tempo e de bens.

Mas como muitos críticos têm apontado, este sistema implica numa quantia absurda de esforço e de tempo para sua implementação. O sistema de alocação de empregos iria requerer reuniões, comissões e análises sem fim, enquanto o sistema de alocação de bens imporia imensos requisitos burocráticos sobre os indivíduos. Democracia direta pode ser ideal para, digamos, uma cooperativa pequena, mas não faz sentido como uma forma de conduzir uma sociedade inteira.

Algum tipo de sistema representativo será necessário, tanto em organizações quanto em sabe-se-lá-que-tipo-de-estado possa existir após o capitalismo. Porém, ele deve ser tão pequeno e simples quanto possível. Governos modernos com eleições constantes para todo tipo de funcionários menores e oficiais locais seriam, à sua maneira, tão incômodos e impraticáveis para as pessoas participar quanto no Parecon.

Esperamos que um dia todos viveremos em um futuro de energia ilimitada e produção automatizada, e assim os muitos aspectos de nossos governos que são dedicados tanto para proteger quanto para redistribuir riqueza serão desnecessários. Mas ainda existirão grandes questões sendo levantadas. Construiremos aquele trem de alta velocidade? Tentamos salvar a Terra ou nos mudamos para Marte?

Nesse caso pode ser útil ter instituições representativas em alguma forma altamente atenuada, que possam organizar e focar opiniões sobre questões enormes e complicadas, concentrando-as em plataformas e partidos ideológicos que serão mais democráticos e participativos do que a maioria dos que temos hoje.

Mas ainda não terminamos. Mesmo no capitalismo, existe um outro sistema, nem democracia representativa e nem direta, que às vezes é oferecido como uma alternativa a ambas.

“Libertários” de direita frequentemente defendem o mercado como uma forma superior de democracia. A democracia representativa, eles afirmam, é falha por que permite que maiorias imponham sua vontade sobre minorias, e porque ela permite que eleitores desinformados deem suporte para políticas “irracionais”.

Em contraste, estes “libertários” consideram o mercado como um mecanismo democrático perfeito. “Vote com seus dólares,” e a mão-invisível fará o resto, garantindo resultados ótimos para todos.

Dada essa proveniência, muitos esquerdistas são rápidos para repudiar qualquer coisa que tenha a ver com mercado como necessariamente antitético para a democracia. Mas ao invés de nos apressarmos para esse julgamento, deveríamos parar e considerar o que exatamente torna a forma “libertária” de democracia de mercado tão impalatável.

O problema não vem principalmente do ato de troca no mercado – ou seja, usar dinheiro como um meio para comprar e vender. Ao invés, são as dotações desiguais que precedem essa troca. Nós nos opomos ao fato de que uns poucos comandem quantias enormes de dinheiro – e, assim, um poder enorme no mercado – enquanto uma vasta maioria tenha pouco dinheiro, e poucas maneiras de obtê-lo além de vender sua própria força de trabalho.

O problema não está restrito a mercados de trocas privadas. Em uma sociedade capitalista, também afeta a própria democracia representativa. Enquanto esse sistema é formalmente baseado no princípio de “uma pessoa, um voto,” os ricos invariavelmente encontram maneiras de corromper o processo a seu favor.

O resultado, em cada democracia capitalista, fica em algum lugar entre o puro “uma pessoa, um voto” e o ideal oligárquico -”libertário” de “um dólar, um voto”. Reformas no financiamento de campanha podem mover as coisas para longe da democracia-de-dólares e rumo à democracia-de-pessoas, mas a única forma de superar totalmente o poder dos ricos é remover seu controle sobre a riqueza social.

Mas se nós fôssemos capazes de fazer isso – expropriar a classe dominante e superar o capitalismo – onde isso deixa o mercado? Se a desigualdade de recursos iniciais é apagada, o mercado pode de fato servir como um mecanismo de coordenação democrática. Seus dólares podem ser seus votos.

O problema da conservação de recursos fornece um jeito de pensar sobre isso. Suponha que vivemos em uma sociedade socialista democrática em que o trabalho já foi, em sua maior parte, abolido, e todos têm recursos iguais. O único embaraço é que ainda vivemos em um mundo com severos limites de recursos, então temos de encontrar uma forma justa de evitar que as pessoas usem materiais demais.

Em alguns casos, alguns tipos de regulação centralizada ou planejamento podem ser necessários. Mas nós não queremos ter de soletrar em detalhes o quanto de cada bem de consumo que cada pessoa terá direito – nesse caminho está a distopia do Parecon das reuniões sem-fim.

Então, ao invés disso, imagine atribuir a todas as pessoas um número igual de créditos para gastar em bens cujos preços estejam vinculados aos seus respectivos impactos ambientais. No caso mais simples, esse poderia ser o custo de carbono, mas poderia incluir muitos materiais e recursos. Dessa forma, se eu não tiver os créditos para conseguir tanto um novo computador quanto uma viagem transatlântica, eu posso escolher qual eu quero, sem precisar participar de qualquer assembleia ou solicitar através de um escritório governamental, e o “preço” de recursos escassos específicos se ajustaria baseado na demanda de toda a sociedade por ele.

Essa é uma vasta simplificação, é claro. Mas o ponto geral é que em qualquer sociedade futura concebível nós precisaremos de uma variedade de diferentes métodos para coordenar nossa vida em comum – em outras palavras, diferentes formas de democracia.

29 de novembro de 2016

Quando o público se torna privado, como Trump quer: O que acontece?

por Diane Ravitch

The New York Review of Books

Education and the Commercial Mindset
por Samuel E. Abrams
Harvard University Press, 417 pp., $39.95

School Choice: The End of Public Education?
por Mercedes K. Schneider
Teachers College Press, 204 pp., $35.95 (impresso)

William Eggleston: Sem título, cerca de 1983-1986; da exposição "The Democratic Forest", em exibição na David Zwirner Gallery, Nova York, até 17 de dezembro de 2016.

O New York Times publicou recentemente uma série de artigos sobre os perigos da privatização de serviços públicos, o primeiro dos quais foi intitulado "Quando você liga 911 e Wall Street atende". Ao longo dos anos, o New York Times publicou outras reportagens sobre serviços privatizados, como hospitais, cuidados de saúde, prisões, ambulâncias e pré-escolas para crianças com deficiência. Em algumas cidades e estados, mesmo as bibliotecas e a água foram privatizadas. Nenhum serviço público está imune a aquisições por corporações que dizem que podem fornecer qualidade comparável ou melhor a um custo menor. O New York Times disse que, desde a crise financeira de 2008, as empresas de private equity "têm cada vez mais assumido uma ampla gama de serviços cívicos e financeiros que são centrais para a vida americana".

Privatização significa que um serviço público é assumido por uma empresa com fins lucrativos, cujo objetivo mais elevado é o lucro. Os investidores esperam um lucro quando uma empresa se move para um novo empreendimento. A nova corporação que opera o hospital ou a prisão ou o corpo de bombeiros reduz custos por todos os meios para aumentar os lucros. Quando possível elimina os sindicatos, eleva os preços para os consumidores (chega até mesmo a cobrar os proprietários por apagar incêndios), corta os benefícios dos trabalhadores, expande o horário de trabalho e demite funcionários veteranos que ganham mais. As conseqüências podem ser perigosas para os cidadãos comuns. Médicos em hospitais privatizados podem realizar cirurgias desnecessárias para aumentar as receitas ou evitar tratar pacientes cujos cuidados podem ser muito caros.

O Federal Bureau of Prisons concluiu recentemente que as prisões privatizadas não eram tão seguras quanto as administradas pela própria agência e eram menos propensas a fornecer programas eficazes de educação e treinamento para reduzir a reincidência. Conseqüentemente, o governo federal começou a eliminar gradualmente prisões administradas privadamente, que detêm cerca de 15 por cento dos prisioneiros federais. Essa decisão foi baseada em uma investigação feita pelo inspetor geral do Departamento de Justiça, que citou uma revolta de maio de 2012 em um centro de correções do Mississippi, no qual uma dezena de pessoas ficaram feridas e um oficial correcional foi morto. Duzentos e cinquenta internos participaram do motim para protestar contra a má qualidade dos alimentos e dos cuidados médicos. Desde a eleição, o preço das ações de prisões com fins lucrativos tem disparado.

Há um debate em curso sobre se a Veterans Administration deve privatizar os cuidados de saúde para veteranos militares. Os republicanos propuseram a privatização da Previdência Social e do Medicare. O presidente George W. Bush costumava apontar para o Chile como uma nação modelo que tinha privatizado com êxito a Segurança Social, mas o New York Times informou recentemente que a privatização das aposentadorias no Chile foi um desastre, deixando muitas pessoas mais velhas empobrecidas.


Nos últimos quinze anos, as escolas públicas da nação têm sido um alvo primário para a privatização. Sem o conhecimento do público, aqueles que pretendem privatizar as escolas públicas se chamam de "reformadores" para disfarçar seu objetivo. Quem poderia se opor à "reforma"? Hoje em dia, aqueles que se autodenominam "reformadores da educação" provavelmente serão gestores de fundos de hedge, empresários e bilionários, e não educadores. O movimento pela "reforma" proclama em voz alta o fracasso da educação pública americana e busca entregar o dinheiro público a empresários, cadeias corporativas, operações familiares, organizações religiosas e quase qualquer outra pessoa que queira abrir uma escola.

No início de setembro, Donald Trump declarou seu compromisso com a privatização das escolas públicas da nação. Ele realizou uma conferência de imprensa em uma charter school de baixo desempenho em Cleveland, administrada por um empreendedor com fins lucrativos. Ele anunciou que se eleito presidente, ele iria transformar US $ 20 bilhões em despesas de educação federal existentes em uma concessão em bloco para os estados, que eles poderiam usar para cupons para escolas religiosas, charter school, escolas privadas ou escolas públicas. Estes são os fundos que atualmente subsidiam as escolas públicas que inscrevem um grande número de alunos pobres. Como a maioria dos republicanos, Trump acredita que a "escolha da escola" e a competição produzem uma melhor educação, mesmo que não haja evidência para essa crença. Como presidente, Trump irá incentivar a concorrência entre os prestadores públicos e privados de educação, o que irá reduzir o financiamento para as escolas públicas. Nenhuma nação de alto desempenho no mundo privatizou suas escolas.

Os motivos para o movimento pela privatização são vários. Alguns privatizadores têm um compromisso ideológico com o capitalismo de livre mercado; eles condenam as escolas públicas como "escolas governamentais", prejudicadas pelos sindicatos e pela burocracia. Alguns estão certos de que as escolas precisam ser administradas como empresas, e que as pessoas com experiência em negócios podem gerenciar as escolas muito melhor do que os educadores. Outros têm um motivo de lucro e esperam ganhar dinheiro na crescente "indústria educacional". Os adeptos da abordagem empresarial opõem-se aos sindicatos e à estabilidade, preferindo empregados sem qualquer proteção adequada ao trabalho e remuneração por mérito atrelada aos resultados das avaliações. Eles nunca dizem: "Queremos privatizar as escolas públicas". Dizem: "Queremos salvar as crianças pobres de escolas que fracassaram." Portanto, "Devemos abrir charter schools privadas para dar às crianças uma escolha" e "Devemos fornecer cupons para que as famílias pobres possam escapar das escolas públicas".

