6 de agosto de 2015

O massacre de Hiroshima

Há setenta anos atrás, em um dia como hoje, os EUA lançaram uma bomba atômica em Hiroshima, no Japão. Aqui está a história de um sobrevivente.

Colin Wilson

Jacobin

Foto de Paul Popper

Tradução / Quando eu visitei Hiroshima, em 2003, o que inicialmente me marcou foi a aparente normalidade do lugar – parecia uma cidade japonesa agitada como qualquer outra. Ela é e não é.

Um tram me levou da estação de trem até o Pace Park, construído sobre o rio a partir das ruínas que podem ser vistas em muitas fotos históricas. Me sentei sob as árvores, alguns estudantes japoneses perguntaram minha opinião sobre armas atômicas para uma pesquisa escolar. Ao caminhar pelo parque é possível percorrer um morro coberto com grama de dois ou três metros de altura que contem as cinzas inidentificáveis de por volta de 70 mil seres humanos. Para chegar ao parque, se caminha por uma ponte em um inusitado formato T, que foi o ponto de ataque da primeira bomba atômica, Little Boy, jogada naquela manhã ensolarada de 1945.

Hiromu Morishta tinha 73 anos quando eu o entrevistei, e 14 no dia do bombardeio, era um patriótico estudante do ensino fundamental. Ele e seus colegas acreditavam nas declarações do alto comando militar de que o Japão estava ganhando a guerra, mesmo que ninguém tivesse o suficiente para comer. Sua mãe, faminta ela mesma para poder dar de comer aos filhos, era mais cética. Os estudantes não frequentavam mais a escola para trabalhar em fábricas produzindo armas e componentes de aviões.

Hiromu e seus amigos estavam iludidos que Hiroshima não seria bombardeada, já que era um importante centro militar. As cidades japonesas naquela época eram construídas basicamente usando madeira, o que as tornava mais vulneráveis ao fogo. Em dois dias, em março de 1945, os americanos haviam jogado 2 mil toneladas de bombas incendiárias em Tóquio, 125 mil pessoas haviam morrido na pior tempestade de fogo já registrada na história.

Cientes dos riscos de Hiroshima, as autoridades mobilizaram jovens para derrubar edifícios, criando zonas vazias que pudessem impedir o alastramento do fogo. Por volta das 8h15 da manhã do dia 6 de agosto, alguns desses trabalhavam nisto, despidos das camisetas e shorts para suportar o calor do verão.

Hiromu e 70 de seus colegas estavam ainda recebendo instruções de seus professores quando – ele me contou – “sentimos, de repente, uma luz, um flash. Eu senti como se tivesse sido jogado em uma grande fornalha de fogo. Nós caímos no chão, nossos corpos queimando no rosto, mãos e pernas. As roupas foram queimadas também”. Posteriormente, eles perceberam que haviam sobrevivido porque ainda estavam completamente vestidos – 60% dos 600 ou 700 estudantes na área morreram.

Hiromu Morishta entrou, então, em um mundo vívido, fragmentado e incompreensível como um pesadelo. “Eu pulei no rio por causa das dores das queimaduras. No rio eu encontrei um colega. Ele pediu para que eu lhe dissesse como estava seu rosto. Eu disse que seu rosto estava queimado, a pele havia caído como cera derretida. Tive muito medo de perguntar o que acontecera com o meu rosto, mas meu rosto estava igualzinho ao dele”.

Toda a cidade havia sido destruída, e agora estava começando a queimar, mas ele não conseguia entender como aquilo era possível. Se sentia totalmente descolado do que via: “Eu não senti nada – Eu vi o estado da cidade, as casas, meus olhos se tornaram como lentes de uma câmera, sem nenhum sentimento. Fomos jogados em outro mundo”.

Era o mundo dos horrores.

“Eu conheci alguns jovens. Eles usavam uniformes, mas toda sua pele descamava, eles eram como fantasmas. Eu queria voltar para a minha casa. Eu andei até a estação Hiroshima. Eu vi muitas pessoas que haviam morrido: muitas pessoas haviam pulado no rio, seus corpos estavam queimados e eles estavam inchados, duas vezes o tamanho normal. Eram tantos. Me senti no inferno.”

As pessoas não sabiam se apenas uma bomba seria jogada: elas achavam que viriam mais.

Hiromu Morishta começou a procurar pela casa onde morava com seus pais e irmã. Ele andou devagar pelo trilho do trem, sua pele queimada despencando do corpo, seu rosto tão inchado que ele apenas podia ver através de um olho. Ao final da tarde, ele chegou onde sua casa costumava ser, mas não pode encontra-la. Depois ele soube que ela havia queimado e desabado, que sua mãe havia morrido dentro dela e que seu pai e irmã se salvaram.

