29 de fevereiro de 2016

O socialismo e o feminismo, às vezes, não entram em conflito?

Em última análise, os objetivos do feminismo radical e do socialismo são os mesmos – justiça e igualdade para todas as pessoas.

por Nicole M. Aschoff

Jacobin

Ilustração por Phil Wrigglesworth

Tradução / Socialismo e feminismo têm uma relação longa, e por vezes conturbada.

Socialistas são muitas vezes acusados de enfatizarem demais a questão de classe – de colocar a divisão estrutural entre aqueles que precisam trabalhar em troca de um salário para sobreviver e aqueles que possuem os meios de produção no centro de cada análise. Até pior, eles ignoram ou inferiorizam o quão centrais outros fatores – como sexismo, racismo ou homofobia – são na formação de hierarquias de poder. Ou eles admitem a importância destas normas e práticas negativas, mas defendem que elas somente poderão ser extirpadas depois que a gente se livrar do capitalismo.

Ao mesmo tempo, socialistas acusam feministas hegemônicas de se focar demais em direitos individuais ao invés da luta coletiva, e ignorar as divisões estruturais entre as mulheres. Eles acusam as feministas hegemônicas de se alinharem com projetos políticos burgueses que diminuem a capacidade de ação de mulheres trabalhadoras, ou de pressionar por demandas de classe média que ignoram as necessidades e desejos de mulheres pobres, tanto no Norte Global quanto no Sul.

Estes debates são antigos e datam da metade do século XIX e da Primeira Internacional, e giram em torno de questões políticas profundas sobre poder e as contradições da sociedade capitalista.

Turvando ainda mais as águas está a forma com que as políticas do feminismo são complicadas pela natureza histórica do Capitalismo – a forma como o sexismo está integrado tanto no processo de lucro quanto no de reprodução do sistema capitalista como um todo é dinâmico.

Este dinamismo é muito aparente hoje, quando uma mulher candidata à presidência, Hillary Clinton, é a principal escolha entre os milionários estadunidenses. Mas a divisão entre Socialismo e Feminismo é, em definitivo, desnecessária.
Por que Socialistas deveriam ser Feministas

A opressão às mulheres, tanto na sociedade dos EUA quanto globalmente, é multi-dimensional – divisões de gênero nas esferas política, econômica e social sublinham por que, para nos libertar das tiranias do Capital, os Socialistas precisam ser também Feministas.

A possibilidade de uma mulher finalmente se tornar presidenta dos EUA joga luz sobre a rígida falta de lideranças femininas, tanto nos EUA quanto ao redor do mundo. Apesar de mulheres poderosas como Angela Merkel, Christine LeGarde, Janet Yellen e Dilma Rousseff, o equilíbrio de gênero nos mundos político e corporativo permanece altamente enviesado. Apenas 4% dos CEOs nas empresas da Fortune 500 são mulheres e a maioria das mesas diretoras de corporações têm poucos membros femininos, quando têm algum.

Globalmente, 90% dos Chefes de Estado são homens, e no Fórum Econômico Mundial de 2015 apenas 17% dos 2500 representantes eram mulheres, enquanto 2013 marcou a primeira vez que as mulheres conquistaram 20 cadeiras no Senado dos EUA.

Diferente de muitos países, as mulheres nos Estados Unidos possuem, a grosso modo, direitos igualitários e proteção legal, além de tanto acesso a educação, nutrição e cuidados de saúde quanto os homens. Mas as divisões de gênero são aparentes através da sociedade.

As mulheres se saem melhor que os homens na educação superior, mas elas não atingem níveis comparáveis de sucesso ou riqueza e permanecem estereotipadas e sub-representadas na mídia popular. Ataques aos direitos reprodutivos femininos [2] continuam sem diminuir e, depois de uma longa e contínua queda nos anos 90, as taxas de violência contra as mulheres não se movem desde 2005.

Ao mesmo tempo, decisões sobre como balancear a vida doméstica e de trabalho, diante de custos sempre crescentes de moradia e cuidado infantil, são tão difíceis quanto sempre foram. Nos 50 anos desde a passagem do Ato de Pagamento Igualitário de 1963 as mulheres penetraram na força de trabalho em massa; hoje 60% das mulheres trabalham fora de casa. Mães solteiras e casadas têm mais chance de trabalhar, incluindo 57% de mães de crianças de menos de 1 ano.

Mas mulheres que trabalham em jornada completa ainda ganham apenas 81% do que os homens ganham – um número inflado pelo declínio mais rápido nos salários de homens nos últimos anos (com exceção dos que possuem diploma superior) nos anos recentes.

Diferenças de pagamento são comparáveis às divisões de gênero no trabalho. Os setores de varejo, serviços e alimentação – o centro do crescimento de novos empregos – são dominados por mulheres, e a feminização do trabalho de “assistência” é ainda mais pronunciado. Apesar de ganhos recentes, como a extensão do Ato de Padrões Justos de Trabalho aos trabalhadores domésticos, trabalho de assistência [3] ainda é visto como trabalho de mulher e sub-valorizado. Números desproporcionais de empregos de cuidados são contingentes, pagam pouco e onde humilhações, assédio, agressões sexuais e roubo de salário são comuns.

Em adição a estas diferenças claras entre as experiências de homens e mulheres nos EUA, existem efeitos mais perversos e de longo alcance do sexismo. Feministas como bell hooks argumentam que o sexismo e o racismo impregnam todos os cantos da sociedade e que narrativas dominantes de poder glorificam visões de vida brancas e heteronormativas.

Desde o nascimento, meninos e meninas são tratados diferentemente e estereótipos de gênero são introduzidos em casa, na escola, e na vida cotidiana e perpetuados através das vidas das mulheres, dando forma às suas identidades e escolhas de vida.

O sexismo também exerce um papel menos óbvio, mas crítico, na criação de lucros. Desde o começo, o Capitalismo tem dependido de trabalho não-pago fora do mercado de trabalho (principalmente no lar) que provê ingredientes essenciais para a acumulação de capital: trabalhadores – que precisam ser criados, vestidos, alimentados, socializados e amados.

Este trabalho não-pago é altamente marcado pelo gênero. Enquanto mais homens tomam parte nas tarefas domésticas e na educação infantil do que no passado, a reprodução social ainda cai primariamente sobre as mulheres, de quem se espera que carreguem nos ombros o fardo mais pesado no trabalho doméstico. A maioria das mulheres também faz trabalho pago fora de casa, tornando o seu trabalho em casa um “segundo turno.” Desta forma, mulheres são duplamente oprimidas – exploradas no espaço de trabalho e não-reconhecidas como trabalhadoras na reprodução social da força de trabalho.

Por que feministas deveriam ser socialistas

Estas divisões de gênero que atravessam as classes e persistem – nas esferas política, econômica e social – dão combustível ao ponto de vista feminista dominante de que o sexismo é uma coisa separada do Capitalismo, algo com que precisamos lidar separadamente.

Através de numerosas ondas de luta feminista, ativistas tem perseguido uma variedade de estratégias no combate ao sexismo e a divisões de gênero. Hoje, feministas hegemônicas gravitam rumo a um foco em colocar a mulher no poder – tanto na esfera política quanto econômica – como um caminho para resolver a série de problemas que as mulheres encaram, tais como desigualdade salarial, violência, equilíbrio entre vida e trabalho e socialização sexista.

Eminentes porta-vozes femininas [4] como Sheryl Sandberg, Hillary Clinton, Anne-Marie Slaughter e muitas outras defendem esta estratégia feminista de “tomada de poder.” Sandberg – uma das mais influentes defensoras desta estratégia – argumenta que as mulheres precisam parar de ter medo e começar a “desbaratar o status quo.” Se elas fizerem isso, ela acredita que esta geração pode diminuir a lacuna de lideranças e, ao fazer isso, tornar o mundo um lugar melhor para todas as mulheres.

O impulso do argumento de tomada de poder é que se as mulheres estivessem no poder elas, diferente dos homens, iriam dar conta de implementar políticas que beneficiariam mulheres e aquela divisão de gênero que atravessa classes nas esferas econômica, política e cultural somente será eliminada se as mulheres mantiverem um número de posições de liderança igual ao dos homens.

A ênfase em avanços individuais como o caminho para atingir os objetivos do Feminismo não é nova, e tem sido criticada por numerosas feministas, incluindo Charlotte Bunch e Susan Faludi, que questionam a noção de solidariedade entre irmãs como um remédio para divisões de gênero muito enraizadas. Como Faludi diz, “Você não pode mudar o mundo para as mulheres apenas inserindo rostos femininos no topo de um sistema intacto de poder social e econômico.”

Feministas-Socialistas como Johanna Brenner também apontam para como o feminismo hegemônico encobre tensões profundas entre mulheres:

“Nós podemos generosamente caracterizar como ambivalentes as relações entre mulheres da classe trabalhadora/pobres e as mulheres profissionais de classe média cujos trabalhos são erguer e regular aqueles que vêm a serem definidos como problemáticos – os pobres, os não-saudáveis, os que não se encaixam culturalmente, os sexualmente não-conformistas, os pouco-educados. Estas tensões de classe vazam nas políticas feministas, enquanto feministas de classe-média afirmam representar as mulheres trabalhadoras.”

Então, enquanto é certamente necessário reconhecer o quão dividida por gênero a sociedade contemporânea permanece, também é necessário manter os olhos abertos sobre como superar essas divisões e, igualmente importante, reconhecer as limitações de um Feminismo que não desafia o Capitalismo.

O Capital se alimenta sobre normas existentes de sexismo, compondo a natureza exploradora do trabalho assalariado. Quando as ambições e desejos das mulheres são silenciados ou sub-valorizados, é mais fácil de tomar vantagem delas. O sexismo é parte da caixa de ferramentas da companhia, permitindo às empresas pagar menos para as mulheres – particularmente negras – e discriminá-las de outras maneiras.

Mas mesmo se nós extirparmos o sexismo, as contradições inerentes ao Capitalismo vão persistir. É importante e necessário que as mulheres assumam posições de poder, mas apenas isso não vai mudar a divisão fundamental entre trabalhadores e proprietários – entre mulheres no topo e mulheres na base. Não vai mudar o fato de que a maioria das mulheres se encontra em empregos precários, de baixo salário, que representam uma barreira bem maior ao avanço e a uma vida confortável que o sexismo na esfera econômica ou política. Não vai mudar o poder da busca pelo lucro e a compulsão das companhias por dar às trabalhadoras e trabalhadores tão pouco quanto as normas econômicas, sociais e culturais permitirem.

É claro, a sociedade não é redutível a relações salariais e as divisões de gênero são reais e persistentes. Levar a questão de classe a sério significa ancorar a opressão feminina dentro das condições materiais em que elas vivem e trabalham, enquanto reconhecendo o papel do sexismo na formação das vidas das mulheres tanto no trabalho quanto em casa.

O movimento feminista – tanto sua encarnação de “Bem-Estar Social” quanto a radical contemporânea – tem tido ganhos significativos. O desafio agora é duplo: defender essas duras vitórias e tornar possível a todas as mulheres realmente aproveitá-las; e pressionar adiante por demandas novas e concretas que lidem com as relações complexas entre o sexismo e a busca por lucro.

Não há resposta simples sobre como atingir estes objetivos gêmeos. No passado, mulheres tiveram os maiores ganhos ao lutar tanto por direitos das mulheres quanto direitos dos trabalhadores simultaneamente – ligando a luta contra o sexismo à luta contra o Capital.

Como Eileen Boris e Anelise Orleck argumentam, durante os anos 70 e 80 “feministas sindicalistas ajudaram a revitalizar o movimento das mulheres que deflagrou novas demandas de direitos femininos em casa, no trabalho e dentro de sindicatos.” Aeromoças, trabalhadoras do setor têxtil, da igreja e domésticas desafiaram os movimentos sindicais dominados por homens (uma mulher não sentou na mesa executiva da AFL-CIO até os anos 80) e no processo forjaram um novo Feminismo, mais expansivo.

