25 de dezembro de 2014

A trégua natalina

Há cem anos, os soldados largaram as armas e resistiram à guerra.

Rory Fanning

Jacobin

Partida de futebol do Dia do Armistício no Dale Barracks entre soldados alemães e os Royal Welsh Fusiliers para lembrar a famosa trégua do Dia de Natal entre a Alemanha e a Grã-Bretanha.

Há 100 anos, sob a luz fresca do amanhecer, soldados alemães e aliados estavam abrigados em suas trincheiras opostas na Frente Ocidental, na Bélgica e na França, quando desafiaram seus superiores a declarar uma trégua.

Ao largarem suas armas, eles assustaram os responsáveis pela guerra em todo o mundo, proporcionando um vislumbre do poder que as pessoas sem posição e privilégio têm para determinar seus próprios destinos.

Era apenas o quinto mês do que na época era conhecido simplesmente como a Grande Guerra. Ambos os lados ansiavam por voltar para casa. Os homens sentiam a morte se aproximando das trincheiras, onde viam seus amigos morrerem. Os soldados empunhavam armas monstruosas: lança-chamas, gás clorídrico e mostarda, metralhadoras que podiam disparar 500 tiros por minuto. Mais de um milhão de pessoas já foram mortas.

Mas na véspera de Natal de 1914, uma cena incrível começou a se desenrolar. Os sons tênues de canções de natal vinham das trincheiras lamacentas, meio congeladas e salpicadas de sangue que os soldados britânicos e alemães estavam ocupando naquela noite. “Tudo está calmo, tudo está claro”, foi cantado em inglês e alemão. Os soldados se abraçaram às copas cortadas dos pinheiros, que estavam ornamentados com velas e lanternas de papel. Luzes de papel enfeitavam a artilharia pesada, as caixas de munição, os engradados de ração alimentar e as vigas de madeira que mantinham as paredes das trincheiras no lugar.

"Merry Christmas" foi gritado em um sotaque alemão. Em seguida, "Frohe Weihnachten" foi gritado em um sotaque escocês. As trincheiras opostas estavam tão próximas que as palavras podiam ser ouvidas facilmente. Árvores iluminadas começaram a se erguer sobre a borda dos sulcos alemães. Os soldados britânicos observaram através de seus periscópios.

Os rumores de uma trégua de Natal estavam circulando há semanas. Será que era isso mesmo? Ou seria uma armadilha? Os soldados examinaram seus equipamentos militares e refletiram sobre o próximo passo. Uma mistura igual de alegria e suspeita encheu os abrigos subterrâneos.

Esses homens estavam lutando em uma guerra que não servia a nenhum deles. Era uma guerra imperialista, uma guerra entre as nações mais poderosas do mundo para redividir o mundo, uma guerra para garantir a cobrança de dívidas bancárias. Eles sabiam que era apenas uma questão de tempo até que eles também tivessem o mesmo destino de tantos outros que já haviam perdido suas vidas.

Para que tudo isso? Para os ricos continuarem ricos? Em suas mentes, os soldados podiam ver seus entes queridos, seus pais, seus filhos, seus irmãos e irmãs, escondidos em casas aconchegantes, ao lado de suas próprias árvores de Natal. As fileiras alistadas não podiam lutar nessas condições. Portanto, não lutaram.


O sol nasceu e um soldado alemão se retirou de sua trincheira encharcada de morte. Os franco-atiradores britânicos espiaram através de suas câmeras. Ele não estava carregando nenhuma arma. Em seguida, outro soldado alemão emergiu, e mais outro. Eles também estavam sem armas. Soldados prontos para o gatilho, endurecidos por meses de luta, sentiram uma onda de excitação percorrê-los quando baixaram seus rifles.

Os soldados britânicos saíram de suas trincheiras em seguida. Ambos os lados passaram por cima dos corpos dos companheiros caídos, que estavam rígidos na lama fria e cobertos por uma camada de geada matinal. Os soldados se encontraram no meio do campo de batalha – terra de ninguém – ainda um pouco ansiosos, mas sorridentes.

Olhando nos olhos, eles apertaram as mãos e compartilharam fotos de seus entes queridos em casa. Trocaram pequenos presentes: cigarros, sobremesas militares, botões de casaco. Eles reconheceram e celebraram seus interesses semelhantes. Os soldados de ambos os lados tinham pais que eram operários de fábricas, trabalhadores domésticos e todos os tipos de pessoas comuns e cotidianas. Eles se uniram por causa disso.