O movimento pela privatização tem um lobby poderoso para promover sua causa. A maioria dos que apoiam a privatização são conservadores políticos. Os think tanks de direita produzem regularmente apresentações brilhantes de charter e vouchers schools, juntamente com relatos brilhantes sobre o seu sucesso. O American Legislative Exchange Council (ALEC), uma organização de direita financiada por grandes corporações e composta por cerca de dois mil legisladores estaduais, elaborou um modelo de lei de charter school, que seus membros introduzem em suas legislaturas estaduais. Cada governador e legislador republicano aprovou legislação para charter e vouchers. Cerca de metade dos estados promulgaram legislação sobre vouchers ou créditos fiscais para escolas não públicas, embora em alguns desses estados, como Indiana e Nevada, a constituição estadual proíba explicitamente o gasto de fundos estaduais em escolas religiosas ou qualquer outra coisa que não seja escolas públicas.


Se o movimento pela privatização fosse confinado a republicanos, poderia haver um debate político vigoroso sobre a sabedoria de privatizar as escolas públicas da nação. Mas o governo Obama tem ficado tão entusiasmado com as charter schools privadas como os republicanos. Em 2009, seu próprio programa de reforma educacional, Race to the Top, ofereceu um prêmio de US $ 4,35 bilhões pelo qual os estados poderiam competir. Para serem elegíveis, os estados tiveram que mudar suas leis para permitir ou aumentar o número de charter schools, e eles tiveram que concordar em fechar as escolas públicas que tinham resultado em avaliações de desempenho continuamente baixos.

Em resposta ao estímulo do governo Obama, quarenta e dois estados e o Distrito de Columbia atualmente permitem charter schools. Quando milhares de escolas públicas comunitárias foram fechadas, as charter schools foram abetas para ocupar seu lugar. Hoje, existem cerca de sete mil financiadas por fundos públicos, as charter schools de gestão privada, matriculando cerca de três milhões de alunos. Algumas são administradas com fins lucrativos. Algumas são escolas à distância, onde os alunos sentam em casa e recebem suas aulas em um computador. Algumas operam em shoppings. Algumas são administradas por personagens sem escrúpulos com a expectativa de ganhar dinheiro. Charters abrem e fecham com frequência perturbadora; de 2010 a 2015, mais de 1.200 charter schools foram fechadas devido a dificuldades acadêmicas ou financeiras, enquanto outros abriram.

Charter schools têm várias vantagens sobre as escolas públicas regulares: elas podem admitir os alunos que querem, excluir aqueles que não querem, e expulsar aqueles que não cumprem seus padrões acadêmicos ou comportamentais. Mesmo que algumas escolas públicas tenham admissões seletivas, o sistema escolar público deve registrar cada estudante, em qualquer período do ano escolar. Normalmente, charter schools têm menor número de alunos cuja língua nativa não é o inglês e menor número de alunos com deficiências graves, em comparação com escolas públicas comunitárias. Ambas as charter e vouchers schools drenam e afastam recursos das escolas públicas, mesmo quando deixam os estudantes mais necessitados, os mais caros, para as escolas públicas educarem. A concorrência das charter e vouchers schools não melhoram as escolas públicas, que ainda matriculam 94 por cento de todos os alunos; a concorrência as enfraquecem.

As charter schools muitas vezes se autodenominam "charter schools públicas", mas quando foram desafiadas em um tribunal federal ou estadual ou perante o Conselho Nacional de Relações Laborais, as corporações fundadoras insistem que são empreiteiras privadas, e não "atores estatais" como as escolas públicas, portanto, não são obrigados a seguir as leis estaduais. Como corporações privadas, elas estão isentas de cumprir as leis trabalhistas estaduais e das leis estaduais que governam as políticas pedagógicas. Cerca de 93 por cento das charter schools são desestruturadas, como o são praticamente todas as voucher schools. Na maioria das charter schools, os professores jovens trabalham cinquenta, sessenta, ou setenta horas por semana. A rotatividade dos professores é alta, dadas as horas e a intensidade do trabalho.

Nos últimos vinte anos, sob os presidentes Clinton, Bush e Obama, o governo federal gastou bilhões de dólares para aumentar o número de charter schools privadas. As charter schools foram abraçadas por gestores de fundos de hedge; financiadores muito ricos criaram inúmeras organizações - como Democrats for Education Reform, Education Reform Now e Families for Excellent Schools - para fornecer muitos milhões de dólares para apoiar a expansão das charter schools. As elites que apoiam charters também financiam campanhas políticas de candidatos simpáticos e para consultas estaduais aumentar as chartes. Na recente eleição, os doadores de fora do estado, incluindo os Waltons de Arkansas, gastaram US $ 26 milhões em Massachusetts na esperança de expandir o número de charter schools; a questão foi derrotada em uma votação por uma margem ressonante de 62-38 por cento. Na Geórgia, o governador republicano tentou fazer uma mudança na constituição do estado para permitir que ele assumisse escolas públicas de baixa pontuação e convertê-las em charter schools; ele também foi derrotado, por um voto de 60-40 por cento.

Além de gastar em campanhas políticas, alguns dos mesmos bilionários têm usado suas fundações filantrópicas para aumentar o número de charter school. Três das maiores fundações da nação subsidiam seu crescimento: a Fundação Bill e Melinda Gates, a Walton Family Foundation e a Fundação Edythe e Eli Broad. Além destes três, as charters também receberam doações da Fundação Família Bloomberg, a Fundação Susan e Michael Dell, a Fundação Laura e John Arnold (ex-Enron), a Fisher Family Foundation (lojas The Gap), Reed Hastings (Netflix), Jonathan Sackler (Purdue Pharmaceutical, fabricante de Oxycontin), a família DeVos de Michigan (Amway), e muitos mais dos cidadãos mais ricos da nação. Eli Broad está financiando um programa para colocar metade dos estudantes em Los Angeles (o segundo maior distrito escolar da nação) em carteiras administradas de forma privada.

A Walton Family Foundation, por si só, gasta US $ 200 milhões anuais para charters, e reivindica o crédito por lançar uma de cada quatro charter school da nação. A família Walton de Arkansas vale cerca de US $ 130 bilhões, graças às lojas Walmart, e eles são veemente anti-União. Para eles, as charters constituem uma maneira conveniente de minar os sindicatos de professores, um dos últimos e maiores pilares do movimento sindical organizado. Bill Gates gastou pessoalmente o dinheiro para aprovar a legislação da patente charter em seu estado de origem de Washington. Três referendos estaduais sobre charters fracassaram em Washington e o quarto aprovou com menos de 1,5 por cento dos votos em 2012. O objetivo de Gates foi bloqueado, no entanto, quando o mais alto tribunal do estado decidiu que as charter schools não são escolas públicas porque seus conselhos não são eleitos. Na eleição recente, Gates e seus aliados apoiaram opositores que disputaram contra os juízes da Suprema Corte estadual que decidiram contra o financiamento público de charter schools privadas, mas os eleitores os reelegeram.


Dada a quase total ausência de informação pública e debate sobre o esforço furtivo de privatizar as escolas públicas, este é o momento certo para o surgimento de dois novos livros sobre o assunto. Samuel E. Abrams, um professor e administrador veterano, escreveu uma análise elegante do funcionamento das forças do mercado na educação em seu livro Education and the Commercial Mindset. Abrams é agora diretor do Study of Privatization in Education no Teachers College, Columbia University. O outro livro, School Choice: The End of Public Education?, foi escrito por Mercedes K. Schneider, um professor do ensino médio em Louisiana com um doutorado em métodos de pesquisa e estatística que deixou o ensino universitário para ensinar adolescentes.

Education and the Commercial Mindset analisa com profundidade a história do Projeto Edison, um ambicioso plano de negócios criado pelo empresário Chris Whittle. Whittle anunciou seu programa em 1991 no National Press Club em Washington, D.C. Ele disse que pretendia revolucionar a educação pública, abrindo uma cadeia de escolas privadas em toda a nação em que a taxa de matrícula seria menor do que o custo do governo das escolas públicas, mas o desempenho dos alunos seria superior. As escolas conteriam custos, colocando os alunos para trabalhar como tutores, auxiliares de escritório e funcionários da cafeteria. As escolas teriam as últimas tecnologias e estariam abertas oito horas por dia, onze meses por ano. "Whittle previu um crescimento dramático: 200 escolas com 150.000 estudantes em 1996 e 1.000 escolas com 2 milhões de estudantes até 2010." O Projeto Edison supunha ser a vanguarda de uma emergente nova industria da educação. Whittle voltou-se para investidores privados para levantar os US $ 2,5 a US $ 3 bilhões que ele disse que precisava para os investimentos iniciais.

A premissa não dita do Projeto Edison era que o Congresso autorizaria vouchers para a matrícula dos estudantes. Sem vouchers, o plano não funcionaria. Por que os pais pagariam US $ 8.000 para enviar seu filho para uma escola Edison quando eles poderiam ir para a escola pública local de graça? Whittle prometeu transformar a educação em um negócio e medir o aprendizado dos alunos com precisão, assim como a Federal Express controla seus pacotes. Ele convidou Benno Schmidt, que era o presidente da Universidade de Yale, para ser o CEO do Projeto Edison, e ele reuniu uma "equipe de design" de sete pessoas para planejar o currículo e o programa do protótipo da escola, apenas um dos quais já tinha sido um educador K-12, aponta Abrams.

Whittle imediatamente encontrou dois bloqueios. O Presidente George H.W. Bush foi derrotado por Bill Clinton em 1992, e não haveria vouchers para os estudantes pagarem pelas escolas Edison. Quando Whittle começou a levantar o dinheiro dos investidores, suas expectativas de bilhões começaram a se desfazer. A Time Warner investiu US $ 22,5 milhões; a Phillips Electronics of Holland investiu US $ 15 milhões; um grupo de jornal britânico acrescentou US $ 14,4 milhões; e Whittle e seus amigos acrescentaram US $ 8,1 milhões. Isso era menos de 10% do que ele esperava.

Whittle abandonou o plano original de abrir escolas privadas e passou a subcontratar dos distritos escolares locais para dirigir escolas problemáticas e charter schools. Por um tempo, isso parecia promissor. Em 1999, Edison operava sessenta e uma escolas com 37.500 estudantes em dezessete estados. Naquele ano, recebeu quase US $ 250 milhões de investidores, e se tornou aberta. Suas ações abriram a US $ 18 por ação; dois anos mais tarde, negociou em $ 38.75 por ação. Merrill Lynch ficou otimista sobre o futuro da privatização educacional, prevendo uma indústria prospera e rentável. Analistas independentes previam que Edison seria o McDonald's da educação.

Mas à medida que se expandia, Edison enfrentava dois problemas persistentes: não conseguiu os lucros previstos e não conseguiu o resultado em desempenho previsto. Whittle continuou a prometer que os resultados precisavam de apenas alguns anos de espera. As margens de lucro eram tão finas que Edison se voltou para filantropos favoráveis ​​à privatização para subsidiar suas operações. Ser uma empresa de capital aberto criou outros problemas para a Edison. Quando analistas financeiros revelaram que a Edison estava exagerando suas receitas, suas ações caíram para US $ 1,01 por ação no final de junho de 2002.

