9 de julho de 2015

Mas pelo menos o capitalismo é livre e democrático, certo?

Pode parecer assim, mas a verdadeira liberdade e democracia não são compatíveis com o capitalismo.

Erik Olin Wright

Members of the International Ladies' Garment Workers' Union stand in the cold holding strike placards protesting unfair labor practices by the Ottenheimer company (date unknown). Kheel Center / Flickr

Este artigo faz parte do livreto da Jacobin The ABCs of Socialism. Você pode ler o restante dos artigos do livreto aqui.

Tradução / Nos Estados Unidos, muitos tomam como certo que liberdade e democracia estão inseparavelmente conectadas com capitalismo. Milton Friedman, em seu livro “Capitalismo e Liberdade”, chegou a defender que o capitalismo era uma condição necessária para ambos.

É certamente verdade que a aparição e a propagação do capitalismo trouxe consigo uma tremenda expansão das liberdades individuais e, eventualmente, de lutas populares por formas mais democráticas de organização política. Sendo assim, a afirmação de que o capitalismo obstrui fundamentalmente tanto a liberdade quanto a democracia vai soar estranha para muitos.

Dizer que o capitalismo restringe o florescimento desses valores não é argumentar que o capitalismo tem corrido contra a liberdade e a democracia em cada circunstância. Em vez disso, significa que através do funcionamento de seus processos mais básicos, o capitalismo gera uma deficiência severa de liberdade e democracia que ele nunca pode remediar. O capitalismo promoveu o aparecimento de certas formas limitadas de liberdade e democracia, mas impôs um teto baixo impedindo novas realizações para elas.

No centro destes valores está a auto-determinação: a crença de que as pessoas deveriam ser capazes de decidir as condições de suas próprias vidas o máximo possível. Quando uma ação de uma pessoa afeta apenas aquela pessoa, então ele ou ela deve ser capaz de se envolver nessa atividade sem pedir permissão de ninguém mais. Este é o contexto da liberdade. Mas quando uma ação afeta as vidas de outros, então estas outras pessoas devem ter voz nessa atividade também. Este é o contexto da democracia. Em ambos, a preocupação suprema é que as pessoas mantenham tanto controle quanto for possível sobre as formas que suas vidas vão tomar.

Na prática, virtualmente cada escolha que uma pessoa faz vai ter algum efeito em outras. É impossível todo mundo contribuir com cada decisão que diz respeito a eles, e qualquer sistema social que insistisse em uma participação democrática tão abrangente iria impor um fardo insuportável sobre as pessoas. O que nós precisamos, portanto, é de um conjunto de regras para distinguir entre as questões da liberdade e aquelas da democracia. Em nossa sociedade, tal distinção é normalmente feita com referência aos limites entre as esferas privada e pública.

Não há nada natural ou espontâneo sobre essa linha entre o privado e o público; ela é forjada e mantida por processos sociais. As tarefas ocasionadas por esses processos são complexas e muitas vezes contraditórias. O Estado reforça vigorosamente alguns limites entre o público e o privado, e deixa outros para serem acolhidos ou dissolvidos como normas sociais. Muitas vezes o limite entre público e privado permanece vago. Em uma sociedade completamente democrática, o limite em si seria objeto de deliberação democrática.

O capitalismo constrói a fronteira entre as esferas pública e privada de um jeito que restringe a realização da verdadeira liberdade individual e reduz o escopo de uma democracia significativa. Há cinco caminhos em que isso fica claro de imediato.

1. “Trabalhe ou morra de fome” não é liberdade

O Capitalismo se baseia na acumulação privada de riqueza e na busca de renda através do mercado. As desigualdades econômicas que resultam dessas atividades “privadas” são intrínsecas ao capitalismo e criam desigualdades no que o filósofo Philippe van Parijs chama de “liberdade real.”

Independente do que mais a gente queira dizer com “liberdade”, ela precisa incluir a capacidade de dizer “não”. Uma pessoa rica pode decidir livremente por não trabalhar em troca de um salário; uma pessoa pobre sem meios de subsistência independentes não pode fazer o mesmo tão facilmente.

Mas o valor da liberdade vai além disso. É também a capacidade de agir positivamente nos planos de vida de alguém – escolher não só a resposta, mas a pergunta também.

Os filhos de pais ricos podem entrar em estágios não-remunerados, apenas para progredir com suas carreiras; os filhos de pais pobres não podem.

O capitalismo priva muita gente de liberdade real nesse sentido. A miséria em meio a abundância existe por causa de uma equação direta entre recursos materiais e os recursos necessários para auto-determinação.