Os soldados logo voltaram a se lembrar dos horrores dos meses anteriores. Os corpos de seus companheiros mortos, espalhados pela terra de ninguém, não podiam mais ser ignorados. Equipes, misturadas de ambos os lados, carregaram corpos azuis e dilacerados para seus túmulos em relativo silêncio.

Alguém então sugeriu futebol, mas não havia bolas. Uma lata foi jogada no espaço livre como um substituto lamentável, mas os soldados aproveitaram ao máximo. Eles trocaram os deveres sombrios da guerra pelo esporte. Os soldados jogavam como se suas vidas dependessem do jogo. Eles saboreiam cada chute, passe e gol desajeitados, precisando que a diversão durasse para sempre. O respeito e o espírito esportivo fluíam entre as equipes. Naqueles momentos, os homens não eram mais inimigos.

O tempo ficou mais lento nos momentos de calma. Os dois lados sentiram isso. Era uma calma que os surpreendia, uma calma que não sabiam que existia antes da guerra. Cada olhar, riso e toque eram vívidos e importantes. Parecia o melhor narcótico.


Oficiais de todos os níveis até o posto de coronel participaram da trégua. No entanto, a diversão durou pouco para as patentes mais altas. Os oficiais aliados não podiam ignorar as palavras enviadas apenas algumas semanas antes pelo general Sir Horace Smith-Dorrien, que emitiu uma instrução para os chefes de todas as divisões:

É durante [os feriados] que existe o maior perigo para a moral das tropas. A experiência desta e de todas as outras guerras prova, sem dúvida, que as tropas em trincheiras próximas ao inimigo deslizam com muita facilidade, se assim for permitido, para uma teoria de vida do tipo “viva e deixe viver”.

O Comandante do Corpo de exército, portanto, orienta os comandantes de divisão a impressionar os comandantes subordinados sobre a necessidade absoluta de incentivar o espírito ofensivo… Relações amistosas com o inimigo, armistícios não oficiais, por mais tentadores e divertidos que possam ser, são absolutamente proibidos.

O sol se pôs e os oficiais, com as palavras do general Smith-Dorrien ecoando em suas mentes, deram a ordem de retornar às trincheiras. Eles não podiam permitir que os homens ganhassem confiança para questionar abertamente a cadeia de comando. Os chefes não podiam deixar que os escalões inferiores vissem que eram mais fortes do que os escalões superiores — a minoria.

O dia seguinte foi o Boxing Day. A calma permaneceu, mas mais de 100 soldados estavam mortos no final do dia. Os combates dirigidos por oficiais começaram. As tropas de ambos os lados receberam ordens para atirar nas pessoas com quem havia jogado futebol, trocado presentes e mostrado fotos apenas algumas horas antes.

Esses soldados mataram pessoas com quem tinham muito mais em comum do que aqueles que estavam ordenando que lutassem. Eles eram, em sua maioria, pobres e da classe trabalhadora. Os generais na retaguarda tinham títulos co“o “senhor” e “lorde”. Eles possuíam grandes propriedades. Eram colaboradores de barões, ladrões, reis e outros chefes de estado. Eles viviam em mundos sobre os quais os combatentes apenas liam.

No total, 16 milhões de pessoas morreram na Primeira Guerra Mundial. Os soldados que questionavam a sanidade da guerra e seu próprio interesse pessoal em combatê-la se perguntavam: E se tivéssemos nos recusado a voltar para nossas trincheiras? A notícia teria se espalhado? O que poderia ter acontecido depois?


Em toda a Europa, times de futebol profissional, corporações e burocratas estão sequestrando o centésimo aniversário da trégua de Natal. É uma tentativa contínua de higienizar e controlar um momento subversivo da história.

Uma trégua só é possível quando a dúvida toma conta daqueles que lutam. A trégua, sem dúvida, ressoou na mente de russos e alemães que se confraternizaram e desertaram em massa na Frente Oriental no início de 1917. Essa bravura, sem dúvida, parecia um prenúncio do tipo de internacionalismo dos revolucionários russos que logo derrubaram o czar e, por fim, pediram a paz com a Alemanha.