Edison teve um caminho difícil em Baltimore, onde perdeu eventualmente seu contrato para controlar escolas. E teve uma situação ainda mais difícil na Filadélfia. O governador da Pensilvânia, Tom Ridge, deu a Edison um contrato de US $ 2,7 milhões para estudar as necessidades do distrito. Sua maior necessidade era dinheiro; o distrito em grande parte negro e pobre foi dramaticamente sub-financiado pelo Estado (e ainda é). Edison esperava que fosse contratado para administrar o distrito, bem como para controlar quarenta e cinco escolas. Em vez disso, a experiência de privatização encontrou um muro de oposição por grupos de direitos civis locais, clérigos e sindicatos de professores. Edison não ganhou o contrato para dirigir o distrito, e tomou a carga de somente vinte escolas.

Enquanto Edison estava lutando contra manifestantes na Filadélfia, funcionários da escola na Geórgia, Texas, Massachusetts e Michigan encerrou contratos com o Edison antes da hora por causa do desempenho sem brilho. Com cada revés, o preço das ações do Edison caiu. Em outubro de 2002, caiu para catorze centavos por ação e quase foi retirada da lista pelo NASDAQ. Em julho seguinte, a empresa deixou de ser aberta, comprando de volta suas ações. Ele voltou sua atenção para a obtenção de lucros na pós-escola e programas de verão, bem como serviços como desenvolvedor profissional e software de computador.

O sonho de Whittle de revolucionar a educação pública americana aplicando a disciplina de mercado acabou. Em 2012, a equipe de Edison arrecadou US $ 75 milhões em financiamento privado para abrir escolas privadas de elite com fins lucrativos em todo o mundo, com o objetivo de [abrir] vinte campi. Sua primeira escola, Avenues, foi aberta no bairro Chelsea da cidade de Nova York em um grande espaço renovado a um custo de US $ 60 milhões, com a mais recente tecnologia e um pessoal contratado de algumas das melhores escolas privadas do país. Por razões inexplicáveis, Chris Whittle saiu deste empreendimento na primavera de 2015.

Donald Trump com alunos e educadores da Cleveland Arts and Social Sciences Academy, uma escola charter com fins lucrativos, antes de dar um discurso sobre a escolha da escola, setembro de 2016. Créditos. Evan Vucci/AP Images:


Abrams também volta-se para o Knowledge Is Power Program (KIPP), uma importante cadeia de fretamento que opera como uma organização sem fins lucrativos. Ele tem duzentas escolas em todo o país, que na maioria das vezes obtêm notas altas em testes padronizados. Graças à lei do Presidente George W. Bush, No Child Left Behind, o teste padronizado é considerado a única medida de educação, embora tais testes sejam pobres proxies para uma educação genuína. As escolas do KIPP impõem padrões comportamentais estritos e ensinam o cumprimento incontestável. Elas são chamados de escolas "sem desculpas", uma vez que não pode haver "nenhuma desculpa" para o fracasso. Muitos outros charters tentam replicar os métodos KIPP e pontuações em testes. A desvantagem de escolas como as do KIPP, aponta Abrams, é que elas têm alta rotatividade com o esgotamento dos professores, e altos índices de atrito, à medida que os alunos saem e não conseguem satisfazer suas expectativas.

KIPP também tem uma grande vantagem financeira. Em 2011, mostra Abrams, o KIPP arrecadou quase US $ 130 milhões para complementar o financiamento federal, estadual e local. Isso equivale a um adicional de $ 3.800 por aluno, em comparação com as escolas públicas. O KIPP continua a ser o destinatário de grandes doações de fundações simpatizantes da privatização. Os filantropos aparentemente acreditam que uma disciplina rígida permitirá que as crianças pobres obtenham as atitudes e os valores para sair da pobreza. No entanto, um estudo recente sobre os graduados das charter schools do Texas pelos economistas Will Dobbie e Roland Fryer - ambos apoiadores da "escolha" - descobriram que esses jovens não obtiveram nenhuma vantagem nos ganhos pós-escolares.

Abrams analisa a experiência da Suécia e do Chile, que abraçou a privatização das escolas sob a liderança conservadora. Em ambos os países, o desempenho escolar diminuiu, e a segregação por raça, classe, religião e renda cresceu. O resultado da escolha da escola não foi o aumento da qualidade escolar, mas o aumento da desigualdade social.

Em seus capítulos finais, Abrams nos mostra a Finlândia como uma nação que escolheu um caminho diferente e evitou escolhas escolares. Ela tem bom desempenho em testes internacionais, mesmo que seus alunos raramente encontrem testes padronizados. Seu objetivo nacional é fazer de cada escola uma boa escola. O ensino é uma profissão altamente respeitada, que exige cinco anos de educação e preparação. Enquanto muitas escolas americanas abandonaram o recesso para ganhar mais tempo para testes, escolas finlandesas oferecem recesso após cada aula. Enquanto os estudantes americanos começam a aprender suas letras e números no jardim de infância ou mesmo no pré-jardim de infância, os estudantes finlandeses não começam a instrução formal na leitura e na matemática até que alcancem a idade de sete. Até então, o foco na escola está em jogo. As escolas enfatizam a criatividade, a alegria na aprendizagem, as artes e a educação física. A pobreza infantil é baixa e as crianças recebem cuidados médicos gratuitos. Os professores têm autonomia para elaborarem seus próprios testes. Os críticos dizem que a sociedade americana é muito diversa para copiar uma nação que é homogênea, mas é difícil entender por que a diversidade racial e social anula o valor de qualquer coisa feita nas escolas finlandesas para tornar as crianças mais saudáveis, felizes e mais engajadas na aprendizagem.


O livro de Mercedes Schneider examina as contradições da escolha da escola, que é agora o grito de guerra para aqueles que se chamam reformadores. Ela documenta a história dessa ideia, começando com o ensaio de 1955 do economista Milton Friedman, que defende os cupons escolares. Apareceu por acaso no imediato rescaldo da decisão da Suprema Corte dos EUA contra Brown v. Conselho de Educação declarando a segregação racial legalmente sancionada inconstitucional. Se os políticos brancos do sul leram ou não Friedman, o fato é que eles se transformaram nos principais proponentes da escolha da escola. Depois de um período de insistência em que eles diziam que nunca iriam cumprir com a decisão de Brown, eles se tornaram defensores abertos da escolha da escola, esperando que as crianças brancas ficassem em escolas totalmente brancas e crianças negras ficassem com medo de procurar admissão nas escolas brancas. A escolha da escola foi sua estratégia para evadir a segregação.

Schneider relata a ideia original de charter schools, como foi desenvolvido pela primeira vez em 1988 por Albert Shanker, presidente da Federação Americana de Professores, e Ray Budde, professor da Universidade de Massachusetts. Esperavam permitir maior participação dos professores na tomada de decisões e menos burocracia. Shanker usou sua plataforma nacional para propor charter como escolas dentro da escola, equipadas por professores sindicalizados, livres para tentar novos métodos para educar alunos relutantes e desinteressados e incentivados a compartilhar o que aprenderam com a escola pública de acolhimento. Em 1993, Shanker percebeu que sua ideia tinha sido adaptada por empresas que pensavam que poderiam administrar escolas públicas e lucrar. Nesse ponto, Shanker renunciou às charters e declarou que eram uma ameaça para as escolas públicas, como os vouchers.

O primeiro estado a aprovar a legislação sobre charter foi Minnesota em 1991. O que começou como uma medida bipartidária logo se tornou algo central dos políticos conservadores, que perceberam que eles poderiam substituir "escolas públicas" pelaa gestão privada e, ao mesmo tempo, livrar-se de sindicatos. Como resultado do estímulo financeiro do programa Race to the Top do presidente Obama, quase todos os estados agora autorizam charter school privadas. Em alguns estados, como Nevada e Ohio, charter schools estão entre as escolas de menor desempenho no estado. Poucos desses estados estabeleceram qualquer processo de supervisão ou prestação de contas, de modo que milhares de charters surgiram, desregulamentadas e sem responsabilidade perante as autoridades públicas. Em Michigan, cerca de 80 por cento das charters operam com fins lucrativos. Em geral, elas não funcionam melhor do que as escolas públicas, e de acordo com uma pesquisa de um ano realizada pela Detroit Free Press, elas compõem uma indústria publicamente subsidiada US $ 1 bilhão por ano, sem responsabilização.

Schneider documenta o estímulo fornecido pelas administrações de George W. Bush e Barack Obama para o crescimento da indústria charter. E segue o rastro do dinheiro, mostrando os milhões derramados na proliferação de charters pelos Waltons e por outros bilionários. Os defensores das charters dizem que eles apoiam as charters porque querem "resgatar" alunos pobres e pertencentes a minorias de escolas públicas "que fracassam". Walmart sozinho emprega um surpreendente 1,4 milhões de pessoas nos Estados Unidos, a muitos dos quais são pagos menos do que o salário mínimo. O Waltons causa um impacto mais dramático sobre o bem-estar das crianças, pagando aos seus trabalhadores um salário mínimo de US $ 15 por hora, do que causa abrir ao charter schools e enfraquecendo as escolas públicas da comunidade.


Por que Wall Street está disposta a gastar milhões de dólares para promover charter schools? Como Schneider mostra, charters podem ser um negócio muito rentável. Ao contrário do Projeto Edison, que primeiro apostou em vouchers, e então entrou em contratos com distritos escolares para administrar escolas públicas de baixo desempenho, as charters recebem dinheiro público, e elas começam do começo, livres para excluir os alunos que não querem. Estas são enormes vantagens.

Os lucros vêm em muitas formas. Primeiro, há créditos fiscais federais para aqueles que investem em charter schools. Sob o New Markets Tax Credit, os investidores em construção de charter schools podem receber um crédito fiscal federal de 39 por cento ao longo de sete anos. É um bom retorno. Investidores estrangeiros em charter schools podem ganhar vistos Eb-5 para si e suas famílias investindo em escolas charter. Os operadores de chartes desenvolveram um truque limpo em que compram um edifício, alugam para si próprios em valores elevados, e ficam ricos com seus bens imobiliários. Outros administradores de charters, empresários e advogados, abrem charter schools e fornecem todos os bens necessários e serviços para as escolas, cobrando milhões de dólares em lucros. O ex-tenista Andre Agassi entrou em uma lucrativa parceria com um investidor de capital para construir e abrir charter schools em todo o país, embora a charter schools de Las Vegas que leva seu nome seja uma das escolas de menor desempenho no estado de Nevada.

Com tanto incentivo para ganhar dinheiro e tão pouca regulamentação ou supervisão, a fraude e o enxerto são inevitáveis. Apenas no verão passado, o fundador da Pensilvânia Cyber Charter School admitiu que tinha roubado US $ 8 milhões da empresa para seu próprio uso. Cyber charters são surpreendentemente lucrativos e não supervisionados. A maior delas, a K12 Inc., foi fundada pelo ex-financista Michael Milken e está listada na Bolsa de Valores de Nova York. Seus resultados acadêmicos são pobres, mas é muito rentável. Cada aluno recebe um computador e um professor on-line. A empresa cobra a taxa de matrícula completa do estado, mesmo que não tenha nenhuma das despesas de uma escola real, como guardas, transporte, uma biblioteca, um assistente social, jardineiros, aquecedor ou outros utilitários.