Mulheres sindicalistas criaram um novo campo de possibilidades ao demandar não apenas salários mais altos e oportunidades iguais, mas também creches, escalas de trabalho flexíveis, licença-maternidade, e outros ganhos normalmente negligenciados e subvalorizados por seus irmãos sindicalistas.

Esta é a direção em que tanto Socialistas e Feministas deveriam estar se orientando – rumo a lutas e demandas que desafiem tanto as tendências do Capital quanto as normas arraigadas do sexismo que estão enraizadas tão fundo sob o Capitalismo.

Lutas e demandas que atingem isso são concretas e estão atualmente sendo travadas. Por exemplo, a luta por um sistema público e gratuito de saúde – que proveria cuidados de Saúde como um Direito para toda pessoa, do berço ao túmulo, independente de sua capacidade de pagar – é uma demanda que mina ambos o sexismo e o poder do Capital de controlar e reprimir a ação trabalhadora. Há muitas outras demandas concretas de curto-prazo que misturam os objetivos do Feminismo e do Socialismo também, incluindo Educação Superior gratuita, creches gratuitas, e uma Renda Básica Universal combinados com uma rede robusta de segurança social.

Estas reformas estabeleceriam as bases para objetivos mais radicais que iriam longe na extirpação do sexismo, da exploração e da mercantilização da vida social. Por exemplo, projetos para aumentar o controle coletivo e democrático sobre instituições centrais para nossas vidas em casa, na escola ou no trabalho – escolas, bancos, espaços de trabalho, prefeituras, agências estatais e locais – dariam a todas as mulheres e homens mais poder, autonomia e a possibilidade de uma vida melhor.

Esta estratégia anticapitalista é uma que contém a possibilidade de mudanças radicais de que as mulheres precisam.

Em última análise, os objetivos do Feminismo radical e do Socialismo são os mesmos – justiça e igualdade para todas as pessoas, não simplesmente oportunidades iguais para as mulheres ou participação igual por mulheres em um sistema injusto.

28 de fevereiro de 2016

O atraso é recuperável? Sobre a obra de Georg Lukács quando jovem

O lançamento no Brasil de textos do jovem Georg Lukács (1885-1971) permite compreender o papel da oposição entre vida e forma na reflexão do crítico. Edição de "A Alma e as Formas" permite ainda analisar as mudanças e os vínculos que há entre seu pensamento de então e sua obra após a "conversão" ao marxismo.

Luiz Costa Lima


A pergunta do título remete diretamente à tradução brasileira de "A Alma e as Formas [trad. Rainer Patriota, Autêntica, 288 págs., R$ 54]. Motiva-a a demora para que aparecesse no Brasil um dos primeiros livros de Georg Lukács (1885-1971), publicado em húngaro em 1910 e, em alemão, em 1912. É verdade que o retardo não é só pontual, mas de toda a reflexão teórica nossa sobre a literatura. O pouco que se publica raramente vai além da primeira edição. Se não apostássemos que o atraso é remediável, por que continuaríamos a remar contra a corrente?

Foi ainda como estudante de filosofia na Universidade de Budapeste que Lukács começou a se envolver com o teatro, sendo um dos fundadores, em 1904, do Thalia-Bühne. Os anos em que o grupo funcionou lhe serviram para amadurecer a reflexão sobre o drama moderno, a concretizar-se no manuscrito, datado de 1911, de sua "História do Desenvolvimento do Drama Moderno".

Embora escrito em alemão, esse estudo só teria publicação integral em 1976, em italiano. Esta, que é a primeira grande obra de Lukács e que alcançaria posteriormente grande renome, é anterior em um ano ao primeiro texto reconhecido do autor – o importante "Da Pobreza do Espírito", publicado em 1912 em uma revista alemã e incorporado à tradução brasileira de "A Alma e as Formas".

Considerando pois o que Lukács produz na primeira década do século 20 –além dos títulos referidos, o início da chamada "Estética de Heidelberg" (1912-14)– deve essa década ser tida como decisiva em sua formação.

Dilema

A influência de Simmel, sob cuja orientação estuda sociologia, será decisiva para a relevância que a filosofia da vida terá no jovem autor. Não que Lukács só então a conhecesse. A leitura de "A Alma e as Formas" mostra que desde antes a "Lebensphilosophie" (filosofia da vida) estabelecia o grande dilema que constituía o eixo de sua reflexão enquanto jovem: o dilema entre vida e forma.

Embora se tratasse efetivamente de um dilema, e não de uma questão resolvida, já o prefácio da "História do Desenvolvimento do Drama Moderno" continha formulação que mais recentemente se tornaria célebre. Para Lukács, a pobreza da sociologia da literatura residia no fato de que ela, da criação "busca e examina só os conteúdos e traça uma linha reta entre estes e as relações econômicas dadas". Mas, segue, "na literatura o verdadeiro social é a forma".

A afirmação mostra que, para o jovem crítico, o problema da arte não se resolvia nem por seu aspecto estético nem pelo privilégio do econômico. Não estranha que, depois de sua "conversão" ao marxismo, em 1918, naquele momento necessariamente stalinista, tivesse de repudiar o que antes escrevera.

Na edição brasileira de "A Alma e as Formas", discute-se a questão do primeiro Lukács face ao da maturidade. Observa-se, com razão, que a preocupação com o social aparece nos dois momentos, assim como se lamenta que a rigidez que se apossa do convertido o tenha feito perder as sutilezas presentes tanto em "A Alma e as Formas", quanto em "A Teoria do Romance" (1920), aqui traduzido em 2000 pela editora 34.

Mas deixa-se de notar que sua "Estética" definitiva, datada de 1963, impunha a reviravolta hegeliana: considera que a obra literária é produto das condições socioeconômicas. Acrescente-se ainda: talvez no esforço de não manchar os méritos do autor, não só não se consideram os efeitos da reflexologia em sua obra posterior como se ignoram as concessões que fez, sobretudo durante sua permanência em Moscou (1923-33).

Relato apenas um acontecimento, só revelado depois da desestalinização: alguns dias depois do primeiro Processo de Moscou, reuniu-se, em setembro de 1936, uma espécie de "processo secreto", que visava identificar e liquidar os "dissidentes", os "inimigos" do partido, os "oportunistas". Entre os juízes do processo se encontrava nada menos que Lukács, e os julgados eram os escritores alemães exilados. Os interessados devem procurar "Die Sauberung" (a depuração), organizado por Reinhard Müller e publicado em 1981. São descasos a não omitir.

Quanto à tradução de "As Almas e as Formas", apenas chamo a atenção para um equívoco aparentemente secundário. No início do capítulo "Sobre a Filosofia Romântica da Vida: Novalis", aparece a frase: "Napoleão e as frentes reacionárias do espírito". Ela dá a entender que, antes da restauração do "ancien régime", a reação ao racionalismo do século 18 seria uma modalidade reacionária, incluindo, portanto, o próprio Romantismo alemão. Ora, o texto em alemão é bem outro: "Napoleon und die geistige Reaktion" –Napoleão e a reação intelectual. Como a frase –de que só transcrevo a parte em pauta– é sintaticamente simples, depreende-se que se trata de um erro de interpretação.

Ensaio

Venhamos com maior rapidez aos ensaios mais salientes. Entre eles, o mais frequentemente destacado é o primeiro, relativo à caracterização do ensaio. Não partilho desse entusiasmo quanto a "Sobre a Forma e a Essência do Ensaio: Carta a Leo Popper", porque Lukács nele antes parece ainda procurar a resposta, em vez de expor sua formulação.

Por isso, ao contrário de acompanhá-lo, salto para o final do ensaio. Nele, o autor escrevia: "O ensaio se posiciona diante da vida com o mesmo gesto de uma obra de arte, mas apenas o gesto. [...] Fora isso, não resta mais nenhum contato entre eles".

Uma vez que, um pouco antes, definia a posição de Sócrates como aquele que considerava cada acontecimento ocasião para estabelecer um conceito, pode-se aproximar as duas passagens e entender com Adorno que, para Lukács, o ensaio abriga uma "pretensão à verdade livre de aparência estética". Ou mais precisamente, o ensaio aproxima-se da forma artística de que se distingue por se respaldar no conceito (filosófico).

Discordo da discordância que, quanto a esse aspecto, Rainer Patriota expressa em seu posfácio (pág. 265) –pois me parece que Adorno ressalta o que é fundamental na reflexão. Por certo ela ainda é problemática –valeria perguntar o que aproxima o ensaio da arte–, porém a formulação tem uma potencialidade apreciável.

Em troca, sua qualidade não se compara ao que é excepcional no livro analisado. Na impossibilidade de examinar individualmente o notável, assinalo que ele equivale aos capítulos 3, 4, 5, 6. Contento-me em destacar, ainda que telegraficamente, o 3, referente ao rompimento do noivado de Kierkegaard e o 5, sobre a obra, sobretudo novelesca, de Theodor Storm (1817-88).

No primeiro caso, como já ressaltam Judith Butler, na introdução de nossa tradução, e Rainer Patriota, em seu posfácio, impõe-se a aproximação com o caso do próprio Lukács com Irma Seidler, a quem "A Alma e as Formas" é dedicado, e que se suicidara um ano antes –Lukács havia tomado a decisão, como Kierkegaard, de colocar a obra antes da vida, rompendo o relacionamento.

Para irmos direto ao ponto básico: com o rompimento do noivado, pergunta-se seu intérprete, Kierkegaard "salvou apenas a vida de Regine Olsen"? Ou "aquilo que tornava a separação necessária para ele não era antes algo que se mostrara necessário à sua própria vida"?

Que vida, afinal, o rompimento ajudaria a salvar? A vida de Regine não seria salva se sua alegria não fosse suficiente para estancar a melancolia que corroía o "sedutor". Em troca, em risco estaria a vida do próprio Kierkegaard caso, cessada a fonte de sua melancolia, passasse a estar ameaçada a sua motivação para pensar e escrever.

Como se efetuaria a projeção sobre o próprio Lukács? Aqui se constata a vantagem com que o leitor da edição brasileira passa a contar pelo acréscimo do ensaio "Da Pobreza do Espírito". Ele mostra como, para aquele primeiro Lukács, o dilema básico se punha entre vida e obra. Como a vida é apenas um meio, a vida "risonha" seria um interdito para a obra.

Seria interessante mostrar como esse dilema se fez presente em sua adesão ao marxismo. Na impossibilidade de desenvolvê-lo, apenas direi: o "convertido" acreditava que o socialismo marxista dava condições de romper com a vida dispersa, individualizada, angustiada pela falta de interesses comuns, motivando em troca uma obra disposta para a comunicação.

O leitor interessado nesta razão deve privilegiar o capítulo 5, dedicado a Storm. Nele, o autor procurava mostrar que a mentalidade burguesa não se confundia, senão contemporaneamente, com a arte pela arte ou com um impressionismo que realça fragmentos, pedaços desconectados da vida.

Como representante de um espírito burguês já então dissipado, Storm expunha um outro "ethos": "Para o verdadeiro burguês [que era Storm], a profissão não era uma ocupação, mas uma forma de vida". Por isso seu romance não excluía a vida senão que a ordenava e assim constituía "seu formato e seu estilo". Acrescento apenas: é dentro do elogio a esse "ethos", já sepultado, que se explica a antipatia de Lukács pela arte contemporânea (Kafka, Woolf, Joyce), e seu empenho em favor de Thomas Mann –pois, neste, o romance "honesto" de Storm e sua geração se converte em obra monumental.

Não é pelo fato de discordarmos da posição deste Lukács, assim como vermos toda magnífica sutileza do primeiro respaldada pela forte presença da tradição clássica a favorecer a entrada em cena do pensador maduro, que se justificaria ignorá-lo. Muito menos, como é costumeiro entre nós, fazer de conta que não tomamos conhecimento de uma obra meritória e extremamente digna de discussão.