A trégua deve ter sido discutida pelos 100.000 soldados franceses que se recusaram a seguir as ordens de seus comandantes e depuseram suas armas nos momentos finais da guerra. Os eventos do Natal de 1914 são sementes de inspiração que ainda podem ser plantadas nos corações dos soldados que estão lutando por interesses imperiais. Mas eles precisam se conectar com essa história.

Howard Zinn escreveu certa vez, conforme citado por seu amigo Staughton Lynd em Doing History from the Bottom Up:

Para que as pessoas “confiem em si mesmas”, elas “precisam saber algo que a história sabe”: que as pessoas “aparentemente sem poder podem criar poder ao decidirem não ser controladas, ao agirem com outras pessoas para mudar suas vidas”. A história “não deve nos deixar com uma visão sombria e sem esperança”. Ela deve nos deixar com "a boa sensação de estar ao lado de pessoas que lutaram".

Esperamos que as tropas estacionadas em qualquer uma das 668 bases militares dos EUA em todo o mundo ouçam a história da trégua de Natal. Esperemos que eles se vejam no campo de batalha durante aquele momento na França e na Bélgica, unindo-se, largando suas armas, ignorando as ordens dos oficiais e declarando uma trégua de um tipo mais permanente.

Colaborador

19 de dezembro de 2014

Os imperialistas pelos "direitos humanos"

A linguagem dos "direitos humanos" tornou-se a linguagem da agressão ocidental.

Bécquer Seguín


Um avião dos EUA soltando bombas de fragmentação. Força aérea dos Estados Unidos.

Tradução / Textos históricos possuem diversas formas e tamanhos. Uma micro história, por exemplo – como Jill Lepore tem popularizado nos últimos anos entre as páginas do New Yorker – começa pequena até florescer no ar do presente e cavar suas raízes dentro da iminência das questões passadas. Todavia, as principais histórias que acontecem no mundo se deslocam rapidamente de um evento, país ou tempo para outro, tendo, muitas vezes, seu conteúdo resumido em uma única página enquanto alguns acadêmicos levam uma vida inteira para contá-las.

Precisamente atencioso com as mudanças das épocas, o estilo do livro lançado em 2012 por Samuel Moyn, The Last Utopia: Human Rights in History se assemelha a um bisturi. Seu método de reconstrução histórica nós mostra um procedimento que inclui reivindicações radicais e exercícios sobre histórias carcinogênicas absorvidos em um determinado momento singular (como a revolução francesa, por exemplo).

O objetivo de Moyn em The Last Utopia é especificar, não aumentar, a história dos direitos humanos. Agindo contra estudiosos que vasculham o séculos passados para descobrir suas origens, ele argumenta que os direitos humanos surgiu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela assembleia geral da ONU em 1948. E, mesmo assim, isso soou como um sussurro em uma cena politica e jurídica marcada por reivindicações de reparações do holocausto, do estabelecimento do estado de bem-estar e do colonialismo.

A The Last Utopia tenta responder por que o conceito de direitos humanos não fez muito barulho quando entrou em nosso vocabulário no final da década de 1940 e, em contraste, por que pareceu decolar de repente em algum momento meados dos anos 70

O livro mais recente de Moyn sobre o assunto, Human Rights and the Uses of History, tem outra coisa em mente. Ao invés de, meticulosamente, suturar os fragmentos de uma história alternativa, os oito ensaios do livro propõem questões a estudiosos que gostam de moldar a historia dos direitos humanos ao tamanho que, confortavelmente, se adéqua ao seus estilos de analisar a história.

Human Rights and the Uses of Histoty atua como uma história de fundo e um companheiro para The Last Utopia. Cada capítulo divaga através das teorias dos interlocutores acadêmicos de Moyn, tais como Lynn Hunt e seu celebre livro Inventing Human Rights.

O livro de Moyn pode parecer um desafio imperfeito para o consenso que é hoje dado para os direitos humanos. Aqui nós temos um importante relato de como esta fraseologia, aparentemente benigna, é muita vezes posta a serviço do imperialismo ocidental. No decorrer de duzentas páginas, Moyn levanta a maioria dos mitos sobre o desenvolvimento do direitos humanos em um grito de guerra dentro do meio acadêmico, do mundo das ONGs e do funcionalismo. Ainda assim, ele perde uma oportunidade de se envolver com os críticos mais veementes do direito como tal – os marxistas.