Uma charter cibernética com fins lucrativos em Ohio - a Electronic Classroom of Tomorrow (ECOT) - é conhecida por seu desempenho muito ruim. Tem a taxa de graduação mais baixa de qualquer escola secundária na nação (20 por cento), e recentemente lutou no tribunal e perdeu, tentando impedir o estado de auditar suas taxas de freqüência, que foram grosseiramente infladas. O estado agora está tentando recuperar pelo menos US $ 60 milhões da escola para os alunos que nunca fizeram logon em seus computadores domésticos. O proprietário do ECOT é um dos maiores doadores do estado para funcionários eleitos que controlam o governo estadual e, até agora, nunca foi responsabilizado pelo não comparecimento ou pela qualidade da educação que oferece.

Schneider escreve que a maior ameaça representada pela escolha da escola é a "destituição sistemática da escola pública administrada pela administração local em favor de charter schools sub-reguladas". Embora a maioria das charter schools sejam tecnicamente sem fins lucrativos, ele acredita que o motivo de lucro é o principal motor por trás do movimento charter. Ela oferece uma proposta simples para aqueles que querem parar a "acepção de charter schools" e resistir ao "desperdício parasita do dinheiro dos contribuintes em nome da escolha de charters".

Sempre que uma charter school falhar por causa de um escândalo financeiro, ela propõe, a escola deve perder sua autorização e ser restaurada para o distrito escolar local. Se a charter falhar em cumprir suas promessas acadêmicas, ou se houver uma população estudantil que não é típica de sua vizinhança, ela deve ter mais uma chance, e então perder sua autorização e ser devolvida à diretoria escolar local se falhar novamente. Um recomeço apenas.

No momento, os defensores da escolha da escola têm a vantagem porque eles são apoiados por algumas das pessoas mais ricas da nação, cujas doações de campanha lhes dão uma voz desmesurada na formulação de políticas públicas. A questão que o público americano deve resolver nas eleições locais e estaduais, bem como nas eleições nacionais, é se os eleitores preservarão e protegerão o sistema escolar público, ou permitirão que ele seja atacado e controlado pelo um por cento e pelas elites financeiras.

Como demonstram estes dois excelentes livros, não há evidência da superioridade da privatização na educação. A privatização divide as comunidades e diminui o compromisso com o que chamamos de bem comum. Quando existe um sistema de ensino público, os cidadãos são obrigados a pagar impostos para apoiar a educação de todas as crianças da comunidade, mesmo que não tenham filhos nas próprias escolas. Investimos na educação pública porque é um investimento no futuro da sociedade.

Como o recente retorno das eleições estaduais em Massachusetts, Geórgia e Estado de Washington sugerem, a maré pode estar se voltando contra a privatização na medida em que o público reconhece o que está em jogo. Esta mudança da opinião pública foi certamente avançada pela NAACP nacional em outubro, que pediu uma moratória sobre novas charter schools até que sejam mantidas com os mesmos padrões de transparência e prestação de contas que as escolas públicas, até que elas parem de expulsar os alunos que as escolas públicas são obrigados a educar, até que deixem de segregar os alunos mais bem sucedidos de outros, e até que "os fundos públicos não sejam desviados para as charter schools em detrimento do sistema de ensino público".

Quaisquer que sejam as suas falhas, o sistema escolar público é uma marca distintiva da democracia, de portas abertas a todos. É uma parte essencial do bem comum. Deve ser melhorado para todos os que atende e paga por todos. A privatização de partes dela, como Trump quer, minará o apoio público e não proporcionará nem equidade nem melhor educação.

28 de novembro de 2016

Socializar as finanças

Nós já vivemos em uma economia planejada. Por que não torná-la democrática?

J.W. Mason

Jacobin

Kota Ezawa, "Hand Vote", 2012

Tradução / No seu nível mais básico, as finanças são simplesmente contabilidade – um registro de obrigações e compromissos em dinheiro. Mas as finanças também são uma forma de planejamento – um conjunto de instituições para alocar reivindicações sobre o produto social.

A fusão dessas duas funções logicamente distintas – contabilidade e planejamento – é tão velha quanto o capitalismo, e tem perturbado a consciência burguesa por quase tanto tempo. A criação de poder de compra através de empréstimos bancários é difícil de se enquadrar com a reivindicação ideológica central sobre o capitalismo, de que os preços de mercado oferecem uma medida neutra de alguma realidade material preexistente. O fracasso manifesto do capitalismo em funcionar conforme as ideias de como este “sistema natural” deveria se comportar tem sua culpa lançada sobre a capacidade dos bancos (encorajados pelo Estado) a afastar os preços do mercado de seus “valores verdadeiros”.

De alguma forma, separando essas duas funções do sistema bancário – contabilidade e planejamento – está o fio central que atravessa 250 anos de propostas de reforma monetária por economistas burgueses, populistas e excêntricos. Podemos traçá-lo de David Hume, que acreditava que uma “circulação perfeita” seria aquela em que apenas o ouro fosse usado para pagamentos e que tinha dúvidas se empréstimos bancários deveriam sequer ser permitidos; passando pelos defensores do século XIX de um padrão ouro rígido ou a doutrina das contas reais, duas formas de controle concorrentes que, se supunha, deveriam restaurar a automaticidade da criação do crédito bancário; pelas propostas de Proudhon para dar ao dinheiro uma base objetiva no tempo de trabalho; pelos receios premonitórios de Wicksell sobre a instabilidade de um sistema não-regulamentado de dinheiro bancário; pelas propostas frequentemente revividas de atividades bancárias com 100% de reservas; pelas propostas de Milton Friedman para um controle rígido do crescimento da oferta de dinheiro; e chegando à ortodoxia de hoje que sonha com um banco central que siga um “controle inviolável das políticas” que reproduza a “taxa de juros natural”.

O que todas essas advertências e propostas têm em comum é que elas buscam restaurar a objetividade ao sistema monetário, e criar legislação para trazer à existência os valores supostamente reais que estariam por trás dos preços do dinheiro. Elas buscam obrigar o dinheiro a ser, de verdade, o que a sua ideologia imagina que ele seja: uma medida objetiva de valor que reflete o valor real das mercadorias, livre dos julgamentos humanos de banqueiros e políticos.

Os socialistas rejeitam essa fantasia. Nós sabemos que o desenvolvimento do capitalismo tem sido, desde o início, um processo de “financeirização” – da extensão de reivindicações monetárias sobre a atividade humana e da representação do mundo social em termos de pagamentos e compromissos em dinheiro.

Nós sabemos que nunca houve um mundo pré-capitalista de produção e trocas sobre o qual o dinheiro e, em seguida, o crédito foram posteriormente sobrepostos: redes de reivindicações monetárias são o substrato sobre o qual a produção de mercadorias cresceu e foi organizada. E sabemos que o excedente social no capitalismo não é alocado por “mercados”, apesar dos contos de fadas dos economistas. O excedente é alocado por bancos e outras instituições financeiras, cujas atividades são coordenadas por planejadores e não por mercados.

Embora descentralizada na teoria, a produção de mercado é de fato organizada através de um sistema financeiro altamente centralizado. E onde mercados competitivos realmente existem, isso geralmente se dá graças ao gerenciamento extensivo pelo Estado, desde leis antitruste até todo o elaborado maquinário criado pelo ACA para sustentar um frágil mercado para o seguro de saúde privado. Como tanto Marx quanto Keynes reconheceram, a tendência do capitalismo é desenvolver formas mais sociais e coletivas de produção, ampliando o domínio do planejamento consciente e diminuindo a zona do mercado. (Um ponto também compreendido por alguns economistas liberais mais inteligentes e com mais visão histórica hoje em dia.) A preservação da forma de mercado se torna um projeto cada vez mais utópico, exigindo uma intervenção cada vez mais ativa do governo. Pense no enorme financiamento, investimento e regulamentação públicas necessários para a nossa provisão “privada” de habitação, educação, transporte, etc.

Em um mundo onde a produção é guiada por um planejamento consciente – público ou privado – simplesmente não faz sentido pensar em valores monetários como refletindo o resultado objetivo dos mercados, ou em reivindicações financeiras como simplesmente um registro de fluxos “reais” de receitas e despesas.

Mas é muito difícil de resistir à “ilusão do real”, como Perry Mehrling a chama. Precisamos nos lembrar constantemente que os valores de mercado nunca foram, e nunca poderão ser, uma medida objetiva das necessidades e possibilidades humanas. Precisamos nos lembrar que os valores medidos em dinheiro – preços e quantidades, produção e consumo – não possuem existência independente das transações de mercado que lhes dão uma forma quantitativa.

Segue-se que o socialismo não pode ser descrito em termos da quantidade de mercadorias produzidas, ou da distribuição delas. O socialismo é a libertação da forma da mercadoria. É definido não pela disposição das coisas, mas pela condição dos seres humanos. É a extensão progressiva do domínio da liberdade humana, daquela parte de nossa vida governada pelo amor e pela razão.

Há muitos críticos das finanças que as vêem como inimigo de um capitalismo mais humano ou autêntico. Podem ser reformadores gerenciais (o “soviete de engenheiros” de Veblen) que se opõem às finanças como parasitas das iniciativas produtivas; populistas que odeiam as finanças como a destruidora de seus próprios pequenos capitais; ou crentes sinceros na concorrência no mercado que veem as finanças como um coletor de rendas ilegítimas. Em um nível prático, há muito terreno comum entre essas posições e um programa socialista. Mas não podemos aceitar a ideia de que o setor de finanças é uma distorção de alguns valores de mercado verdadeiros, naturais, objetivos ou justos.

As finanças devem ser vistas como um momento no processo capitalista, parte integrante dele, mas com duas faces contraditórias. Por um lado, são as finanças (como instituição concreta) que geram e fazem cumprir as reivindicações monetárias contra pessoas sociais de todos os tipos – seres humanos, empresas, nações – que estendem e mantêm a lógica da produção de mercadorias. (empréstimos estudantis reforçam a disciplina do trabalho assalariado; dívida soberana sustenta a divisão internacional do trabalho).

No entanto, por outro lado, o sistema financeiro é também onde o planejamento consciente toma sua forma mais desenvolvida no capitalismo. Os bancos são, na frase de Schumpeter, o equivalente privado da Gosplan, a agência de planejamento soviética. Suas decisões de empréstimo determinam quais novos projetos receberão uma parte dos recursos da sociedade e suspendem – ou reforçam – o “julgamento do mercado” sobre as empresas que andam perdendo dinheiro.

Um programa socialista deve responder a ambas as faces das finanças. Nós nos opomos ao poder do sistema financeiro se quisermos reduzir progressivamente a extensão em que a vida humana é organizada em torno da acumulação de dinheiro. Adotamos o planejamento já inerente às finanças porque queremos expandir o domínio da escolha consciente e reduzir o domínio da necessidade cega.