Sobre o autor

Luiz Costa Lima, 78, professor emérito de história da PUC-RJ e autor de "Frestas: a Teorização em um País Periférico" (Contraponto), pelo qual recebeu o prêmio de ensaio da Biblioteca Nacional.

22 de fevereiro de 2016

O veto empresarial

A derrocada da social-democracia ilustra a precariedade de qualquer projeto de reforma no capitalismo.

Shawn Gude


Franklin Roosevelt assina a promulgação da Lei de Segurança Social. Foto: Wikimedia Commons

Tradução / Após a a eleição presidencial de 1984, os meios de comunicação estadunidenses falavam com uma única voz: o liberalismo do New Deal estava morto. Dada a escolha entre o liberalismo no estilo tributar-e-gastar de Walter Mondale e o conservadorismo no estilo das propagandas de “é manhã na América” de Ronald Reagan, os eleitores decisivamente ficaram do lado do presidente em exercício.

A única alternativa para os democratas, então, era se modernizar. Qualquer coisa que não uma reanálise generalizada dos compromissos mais social-democratas do partido, representaria um convite ao futuro desastre eleitoral.

A sabedoria convencional também tinha a quem apontar como os culpados: a base do Partido Democrata. Atacando aquilo que chamavam de “liberalismo de grupo de interesse”, os comentaristas insistiam que o partido se tornasse uma tenda ampla, moderada o suficiente para ganhar uma eleição geral e alérgica a preocupações particularistas.

Nada disso resistia ao menor escrutínio. Como observou Vicente Navarro na revista Socialist Register na época, a plataforma do partido democrata fora mais conservadora do que havia sido em vários anos – “apesar do fato de que nunca antes as forças liberais e mesmo radicais (como trabalhadores, negros e hispânicos, feministas, ecologistas, gays) foram tão ativas quanto na convenção do Partido Democrata de 1984”. E mesmo com a vitória retumbante de Reagan, as pesquisas sugeriam que o eleitorado não dera um salto para a direita – apenas 35% apoiavam cortes substanciais nos programas sociais para reduzir o déficit público.

No entanto, o diagnóstico dominante rapidamente se consolidou e os democratas adotaram os seus conselhos. Nos anos seguintes, estimulado por uma coalizão empresarial em mutação, o partido do New Deal se reorientaria de forma ainda mais dramática.

Durante a presidência de Bill Clinton em particular, o Partido Democrata se tornou um porta-estandarte da “Terceira Via” – uma posição política que evitava o liberalismo do “grande governo” da social democracia em favor de investimentos públicos direcionados e programas privatizados, e que esperava que o mercado financeiro e as indústrias tecnológicas criassem prosperidade. Barack Obama, apesar de todas as descrições pós-eleitorais dele como a reencarnação de Franklin Roosevelt, seguiu aproximadamente o mesmo roteiro.

Essa mudança de maré no Partido Democrata teve enormes implicações para a direção da política estadunidense, mas também aponta para algo ainda mais profundo: a precariedade de qualquer projeto de reforma popular sob o capitalismo.

Siga a grana

Oconsenso do New Deal que entrou em colapso no início da década de 1980 emergiu nos estertores da Grande Depressão dos anos 30, em meio a uma imensa agitação – ações de trabalhadores desempregados, greves sentadas, campanhas por seguridade social e aposentadoria.

Mas o “New Deal” não era apenas um “novo acordo” dos trabalhadores.

O retrato de Roosevelt como líder de um bando de pessoas comuns, com toda a comunidade empresarial posicionada contra ele – trata-se de um artifício retórico. A maior parte das corporações estadunidenses podia não ser amiga de Roosevelt, mas ele tinha seu próprio conjunto de “legalistas no meio econômico” – corporações como Shell, IBM, General Electric, Lehman Brothers, Goldman Sachs e Bank of America.

O que era fundamental, argumentam Thomas Ferguson e Joel Rogers em seu livro “Right Turn” (“Guinada à Direita”), era a natureza desse “bloco de investidores”. Como seus membros ganhavam dinheiro em setores intensivos em capital, em vez de setores intensivos em força de trabalho, um movimento sindical robusto não representava uma ameaça existencial a eles. Se isso significasse evitar interrupções mais severas, o barão do petróleo poderia aceitar um nível de potência sindical que o proprietário têxtil não suportaria.

Algumas das maiores realizações do New Deal carregaram as impressões digitais dos apoiadores abastados de Roosevelt: um comitê financiado por John D. Rockefeller Jr redigiu a Lei de Previdência Social; o Chase Bank e outros adversários de J.P. Morgan forneceram o impulso para a Lei Glass-Steagall (que estabelecia uma muralha entre as funções de banco de investimento e banco comercial).

Algumas décadas depois, quando Lyndon Johnson estava enxertando suas políticas públicas da “Grande Sociedade” no Estado de Bem-Estar Social do New Deal, o mesmo bloco de investidores novamente prometeu seu apoio. Com um crescimento econômico aparentemente interminável no horizonte, com lucros acelerados e com presidentes democratas comprometidos com a negociação de acordos comerciais favoráveis, cabia a esses atores da elite distribuir parte das riquezas – só que nos seus termos. Os novos programas mais importantes recebiam sua receita não do bolso das empresas, mas de impostos sobre a folha de pagamento. A ajuda às cidades foi gasta de maneiras acessíveis aos banqueiros e empreiteiras imobiliárias.

Ainda assim, muitas dessas políticas, mesmo que filtradas pela peneira dos interesses dominantes, também traziam benefícios genuínos aos principais eleitores democratas. Apesar de se constituir em um mecanismo de financiamento regressivo, o Medicaid melhorou a vida de seus beneficiários. O mesmo ocorreu com o Medicare, aprovado em meio aos lamentos das organizações de planos privados de saúde como a American Medical Association. E projetos urbanos, como a expansão do transporte público, beneficiaram os trabalhadores – não apenas os incorporadores imobiliários.

Essas políticas reconciliam, pelo menos em partes, os interesses da elite e do povo – a marca registrada de qualquer partido dominante naquilo que Ferguson chama de “sistemas políticos movidos pelo dinheiro”. A classe dos doadores entrava com o prestígio e o financiamento de que o partido precisava para funcionar, e a mixórdia de interesses organizados entregava os votos necessários.

O principal desses interesses organizados era o movimento operário, mas seu poder atingiu o pico cedo demais. O fato dos sindicatos terem exercido influência partidária nas décadas seguintes baseava-se inteiramente nos rápidos ganhos que haviam acumulado no surto de agitação trabalhista da era da Depressão e do pós-guerra. A Lei Taft-Hartley de 1947 conteve esse aumento, determinando a expulsão de radicais sindicais, legalizando o “direito ao trabalho” e restringindo severamente a liberdade de ação dos trabalhadores.

Uma burocracia trabalhista conservadora assistiu a queda subsequente na densidade sindical com surpreendente equanimidade. “Francamente, eu costumava me preocupar com o número de membros, com o tamanho da organização”, disse o presidente da federação de sindicatos AFL-CIO, George Meany, no início dos anos 1970. “Mas há alguns anos, simplesmente parei de me preocupar com isso, porque para mim não faz nenhuma diferença.”

Em meados da década de 1970, a base da coalizão do partido começou a ruir – e o movimento sindical não tinha nem a vontade, nem os meios para reconstituí-lo sobre outras bases.

As coisas desmoronam

Ocrescimento acelerado da década de 1960 deu lugar ao torpor econômico da década de 1970. As empresas sentiam pressões por todos os lados. Embora o trabalho organizado tivesse perdido sua força, o desemprego relativamente baixo no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 reforçava o poder dos trabalhadores no chão de fábrica. Eles respondiam a isso entrando em greve a taxas nunca vistas desde o imediato pós-guerra, muitas vezes exigindo não apenas melhores salários, mas mais controle sobre o processo de trabalho.

Simultaneamente, as empresas estadunidenses estavam vacilando após anos de domínio sobre seus concorrentes internacionais. Outros países capitalistas avançados finalmente se recuperaram da devastação do pós-guerra, e suas empresas estavam ultrapassando as firmas estadunidenses a um ponto que ia além do simples efeito rebote. O resultado líquido mais significativo, especialmente para o capital privado, era que os lucros estavam indo para o fundo do poço. A taxa de retorno das empresas atingiu o pico em 1965 e não se recuperou durante toda a década de 1970.

Com a economia tinindo, o Partido Democrata sobrevivera à turbulenta batalha interna em torno da Guerra do Vietnã. Mas no ambiente de escassez de lucros da década de 1970, com a posição das empresas estadunidenses na economia mundial em declínio, essas disputas tornavam-se cada vez mais insolúveis.

A regulação e os gastos sociais – pilares do sistema do pós-guerra tão amplamente aceitos que Richard Nixon, um arqui-conservador, se sentiu compelido a criar a Agência de Proteção Ambiental e propor um plano nacional de saúde nos moldes do Obamacare – rapidamente surgiram como pontos de discórdia.

Ambos significavam mais custos para o capital. Mesmo para os setores “esclarecidos” do empresariado estadunidense, esses custos já não soavam como prudentes e apaziguadores, mas irracionalmente perdulários. Com o aumento da concorrência, as empresas não podiam simplesmente fazer os consumidores absorverem preços mais elevados.

Para lidar com o novo ambiente, o empresariado buscava o máximo de flexibilidade – e isso significava uma ofensiva contra o trabalho organizado. De 1970 a 1980, relatam Ferguson e Rogers, o número de acusações contra empregadores por demitir trabalhadores envolvidos em atividades sindicais dobrou.

Quando o democrata Jimmy Carter entrou no Salão Oval em 1977 como presidente, a coalizão do New Deal que havia definido os contornos da vida política e econômica estadunidense por décadas estava murchando. Quando ele deixou o cargo – depois de derrotar nas primárias democratas de 1980 o decano do liberalismo do New Deal, o senador de Massachusetts Ted Kennedy – a economia ainda estava engasgando. Um falcão obsessivo com a inflação presidia o Federal Reserve, e a desregulação e profundos cortes nos programas de previdência social começaram a se estabelecer.

Enquanto isso, membros das elites temiam que a Revolução Iraniana e outras convulsões pressionassem um clima inóspito para a geração de lucros no Terceiro Mundo. O momento era propício para mais gastos militares. E quanto aos programas sociais? Não muito. Para seus apoiadores nas elites, o liberalismo do New Deal já havia sobrevivido por mais tempo do que fora útil.

Ainda assim, na iminência da eleição de Reagan, não havia uma grande demanda por políticas econômicas conservadoras. Em 1979, 79% dos entrevistados concordaram que “há poder demais concentrado nas mãos de algumas grandes empresas para dizer que isso faz bem à nação”. A mesma pesquisa descobriu que 51% dos estadunidenses achavam que “as empresas como um todo estão lucrando demais”, e 60% chegavam a acreditar que o Estado deveria impor um teto aos lucros corporativos.

Ainda assim, depois de chegar ao poder, Reagan imediatamente – com o apoio de dezenas de democratas no Congresso ede muitos dos interesses endinheirados que haviam abandonado a coalizão do New Deal – cortou muito os impostos sobre as corporações e os ricos e acelerou os cortes nos gastos sociais que Carter havia iniciado. Ao mesmo tempo, Reagan administrou pesadas doses de gastos com defesa e manobras anticomunistas.

Quando chegou a eleição de 1984, o desafiante democrata de Reagan, Walter Mondale, só conseguiu atrair o apoio de um pequeno segmento da comunidade empresarial: incorporadores imobiliários (cujos cobiçados programas de ajuda urbana estavam sendo espremidos pelos gastos militares) e dirigentes de bancos de investimento (irritados com a placidez de Reagan em direção ao crescente déficit federal).