Ao lembrar que alguns dos amigos de seu pai viviam ao norte, fora da cidade, ele começou a caminhar nesta direção. Por volta da meia noite desabou em um campo, mas vizinhos o encontraram e o levaram ao seu destino. Seriamente doente, ele agora entrou em outro pesadelo, o mundo desconhecido das doenças radioativas.

“Aquela noite eu perdi a consciência. Eu tinha uma febre alta. Fiquei doente de cama por volta de um mês. Todos os dias saia pus das minhas feridas. Eu chorava todos os dias e noites. A radiação não havia me afetado muito. Minha tia me visitada enquanto eu estava de cama. Ela parecia saudável, não estava ferida nem queimada. Contudo, 10 dias depois, ela morreu e uma espuma preta saia de sua boca. Ela estava perto da bomba quando ela explodiu.”

Depois de um mês, suas feridas estavam quase todas curadas, ainda que – como muitos sobreviventes – ele tivesse cicatrizes de queloide (elásticas, que coçavam, e com a pele vermelha e deformada que se formava sobre as piores queimaduras). Os médicos japoneses não sabiam como tratar queloides, quando removidas elas voltavam a se formar.

“Eu fiz duas cirurgias para queloides: uma na primavera e outra no verão”, Hiromu disse. “Eles cortaram fora o queloide e enxertaram pele da minha coxa no meu rosto, próximo à minha boca. Na seguinte eles cortaram em meu pescoço, mas não o suficiente, então a pele permaneceu com uma cor diferente e coçava”. Ele era um adolescente e sentia medo que as garotas não o achassem atraente por causa da aparência.

Hiromu permaneceu no interior por seis meses com seus amigos e sua avó – ainda havia suprimentos de comida nas cidades. Na primavera seguinte, ele voltou à Horishima para continuar a estudar, e descobriu que por volta de metade de seus colegas havia morrido no bombardeio. Havia tensões com os americanos que ocupavam a cidade: “o exército americano veio para Hiroshima e região em jipes – muitos soldados. Alguns amigos, quando a bomba atômica foi jogada, queriam atacar os americanos.”

Um ponto de conflito foi a Atomic Bomb Casualty Commission, estabelecida pelos americanos em 1946 para pesquisar os efeitos da bomba nos sobrevientes – mas não para trata-los. “Nós achávamos que eles deveriam tratar os sobreviventes. Nós os odiávamos”. Os americanos também censuraram a imprensa japonesa. “Geralmente, você não podia escrever sobre a bomba, ainda que algumas pessoas tentassem”. Os americanos queriam produzir outra bomba atômica, de hidrogênio. Então eles precisavam manter a informação secreta sobre os sobreviventes e os feitos destrutivos da bomba atômica.”

Com o tempo, Hiromu começou a perceber que pesquisar os efeitos da bomba poderia ser útil, e que a coisa mais importante era evitar outra guerra no futuro. “Eu sentia que muitas pessoas haviam sido assassinadas e muito havia sido destruído e queimado, tudo havia chegado ao fim. Eu acreditava que talvez as pessoas no mundo não guerreariam mais”.

Apesar disso, cinco anos depois do bombardeio, os Estados Unidos e a União Soviética iniciaram uma guerra por procuração na Coreia. “Quando a guerra da Coreia aconteceu, muitos tanques e bombas foram trazidos ao Japão. Todos os dias era possível ve-los nos trilhos do trem. Nós nos sentíamos muito próximos da Coreia. Nós éramos estudantes, e organizamos atos de protestos contra isso”

Hiromu se tornou um professor da arte caligráfica japonesa tradicional, um sindicalista e um ativista contra a guerra.

“Nós pensávamos – somos professores, precisamos ensinar a próxima geração os fatos sobre a bomba atômica. Eu visitei muitos países – como sobrevivente, como parte do movimento pela paz, ou com outros membros de sindicatos. Eu fui convidado para falar na Índia e China em sindicatos de professores sobre minha experiência. Agora a China, Paquistão, e Índia tem armas nucleares, e o Iraque e a Coreia do Norte querem essas armas. Mas os americanos tem a maior parte das armas nucleares: eles deveriam abandoná-las, antes de mais nada. Vou protestar contra as armas nucleares até morrer.”

Basta colocar a demanda que os Estados Unidos abandonem suas bombas atômicas para ver o quão longe a democracia e a justiça estão da realidade do poder militar americano. A realidade, em 1945, significava terríveis estragos para um garoto japonês de 14 anos e muitos outros como ele. Nossos governantes, liderados pelos Estados Unidos, continuarão a se manter no poder torturando e assassinando crianças a menos, e até que, nós possamos impedi-los.

Sobre o autor

Colin Wilson é um ativista LGBT e membro da rs21 em Londres.

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