O desenvolvimento das finanças revela a substituição progressiva da coordenação do mercado pelo planejamento. Capitalismo significa produção com fins lucrativos; mas, na realidade concreta, os critérios de lucro estão sempre subordinados a critérios financeiros. O julgamento do mercado só tem força na medida em que é executado pelas finanças. O mundo está cheio de negócios cujas receitas excedem seus custos, mas que são obrigados a reduzir sua escala ou fechar devido às reivindicações financeiras contra eles. O mundo também está cheio de negócios que operam por anos, ou indefinidamente, com custos superiores às suas receitas, graças ao seu acesso a financiamento. E as instituições que tomam essas decisões de financiamento o fazem com base em seu próprio julgamento subjetivo – limitadas, em última análise, não por algum critério objetivo de valor, mas pelos termos estabelecidos pelo banco central.

Existe uma contradição básica entre os princípios da concorrência e das finanças. Supostamente, a concorrência seria uma forma de seleção natural: empresas que geram lucros os reinvestem e, assim, crescem, enquanto as empresas que dão prejuízo não podem investir e devem encolher e eventualmente desaparecer. Se supõe que isto seja uma grande vantagem dos mercados em relação ao planejamento. Mas todo o ponto das finanças é quebrar este vínculo entre lucros ontem e investimento hoje. O excedente pago como dividendos e juros está disponível para investimento em qualquer lugar da economia, não apenas onde foi gerado.

Por outro lado, os empresários podem realizar novos projetos que nunca foram lucrativos no passado, se puderem convencer alguém a financiá-los. A concorrência olha para trás: os recursos que você possui hoje dependem da sua performance no passado. As finanças olham para frente: os recursos que você possui hoje dependem de como é esperado (por alguém!) que seja a sua performance no futuro. Então, contrariamente à ideia de empresas subindo e caindo por seleção natural, os queridinhos das finanças – da Amazon ao Uber e todo o “rebanho de unicórnios” – podem investir e crescer indefinidamente sem nunca ter lucro. Supostamente, isso também seria uma grande vantagem dos mercados.

No mundo sem atritos imaginado pelos economistas, a suplantação da concorrência pelas finanças já foi levada ao seu limite. As empresas não controlam ou dependem do seu próprio excedente. Todo o excedente é alocado centralmente, pelos mercados financeiros. Todos os fundos para investimento provêm dos mercados financeiros e todos os lucros retornam imediatamente na forma de dinheiro para esses mercados. Isso tem duas implicações contraditórias. Por um lado, elimina qualquer percepção da empresa como um organismo social, da atividade que a empresa realiza para se reproduzir, da sua busca de fins outros que não o lucro máximo para seus “proprietários”.

A empresa, de fato, renasce a cada dia pela graça daqueles que a financiam. Mas, pela mesma razão, a lógica da maximização do lucro perde sua base objetiva. O processo quase-evolutivo da concorrência deixa de operar se os próprios lucros da empresa não são mais a fonte de financiamento de investimento, mas, em vez disso, se acumulam em um repositório comum. Neste mundo, quais empresas crescem e quais encolhem depende das decisões dos planejadores financeiros que alocam o capital entre elas.

A contradição entre a produção para o mercado e finanças socializadas se torna mais aguda à medida que os repositórios de finanças se combinam ou se tornam mais homogêneos. Este era um ponto-chave para marxistas do final do século XIX/início do século XX como Hilferding (e Lenin), mas também está por trás do recente barulho na imprensa empresarial sobre o aumento dos fundos indexados. Esses fundos possuem ações de todas as corporações listadas em um determinado índice de ações; ao contrário de fundos gerenciados ativamente, eles não fazem nenhum esforço para escolher vencedores, mas detêm ações de múltiplas empresas concorrentes.

Segundo um estudo recente, “A probabilidade de duas empresas da mesma área selecionadas aleatoriamente dentro do índice S&P 1500 ter um acionista comum com pelo menos 5% de participação em ambas as empresas aumentou de menos de 20% em 1999 para cerca de 90% em 2014.” O problema é óbvio: se as empresas trabalham para seus acionistas, então, por que elas competiriam umas contra as outras se suas ações são mantidas nas mãos dos mesmos fundos?

Naturalmente, uma solução proposta seria mais intervenção estatal para preservar a forma dos mercados, limitando ou desfavorecendo a participação em ações através de fundos amplos. Outra resposta (e talvez mais lógica) seria: se nós já estamos confiando em gerentes corporativos para serem agentes fiéis da classe rentista como um todo, por que não dar o próximo passo e torná-los agentes da sociedade em geral?

E, em qualquer caso, os termos em que o sistema financeiro direciona o capital são, em última instância, definidos pelo banco central. Suas decisões – política monetária no sentido estrito, mas também os termos em que as instituições financeiras são reguladas e resgatadas em crises – determinam não só o ritmo global da expansão do crédito, mas também os critérios de lucratividade. Isso é bastante evidente durante as crises, mas também está implícito na política monetária de rotina. A menos que taxas de juros mais baixas transformem projetos anteriormente não lucrativos em rentáveis, como eles poderiam funcionar?

Ao mesmo tempo, a legitimidade do sistema capitalista – a justificativa ideológica de sua óbvia injustiça e desperdício – vem da idéia de que os resultados econômicos são determinados pelo “mercado”, não pela escolha de ninguém. Portanto, o papel de planejamento do banco central precisa ser mantido fora de vista.

Os próprios banqueiros centrais estão bem conscientes deste aspecto do seu papel. No início dos anos 80, quando o Fed [Banco Central estadunidense] estava mudando o principal instrumento que utilizava para realizar a política monetária, os funcionários estavam preocupados que sua escolha preservasse a ficção de que as taxas de juros estavam sendo estabelecidas pelos mercados. Como afirmou Wayne Angell, governador do Fed de 86 a 94, era essencial escolher uma técnica que “tenha a camuflagem das forças do mercado em funcionamento”.

Os livros didáticos da linha dominante na Economia [a Escola Neoclássica] descrevem explicitamente a trajetória de longo-prazo das economias capitalistas em termos de um planejador ideal, que estaria estabelecendo níveis de produção e preços por toda a eternidade, a fim de maximizar o bem-estar geral. A contradição entre essa visão macro e a ideologia da concorrência no mercado é encoberta pelo pressuposto de que, no longo prazo, esse caminho seria o mesmo daquele obtido “naturalmente” em um sistema de mercado competitivo perfeito, sem dinheiro ou bancos.

Fora da academia, é mais difícil sustentar a fé de que os planejadores no banco central estão infalivelmente escolhendo os resultados nos quais o mercado teria [supostamente] chegado por conta própria. Os críticos dos bancos centrais na direita – e muitos na esquerda – compreendem claramente que os bancos centrais estão envolvidos em planejamento ativo, mas veem isso como intrinsecamente ilegítimo. Suas crenças em resultados “naturais” de mercado vêm acompanhadas de fantasias sobre um retorno a algum padrão monetário independente de julgamento humano – ouro ou bitcoin.

Socialistas, que enxergam através da fachada de expertise neutra dos dirigentes dos bancos centrais e reconhecem sua estreita associação com as finanças privadas, podem ser tentados por idéias semelhantes. Mas o caminho para o socialismo segue por outro direção. Não buscamos organizar a vida humana em uma “grade objetiva” de valores de mercado, livre da influência de distorção das finanças e dos bancos centrais. Buscamos trazer à luz esse planejamento consciente já existente, para transformá-lo em um terreno da política, e direcioná-lo para atender às necessidades humanas, em vez de reforçar relações de dominação. Em resumo: buscamos a socialização das finanças.

No contexto estadunidense, esta análise sugere um programa de transição talvez nas linhas seguintes:

Desmercantilizar o dinheiro

Embora não haja maneira de separar dinheiro e mercados das finanças, isso não significa que as funções de rotina do sistema monetário devam ser uma fonte de lucro privado. A mudança da responsabilidade pelo encanamento monetário básico do sistema para órgãos públicos ou quase públicos é uma reforma não-reformista – ela lida com alguns dos abusos e instabilidade diretamente visíveis no sistema monetário existente, ao mesmo tempo em que aponta o caminho para transformações mais profundas.

Em particular, isso poderia envolver:

1. Um sistema público de pagamentos.

No passado não muito distante, se eu quisesse te dar algum dinheiro e você quisesse me dar um bem ou um serviço, não precisávamos pagar um terceiro pela permissão para fazer a operação. Mas como pagamentos eletrônicos substituíram o dinheiro, pagamentos rotineiros se tornaram uma fonte de lucro. Intercâmbios e o resto do encanamento de rotina do sistema de pagamentos deveria ser um monopólio público, assim como a moeda o é.

2. Banco Postal.

Serviços bancários também deveriam ser fornecidos através de agências postais, como em muitos outros países. A contabilidade de transações de rotina (cheques e poupança) é um serviço que pode ser fornecido pelo Estado sem dificuldades.
3. Classificação pública de risco, tanto para títulos quanto para pessoas físicas.

Como informação que, para desempenhar sua função, deve estar amplamente disponível, classificações de crédito são um objeto natural para a provisão pública, mesmo dentro da lógica geral do capitalismo. Este também é um desafio para a função coercitiva e disciplinar crescentemente realizada por agências privadas de classificação de risco nos Estados Unidos.
4. Financiamento público de moradia.

Hipotecas para residências ocupadas pelos proprietários é outra área onde uma camada de transações de mercado é pintada sobre um sistema que já é substancialmente público. O mercado hipotecário de trinta anos é, inteiramente, uma criação de regulação – é mantido por agentes públicos trabalhando ativamente para criar mercados, e são órgãos públicos, amplamente e cada vez mais, os principais credores. Socialistas não têm interesse no cultivo de uma pequena burguesia através da propriedade de lares; mas, enquanto o Estado o fizer, exigimos que seja abertamente e diretamente, ao invés de sob o disfarce de transações privadas.

5. Previdência/aposentadoria pública

Garantir o necessário para os idosos é a outra área, juntamente da moradia, onde o Estado faz o máximo para promover o que Gerald Davis chama de “ficção de capital” – a concepção do relacionamento de uma pessoa com a sociedade em termos de propriedade de ativos.

Mas aqui, ao contrário do caso da propriedade da casa, a provisão social sob a aparência de reivindicações financeiras tem fracassado mesmo em seus próprios termos estreitos. Muitas famílias da classe trabalhadora nos Estados Unidos e em outros países ricos possuem suas próprias casas, mas apenas uma pequena fração pode satisfazer as suas necessidades de subsistência na velhice à partir de uma poupança privada. Ao mesmo tempo, sistemas públicos de aposentadoria estão muito mais desenvolvidos do que o fornecimento público de moradia. Isso sugere um programa de eliminação de programas existentes de incentivo à previdência privada e a expansão da previdência social e sistemas similares de poupança social.

Reprimir as finanças

Não é tarefa dos socialistas manter o grande cassino funcionando sem problemas. Mas, enquanto existam instituições financeiras privadas, não podemos fugir da questão de como regulá-las. Historicamente, a regulação financeira às vezes têm assumido a forma de “repressão financeira”, onde os tipos de ativos nas mãos das instituições financeiras são substancialmente ditados pelo Estado.