Com pouco apoio empresarial, uma resposta poderia ter sido tentar ativar as bases e atrair eleitores de baixa renda desiludidos por meio de apelos economicamente progressistas. Em vez disso, Mondale assumiu o papel de um “apertador-de-cinto”. Em seu discurso de aceitação da nomeação à candidatura presidencial, normalmente a província de discursos elevados e estimulantes promessas de políticas públicas, ele reivindicou um aumento de impostos para fechar o déficit orçamentário, explicando que “o Sr. Reagan vai aumentar os impostos, e eu também aumentarei. Ele não vai contar isso para vocês, mas eu acabei de fazer isso.”

Enquanto alguns aclamaram a confissão de Mondale como um triunfo incomum da honestidade sobre a perfídia das campanhas eleitorais, o eleitor médio poderia ser perdoado por se perguntar como isso poderia ajudá-lo. No dia da eleição, Mondale perdeu em todos os estados, exceto seu estado natal, Minnesota.

Embora os democratas tenham retomado o controle do Senado em 1986, o poder claramente havia mudado de um Partido Democrata solícito com os interesses empresariais para um Partido Republicano renovado, que se tornara o guardião incomparável dos interesses das corporações estadunidenses. E, como um realinhamento não significa nada que não envolva o partido mais fraco jogando no terreno do partido mais forte, o tom e o timbre das políticas públicas democratas passaram a se assemelhar aos dos republicanos.

Chega a vez de Clinton

“Nosso objetivo primário era mostrar ao público estadunidense que, se líderes empresariais durões e há muito tempo republicanos fossem contra sua norma e apoiassem Clinton, então ele não teria como ele ser um democrata tradicional, do tipo tributar-e-gastar.”

Assim explicou a pessoa responsável pelo contato entre Bill Clinton e o empresariado e os eleitores no setor de alta tecnologia, ao divulgar os nomes de 400 executivos que apoiavam o ex-governador do Arkansas nas eleições presidenciais de 1992. “Achamos que um endosso de executivos respeitados, em cujo julgamento as pessoas confiam, nos daria aquele nível extra de credibilidade e sentimos que fomos bem-sucedidos nisso”, acrescentou o membro da equipe.

Tudo o que a linguagem tinha de intencional, tinha de reveladora: o partido havia chegado em um ponto em que o fundamento de sua campanha era usar como isca os termos de zombaria usados pelos inimigos do liberalismo do New Deal.

A Terceira Via havia chegado.

Ao contrário da terceira via de meados do século XX, entre o comunismo e o capitalismo, essa corrente centrista buscava um meio-termo entre a social-democracia do pós-guerra e o capitalismo de livre-mercado. Embora estivessem felizes em investir modestamente em coisas como Educação, os acólitos da Terceira Via achavam que o setor público precisava de um choque que apenas os mercados e a privatização poderiam proporcionar.

Clinton personificava a Terceira Via, até na composição de sua base de elite. Prometendo “fazer a América crescer novamente”, Clinton colocou o Vale do Silício no centro de sua campanha de 1992 e cortejou executivos como o presidente da Apple Computer, John Sculley.

As manobras de abertura funcionaram. “Sobre pratos de salmão escalfado na propriedade de 15 acres do Sr. Sculley” nos arredores de Palo Alto, como reportou o New York Times, uma falange de líderes de tecnologia tomou a decisão de apoiar Clinton, lisonjeados por ele ter pedido que ajudassem a formular sua política para a tecnologia e desejosos pelas parcerias público-privadas que Clinton e outros democratas de mentalidade parecida estavam ansiosos para concretizar.

Mesmo que o aspirante à presidência não fosse o primeiro democrata de nível nacional seduzido por uma parceria com empresas de tecnologia (as empresas de informática também foram uma fonte de apoio para Michael Dukakis na eleição de 1988), Clinton foi o primeiro a ter muitos ao seu lado em uma candidatura vencedora.

Representando menos uma novidade, mas trazendo ainda mais poder, executivos de bancos de investimento como Robert Rubin e Pete Peterson convergiram em torno de Clinton no início da corrida presidencial de 1992. A capacidade de arrecadação de fundos de Rubin foi especialmente impressionante – ele “contribuiu com bem mais de US $100.000 para a campanha” e arrecadou “muitas vezes esse valor”, observa Ferguson. (Dinheiro do Walmart, da Tyson Foods e de outras empresas do seu estado natal também encheram os cofres de Clinton.)

A recompensa do ex-executivo do Goldman Sachs foi o cargo mais alto no recém-criado Conselho Econômico Nacional. Como os financistas com tendências democratas do passado, Rubin e companhia valorizavam uma política de dólar forte e livre-comércio. Sua posição sobre a regulação, no entanto, indicava que os tempos haviam mudado.

Já em 1995, Rubin – então secretário do Tesouro – instava Clinton a revogar a Lei Glass-Steagall. Ele conseguiu o que queria em 1999, e a Lei de Modernização de Mercadorias de Futuros desregulamentou o mercado de derivativos um ano depois. Apresentado e incensado como a eliminação de estatutos desatualizados na era da informação, o desbloqueio dos mercados financeiros se encaixava perfeitamente na ideologia mais ampla da Terceira Via – e, não por acaso, com os interesses materiais de seu bloco de investidores.

A laia de Rubin também alterou sua postura diante dos gastos sociais. Nas décadas anteriores, esse tipo de investidor dera de ombros para os aumento dos gastos sociais, mas a política da Terceira Via era política de austeridade, política de orçamentos equilibrados, política de administrar-e-não-expandir-o-estado-bem-estar-social.

Não surpreendentemente, quando Clinton assumiu o cargo – ganhando a presidência com a menor parcela do voto popular desde Woodrow Wilson em 1912 – a redução do déficit anulou um modesto pacote de estímulos. E para fechar a lacuna, ele não foi atrás do dinheiro que Reagan entregara aos ricos no início dos anos 1980 – ele combinou um modesto aumento de impostos com um esforço agressivo para aplainar os gastos do setor público.

Clinton e seus irmãos na Terceira Via lançavam calúnias sobre a burocracia governamental em particular, a justaposição de uma economia pós-industrial – enxuta, flexível, dinâmica – e um governo federal antediluviano dominando seu pensamento. Eles se comprometiam a construir um governo “que funcione melhor e custe menos”. Eles escreveram livros e relatórios com títulos como “Reinventando o Governo: Como o Espírito Empreendedor Está Transformando o Setor Público” e “Da Burocracia aos Resultados”. Eles promoviam a privatização e a voucherização, defendiam o empoderamento de instituições de caridade locais para fornecer serviços sociais e promoviam a regulação ambiental baseada no mercado, como programas de “cap and trade” (que coloca limites para a emissão de carbono sobre atividades e regiões, e emite títulos de permissão de mais emissões para serem negociados via mercado).

O que eles não fizeram foi formular políticas que, na melhor tradição social-democrata, entregassem benefícios aos cidadãos em linhas universais de forma transparente, dando a uma ampla faixa da população um interesse próprio e compartilhado em um Estado de bem-estar social efetivo e abrangente.

Como escreve a cientista política Suzanne Mettler em The Submerged State (“O Estado Submerso”), canalizar gastos e incentivos financeiros por meio do código tributário ou depender de empreiteiros privados obscurece os benefícios que o governo distribui, distorcendo a percepção das pessoas sobre quem recebe apoio do Estado e, portanto, tornando mais difícil formar coalizões progressistas. Em contraste, programas universais obviamente públicos empoderam eleitorados que podem então defender prontamente esses programas, ativando a cidadania democrática em vez de deixá-la para morrer nos recessos profundos da Receita Federal.

Convencido da incompetência do Estado, com os bolsos cheios de dinheiro de Wall Street e do Vale do Silício – ou talvez ocupado demais perseguindo beneficiários dos programas de bem-estar social – Clinton não mostrou interesse em iniciar novos programas ambiciosos que pudessem melhorar a vida das pessoas. Um sistema único de saúde, por exemplo, sequer chegou a ser cogitado, por exemplo, devido ao seu financiamento significativo pelo setor de saúde privada. Sua proposta bizantina de substituição confundiu a muitos e energizou poucos.

Se “novas políticas públicas criam uma nova política”, como afirma o cientista político Paul Pierson, então a contribuição de Clinton foi ajudar a fixar a tendência para políticas públicas opacas que militavam contra amplas coalizões progressistas. Em 1981, o ano em que Reagan entrou na Casa Branca, o número de programas sociais como contrapartidas de desonerações, isenções e incentivos fiscai – um bom substituto para identificar formuladores de políticas que distribuem benefícios governamentais por meio do código tributário em vez de programas transparentes – chegava a 81. Em 2010, chegaram a 151, depois de Clinton ter arado o solo para seu crescimento considerável nos anos 2000.

Acima de tudo, esse foi o legado de Clinton: solidificar a guinada à direita, declarando-se um modernizador enquanto cortejava o pessoal da alta tecnologia e do mercado financeiro. Quando o presidente proclamou em seu discurso anual sobre o Estado da União de 1996 que “a era do grande governo chegou ao fim”, tanto a declaração quanto os aplausos bipartidários com que ela foi saudada sinalizaram a consolidação de um novo consenso conservador. E seu acordo de portas fechadas com o presidente da Câmara, Newt Gingrich, para privatizar parcialmente a Previdência Social – por acaso e felizmente frustrado pelo escândalo sexual de Clinton – forneceu mais uma confirmação de que a mudança de políticas públicas que as elites midiáticas pediram após a eleição de 1984 havia se concretizado.

Mesmo a Grande Recessão após 2008 não desalojou a captura do Partido Democrata pelos Clintonistas. Sem tumultos nas ruas e greves nas fábricas como na Grande Depressão dos anos 30, o presidente Obama se contentou em simplesmente atualizar a Terceira Via para a realidade do pós-quebradeira: um pouco de regulação aqui, um pouco de estímulo ali, mas o arcabouço subjacente – e a base de elite que o torna possível – ficou essencialmente intocado.

Explicando a guinada à direita

As explicações convencionais enxergam o salto para a direita na política econômica nas últimas décadas e assumem que o eleitorado saltou na mesma direção – que o eleitor médio, pensando que os gastos do governo e o liberalismo cultural foram longe demais, se atirou à direita. Quem me dera que as instituições políticas estadunidenses fossem assim tão responsivas ao eleitorado!

O problema é que o eleitorado não é um órgão estático e não mediado. Sua composição e características mudam de um ano para o outro. Somente a organização – seja ela realizada por sindicatos, partidos ou algum outro ator da sociedade civil – pode transformá-lo de uma massa amorfa em grupos discretos capazes de promover suas preferências e interesses.

Mas organização exige dinheiro. A desigualdade de poder e de recursos que define o capitalismo, então, acaba moldando a própria composição e capacidades do eleitorado – quem pode se organizar e quem não pode, quem comparece às urnas e quem fica em casa, quais visões de mundo se expressam na mídia e quais não podem se expressar.

Em outros países capitalistas, os trabalhadores responderam a essas amarras sobre a democracia alavancando os recursos do movimento trabalhista para construir partidos de massa financeiramente e organizacionalmente independentes do capital. A mão de obra organizada dos EUA nunca foi tão longe. Os não membros das elites sempre desempenharam o papel de juniores nesse jogo.

Portanto, quando os interesses empresariais democratas se cansaram das políticas públicas do New Deal – que eles haviam ajudado a moldar a cada passo do caminho – eles foram capazes de rasgar o pacto que haviam feito com as bases do partido. Quando buscaram um orçamento equilibrado em vez de novos gastos sociais nos anos Clinton, eles conseguiram aquilo que queriam.

É essa relação de subordinação que explica a mudança para a direita nos EUA. Pleno emprego, investimento público, tributação sobre os ricos – tudo isso atrai um apoio considerável. A questão, como dizem os comentaristas políticos, é a vontade política.