EMBORA Moyn não mencione a professora da Universidade de Georgetown, Rosa Brooks, em seu livro Human Rights and the Uses of History, ele certamente poderia ter usado a oportunidade para fazer isso. Rosa Brooks, ex-conselheira do departamento de defesa, que primeiro se perdeu no mundo utópico das ONGs resume o advogado-acadêmico-burocrata, assim como Samantha Power e muitos outros, ela começou condenando atrocidades no exterior antes de ser nomeada para servir a potência hegemônica do mundo.

Como se era de esperar, Brooks critica o trabalho de Moyn. Ela, no entanto, falha em ver a importância que Moyn da ao revisionismo no direitos humanos. Ela não acredita em seu ceticismo, ”porque alguém questionaria o governo dos EUA em adotar algo tão bom quanto o direitos humanos?’’ As figuras que Moyn critica em seu livro apaga a distinção de outrora entre acadêmicos e analistas de políticas. Human Rights and the Uses of History revela que não é apenas um livro sobre história contemporânea mas sim uma ferramenta governamental para justificar as ambições imperialistas atuais.

Tal é o caso de John Ikenberry, um professor de Princeton. Um defensor do assim chamado Internacionalismo Liberal – A ideia de que os EUA deveria ”promover a democracia no exterior” mesmo com seus pedágios de soberania ou vidas – Ikenberry diz que a hegemonia pode ser benevolente, ou ao menos parcialmente benevolente. Seu livro Liberal Leviathan não é nada mais do que uma defesa a ”grande estratégia neo-imperialista’’ de Bush. Ao longo da historia, a Hegemonia Americana tem desfrutado das ”características liberais’’ cita Ikenberry em seu livro. Moyn responde: ”Isso é como dizer que um homem pobre tem ‘características de rico’ porque ele está usado uma camisa limpa’’.

Para o desgosto de Moyn, muitos nos EUA e em outros países acreditam que asviolações dos direitos humanos – tudo aquilo que priva o indivíduo ”do direito a vida, liberdade e segurança”, de acordo com o Artigo Três da Declaração Universal – deveria ser tratado por um sistema jurídico internacional que pode substituir as leis nacionais. E quando esse tipo de aplicação falha, cabe aos estados mais poderosos a intervirem em nome dos cidadãos violados, que quase sempre vêm dos estados mais pobres e “falhos’’.ONGs de direitos humanos e a ONU podem esporadicamente ‘’condenar’’ os EUA e países da Europa Ocidental, mas em última analise concede-lhes impunidade enquanto julgam outros países, como Venezuela, considerada infratora perpétua. Os pressupostos do tratado da Vestifália que motivaram as Declarações Universal – Países do Ocidente ou nações aliadas, não deveriam, em hipótese alguma, usar o direito internacional para violar a soberania nacional – também autorizou a onda de intervenções militares na década de 1990 em lugares como Iraque, Somália, Sierra Leone e Yugoslavia.


DURANTE esse tempo, os EUA não só massacram milhares de civis inocentes através de bombardeios em massa, mas também apoioaram a liderança de direita, por criminosos como Agim Çeku. O mesmo ocorre hoje em lugares como a Líbia, quando em 2011 intervenções foram feitas baseadas nas violações de direitos humanos que o governo de Qaddafi haveria cometido, precipitando a atual crise humanitária. E ainda, o intervencionismo em nome dos direitos humanos ainda possui resquícios que continuam a florescer.

Se Moyn já está cansado de pesquisadores tentando adaptar seus trabalhos para refletir as preocupações da administração atual isso não significa que ele ignora o presente. O Presidente Obama surge em um momento crucial no seu livro para sublinhar como muito desses debates sobre direitos humanos de fato influencia os políticos da elite de Washington. Mas enquanto Obama adota e amplia muitas das políticas de George W. Bush, ele não assumiu o braço retórico de seu predecessor dos direitos humanos. “Poucas revelações parecem mais surpreendentes do que o fato que Barack Obama raramente menciona algo sobre direitos humanos.” Moyn observa. “Especialmente desde que os entusiastas do passado como Samantha Power e Anne-Marie Slaughter têm papéis importantes em sua política externa.’’