Isso permite que o crédito seja direcionado de forma mais efetiva para investimentos socialmente úteis. Também permite que os formuladores de políticas reduzam as taxas de juros do mercado, o que – especialmente no contexto de uma inflação maior – diminui o fardo da dívida e o poder dos credores. O sistema financeiro desregulado existente já possui críticos muito articulados; não há necessidade de duplicar seu trabalho com uma proposta detalhada de reforma. Mas podemos estabelecer alguns princípios gerais:

1. Se não for permitido, é proibido.

A regulação efetiva sempre dependeu de enumerar funções específicas para instituições específicas e proibir qualquer outra coisa. Caso contrário, é muito fácil passar por cima dela com algo que é formalmente diferente, mas substancialmente equivalente. E com os bancos centrais continuando ou não em seu papel como principais gerentes da demanda agregada, eles também precisam desse tipo de regulamentação para controlar efetivamente o fluxo de crédito.
2. Proteger funções, não instituições.

O poder político das finanças vem da sua capacidade de ameaçar a contabilidade social de rotina e a segurança dos pequenos proprietários. (“Se não resgatarmos os bancos, os caixas eletrônicos serão desligados! O que será dos seus $401(000)? “)

Enquanto instituições financeiras privadas desempenharem funções socialmente necessárias, a política para elas deve se concentrar em preservar essas funções, e não as instituições que as realizam. Isso significa que as intervenções devem estar tão próximas quanto possível do usuário final não-financeiro, e não dos jogos em que os bancos tomam parte entre si. Por exemplo: seguro de depósito.

3. Exigir grandes participações em títulos de dívida pública.

A ameaça dos “vigilantes dos títulos” contra o governo federal dos EUA tem sido extremamente exagerada, como foi demonstrado, por exemplo, pela farsa do teto da dívida e rebaixamento de 2012. Mas para governos menores – incluindo governos estaduais e locais nos Estados Unidos – os mercados de títulos não podem ser tão facilmente ignorados. E grandes carteiras em dívida pública também reduzem a frequência e a gravidade das crises financeiras periódicas que são, perversamente, uma das principais formas pelas quais o poder social das finanças é mantido.

4. Controlar os níveis gerais de dívida com taxas de juros menores e inflação maior.

As dívidas familiares nos Estados Unidos aumentaram dramaticamente nos últimos trinta anos; alguns acreditam que isso se deu porque a dívida era necessária para aumentar os padrões de vida em face de rendimentos reais estagnados ou em declínio.

Mas este não é o caso; um crescimento mais lento da renda significou simplesmente um crescimento mais lento no consumo. Em vez disso, a principal causa do aumento da dívida das famílias nos últimos trinta anos tem sido a combinação de inflação baixa e taxas de juros continuamente altas para os agregados familiares. Por outro lado, a maneira mais eficaz de reduzir o ônus da dívida – para as famílias e também para os governos – é manter as taxas de juros baixas ao mesmo tempo em que permitindo que a inflação aumente.

Como corolário da repressão financeira, podemos rejeitar quaisquer reivindicações morais em nome da receita de juros como tal. Não há direito de exercer uma reivindicação sobre o trabalho de terceiros através da propriedade de ativos financeiros. Na medida em que a provisão privada de serviços socialmente necessários (como seguros e pensões) é minada por baixas taxas de juros, isto se torna um argumento para transferir esses serviços para o setor público, não para aumentar as reivindicações dos rentistas.

Democratizar os bancos centrais

Os bancos centrais sempre foram planejadores centrais. Escolhas sobre as taxas de juros e os termos em que as instituições financeiras serão reguladas e resgatadas condicionam inevitavelmente a rentabilidade e a direção, bem como o nível de atividade produtiva. Este papel tem sido escondido por trás de uma ideologia que imagina o banco central se comportando automaticamente, de acordo com alguma regra que de alguma forma reproduziria o comportamento “natural” dos mercados.

As próprias ações dos bancos centrais desde 2008 deixaram esta ideologia em frangalhos. A resposta imediata à crise obrigou os bancos centrais a intervir mais diretamente nos mercados de crédito, comprando uma ampla gama de ativos e até mesmo substituindo instituições financeiras privadas para emprestar diretamente a empresas não financeiras. Desde então, o fracasso da política monetária convencional tem forçado os bancos centrais a ceder involuntariamente a um ampla conjunto de intervenções, canalizando crédito diretamente os para os emprestadores selecionados.

Esta reviravolta para uma “política de crédito” representa uma admissão – relutante, mas forçada pelos eventos – que a anarquia da competição é incapaz de coordenar a produção. Bancos centrais não podem – como os livros didáticos de economia imaginam – estabilizar o sistema capitalista girando um único botão rotulado “oferta monetária” ou “taxa de juros”. Eles devem substituir seu próprio julgamento pelos resultados do mercado em uma gama ampla e crescente de mercados de ativos e crédito. Eles precisam substituir resultados do mercado por seu próprio julgamento em uma gama ampla e crescente de mercados de ativos e de crédito.

O desafio agora é politizar os bancos centrais – torná-los objeto de debate público e pressão popular. Na Europa, os bancos centrais nacionais – que ainda desempenham suas antigas funções, apesar da errada percepção comum de que o Banco Central Europeu (BCE) é agora o banco central da Europa – serão um terreno central de luta para o próximo governo de Esquerda que procurar romper com a austeridade e o liberalismo econômico.

Nos Estados Unidos, podemos dispensar de uma vez por todas a ideia de que a política monetária seja um domínio de expertise tecnocrática e trazer à descoberto o seu programa de manutenção de desemprego elevado, a fim de conter o crescimento salarial e o poder dos trabalhadores. Como um programa positivo, podemos exigir que o Fed use agressivamente sua autoridade legal já existente para comprar dívidas municipais, privando os rentistas de seu poder sobre governos locais com restrições financeiras, como em Detroit e Porto Rico – e, mais amplamente, atenuando o poder dos “mercados de dívidas” como uma restrição à política popular em nível estadual e local. De forma mais ampla, bancos centrais devem ser responsabilizados por direcionar ativamente o crédito para fins socialmente úteis.

Desempoderar os acionistas

O capitalismo realmente existente consiste de estreitos fluxos de transações de mercado que circulam por entre vastas áreas de coordenação fora do mercado. Uma das funções centrais do sistema financeiro é atuar como a arma nas mãos da classe capitalista para impor a lógica do valor sobre essas estruturas fora do mercado. As reivindicações [títulos e ações] dos acionistas sobre os negócios não-financeiros e dos detentores de títulos sobre os governos nacionais asseguram que todos esses domínios da atividade humana permaneçam subordinados à lógica da acumulação. Queremos ver defesas mais fortes contra essas reivindicações – não porque tenhamos qualquer fé em capitalistas produtivos ou burguesias nacionais, mas porque eles ocupam o espaço em que a política é possível.

Especificamente, deveríamos ficar do lado das corporações, contra os acionistas. A corporação, como Marx observou há muito tempo, é “a abolição do modo de produção capitalista dentro do próprio modo de produção capitalista”. Dentro da corporação, a atividade é coordenada através de planos e não de mercados; e a orientação desta atividade é para a produção de um determinado valor de uso em vez de simplesmente dinheiro.

“A tendência da grande empresa”, escreveu Keynes, “é se socializar”. A função política fundamental das finanças é manter essa tendência sob controle. Sem a ameaça de aquisições e a pressão dos acionistas ativos, a corporação se torna um espaço onde trabalhadores e outras partes interessadas podem contestar o controle sobre a produção e o excedente que ela gera – uma possibilidade que os capitalistas nunca perdem de vista.

Nem seria preciso dizer, isso não implica nenhum apego aos indivíduos particulares no topo da hierarquia corporativa, que hoje são, na maioria das vezes, rentistas reais ou aspirantes, sem qualquer conexão orgânica com o processo de produção. Em vez disso, é um reconhecimento do valor da corporação como um organismo social; como um espaço estruturado por relações de confiança e lealdade, e por motivação intrínseca e “consciência profissional”; e como o local de produção conscientemente planejada de valores de uso.

O papel das finanças em relação à corporação moderna não é fornecer recursos para o investimento, mas garantir que a sua orientação condicional em direção à produção como um fim em si esteja, em última instância, subordinada à acumulação de dinheiro.

Resistir a essa pressão não substitui outras lutas, sobre o processo de trabalho, a divisão dos recursos e a autoridade dentro da corporação. (A história nos dá muitos exemplos de produção de valores de uso como um fim em si mesmo, que são realizados sob condições tão coercitivas e alienadas como sob a produção pelo lucro). Mas resistir à pressão das finanças cria mais espaço para essas lutas e para a evolução do socialismo no interior da forma corporativa.

Fechar as fronteiras para o dinheiro (e abri-las para as pessoas).

Assim como o poder do acionista reforça a lógica da acumulação sobre as corporações, a mobilidade de capital faz o mesmo sobre os Estados. Nas universidades, ouvimos sobre a suposta eficiência dos fluxos irrestritos de capital, mas no domínio político ouvimos mais o seu poder para “disciplinar” governos nacionais. As ameaças de crises de fuga de capitais e de balança de pagamentos protegem a lógica da acumulação contra incursões pelos governos nacionais.

Estados podem ser veículos para o controle consciente da economia somente na medida em que as reivindicações financeiras através das fronteiras sejam limitadas. Em um mundo onde os fluxos de capital são enormes e irrestritos, as atividades concretas de produção e de reprodução devem se ajustar constantemente aos caprichos volúveis de investidores estrangeiros.

Isto é incompatível com qualquer estratégia de desenvolvimento das forças de produção em nível nacional; todo caso bem sucedido de industrialização tardia dependeu de direção consciente do crédito através do sistema bancário nacional. Mais do que isso, a exigência de que a atividade real acomode fluxos financeiros transfronteiriços é incompatível até mesmo com a reprodução estável do capitalismo na periferia. Aprendemos esta lição muitas vezes na América Latina e em outros lugares do Sul Global, e agora estamos aprendendo novamente na Europa.

Portanto, um programa socialista sobre finanças deve incluir o apoio aos esforços dos governos nacionais para se desvincular da economia global [em sua variante neoliberal] e para manter ou recuperar o controle sobre seus sistemas financeiros. Hoje, tais esforços estão freqüentemente ligados a uma política de racismo, nativismo e xenofobia que devemos rejeitar de forma intransigente. Mas é possível avançar na direção de um mundo em que fronteiras nacionais não constituam barreira para pessoas e idéias, mas limitem a circulação de mercadorias e sejam barreiras impassíveis às reivindicações financeiras privadas.

Nos Estados Unidos e em outros países ricos, também é importante se opor a qualquer uso da autoridade – legal ou não – desses Estados para fazer valer reivindicações financeiras contra Estados mais fracos. A Argentina e a Grécia, para tomar dois exemplos recentes, não foram obrigadas a aceitar os termos de seus credores pelas ações de indivíduos privados dispersos através de mercados financeiros – mas, respectivamente, pelas ações do juiz Griesa do Segundo Circuito dos EUA e por Trichet e Mario Draghi do BCE. Para que Estados periféricos promovam desenvolvimento e sirvam de veículo para a política popular, eles precisam se isolar dos mercados financeiros internacionais. Mas o poder desses mercados vem, em última instância, das canhoneiras – figurativas ou literais – pelas quais são feitas valer as reivindicações financeiras privadas.