Para agravar ainda mais o problema, há a expansão do “estado submerso”. Apesar da antipatia da Terceira Via com relação aos programas do “grande governo”, são programas universais, fornecidos diretamente pelo Estado que se mostram mais sustentáveis e mais capazes de gerar eleitores mobilizados. A Previdência Social efetivamente transformou os idosos de uma reflexão eleitoral tardia em um dos blocos eleitorais mais poderosos do país.

Mas o problema não é apenas uma questão de políticas públicas. O obstáculo no caminho é um elemento mais fundamental das democracias capitalistas. Como o capitalismo é organizado em torno do princípio de que antes que qualquer coisa possa operar, os capitalistas devem esperar lucro, as políticas invariavelmente serão escritas tendo em mente primeiramente os negócios. É uma restrição que aprisionou os melhores dos social-democratas europeus no século XX e que, com a mesma certeza, prejudicaria um partido independente da classe trabalhadora hoje nos EUA. Precisamos de uma política anticapitalista, então, que possa romper esse impasse.

Sem revogar permanentemente seu poder de veto, os interesses empresariais não apenas continuarão a impedir as reformas radicais que os socialistas desejam. Eles vão subverter perpetuamente a condição mais básica do governo democrático – que os cidadãos comuns, e não os financiadores corporativos, possam definir a agenda.

Sobre o autor

Shawn é editor associado da Jacobin.

21 de fevereiro de 2016

O legado de Malcom X

Malcolm X morreu hoje, cinquenta e um anos atrás, no momento em que caminhava em direção a idéias revolucionárias que desafiavam a opressão em todas as suas formas.

Ahmed Shawki

Jacobin

Michael Ochs Archives / Corbis

Tradução / A segregação racial não era a lei no Norte dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, mas era a realidade. Os negros do Norte encontravam o racismo e a segregação em praticamente todos os aspectos da vida. Os negros que deixaram o Sul viam-se forçados a viver em grandes guetos urbanos e educar seus filhos em escolas inferiores. Empregos qualificados ou profissões liberais eram reservados aos brancos. Os negros eram constantemente sujeitos à autoridade do branco, especialmente a perseguição policial.

Quase um quarto dos negros se diziam maltratados pela polícia e 40% que presenciavam outros serem vítimas de abuso. Todas as ilusões alimentadas pelos negros do Sul sobre o Norte liberal eram desautorizadas por aqueles que lá viviam. E enquanto os negros do Norte foram inspirados pelas lutas no Sul, sua condição específica os tornou receptivos a um movimento independente – e bem diferente – daquele liderado pelo Conselho de Liderança Cristã do Sul, de Martin Luther King Jr.

Nos primeiros anos da luta pelos direitos civis, a expressão organizacional mais significativa desse novo movimento era a Nação do Islã. No final da década de 1950, os membros do grupo alcançavam um numero estimado de cem mil, com Malcolm X como seu membro mais proeminente.

Formalmente, as ideias da Nação do Islã eram profundamente conservadoras. A organização combinava elementos do Islã ortodoxo com ideias de fabricação própria, pregando uma doutrina de trabalho duro, parcimônia, obediência e humildade. Atenta à independência econômica da sociedade branca como aspecto fundamental, a organização também encorajavam seus membros a “comprar de negros”. A Nação do Islã fundou dezenas de empresas, e era proprietária de terras e mesquitas construídas na maioria das grandes cidades do Norte. A organização não condenava o capitalismo, apenas os brancos. Na verdade, muitos negros muçulmanos procuravam emular o sucesso de capitalistas brancos.

O líder da Nação do Islã, Elijah Muhammad, defendia o estabelecimento de um Estado negro independente, nos Estados Unidos ou em outro lugar. Mas, apesar de pressionar por demandas ou defender seus interesses, a organização era hostil à participação política. Que uma seita religiosa, tão voltada para si, fosse capaz de um crescimento substancial é um testemunho do descontentamento generalizado de um grande número de negros nas cidades. Para centenas de jovens recrutas, a Nação do Islã representava autoestima, autoconfiança e orgulho.

O forte e articulado Malcolm X rapidamente se tornou uma atração para mais militantes se juntarem à Nação do Islã, com apelos concebidos para realçar a hipocrisia das elites brancas. Em resposta à acusação de que a Nação era racista, Malcolm disse, assumidamente: “Se nós reagimos ao racismo branco com uma reação violenta, para mim isso não é racismo negro. Se você vir a colocar uma corda em volta do meu pescoço e eu te enforcar por isso, para mim isso não é racismo. Sua atitude é racista, mas minha reação não tem nada a ver com racismo”.

Malcolm X rejeitou a ideia de que a integração na sociedade americana era possível ou desejável e via o governo federal e o Partido Democrata não como aliados, mas como parte do problema. E criticava fortemente os liberais que falavam sobre o racismo no Sul mas não tinham nada a dizer sobre as condições do Norte, dizendo: “Eu vou arrancar a auréola de liberais que eles tanto se esforçam para cultivar!”

Malcolm X também era crítico corrosivo dos líderes do movimento dos direitos civis. Para ele, em vez de promover a luta, eles eram obstáculos a ela. Ele passou, então, a atacar toda a premissa da não-violência subjacente ao movimento antissegregacionista do Sul, argumentando em favor da autodefesa negra: “Seja calmo, cortês, obedeça à lei, respeite a todos; mas se alguém colocar a mão em você, mande-o para o cemitério. Essa é uma boa religião. Na verdade, essa é a religião dos velhos tempos. (...) Preservar a sua vida, é a melhor coisa que você tem. E se você tem que desistir, que seja um empate”.

Tecnicamente, Malcolm X estava apenas ampliando os ensinamentos de Elijah Muhammad e, na verdade, sempre prefaciava qualquer um dos seus discursos com a frase “Elijah Muhammad ensina (...)”. Apesar disso, Malcolm X transformara essas ideias em uma acusação ao sistema, rompendo cada vez mais a camisa de força da Nação do Islã.

Enquanto Muhammad evitava a política, Malcolm estava se tornando mais político. Um muçulmano reclamou: “Foi Malcolm que injetou o conceito político de ‘nacionalismo negro’ no movimento negro muçulmano, o qual era essencialmente de natureza religiosa.”

Consciente de que a crescente politização do movimento tinha efeitos sobre a Nação do Islã, incluindo em seu líder e porta-voz líder, Elijah Muhammad tomou medidas para reafirmar seu controle.

Um ataque da polícia em Los Angeles, em 1962, trouxe à tona a falência política da Nação do Islã. Em abril de 1962, um muçulmano Negro tinha sido mortos e vários foram feridos pelo departamento de polícia de Los Angeles. Malcolm X imediatamente voou para Los Angeles para apresentar a resposta da organização. A Nação do Islã pregava autodefesa e o assassinato da polícia claramente exigia uma retaliação. Mas Elijah Muhammad impediu que seus seguidores organizassem uma campanha de autodefesa sustentada.

O radicalismo verbal, muitas vezes extremado na sua denúncia dos brancos, era aceitável em um período anterior, quando os membros da Nação do Islã estavam estabelecendo sua reputação como opositores do sistema. Mas a explosão de raiva entre os negros exigiu mais do que palavras; exigiu ação, e isso era uma coisa Elijah Muhammad não iria tolerar.

Fora da Nação do Islã

Em dezembro de 1963, s ruptura de Malcolm X com a Nação do Islã finalmente ocorreu. Em resposta a uma pergunta do público em uma reunião em Nova York, Malcolm atribuiu o assassinato de John F. Kennedy ao ódio e à violência produzida por uma sociedade que os brancos haviam criado .

Embora a declaração fosse consistente com a hostilidade que os ministros muçulmanos negros tinham manifestado perante o governo dos Estados Unidos no passado, Elijah Muhammad informou Malcolm que ele seria suspenso por noventa dias para que “os muçulmanos em todos os lugares possam ser dissociados do erro”. Tornou-se logo claro que a suspensão era de fato uma expulsão.

Em 8 de Março de 1964, Malcolm X anunciou formalmente sua ruptura com a Nação do Islã. O movimento negro muçulmano, disse ele, “tinha alcançado seu limite, porque era muito sectário e tímido”. Ele defendeu um maior engajamento nas lutas dos negros que explodiam em todo o país, alertando que os muçulmanos negros poderiam encontrar-se, “um dia, repentinamente afastados da linha de frente da luta dos negros”.

A fim de se envolver no movimento dos direitos civis, Malcolm X chegou à conclusão de que precisava separar política e religião, dizendo: “nós não misturamos nossa religião com nossa política, nossa economia e as nossas atividades sociais e civis, não fazemos mais isso (…) Nós nos envolvemos com qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer maneira que for necessária para eliminar os males, os males políticos, econômicos e sociais que afligem as pessoas em nossa comunidade”. No mesmo discurso, ele se descreveu como um adepto do nacionalismo negro.

Um nascente anti-imperialismo

Logo depois, Malcolm X fez a primeira de suas duas viagens à África. Estas viagens tiveram um impacto importante sobre as suas ideias. Ele se reuniu com vários chefes africanos importantes do estado – incluindo Kwame Nkrumah, de Gana, e Gamal Abdul Nasser, do Egito – e foi influenciado pelas ideias do “terceiro-mundismo”. De uma forma geral, este via o mundo dominado por duas superpotências – os Estados Unidos e a União Soviética – e considerava que os países em desenvolvimento representavam uma alternativa independente.

Quando Malcolm X voltou a Nova York, anunciou a formação da Organização de Unidade Afro-Americana (OAAU), inspirada pela Organização de Unidade Africana (OUA), que reunia os diferentes chefes-de-Estado africanos. A OAAU era uma organização nacionalista negra que procurava construir organizações comunitárias, escolas, empresas negras, e campanhas de registro de eleitores para garantir o controle da comunidade sobre os políticos negros.

Depois de sua visita à África, Malcolm X começou a argumentar que a luta negra nos Estados Unidos era parte de uma luta internacional, que ele ligava à luta contra o capitalismo e o imperialismo.

Ele também começou a argumentar em favor do socialismo. Referindo-se aos estados africanos, ressaltou: “Todos os países que estão a surgir a partir de hoje livrando-se das amarras do colonialismo estão se voltando para o socialismo”.

Malcolm X não definiu mais a luta pela libertação dos negros como um conflito racial: “Estamos vivendo em uma época de revolução, e a revolta do negro americano é parte da rebelião contra a opressão e do colonialismo que tem caracterizado esta época”, disse ele. “É incorreto classificar a revolta do negro como simplesmente um conflito racial do negro contra o branco, ou como puramente um problema americano. Em vez disso, estamos hoje vendo uma rebelião mundial do oprimido contra o opressor, os explorados contra os exploradores”.

Ele agora já não acreditava que todos os brancos eram inimigos, mas ele manteve a necessidade de uma organização somente de negros: “os brancos podem nos ajudar, mas eles não podem se juntar a nós. Não pode haver unidade negro-branco até que haja primeiro uma unidade negra. Não pode haver solidariedade entre trabalhadores até que haja primeiro uma certa solidariedade racial. Não podemos pensar em união com os outros, até que nos unamos nós mesmos em primeiro lugar”.

A nova concepção da luta de Malcolm X também o levou a questionar o seu entendimento anterior do nacionalismo negro. Em janeiro de 1965, admitiu que este entendimento anterior de nacionalismo negro “foi alienando as pessoas que eram verdadeiramente revolucionárias, dedicadas a derrubar o sistema de exploração que existe nesta terra por qualquer meio necessário.”

Promessa perdida

Durante este período, as ideias políticas de Malcolm X estavam evoluindo rapidamente, um desenvolvimento interrompido por sua morte. Naquela época, ele já havia se tornado uma das figuras negras radicais mais importantes nos Estados Unidos, e sua influência crescia especialmente entre os jovens ativistas.

