16 de julho de 2015

Em Mykonos

Alexander Clapp

London Review of Books


Tradução / O hotel onde eu trabalhei se chamava Grace. Era um prédio de alvenaria caiada com 32 quartos. A diária da maioria deles saía por centenas de euros – mais ou menos o quanto cada um dos funcionários ganhava por mês. Os quartos mais baratos ficavam no nível da rua. Um casal francês enfurecido certa vez enviou um vídeo para o TripAdvisor, mostrando todos os caminhões que passavam ruidosamente diante da janela deles ao longo de uma tarde. Os quartos do 1º andar tinham jacuzzis externas. “Não é para ficar de olho apenas nas rolhas”, disse o gerente em meu primeiro dia de trabalho, enquanto, solene, me entregava uma redinha de aquário. Seu nome era Kostas, e ele se movia em meio a uma nuvem de água de colônia. “É preciso remover também os líquidos estranhos.” No 2º andar ficava um restaurante, uma piscina e uma biblioteca cheia de edições de bolso caquéticas e de exemplares do Herald Tribune. No bar, servíamos o coquetel Grace: um Martini com vodca cor-de-rosa que tinha cheiro de detergente. A suíte nupcial de luxo tomava o 3º andar inteiro. As ordens eram para que nunca pegássemos o elevador.

A gerência do Grace achava melhor que seus funcionários mostrassem tharros – “coragem” –, atacando os lances de escada carregados de malas e chegando ofegantes ao quarto do hóspede.

Nós, os serviçais hilotas do Grace, éramos uma população flutuante. Basil, um macedônio, dirigia a van do hotel. Dejan, búlgaro, fatiava legumes e verduras numa cozinha que também servia de fumódromo para os empregados. Os dois dividiam um quarto em nossos apartamentos comunitários no alto da colina onde ficava o hotel. Surrupiados da cozinha, doces comidos pela metade se misturavam ao gotejar do ar-condicionado no quarto de concreto aparente dos dois. Dejan dizia que, para ele, o Grace era apenas uma porta de entrada para o mundo corporativo. Assim que notassem o seu talento cortando verduras e servindo sorvete, os donos do Grace saberiam do seu potencial e lhe ofereceriam um posto de trabalho em um de seus navios, quem sabe até uma vaga no escritório em Londres. Basil era mais contido e caladão. Parecia ter negócios próprios em Mykonos, fora do hotel.

Radu, o barista, era nosso artista residente. Tinha chegado de carona a Tessalônica, depois de desertar do Exército romeno quando Ceaușescu caiu. Mandou tatuar uma estrela preta no pescoço quando conseguiu seu primeiro emprego de verão num resort em Creta. Já tinha trabalhado para uma meia dúzia de hotéis nas ilhas do mar Egeu. Radu era capaz de, só pelo cheiro dos grãos de café, dizer de que continente eles tinham vindo. Sabia desenhar um sol (o símbolo do Grace) no cappuccino com a espuma do leite. Mas não podia voltar para Bucareste. Passava o resto do ano em Corfu, onde tinha uma mulher grega e gastava todo o dinheiro das gorjetas do verão em acessórios para o seu cortador de grama vermelho-vivo.

Os empregados “especializados” do Grace – qualquer pessoa cujo serviço incluía falar – eram gregos. Aris, o recepcionista da noite, estava ali fazia seis anos. No inverno, trabalhava como recepcionista no hotel Evripides de Atenas. Sua pele era de um cinza lunar. “Demitam o Drácula”, um hóspede escreveu certa vez num formulário de sugestões que vi na mesa de Kostas.