Com relação aos próprios Estados fortes, os mercados não possuem controle, exceto sobre a imaginação. Como vimos repetidamente nos últimos anos – mais dramaticamente no vaudeville do limite de dívida entre 2011-2013 – não existem “vigilantes das dívidas”; os termos sob os quais os governos emprestam são totalmente determinados pela sua própria autoridade monetária. Tudo o que é necessário para quebrar o poder do mercado de títulos de dívida aqui é reconhecer que ele já não tem poder real.

Resumindo, devemos rejeitar a ideia das finanças como um intruso em uma ordem de mercado pré-existente. Devemos resistir ao poder das finanças para forçar a adoção da lógica da acumulação. E devemos reivindicar como um lugar para a política democrática o planejamento social já realizado através das finanças.

Sobre o autor

J.W. Mason é professor assistente de economia da John Jay College, Universidade da Cidade de Nova York e membro do Instituto Roosevelt. Ele mantem o blog The Slack Wire.

O retorno de Engels

Na ocasião de seu aniversário, comemoremos as incríveis contribuições do colaborador de Marx, Friedrich Engels

John Bellamy Foster


Friedrich Engels. Foto: Edward Gooch

Tradução / Poucas parcerias políticas e intelectuais podem rivalizar com as de Karl Marx e Friedrich Engels. Eles não apenas co-autoraram o Manifesto Comunista em 1848, ambos participando das revoluções sociais daquele ano, mas também dois trabalhos anteriores – A Sagrada Família em 1845 e A Ideologia Alemã em 1846.

No final da década de 1870, quando os dois socialistas científicos finalmente conseguiram viver em estreita proximidade e conversar um com o outro todos os dias, eles andavam de um lado para o outro se debruçando sobre os estudos de Marx, cada um do seu lado da sala, enquanto discutiam suas idéias, planos e projetos em comum.

Eles frequentemente liam trechos de seus trabalhos em andamento. Engels leu todo o manuscrito de seu Anti-Dühring (para o qual Marx contribuiu com um capítulo) para Marx antes de sua publicação. Marx escreveu uma introdução ao Socialismo: utópico e científico de Engels. Após a morte de Marx em 1883, Engels preparou os volumes dois e três do Capital para publicação dos rascunhos que seu amigo havia deixado para trás. Se Engels, como ele mesmo admitiu, ficou na sombra de Marx, ele também foi, todavia, um gigante intelectual e político por conta própria.

Há décadas os acadêmicos sugerem que Engels rebaixou e distorceu o pensamento de Marx. Como observou o cientista político John L. Stanley em seu póstumo Mainlining Marx em 2002, as tentativas de separar Marx de Engels – além do fato óbvio de que eram dois indivíduos diferentes, com interesses e talentos diferentes – assumiram cada vez mais a característica de desassociar Engels , visto como a fonte de tudo o que é condenável no marxismo, de Marx, visto como o epítome do homem civilizado das letras, e não ele próprio um marxista.

Quase quarenta e cinco anos atrás, em 12 de dezembro de 1974, assisti a uma palestra de David McLellan sobre “Karl Marx: as vicissitudes de uma reputação”, no Evergreen State College, em Olympia, Washington. Um ano antes de McLellan ter publicado Karl Marx: His Life and Thought, que eu havia estudado de perto. A mensagem de McLellan naquele dia, em poucas palavras, era que Karl Marx não era Frederich Engels. Para descobrir o autêntico Marx, era necessário separar o trigo de Marx do joio de Engels. McLellan argumentou que Engels havia introduzido o positivismo no marxismo, apontando para a Segunda e Terceira Internacionais e, eventualmente, para o stalinismo. Alguns anos depois, McLellan deveria colocar algumas dessas críticas em sua curta biografia sobre Friedrich Engels.

Esta foi minha primeira introdução à perspectiva anti-Engels que emergiu como uma característica definidora da esquerda acadêmica ocidental e que estava intimamente ligada à ascensão do “marxismo ocidental” como uma tradição filosófica distinta – em oposição ao que às vezes era chamado de oficial ou marxismo soviético. O marxismo ocidental, nesse sentido, teve como axioma principal a rejeição da dialética da natureza de Engels, ou “dialética meramente objetiva”, como Georg Lukács o chamava.

Para a maioria dos marxistas ocidentais, a dialética era uma relação objetiva de sujeito idêntico: poderíamos entender o mundo na medida em que o havíamos feito. Tal visão crítica constituía uma rejeição bem-vinda do positivismo bruto que havia infectado grande parte do marxismo e que havia sido racionalizado na ideologia oficial soviética. No entanto, também teve o efeito de empurrar o marxismo para uma direção mais idealista, levando ao abandono da longa tradição de ver o materialismo histórico relacionado não apenas às humanidades e ciências sociais – e, é claro, à política -, mas também às ciências naturais materialistas.

O desprezo a Engels se tornou um passatempo popular entre os acadêmicos de esquerda, com algumas figuras, como o teórico político Terrell Carver, construindo carreiras inteiras em cima dessa base. Uma manobra comum era usar Engels como o dispositivo para extrair Marx do marxismo. Como Carver escreveu em 1984: “Karl Marx negou ser marxista. Friedrich Engels repetiu o comentário de Marx, mas não conseguiu defender seu argumento. Agora é evidente que Engels foi o primeiro marxista, e é cada vez mais aceito que ele de alguma forma inventou o marxismo”. Para Carver, Engels não apenas cometeu o pecado fundamental de inventar o marxismo, mas também cometeu vários outros pecados, como promovendo o quase-hegelianismo, o materialismo, o positivismo e a dialética – todos os quais se diz estar “a quilômetros de distância do meticuloso ecletismo de Marx”.

A própria ideia de que Marx tinha “uma metodologia” foi atribuída a Engels e, portanto, declarada falsa. Removido de sua associação com Engels e despojado de todo o conteúdo determinado, Marx tornou-se facilmente aceitável pelo status quo, como uma espécie de precursor intelectual. Como Carver colocou recentemente, sem nenhum senso aparente de ironia, “Marx era um pensador liberal”.

A maioria das críticas a Engels foi direcionada ao seu alegado cientificismo em Anti-Dühring e sua inacabada Dialética da Natureza. McLellan em sua biografia de Engels afirmou que o interesse deste último em ciências naturais “o fez enfatizar uma concepção materialista da natureza e não da história”. Ele foi acusado de trazer “o conceito de matéria” ao marxismo, que era “inteiramente estranho ao trabalho de Marx”. ”Seu principal erro foi tentar desenvolver uma dialética objetiva que abandonasse” o lado subjetivo da dialética “e que levasse à assimilação gradual das visões de Marx a uma visão do mundo científico”.

“Não é surpreendente”, McLellan acusou, “que, com a consolidação do regime soviético, as vulgarizações de Engels deveriam ter se tornado o principal conteúdo filosófico dos livros soviéticos”. Assim como Marx foi apresentado cada vez mais como um intelectual refinado, Engels estava visto cada vez mais como um grosseiro popularizador do marxismo. Engels, portanto, serviu no discurso acadêmico sobre o marxismo como um conveniente chicote.

No entanto, Engels também tinha seus admiradores. O primeiro sinal real de uma inversão de seu legado na teoria marxista contemporânea surgiu com The Poverty of Theory, de 1978, do historiador E.P. Thompson, que foi dirigido principalmente contra o marxismo estruturalista de Louis Althusser. Aqui Thompson defendia o materialismo histórico contra uma teoria abstrata divorciada de qualquer sujeito histórico e de todos os pontos de referência empíricos. Ele defendia valentemente – e no que eu sempre vi como um dos pontos altos das cartas em inglês do final do século XX – o “velho Friedrich Engels”, que havia sido alvo de muitas críticas de Althusser.

Com base nisso, Thompson defendeu um tipo de empirismo dialético – o que ele mais admirava em Engels – como essencial para uma análise histórico-materialista. Alguns anos depois, as Quatro Palestras sobre Marxismo, do economista marxista Paul Sweezy, começaram reafirmando com ousadia a importância da abordagem de Engels à dialética e sua crítica às visões mecanicista e reducionista.

Entretanto, a verdadeira mudança que restabeleceu a reputação de Engels como um importante teórico marxista clássico ao lado de Marx foi consolidada não por historiadores e economistas políticos, mas por cientistas naturais. Em 1975, Stephen Jay Gould, escrevendo em História Natural, celebrou abertamente a teoria da evolução humana de Engels, que enfatizou o papel do trabalho, descrevendo-a como a concepção mais avançada do desenvolvimento evolucionário humano na Era vitoriana – uma que antecipara a descoberta antropológica no século XX do Australopithecus africanus.

Alguns anos depois, em 1983, Gould estendeu seu argumento na New York Review of Books, apontando que todas as teorias da evolução humana eram teorias de “coevolução da cultura de genes” e que “o melhor caso do século XIX para a coevolução cultural foi feita por Friedrich Engels em seu notável ensaio de 1876 (publicado postumamente em The Dialectics of Nature), ‘O papel desempenhado pelo trabalho na transição do macaco para o homem’.”

Nesse mesmo ano, o sociólogo médico e médico Howard Waitzkin dedicou grande parte de seu marco histórico, The Second Sickness, ao papel pioneiro de Engels como epidemiologista social, mostrando como ele, aos 24 anos, enquanto escrevia The Condition of the Working Class in England in 1844, havia explorado a etiologia da doença de maneiras que prefiguravam descobertas posteriores na saúde pública. Dois anos depois disso, em 1985, Richard Lewontin e Richard Levins lançaram seu agora clássico The Dialectical Biologist, com sua dedicação apontada: “Para Friedrich Engels, que errava o tempo todo, mas que entendia de forma cirúrgica onde era importante”.

A década de 1980 foi o nascimento de uma tradição ecossocialista dentro do marxismo. No ecossocialismo de primeiro estágio, representado pelo trabalho pioneiro de Ted Benton, Marx e Engels foram criticados por não terem levado os limites naturais malthusianos a sério o suficiente. No entanto, no final dos anos 90, os debates que se seguiram deram origem a um ecossocialismo de segundo estágio, começando com Marx and Nature, de Paul Burkett, em 1999, que buscava explorar os elementos materialistas e ecológicos encontrados nos fundamentos clássicos do próprio materialismo histórico.

Esses esforços se concentraram inicialmente em Marx, mas também levaram em conta as contribuições ecológicas de Engels. Isso foi reforçado pelo novo projeto MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe), no qual os cadernos científicos naturais de Marx e Engels começaram a ser publicados pela primeira vez. O resultado foi uma revolução no entendimento da tradição marxista clássica, em grande parte ressoando com uma nova práxis ecológica radical que evoluiu da crise histórica de hoje (econômica e ecológica).

O crescente reconhecimento das contribuições de Engels à ciência, juntamente com a ascensão do marxismo ecológico, despertou um interesse renovado na The Dialectics of Nature de Engels e em seus outros escritos relacionados à ciência natural. Grande parte da minha pesquisa desde 2000 se concentrou na relação de Engels – e outros pensadores influenciados por ele – com a formação de uma dialética ecológica. Também não estou sozinho a esse respeito. O economista político e marxista ecológico Elmar Altvater publicou recentemente um livro em alemão, abordando a The Dialectics of Nature de Engels.