Malcolm X foi morto a tiros quando estava começando a “pensar por conta própria”, como dizia, e expressar um programa radical de libertação negra. Sua morte prematura e a subsequente supressão e declínio do movimento negro tornaram mais fácil para os reformistas de segunda categoria que pretendiam reivindica-lo como um deles. Mas quem ouve seus discursos ou lê algum de seus escritos não pode ter qualquer dúvida quanto à sua trajetória, que se resume bem em seu famoso discurso “o voto ou a bala”, de 3 de abril de 1964, em Cleveland:

“Não, eu não sou um americano. Eu sou um dos vinte e dois milhões de pessoas negras que são vítimas do americanismo. Um dos vinte e dois milhões de pessoas negras que são vítimas da democracia, nada mais que a hipocrisia disfarçada. Então, eu não estou aqui falando com você como um americano ou um patriota, ou alguém que saúda a bandeira ou a carrega. Não, eu não sou isso. Eu estou falando como uma vítima deste sistema americano. E eu vejo a América através dos olhos da vítima. Não vejo nenhum sonho americano; vejo um pesadelo americano”.

É impossível prever como a política de Malcolm X teria se desenvolvido se tivesse vivido. Ele tinha abraçado ideias que o colocaram diretamente à esquerda do movimento nacionalista negro. Sua hostilidade ao sistema e aos dois partidos capitalistas, o seu compromisso com a eliminação do racismo e sua identificação com o anti-imperialismo, representaram um enorme contributo para a política radical.

Sobre o autor

Ahmed Shawki is the author of Black Liberation and Socialism, from which the following is adapted.

O partido da sociedade para poucos: Jessé Souza rebate Marcus Melo

Criticado por Marcus Melo depois de declarar em entrevista à "Ilustríssima" que o Estado no Brasil é demonizado, o autor argumenta que entre nós o liberalismo tem sido uma forma pragmática e oportunista de defender o que chama de "partido da sociedade para poucos". Para ele, essa é a questão central do país.

JESSÉ SOUZA

Folha de S.Paulo

Tatiana Stropp

Este artigo é uma resposta ao texto de meu colega Marcus André Melo publicado na edição de 31 de janeiro deste caderno, no qual ele critica entrevista minha publicada, também na "Ilustríssima", no dia 10 daquele mês. Marcus Melo não critica meu livro –que eu suponho que ele não tenha lido–, mas tão somente meu argumento da "demonização do Estado" no Brasil. Ele argumenta que se trataria precisamente do contrário –o Estado teria sido "santificado", e não "demonizado".

Apesar de discordarmos em quase tudo, existe uma afinidade importante entre mim e Marcus: a percepção das "ideias" e de seu debate como fundamental para a compreensão do tipo de sociedade que se constrói. Mas aí cessam as proximidades com meu colega. Marcus constrói uma "história das ideias políticas" no Brasil que só existe na cabeça dele, sem qualquer relação com o mundo concreto lá fora. Pior, inverte esse mundo de ponta-cabeça.

É que as ideias não são importantes por si mesmas. As ideias só são importantes quando elas se acoplam a interesses poderosos e passam a dominar a vida das pessoas comuns "convencendo-as" de que são as certas e verdadeiras. Para reproduzir privilégios não basta a "força física". A real e eficaz dominação social tem que produzir uma "violência simbólica".

Marcus e os liberais brasileiros são um ótimo exemplo desse tipo de "violência". É uma violência dizer, por exemplo, que o visconde de Uruguai forjou, com sua imaginação política, as "instituições fundamentais do país" em um sentido autoritário e de reforma pelo alto que teria dominado o século 20 entre nós. Veja bem, leitor, esse é o argumento central de Marcus, a pedra fundamental de seu texto.

Ora, ele se "esquece" que o visconde –leitor do liberal Tocqueville e um dos maiores homens de Estado do século 19 entre nós– queria nada mais nada menos que o "império da lei", que Marcus assume como princípio político maior do liberalismo, se tornasse regra no Brasil. A reação do visconde tinha endereço certo: a experiência "liberal" brasileira de descentralização do poder político no século 19, que representou o mandonismo sem peias dos proprietários locais e total abuso de poder sem qualquer controle.

INVERSÃO

Na cabeça de Marcus, no entanto, o mundo se inverte para caber no seu argumento. O verdadeiro campeão das garantias individuais liberais no século 19 foi o visconde "conservador" (para mostrar como as palavras podem ser enganosas e arbitrárias).

Na verdade, antes de 1930 o Brasil era pouco mais que uma fazenda de café onde menos de 1% votava em eleições, ainda assim, fraudadas. O Brasil moderno se inicia, por um lado, com Getúlio Vargas que cria as bases "materiais" de uma nação urbana e industrial; e, por outro lado, com Gilberto Freyre, que constrói as bases "ideacionais" desse mesmo novo Brasil que se cria. Ou seja, Freyre, e depois dele, seu "filho intelectual" Sérgio Buarque de Holanda são incomparavelmente mais importantes que todo o "balaio de autores" citados por Marcus, posto que apenas depois de 1933 o Brasil produz um "mito nacional popular" que vai ganhar a mente e o coração de todos os brasileiros.

As "ideias" têm que estar no dia a dia das pessoas para serem importantes, e não na cabeça do pesquisador, como imagina Marcus. São essas as ideias presentes até hoje no nosso debate. Sérgio Buarque, por exemplo, influencia todo o programa e a ação de partidos, desde o PSDB até o PT; a ação de instituições que se supõem estarem combatendo essa suposta jabuticaba nacional chamada "patrimonialismo"; além de pautar o debate público brasileiro até hoje.

Comparar esse tipo de influência generalizada e institucionalizada com a intervenção tópica e pessoal em governos e tribunais dos intelectuais citados por Marcus é uma miopia grave da percepção da influência das ideias. Apesar de construir uma história das ideias arbitrária e míope, o esforço de Marcus é sintomático da autocompreensão do liberalismo brasileiro. E é nesse terreno que quero fazer minha crítica.

DILEMA

O verdadeiro dilema social, econômico e político brasileiro, não resolvido até hoje, começa em 1930 com Vargas. Foi o ambíguo Vargas –que efetivamente permitiu atrocidades imperdoáveis no seu governo, como menciona Marcus– quem criou as bases para uma moderna sociedade capitalista e industrial no Brasil.

Vargas criou a legislação do trabalho, a indústria de bens de capital, modernizou o Estado e criou os primeiros partidos de massa entre nós. Desde 1930 até hoje, a luta política no Brasil tem a ver com a definição do sentido desse legado: devemos ter uma sociedade moderna e inclusiva ou seguir a inércia histórica e construir uma sociedade para poucos? Que o leitor não se engane: essa é a questão central do desenvolvimento brasileiro no século 20 e 21, e nenhuma outra. Afinal, é a resposta a essa questão que separava e ainda separa até hoje os partidos e as ideias.

Veja o leitor como o presente só pode ser bem compreendido com a perspectiva histórica. Basta recompor o fio condutor que une o passado e o presente, e o que quer se vender hoje em dia como novidade se desmascara como repetição e como fraude.

O partido vencedor dessa disputa, historicamente, foi o partido da sociedade para poucos. Esse partido venceu em 1954 quando Getúlio foi levado ao suicídio por acusações de corrupção (sempre ela) que se revelariam infundadas –disseminadas por uma "república do Galeão" que se punha "acima da lei" (bateu algum sininho com tempos atuais, caro leitor?)–; venceu também de modo acachapante em 1964 –com os mesmos órgãos de imprensa e a mesma fração da classe média que atuam hoje– e está agora, mais uma vez, na ordem do dia.

Exceto esse "ponto fora da curva" que foi Collor de Mello –que conseguiu o milagre de se indispor com toda uma sociedade depois de 24h de governo ao confiscar a poupança popular–, literalmente toda a luta política brasileira desde então, todos os golpes de Estado e todas as perseguições políticas, só pode ser compreendida pelo divisor de águas que é a luta entre o partido da sociedade inclusiva e o partido da sociedade exclusiva.

A própria separação artificial entre mercado e Estado se deve a essa luta. Na verdade, mercado e Estado são inseparáveis. Sem a atividade de mercado, o Estado não arrecada; e, sem a infraestrutura estatal, o mercado perde dinamismo. Mercado e Estado formam um todo indissociável que se retroalimenta. Então por que dramatizar uma oposição que não existe?

Ora, como existe uma luta de classes silenciosa por acesso aos recursos escassos, a oposição mercado x Estado é a "semântica possível" dessa luta, tão reprimida entre nós como o medo da morte. Ela é reprimida posto que, de outro modo, a classe média poderia se descobrir sendo feita de "tola" por uma elite do dinheiro que a endivida com juros escorchantes e ainda lhe vende os piores e mais caros bens e serviços do mundo.

PAIXÃO

A classe média paga até os impostos para os ricos que compram boa parte da classe política –via financiamento privado– para que nenhuma lei de taxação da riqueza possa passar no Congresso (e fique tudo no lombo dessa mesma boa e velha classe média). A mesma classe média com a qual os ricos sempre podem contar para defendê-los na rua e nas urnas. De resto, ainda sonegam o dinheiro grande em paraísos fiscais em atividades que a classe média, de tão manipulada e apaixonada, não vê nem como corrupção nem como crime. Como se vê, é um caso de paixão cega e adolescente de nossa classe média pelos endinheirados. Esse amor não correspondido vale todos os sacrifícios.

Até há muito pouco tempo, aliás, o crime de corrupção era exclusivo do agente do Estado, como se não se cometesse corrupção no mercado. A sociedade exclusiva é para esse punhado de endinheirados que, inclusive, começa a morar fora do país de modo a externar para as classes que aqui ficam o custo social da rapina. É aqui que entra o liberalismo brasileiro e seu trabalho de travestir a rapina em princípio moral.

Em vários lugares do mundo o liberalismo fez parte de um longo processo de efetivo aprendizado moral. Daí a íntima relação desses princípios com o direito moderno. Foi o direito moderno que logrou institucionalizar os princípios liberais representando um ganho civilizacional de enormes proporções: ao invés apenas da força nua e crua, deve preponderar também o que é "justo".

Essa definição do que é "justo" também se enriqueceu historicamente. Ele começa com as garantias civis, se alonga nas garantias políticas e se aprofunda nas garantias sociais do indivíduo de modo a lhe garantir real igualdade de oportunidades.

A história do liberalismo é bela. Ela conta nosso afastamento da barbárie do "cada um por si" e concebe a ideia do progressivo aprendizado moral da experiência humana em sociedade. Afinal, moral não é "moralismo". Ao contrário, na moralidade as convenções sociais e os afetos são reconstruídos e modificados pela reflexão. Moralidade é, antes de tudo, a possibilidade de aprendizado, ou seja, a possibilidade de nos tornarmos melhores do que somos.

No seu sentido mais elevado de "interesse próprio bem compreendido", como em Tocqueville, o liberalismo nos ensina a ver que até o egoísmo pode ser inteligente, ao perceber que garantir vida digna a todos significa garantir vida digna para nós mesmos. Se todos têm uma chance real, então não preciso, por exemplo, andar de carro blindado como até a classe média brasileira está começando a fazer (como mostram resultados parciais de pesquisa em andamento).

Confesso, caro leitor, que me sinto um liberal desse último tipo: cioso de meu espaço individual, mas compreendendo que todos têm que ter uma chance real de vida digna. Franklin D. Roosevelt foi um liberal desse tipo também. E logrou, por conta disso, transformar os Estados Unidos, tornando-os um país muito menos desigual e injusto do que era. Até hoje, nos EUA, "liberal" é quem tem esse tipo de consciência social.

Se em outros países o liberalismo representou um processo de aprendizado "moral", no Brasil ele sempre foi "amoral", "pragmático" e "instrumental". Em português claro: ele só serviu para legitimar os interesses do dinheiro.