2. Os capitalistas decidem

A maneira em que a fronteira entre as esferas pública e privada é desenhada no capitalismo exclui decisões cruciais, que afetam quantidades enorme de pessoas, do controle democrático. Talvez o direito mais fundamental que acompanha a propriedade privada de capital seja o direito a decidir investir e desinvestir estritamente baseado em seu auto-interesse.

A decisão de uma corporação de mover sua produção de um local para outro é um assunto privado, apesar de ter um impacto radical nas vidas de todo mundo em ambos os lugares. Mesmo se alguém defender que essa concentração de poder em mãos privadas é necessária para a alocação eficiente de recursos, a exclusão desse tipo de decisão de controles democráticas dizima, sem nenhuma dúvida, a capacidade de auto-determinação de todos, exceto de proprietários de capital.

3. Das oito às cinco é tirania

As empresas capitalistas tem a permissão para serem organizadas como ditaduras no ambiente de trabalho. Um componente essencial do poder de um proprietário de um negócio é o direito de dizer aos empregados o que fazer. Essa é a base do contrato de trabalho: quem procura o emprego concorda em seguir as ordens do empregador em troca de um salário. É claro, um empregador também é livre para garantir aos trabalhadores uma autonomia considerável, e em algumas situações esta é a forma de organizar o trabalho que maximiza os lucros. Mas tal autonomia é dada ou negada ao bel prazer do dono. Nenhum conceito robusto de auto-determinação permitiria que a autonomia dependesse das preferências de elites.

Um defensor do capitalismo poderia responder que um trabalhador que não gosta do comando do chefe pode sempre se demitir. Mas como por definição falta aos trabalhadores meios independentes de subsistência, se eles se demitirem terão de procurar por um novo emprego e, na medida que os empregos disponíveis estão em firmas capitalistas, eles ainda serão objeto das ordens de um chefe.

4. Os governos tem de estar à serviço dos interesses de capitalistas privados

O controle privado sobre as principais decisões de investimento cria uma pressão constante sobre as autoridades públicas para ordenar leis favoráveis aos interesses dos capitalistas. A ameaça do desinvestimento e da mobilidade do capital está sempre no pano de fundo de discussões de políticas públicas, e assim os políticos, não importa a orientação ideológica, são forçados a se preocupar em sustentar um “bom clima para os negócios.”

Valores democráticos são vazios enquanto uma classe de cidadãos tem prioridade sobre todos os demais.

5. As elites controlam o sistema político

Finalmente, as pessoas ricas tem um maior acesso do que os outros ao poder político. Esse é o caso em todas as democracias capitalistas, mesmo que a desigualdade de poder político baseada na riqueza seja muito maior em alguns países do que em outros.

Os mecanismos específicos para esse acesso mais fácil são muito variados: contribuições para campanhas políticas; financiamento de esforços de lobby; contatos sociais na elite de varios tipos; e subornos abertos e outras formas de corrupção.

Nos Estados Unidos não são apenas indivíduos ricos, mas também corporações capitalistas, que não encontram nenhuma restrição significativa em sua capacidade de usar recursos privados para propósitos políticos. Este acesso diferencial ao poder político esvazia o princípio mais básico de Democracia.

Estas consequências são endêmicas ao Capitalismo como um sistema econômico. Isso não significa que elas não possam às vezes serem mitigadas em sociedades capitalistas. Em diferentes tempos e lugares, muitas políticas foram construídas para compensar pela deformação da Liberdade e da Democracia sob o Capitalismo.

Restrições públicas podem ser impostas sobre o investimento privado de forma a enfraquecer o rígido limite entre público e privado; um forte setor público e formas ativas de investimento estatal podem diminuir a ameaça da mobilidade de Capital; restrições no uso de riqueza privada em eleições e o financiamento público de campanhas políticas podem reduzir o acesso privilegiado dos ricos ao poder político; leis trabalhistas podem fortalecer o poder político coletivo dos trabalhadores tanto na arena política quanto no espaço de trabalho; e uma ampla variedade de políticas de Bem-Estar Social podem aumentar a Liberdade verdadeira daqueles sem acesso a riqueza privada.

Quando as condições políticas são as certas, os aspectos anti-democráticos e de embaraço à Liberdade do Capitalismo podem ser aliviados, mas não podem ser eliminados. Domar o Capitalismo desta forma tem sido o objetivo central das políticas defendidas por socialistas dentro de economias capitalistas mundo à fora.

Mas se a liberdade e a democracia devem ser realizadas por completo, o capitalismo não deve ser meramente domado. Ele precisa ser superado.

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