Durante todo o mês de junho, eu fui designado para o esquadrão de camareiras albanesas que trocava a roupa de cama e limpava os quartos. Nós entrávamos nos cômodos munidos de cestos de material de limpeza. Duas das camareiras arrancavam os lençóis da cama, enquanto outra disparava para o banheiro, levando desinfetante e esfregão. Outra, ainda, regava as plantas e ajeitava os vestidos e paletós esportivos no guarda-roupa. Eu reabastecia o minibar, substituía os frascos vazios de xampu e seguia depois para a jacuzzi, com a minha redinha. Ao fim, a chefe das arrumadeiras, uma senhora grega que chamávamos de kuria (“madame”), inspecionava o trabalho. “Cama! Banheiro! Jacuzzi!” – a caneta de madame serpenteava pela prancheta de anotações. “Próximo!” Saíamos numa coluna de seis pessoas. Cada quarto nos tomava cerca de dez minutos; todos os 32, quatro horas; quando terminávamos, muitos dos hóspedes, com suas respectivas queimaduras, já tinham voltado para o hotel, vindos da praia.

A maioria dos clientes do Grace vinha da outra Europa. Depois de um tempo, eu era capaz de reconhecer a origem deles pela bagagem. Os britânicos usavam sacolas de lona ou couro. Franceses e alemães gostavam de malas retangulares de fibra de vidro, difíceis de carregar, mas fáceis de empilhar. Os americanos chegavam com grandes malas com rodinhas; um dia apareceu uma família do Arizona com tacos de golfe balançando num carrinho estampado com a bandeira americana. “Como assim não tem nenhum campo de golfe em Mykonos?” Não devíamos nunca nos dirigir aos hóspedes, a não ser para demonstrar philoxenia – “hospitalidade”. É claro que falávamos com eles sempre que podíamos. De tempos em tempos, Radu se gabava de ter seduzido a esposa de alguém. “A estrela deixa elas loucas!” Depois de levar escada acima as malas de Walter Robb, CEO da Whole Foods, recebi um convite para trabalhar como empacotador num mercado do Oregon.

Muitos dos hóspedes vinham em grandes excursões pseudoclássicas. Chegavam em balsas gigantescas, cheias de carros, chamadas Ithaki ou Prometheus. Ao descerem na frente do hotel, eles nos encontravam vestindo camisas de linho largas e engomadas, que imitavam as togas da Antiguidade. Era o que nós vestíamos enquanto esfregávamos o chão e limpávamos as manchas de água das taças de champanhe. Christina, na recepção, fretava os barcos para Delos, “terra natal de Apolo”, ou organizava passeios de mergulho em locais de antigos naufrágios. Cartões de boas-vindas incluíam pequenas curiosidades falsificadas, como: Os gregos antigos veneravam o sol. O bufê do nosso café da manhã era um verdadeiro catálogo de itens básicos devidamente exotizados: “mel das colinas da Trácia”, “pistache de Egina”. Quase tudo tinha sido comprado por Basil no Carrefour do porto de Mykonos.

Nossa equipe de funcionários só se reuniu uma única vez. Foi num dia do final de junho, quando o diretor executivo veio de Londres para falar conosco. Fomos instruídos a vestir nossas togas e nos dirigir em fila para uma suíte desocupada. Até mesmo Aris, o recepcionista da noite, apareceu. O diretor falou em inglês, que era traduzido para o grego e depois para as demais línguas faladas pelos membros da equipe. “O Grace vai esmagar o Cavo Tagoo”, disse o diretor, apertando o punho fechado na palma da outra mão. O Cavo Tagoo era o hotel concorrente, na outra ponta da baía onde ficava o Grace. Todos os quartos do Tagoo tinham uma jacuzzi privativa. “E qual é nosso diferencial? São vocês, a equipe do Grace, os melhores profissionais de hotelaria de toda a Mykonos.” Não era bem o que parecia. Num hotel abandonado, situado mais adiante em nossa rua, nos encontrávamos com os funcionários do Tagoo e de seus rivais. “Eles fazem a gente vestir toga”, eu disse. “Tente servir um brunch calçando sandálias de gladiador”, um dos garçons do Tagoo retrucou.