O exemplo de Marcus –poderia ser o de qualquer outro típico liberal brasileiro– é perfeito. A origem de todo mal para ele é o "Poder Executivo" que, supostamente, manda em tudo. Obviamente, quando o Poder Executivo vende a riqueza nacional a preço de banana, aceita moeda podre e ainda privatiza com dinheiro público do BNDES é liberal e bom. Mas ficou provado que a presidência no Brasil exige mais que dinheiro para ser conquistada. O Poder Executivo foi o que restou de acesso dos 70% de brasileiros não privilegiados ao poder. Daí o ataque do liberalismo tupiniquim a ele.

ILIBERALISMO

Um Congresso, por sua vez, que possa ser parcialmente comprado pelo dinheiro e que reflita os interesses de quem pagou a eleição já está curado do mal do "iliberalismo". A recusa de taxação dos mais ricos torna-se a pauta "liberal" que afronta o Executivo supostamente todo-poderoso e que manda em tudo.

Ora, se mandasse em tudo não seria tão pressionado pelos lobbies organizados. É que a estratégia aqui, leitor, é tornar invisível o poder econômico dos oligopólios e sua contraparte no Congresso e na mídia. O nosso liberalismo pragmático tem que esconder a verdadeira fonte de poder entre nós de modo a bater no espantalho de sempre: a "corrupção seletiva".

Minha tese inclusive é a de que não interessa a esses grupos econômicos e seus pares no Congresso e na mídia nem acabar nem mitigar a corrupção no Brasil, mas, ao contrário, sempre tê-la à mão para combater o verdadeiro inimigo: o partido da sociedade inclusiva.

Vamos refletir juntos, leitor. Como Marcus lembra bem em seu texto, as mudanças efetivas são sempre institucionais. Somente novas práticas institucionais podem mudar as pessoas. Afinal, ninguém é infalível. Não é, então, muitíssimo estranho que se fale tão pouco em uma reforma política profunda que torne a relação entre a economia e a política mais transparente –que é o que importa no combate à corrupção– e se fale tão somente em "pessoas" e "partidos" específicos?

É que a "fulanização" da corrupção só serve à sua continuidade. Se o foco se deslocar para uma reforma política profunda, os endinheirados e seus amigos da mídia conservadora perdem seu filão. Pense comigo: e se depois de Getúlio, Jango, Lula e Dilma –os alvos da "corrupção seletiva" no passado e no presente– vier outro representante da sociedade inclusiva? Como a rapinagem econômica e seu braço midiático vão destruir o adversário? Como iriam legitimar de outro modo a drenagem dos recursos de todos –via mercado e Estado– para seus bolsos?

O combate à "corrupção seletiva" –que como sabemos blinda alguns políticos e persegue outros arbitrariamente– confere à rapinagem a "aparência" de luta por algo importante para todos. É nisso que somos feitos de tolos. Nesse contexto, leitor e leitora, confie em mim quando lhe digo que um debate sério no Brasil sobre a corrupção dificilmente existirá. A manipulação do tema da corrupção é o verdadeiro núcleo da legitimação do poder no Brasil.

O nosso liberalismo instrumental é a "tropa de choque" intelectual desse esquema. Por conta disso é fácil desmontá-lo. Basta mostrar a distância entre o dito e a realidade. A defesa dos direitos e garantias individuais é a base do liberalismo, como Marcus reconhece. Assim como o liberalismo, o direito passou por profunda evolução. No começo era o direito "material" do passado, decidido por circunstâncias políticas de ocasião. Nesse caso, não há "justiça" e não há "direito" posto que o que decide o julgado é a "força" maior ou menor dos contendores. Dois mil anos de aprendizado histórico levaram ao "direito formal", no qual o procedimento, as garantias legais e o contraditório devem evitar que a "força" e as oscilações de ocasião predominem.

TIRO

Com Getúlio tivemos uma "república do Galeão" com uma turma de militares mandando e desmandando em tudo até provocar o tiro no coração do presidente eleito. A legalidade e as garantias foram suspensas em nome do combate "sempre seletivo" da corrupção. No caso, ficaria provado mais tarde que Getúlio não havia enriquecido ilicitamente.

Hoje temos nova "república do Galeão" que logrou suspender –com a pressão da mesma mídia de antes– garantias básicas do direito moderno. Prende-se por meses a fio sem culpa formada, e o habeas corpus –historicamente o fundamento da ordem jurídica moderna– foi, na prática, suspenso. É aí que entra o "liberal brasileiro". Como o liberal brasileiro é um "pragmático" que se lixa para princípios, vale, inclusive, acabar com os princípios liberais se eles são do inimigo.

Se defendi no meu livro "A Tolice da Inteligência Brasileira" (Leya) que somos todos feitos de tolos por um punhado de endinheirados e seus aliados na política e na mídia, posto que acreditamos no "complexo de vira-latas" que nos venderam –que somos um povo de corruptos enquanto outros seriam honestos–, sou forçado a reconhecer que nosso liberalismo não tem nenhum complexo. Ele "é" vira-lata.

Sobre os autores
JESSÉ SOUZA, 55, presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da Universidade Federal Fluminense e foi professor convidado na Universidade de Bremen.

TATIANA STROPP, 41, é pintora e faz parte da plataforma de pesquisa em arte contemporânea latino-americana Abstraction in Action.

19 de fevereiro de 2016

Fim dos tempos para o Califado?

Patrick Cockburn


Tradução / Os dois novos Estados, ainda que não reconhecidos internacionalmente, são mais fortes militar e politicamente do que a maioria dos membros da ONU. Um deles é o Estado Islâmico (EI), que estabeleceu o seu Califado no leste da Síria e no oeste do Iraque no verão de 2014 após capturar Mossul e derrotar o exército iraquiano. O segundo é Rojava, designação dada pelos curdos sírios à zona que controlam desde que o exército sírio se retirou em 2012, e que agora, graças a uma série de vitórias sobre o EI, se estende pelo norte da Síria entre o Tigre e o Eufrates. No Iraque, o Governo Regional do Curdistão (GRK), já muito autônomo, aproveitou a destruição, por parte do EI, da autoridade de Bagdad no norte do Iraque para expandir o seu território em 40 por cento, assumindo o controle de áreas há muito disputadas com Bagdá, incluindo os campos petrolíferos de Kirkuk e alguns distritos mistos curdo-árabes.

A pergunta é se estas mudanças radicais na geografia política do Médio Oriente persistirão - ou até que ponto persistirão - quando o atual conflito terminar. É provável que o Estado Islâmico acabe por ser destruído, tal é a pressão dos seus desunidos mas numerosos inimigos, ainda que os seus militantes continuem a ser uma força no Iraque, Síria e no resto do mundo islâmico. Os curdos encontram-se numa posição mais forte, beneficiando do apoio dos Estados Unidos, mas esse apoio só existe porque os curdos proporcionam cerca de 120.000 tropas terrestres, que, em cooperação com as forças aéreas da coligação liderada pelos Estados Unidos, demonstraram ser uma forma eficaz e politicamente aceitável de luta contra o EI. Os curdos temem que este apoio desapareça se e quando o EI for derrotado e receiam ficar à mercê dos governos centraisressurgidos no Iraque e na Síria, bem como da Turquia e Arábia Saudita. "Não queremos que nos utilizem como carne de canhão para tomar Raqqa", disse-me um líder curdo sírio em Rojava no ano passado. Ouvi o mesmo este mês a cerca de 805 quilómetros a este, no território do GRK, perto de Halabja na fronteira iraniana, de Muhammad Haji Mahmud, um comandante Peshmerga veterano e secretário geral do Partido Socialista, que liderou um milhar de combatentes na defesa de Kirkuk contra o EI em 2014. O seu filho Atta morreu na batalha. Preocupa-lhe que "uma vez que Mossul seja libertado e o EI derrotado, os curdos não tenham o mesmo valor a nível internacional". Sem este apoio, o GRK seria incapaz de manter-se nos territórios em disputa.

A expansão dos estados curdos não agrada nenhum dos países da região, ainda que alguns - incluindo os governos deBagdad e Damasco – considerem que este desenvolvimento os favorece temporariamente e, em todo caso, são demasiadodébeis para se oporem. No entanto, a Turquia ficou profundamente horrorizada ao descobrir que a revolta síria de 2011, que esperava que marcasse o início de uma era de grande influência turca em todo o Médio Oriente, produziu, em seu lugar, um estado curdo que controla metade do lado sírio da fronteira turca a sul (de 885 quilómetros). Pior ainda, o partido no poder em Rojava é o Partido da União Democrática (PYD), que é em tudo menos na designação, o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), contra o qual Ancara tem vindo a travar uma guerra de guerrilha desde 1984. O PYD nega a relação, mas em todos os escritórios do PYD há uma foto na parede do líder do PKK, Abdullah Ocalan, que está numa prisão turca desde 1999. No decurso do ano que se seguiu à derrota do EI no cerco da cidade sírio-curda de Kobani, Rojava expandiu-se territorialmente em todas as direções, com os seus líderes a ignorar constantemente as ameaças da Turquia deuma intervenção militar. Em junho passado, as Unidades de Proteção Popular (YPG) sírio-curdas tomaram Tal Abyad, um importante ponto de passagem na fronteira com a Turquia a norte de Raqqa, permitindo que o PYD unisse dois dos seus três enclaves principais, próximo das cidades de Kobani e Qamishli; agora está a tentar unir o terceiro enclave, mais a oeste, em Afrin. Estes avanços rápidos apenas são possíveis porque as forças curdas estão a operar sob a proteção aérea liderada pelos Estados Unidos, que multiplica massivamente o seu poder de fogo. Eu estava a este de Tal Abyad pouco antes do ataque final das YPG e os aviões da coligação passavam continuamente por cima. Tanto na Síria como no Iraque, os curdos identificam os alvos, chamam os ataques aéreos e depois atuam como uma 'força de limpeza'. Onde o EI resiste e combate, sofre muitas baixas. No cerco de Kobani, que durou quatro meses e meio, 2.200 combatentes do EI pereceram, a sua maioria pelos ataques aéreos dos Estados Unidos.

Ancara advertiu várias vezes que se os curdos se moverem para oeste na direção de Afrin, o exército turco intervirá. Em concreto, estipulou que as YPG não devem cruzar o Eufrates: esta é uma "linha vermelha" para a Turquia. Mas quando em dezembro as YPG enviaram as suas milícias árabes, as Forças Democráticas da Síria (SDF), através do Eufrates pela barragem de Tishrin, os turcos não fizeram nada - em parte porque o avanço foi apoiado em diferentes fases por ataques aéreos norte americanos e russos contra alvos do EI. As objeções turcas tornaram-se cada vez mais descontroladas desde o início do ano, na medida em que as YPG e o exército sírio, ainda que a sua colaboração ativa não tenha sido comprovada, puseram em marcha o equivalente a um movimento de pinçai contra as linhas de abastecimento mais importantes do EI e da oposição síria, que passam por um estreito corredor entre a fronteira turca e Aleppo, outrora a maior cidade síria. A 2 de fevereiro, o exército sírio, apoiado por ataques aéreos russos, cortou o principal caminho para Aleppo e uma semana mais tarde o SDF conquistou a base aérea de Menagh da célula da Al-Qaeda na Síria, a Frente al-Nusra, que a Turquia tem vindo a ser acusada de apoiar de forma encoberta no passado. A 14 de fevereiro, a artilharia turca começou a disparar projeteiscontra as forças que tinham capturado a base e a exigir a sua retirada. A complexa combinação de milícias, exércitos e grupos étnicos que lutam pelo controlo desta pequena mas vital área a norte de Aleppo faz com que os combates sejam confusos,mesmo para os padrões sírios. Mas se a oposição não tiver qualquer comunicação com a Turquia por algum tempo ficaráseriamente, se não fatalmente, debilitada. Os estados sunitas - concretamente a Turquia, Arábia Saudita e Qatar – fracassarão na sua longa campanha para derrotar Bashar al-Assad. A Turquia enfrentará a perspetiva de um pequeno Estado hostilcontrolado pelo PKK ao longo do seu flanco sul, o que torna mais difícil sufocar a insurreição de nível reduzido mas de longa duração dirigida pelo PKK entre a minoria curda de 17 milhões existente no país.