O argumento da indispensabilidade de Engels para a crítica do capitalismo em nossos dias está enraizado em sua famosa tese em Anti-Dühring de que “a natureza é a prova da dialética”. Isso era frequentemente ridicularizado na filosofia marxista ocidental. Contudo, a tese de Engels, refletindo sua própria análise dialética e ecológica profunda, teria que ser apresentada na linguagem de hoje: a ecologia é a prova da dialética – uma proposição cujo significado poucos agora estariam dispostos a negar. Visto dessa maneira, é fácil ver por que Engels assumiu um lugar tão importante nas discussões ecossocialistas contemporâneas. Os trabalhos em marxismo ecológico comumente citam como leitmotif suas famosas palavras de advertência em The Dialectics of Nature:

No entanto, não nos lisonjeamos demais por causa de nossas vitórias humanas sobre a natureza. Para cada uma dessas vitórias, a natureza se vinga de nós. É verdade que cada vitória traz, em primeiro lugar, os resultados esperados, mas, no segundo e terceiro lugares, produz efeitos imprevisíveis e bastante diferentes, que muitas vezes anulam o primeiro. Assim, a cada passo, somos lembrados de que não dominamos a natureza como um conquistador sobre um povo estrangeiro, como alguém que está fora da natureza – mas que nós, com carne, sangue e cérebro, pertencemos à natureza e existimos em seu meio, e que todo o nosso domínio disso consiste no fato de termos vantagem sobre todas as outras criaturas por poder aprender suas leis e aplicá-las corretamente.

Para Engels, assim como para Marx, a chave do socialismo era a regulação racional do metabolismo da humanidade e da natureza, de maneira a promover o máximo potencial humano possível, salvaguardando as necessidades das gerações futuras. Não é de admirar, então, que estamos vendo, no século XXI, o retorno de Engels, que, juntamente com Marx, continua informando as lutas e inspirando as esperanças que definem nosso próprio tempo de crise e, necessariamente, revolucionário.

Sobre os autores

John Bellamy Foster é o editor da Monthly Review e professor de sociologia na Universidade de Oregon.

27 de novembro de 2016

Fidel Castro (1926-2016)

Fidel Castro foi um campeão dos oprimidos, mas não devemos ignorar os limites do socialismo que ele ajudou a construir.

Mike Gonzalez

Jacobin


Tradução / Fidel Castro foi indubitavelmente um grande personagem. Nos últimos e debilitados anos de vida, a presença dele ainda ressoava pela América Latina, até mesmo por gerações que não tinham vivenciado a empolgação da Revolução Cubana de 1959.

Antes da revolução, Cuba simbolizava a mais perniciosa forma de colonialismo. A guerra de independência com a Espanha foi apropriada pelos Estados Unidos, cujo governo assumiu para si a vitória e reescreveu a constituição do país recém-independente para garantir sua dominação.

O açúcar cubano foi controlado pelos interesses imperialistas que mantiveram a condição de subserviência do país. A sua cultura – a voz dos escravos que se recusaram a serem silenciados – foi esvaziada e oferecida para o consumo de turistas.

Tudo terminou em primeiro de janeiro de 1959. Um Estados Unidos confiante de sua supremacia global foi desafiado por uma pequena ilha caribenha; e todos os países colonizados, todos os movimentos de liberação nacional que lutavam contra a opressão imperialista, ergueram-se e celebraram. O gigante aparentemente tinha pés de barro, no final das contas.

Repetidamente, Fidel Castro se recusou a se render a ameaças e chantagens. Era essa recusa que explicava a fúria e raiva cegas dos seus inimigos. Governos republicanas e democratas mantiveram o embargo à Cuba por seis décadas, realizando discursos enraivecidos pela incapacidade de acreditarem no próprio fracasso em derrubar o socialismo numa pequena ilha.

Foi, é claro, a resistência coletiva que frustrou a invasão apoiada pelos EUA à Baía dos Porcos em 1961. A Crise dos Mísseis de 1962, todavia, mostrou à liderança em Havana que o apoio soviético era condicional e que Cuba era uma pequena peça no jogo de poder global. Ao se distanciar brevemente de Moscou, o país ingressou na sua fase mais radical, unindo-se às lutas por libertação do Terceiro Mundo em uma frente ampla que se estendia da América Latina ao Vietnã. Esse foi o instante em que Cuba inspirou e simbolizou a ascensão dos oprimidos, simbolizada pela imagem de Che Guevara.

A morte de Guevara em outubro de 1967 na Bolívia, todavia, deixou a revolução em uma encruzilhada. Além disso, no Perú, na Guatemala e na Venezuela, as tentativas de repetir a experiência cubana falharam com consequências desastrosas. Sempre preocupado primeiro e acima de tudo com a sobrevivência de uma Cuba sob um isolamento cruel e enredada nas próprias limitações econômicas, Fidel abriu mão da guerrilha como estratégia.

Um ano depois, o fracasso da colheita de açúcar de 1969 em produzir 10 milhões de toneladas (como era inevitável) marcou o fim de um ciclo. Dentro de um ano, Cuba caiu completa e definitivamente nos braços da União Soviética e passou a fazer, publicamente, parte da estratégia soviética de alianças e concessões para o Terceiro Mundo. Quando Fidel visitou o Chile, os futuros apoiadores de Pinochet foram às ruas bater panelas em protesto, embora ele estivesse lá para parabenizar Allende pela sua vitória eleitoral e pelo avanço da sua caminhada parlamentar rumo ao socialismo.

Depois da invasão à Baía dos Porcos, Castro declarou que a revolução era socialista. Apesar de o próprio Fidel ter um passado militante no nacionalismo radical, seu anúncio foi o reconhecimento tanto da dependência econômica de Cuba em relação à União Soviética como do papel que o recém refundado Partido Comunista desempenharia no seu futuro.

Nesse contexto, o socialismo era entendido como um Estado forte e centralizado na mesma linha do modelo soviético. Isso coincidia com a visão tanto de Castro como de Guevara de como as revoluções eram vencidas: pelas ações de pequenos e dedicados grupos de líderes revolucionários que agiriam em nome dos movimentos de massa.

Quando os soviéticos invadiram a Checoslováquia em 1968, Castro apoiou a iniciativa, confirmando mais uma vez a dependência de Cuba da União Soviética e a natureza do novo Estado logo em seguida à morte de Che. Mas, no sul da África, o país firmou a sua própria e ousada política internacional.

Durante os anos 70, o papel desempenhado pelas forças cubanas foi fundamental para derrotar as insurgências de direita e manter a reputação anti-imperialista de Castro. Poucos questionam a contribuição delas para o fim do apartheid. Entretanto, no Corno da África, as tropas cubanas defenderam governos aliados aos interesses soviéticos na região que reprimiram brutalmente movimentos internos de libertação.

Fidel nunca foi um subordinado dócil. Ele usou seu carisma extraordinário e influência política para enviar advertências ocasionais a Moscou, de um lado, e reforçar seu controle pessoal do Estado, de outro lado. Os sobreviventes da guerrilha que chegaram no “Granma” em 1956 e derrubaram a ditadura de Batista permaneceram, em geral, no centro do poder pelas cinco décadas seguintes.

O socialismo adotado por Castro tinha pouco semelhança à “autoemancipação da classe trabalhadora” de Marx. Foi um socialismo com uma estrutura de comando bem parecida com a da guerrilha na qual Fidel era o líder supremo. O que o preservou foi a incontestável autoridade de Fidel e a implacável hostilidade dos Estados Unidos, que não somente tentaram assassiná-lo centenas de vezes, mas estavam dispostos a fazer o povo cubano passar fome para colocá-lo em um estado de submissão.

Nessas difíceis condições, o sistema que os revolucionários construíram teve ganhos reais. Os mais celebrados foram os eficientes e universais sistemas de saúde e educação. Fora isso, a vida diária já era dura mesmo antes de a ilha ser deixada à beira de um desastre pelo fim da ajuda soviética e do “período especial” que a seguiu.

Somente a solidariedade e o sacrifício coletivos evitaram o colapso nessa época. Entretanto, já existia descontentamento significativo expressado, por exemplo, pela ociosidade, pela resistência no ambiente de trabalho e pela desilusão de veteranos da África, à medida que várias expectativas da revolução se provavam ilusórias. Embora existisse assistência social básica, havia pouco em termos de bens de consumo, e todo tipo de dissidência era tratado com severidade.

A extrema concentração do poder – os principais órgãos do Estado eram administrados por duas dúzias de líderes “históricos” sob o controle de Fidel – no topo da pirâmide sufocava qualquer possibilidade de um socialismo democrático. As instituições políticas eram controladas em todos os níveis; órgãos locais, como os Comitês para a Defesa da Revolução, vigiavam os dissidentes. Nas ocasiões em que o descontentamento se tornou barulhento demais, centenas de cubanos foram despachados para Miami em meio a marchas clamorosas que denunciaram os que partiam como “escória”.

Era relativamente simples classificar as reivindicações por democracia de críticos internos como propaganda imperialista, ao invés de demandas legítimas de trabalhadores, que, em um socialismo que merecesse esse nome, deveriam ser os sujeitos das suas próprias histórias. A única fonte de informação do público era o impenetrável jornal estatal Granma; e as instituições estatais de todos os níveis eram pouco mais que canais para divulgação das decisões do líder.

Uma burocracia opaca, responsável somente perante si mesma, com acesso privilegiado a bens e serviços, tornou-se cada vez mais corrupta no contexto de uma economia reduzida aos mantimentos mais básicos. Os clamores ocasionais de Castro por “correção” removeram alguns indivíduos problemáticos, mas deixaram o sistema intacto.

Entretanto, Cuba sobreviveu em boa parte devido aos instintos políticos aguçados de Fidel e a sua disposição em achar aliados em qualquer canto que pudesse logo após a queda da Europa oriental. Mas, embora os líderes da “onda rosa” celebrassem o legado de Fidel, à proporção que o século XXI nascia, os novos movimentos anticapitalistas, com a importância que deram a democracia e participação, tinham pouco a aprender com Cuba.

A realidade foi, no final das contas, que a ilha constituiu palco de uma interpretação autoritária do socialismo, que, em determinado momento, permitiu a repressão da população gay, a rejeição a qualquer crítica e a emergência do regime que agora prepondera em Cuba, onde um pequeno grupo de burocratas e comandantes militares administram e controlam a economia. Eles serão os beneficiários da reentrada de Cuba no mercado mundial, não a maioria dos cubanos.

Fidel se manifestou relativamente pouco a partir do momento que adoeceu, em 2006. Sua morte será lamentada por todo o Terceiro Mundo, porque Cuba representou, durante muito tempo, a possibilidade de emancipação perante a opressão imperial. Sua própria sobrevivência gerou esperança. No entanto, o Estado que Castro ajudou a construir é uma lembrança de que qualquer socialismo que honre o próprio nome precisa de uma democracia profunda e radical.

Colaborador

Mike Gonzalez foi professor de estudos latino-americanos na Universidade de Glasgow. Ele é autor do recente livro Hugo Chávez: socialismo para o século XXI, publicado pela editora Pluto Press.

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