Em agosto, Condoleezza Rice passou uma noite no Grace. Com semanas de antecedência, fui convocado ao escritório de Kosta. Pediram minha opinião sobre a hóspede. “Pode ser que ela queira beber Dr Pepper”, eu disse. Uma caixa com seis latinhas foi despachada de Atenas. Achamos melhor não entregar o exemplar do Herald Tribune no quarto dela de manhã: o Estado Islâmico vinha conseguindo vitórias importantes. A equipe estava ansiosa com a visita, embora poucos soubessem exatamente o que Condoleezza Rice fazia. As camareiras albanesas quiseram saber que guerras ela tinha começado. Na manhã da chegada, aperfeiçoamos a cerimônia de boas-vindas. Leões de chácara locais foram contratados para fazer a segurança; uma família saudita foi transferida do andar em que ela se hospedaria. No final da tarde, Condi desembarcou de um SUV preto. Estendi uma taça de champanhe de cortesia para ela e levei suas malas para o 3º andar. O pandemônio seguiu reinando em nossa equipe no dia seguinte, no café da manhã. Os cozinheiros prepararam uma variedade de salsichas, tortas e ovos. Vestiram os aventais, puseram seus chapéus de mestre-cuca e, em desfile, transportaram o bufê até a mesa dela, ao lado da piscina. Condi se serviu de alguns pedaços de torrada sem manteiga, depois foi embora.

Já se disse que minas de carvão davam boas escolas de insurreição social. A dois mil e quatrocentos metros debaixo da terra, sem nenhuma supervisão ou vigilância, os mineiros podiam dizer o que pensavam, tomar decisões coletivas e usar as muitas horas que tinham – às vezes dias – para conspirar. É razoável pensar que talvez os hotéis sejam ainda melhores. Num hotel, todas as vulnerabilidades dos que têm mais dinheiro que nós se apresentam por inteiro a nossos olhos: o sofá desarrumado em que dormiu o cônjuge que abandonou a cama, os remédios enfileirados ao lado da escova de dentes, a choradeira atrás da porta, a bagunça humana espalhada pelo quarto. E por toda parte a fagulha capaz de incendiar ressentimentos. Ho Chi Minh não era membro da equipe do Ritz de Paris quando sua petição pela independência do Vietnã foi ignorada por Woodrow Wilson em Versalhes?

A instituição a ser tomada em Mykonos, já existente paralelamente ao Estado, não era a Igreja nem as Forças Armadas: eram os hotéis. Radu calculou que a ilha abrigava 7 mil empregados do setor hoteleiro. A estação de rádio local – Venus 99.3 – podia ser ocupada por uns poucos cozinheiros com frigideiras na mão. Uma vez transmitido o chamado às armas, a mobilização dos funcionários da hotelaria poderia começar. Recepcionistas, conhecedores do território, rapidamente seriam capazes de desmantelar todo o aparato do poder estatal: os botes salva-vidas presos às docas, as cabanas que abrigavam a polícia da ilha, as barracas de primeiros socorros nas praias. O resgate que as camareiras exigiriam para libertar os hóspedes, tomados como reféns em seus quartos, financiaria o movimento. Nossos companheiros e nossas companheiras do Tagoo poderiam se juntar a nós na escalada do monte Profitis Ilias, onde hastearíamos a bandeira da República Popular dos Profissionais de Hotelaria. Não era o tipo de coisa que o Syriza tinha em mente, mas eles hesitariam antes de decidir nos esmagar. Era mais fácil ter esse tipo de fantasia antes que o resto da Europa tivesse vindo esmagar a Grécia toda. Tudo parecia menos uma questão de possibilidade do que de vontade. Muitos de nós não desprezávamos suficientemente nossos hóspedes, e muitos deles eram pessoas bacanas. Gente muito legal. Sua superioridade, e a simpatia que emanava dela, era a ordem natural das coisas. Eu entendi que havia algo de preocupante quando me vi apreciando os pequenos prazeres derivados desse nosso ângulo de visão do mundo, igual ao das baratas.

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