Diz-se que Erdogan queria que a Turquia interviesse militarmente na Síria desde maio do ano passado, mas até agora foi travado pelos comandantes do exército. Eles argumentam que a Turquia estaria a entrar numa guerra muito complicada, na qual se oporia aos EUA, Rússia, Irão, ao exército sírio, ao PYD e EI, enquanto os seus únicos aliados seriam a Arábia Saudita e algumas das monarquias do Golfo. A participação na guerra da Síria seria, sem dúvida, um grande risco para a Turquia, que, apesar de todas as suas estrondosas denúncias do PYD e das YPG como "terroristas", se limitou em grande parte a pequenos atos de retaliação vingativa. Ao turco Ersin Umut Güler, um ator e diretor curdo em Istambul, foi negada autorização para levarpara casa o corpo do seu irmão Aziz para ser enterrado, que tinha morrido a lutar contra o EI na Síria. Antes de pisar uma mina terrestre, Aziz tinha estado com as YPG, mas era um cidadão turco e pertencia a um partido radical socialista turco - nãoao PKK. 'É como Antígona,' diz Ersin. O seu pai viajou para a Síria e nega-se a regressar sem o corpo, mas as autoridades turcas não cedem.

A resposta da Turquia à ascensão de Rojava é beligerante no tom, mas ambivalente na prática. Num dia, um ministro ameaça com uma invasão terrestre em grande escala e, no seguinte, outro responsável descarta essa hipótese ou condiciona-a à participação dos Estados Unidos, o que é pouco provável. A Turquia culpou as YPG pelo ataque com um carro bomba em Ancara que matou 28 pessoas a 17 de fevereiro, o que poderia aumentar as hipóteses de intervenção, mas, nos últimos tempos, as ações turcas foram incoerentes e contraproducentes. Quando, a 24 de novembro, um F-16 turco derrubou umbombardeiro russo, no que parece ter sido um ataque cuidadosamente planeado, o resultado previsível foi o envio, por parte da Rússia, de aviões de combate sofisticados e de sistemas de mísseis anti aéreos para garantir a sua supremacia aérea sobre o norte da Síria. Isto significa que se a Turquia lançasse uma invasão por terra, teria de fazê-lo sem cobertura aérea eas suas tropas ver-se-iam expostas aos bombardeamentos dos aviões russos e sírios. Muitos líderes políticos curdos argumentam que uma invasão militar turca é pouco provável: Fuad Hussein, chefe de gabinete do presidente do GRK, disse-me em Erbil no mês passado que "se a Turquia fosse intervir, tê-lo-ia feito antes de derrubar o bombardeiro russo” - ainda que isto pressuponha, certamente, que a Turquia sabe atuar em defesa dos seus próprios interesses. Ele argumenta que o conflitoserá decidido por dois fatores: quem está a ganhar no campo de batalha e a cooperação entre os EUA e a Rússia. "Para solucionar a crise”, referiu, “terá de ser através de um acordo entre as super potências” - e, pelo menos no Médio Oriente, aRússia recuperou o status de super potência. A nova aliança flexível entre os EUA e a Rússia, ainda que interrompida porepisódios de rivalidade ao estilo da Guerra Fria, resultou num acordo em Munique a 12 de fevereiro no sentido de fazer chegar ajuda a povos e cidades sitiados da Síria e de um 'cessar de hostilidades' seguido por um cessar fogo mais formal. Será difícilalcançar uma inversão da escalada da crise, mas o facto de os EUA e a Rússia copresidirem ao grupo de trabalho que supervisiona este processo mostra até que ponto estão a substituir os poderes locais e regionais enquanto entidadesdecisoras na Síria.

Eles são, no final de contas, apenas Estados pequenos - o GRK tem uma população decerca de seis milhões e Rojava de 2,2 milhões - rodeados por outros Estados bem maiores. Eas suas economias mal sobrevivem. Rojava está bem organizada, mas bloqueada por todos os lados e não pode vender muito doseu petróleo. Setenta por cento dos edifícios em Kobani foram destruídos pelos bombardeamentos dos Estados Unidos. Apopulação fugiu de cidades como Hasakah que estão perto da linha da frente. Os problemas económicos do GRK são graves e provavelmente irresolutos a não ser que se registe um aumento inesperado do preço do petróleo. Há três anos, anunciava-se a si mesmo como 'o novo Dubai', um entreposto comercial e Estado petrolífero com rendimentos suficientes para ser independente de Bagdad. Quando o boom do petróleo atingiu o seu pico em 2013, os recém construídos hotéis de luxo em Erbil estavam cheios de delegações internacionais de comércio e homens de negócios. Hoje em dia, os hotéis e centros comerciais estão vazios e o Curdistão iraquiano está cheio de hotéis e edifícios de apartamentos que ficaram por construir. O fim do boom do GRK foi um golpe devastador para a população, sendo que muitas pessoas estão a tentar emigrar para a Europa Ocidental. Há orações frequentes nas mesquitas para recordar os que se afogaram no Egeu durante a travessia desdea Turquia até às ilhas gregas. Os rendimentos petrolíferos do Estado situam-se agora em cerca de 400 milhões de dólares ao mês; mas a despesa é de 1,1 mil milhões de dólares, pelo que parte dos 740.000 funcionários públicos não recebem o seu salário. Em desespero, o governo apropriou-se do dinheiro dos bancos. "A minha mãe foi ao seu banco, onde pensava que tinha 20.000 dólares”, contou-me Nazdar Ibrahim, uma economista da Universidade de Salahaddin em Erbil. "Disseram-lhe:'Não temos o dinheiro porque o governo requisitou-o'. Ninguém está a colocar o dinheiro no banco, o que está a destruir o sistema bancário”.

O GRK anunciou-se como um 'Iraque diferente' e, em alguns aspectos, é-o: é bem mais seguro para viver do que Bagdad ouBassorá. Apesar de Mossul não estar muito longe, registaram-se poucos ataques com bombas ou sequestros no Curdistãoiraquiano em comparação com o resto do país. Mas o GRK é um Estado petrolífero que depende totalmente dos rendimentos do petróleo. A região não produz quase mais nada: inclusive as verduras nos mercados são importadas da Turquia e Irão e os preços são altos. Nazdar Ibrahim disse que a roupa que poderia comprar na Turquia por 10 dólares custa três vezes mais aqui; ela assinalou que viver no Curdistão iraquiano é tão caro como viver na Noruega ou na Suíça. O presidente do GRK, Massoud Barzani, anunciou que vai celebrar um referendo sobre a independência curda, mas esta não é uma opção atraente num momento de ruína económica geral. Asos Hardi, editor de um jornal em Sulaymaniyah, diz que os protestos estão a estender-se e que, em todo caso, “inclusive no meio do boom, se podia notar a ira popular pelo clientelismo e a corrupção". OEstado curdo iraquiano - longe de se tornar mais independente - vê-se obrigado a olhar para os poderes externos, incluindopara Bagdad, para evitar um colapso económico maior.

Estão a ocorrer situações semelhantes noutras partes da região: as pessoas que conseguiram escapar de Mossul dizem que oCalifado está a ceder perante a pressão militar e económica. Os seus inimigos tomaram Sinjar, Ramadi e Tikrit no Iraque e as Unidades de Proteção Popular (YPG) e o exército sírio estão a avançar de novo na Síria e estão a aproximar-se de Raqqa. As forças terrestres que estão a atacar o EI – as YPG, o exército sírio, as forças armadas iraquianas e os Peshmerga - têmcontingentes reduzidos (na luta por Ramadi, a força de assalto militar iraquiana contava apenas com 500 homens), mas podem solicitar ataques aéreos devastadores a qualquer posição do EI. Desde que foi derrotado em Kobani, o EI evitou batalhas frontais e não lutou até o último homem para defender nenhuma das suas cidades, ainda que tenha considerado fazê-lo em Raqqa e Mossul. O Pentágono, o governo iraquiano e os curdos exageram o alcance das suas vitórias sobre o EI, mas este sofreu grandes perdas e está isolado do mundo exterior com a perda da sua última ligação com a Turquia. A infraestrutura administrativa e económica do Califado começa a ceder mediante a pressão dos bombardeamentos e o bloqueio. Esta é a impressão que transmitem as pessoas que abandonaram Mossul no início de fevereiro e se refugiaram em Rojava.

A sua viagem não foi fácil, já que o EI proíbe a população de sair do Califado – não quer um êxodo em massa. Os que escaparam informam que o EI se está a tornar mais violento na imposição de fatwas e regulamentos religiosos. Ahmad, um comerciante de 35 anos de idade, de al-Zuhour, em Mossul, onde é proprietário de uma pequena loja, informa que, “se alguém é acusado de se ter barbeado, são-lhe dadas trinta chicotadas, quando no ano passado tê-lo-iam simplesmente preso durante umas horas”. O tratamento das mulheres em particular piorou: “O EI faz questão que as mulheres usem véu, meias,luvas e roupa larga e, se não o fizerem, o homem que as acompanha será chicoteado”. Ahmad disse também que as condições de vida se deterioraram drasticamente e as ações dos membros do EI se tornaram mais arbitrárias: "Levaramalimentos sem pagar e confiscaram grande parte do meu stock com o pretexto de apoiar os milicianos do Estado islâmico. Tudo é caro e as lojas estão meio vazias. Os mercados estavam cheios de gente há num ano, o que não aconteceu nos últimos dez meses, porque muitas pessoas fugiram e as que ficaram estão no desemprego". Não existe rede elétrica há sete meses e todos dependem dos geradores privados que funcionam com combustível refinado localmente. Este está disponível em todo lado, mas é caro e o combustível é de tão má qualidade que só funciona nos geradores e não nos automóveis - e os geradores avariam-se com frequência. Há escassez de água potável. "A cada dez dias, há água durante duas horas," disse Ahmad. “A água que sai das torneiras não é limpa, mas temos de a beber". Não há rede de telefone móvel e a Internet só está disponível em alguns cyber-cafés que são vigiados de perto pelas autoridades. Há sinais de crescente criminalidade e corrupção, embora esta possa ser sobretudo uma evidência de que o EI está a necessitar desesperadamente de dinheiro. Quando Ahmad decidiu fugir contactou com um dos muitos contrabandistas que operam na zona situada entre Mossul e a fronteira síria. Ele assinalou que o custo cobrado a cada pessoa pela viagem até Rojava fixa-se entre 400 e 500 dólares. “Muitos dos contrabandistas são homens do EI”, referiu, mas não sabia se os líderes da organização sabiam o que estava aacontecer. Eles têm conhecimento, sem dúvida, das crescentes queixas sobre as condições de vida, já que citaram um hadith(palavras do Profeta) contra tais queixas. Aqueles que violem o hadith são detidos e enviados para reeducação. A conclusão de Ahmad: "Os ditadores tornam-se muito violentos quando sentem que o seu fim se aproxima”.

Até que ponto está correta a previsão de Ahmad de que o Califado está nos seus últimos dias? Está certamente a debilitar-se, mas isso acontece essencialmente porque a guerra se tem vindo a internacionalizar desde 2014 com a intervenção militar dos EUA e da Rússia. Os poderes locais e regionais contam agora menos. Os exércitos do Iraque e da Síria, as YPG e os peshmerga podem conquistar vitórias ao EI graças ao apoio aéreo massivo. Podem ganhar a batalha e, provavelmente, podem reconquistar as cidades ainda sob o controlo do EI, mas nenhum deles seria capaz de atingir plenamente os seus objectivos de guerra sem o respaldo contínuo de uma grande potência. No entanto, uma vez que o Califado seja derrubado, os governos centrais em Bagdad e Damasco poderão tonar-se mais fortes novamente. Os curdos perguntam-se se correm o risco de perder tudo o que conseguiram conquistar até agora na guerra contra o Estado Islâmico.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...