Isso pode ajudar a explicar o burocratismo de Brooks, Ikenberry e etc. Brooks disse em 2010 durante um debate de The Last Utopia, “As Burocracias é o que faz as coisas acontecerem. Lentamente, ineficientemente, mal, pausadamente, etc., mas são elas que de fato fazem as coisas acontecerem.’’ E ela ainda complementou: ‘’Se você não ouvir muito sobre direitos humanos vindo dos políticos mais importantes dos EUA, não é porque direitos humanos é algo falho mas que direitos humanos tem sido mais integrado aos negócios do dia a dia do que eles foram no passado.’’ Entretanto isso não ajuda a explicar por que Obama descartou o que poderia ser uma arma importante no arsenal presidencial de jargões moralistas. Ao invés disso Obama parece ter adotado a “dignidade humana’’ Em seus discursos, e tem abrangido sobre os direitos dos homossexuais, o Papa Francisco, e as acusações de corrupção sobre o debutado dos EUA Charles Rangel (‘’Ele deveria finalizar sua carreira com dignidade’’, diz Obama).

Dignidade humana e direitos humanos, no entanto, são dois conceitos diferentes. De acordo com o filósofo Jeremy Waldron, a quem Moyn critica em um capítulo de seu livro, dignidade possui a promessa universal e igualitária do reino dos fins de Immanuel Kant. “devemos permitir que o próprio processo democrático coloque os pobres e marginalizados em evidência,’’ assim Moyn ressume o pensamento de Waldron e que tamanha é a fé inabalável no progressivo trajeto da história recente “A esta altura é até mesmo ingênuo apelar para as obras de providências,’’ Moyn diz. “Na verdade, um olhar mais de perto nos detalhes históricos da trajetória da dignidade, sugere que sua proeminência de hoje está diretamente relatada a um processo de crise.’’

O fato de que precisamos de conceitos como dignidade para nos mantermos atentos a injustiças que variam de tortura ao genocídio não cai bem para Obama e os outros promotores dos ‘’direitos humanos’’. Mas o pior são livros como Dignity, Rank and Rights, de Jeramy Waldron, de acordo com Moyn eles ‘’escondem as lutas por liberdade de negros e trabalhadores,’’ para quem ‘’as teorias dos direitos humanos nunca são requisitadas.’’

A importância do termo consiste no fato que foi incluído na Carta das Nações Unidas; agora isso se tornou uma terminologia comum não somente entre a elite liberal de Washington mas também entre os acadêmicos. O termo “dignidade” foi inserido na Carta das Nações Unidas pelos católicos pós-guerra cujas aflições com os regimes fascistas na Áustria, Portugal e Espanha sugerem que a dignidade teve pouco a ver com um impulso liberal Kantiano. Com a elevação da dignidade a luta do século XIX por um mundo melhor foi substituída por um medo de um mundo pior no século XX.

Considerando que as relações de direitos humanos e dignidades que foram discutidas pela ONU em 1945, o conceito compartilha uma associação mais oblíqua com os assuntos relacionados a tortura. Lançada em 1973, a campanha internacional anti-tortura concebeu o prêmio Nobel da paz para o fundador da campanha Seán MacBride em 1974 e em seguida a organização inteira em 1977. O fato de que discursos sobre direitos humanos tornaram-se mais populares na década de 1970 ao invés de 1940 tem a ver com a emergência das cruzadas neoliberais, como a Anistia Internacional.

Entretanto, o crescimento da visibilidade de atos de tortura – sobre quais organizações de direitos humanos como a Anistia, apostaram suas reivindicações e, assim, ganharam notoriedade – tem mais a ver com o recuo do colonialismo ocidental do que algum tipo de pecado categórico. “A verdade é que a tortura adquiriu seu glamour como a pior coisa que eles fazem, uma vez que a violência praticada pelo ocidente estaria feita e os lugares que tinham suas próprias formas anteriormente, agora parecia cenas de um desgoverno indígena’’ Moyn comenta.


O DISCURSO sobre direitos humanos não é em sua totalidade insidioso. A emergência do partido de esquerda espanhol ‘’Podemos’’ é parcialmente devido ao uso dessa linguagem sobre direitos humanos. E mesmo que o assunto esteja repleto de faltas, apelar pelos direitos humanos pode ajudar a reforçar o apoio para se acabar com a pobreza e opressão.

Mas essa consagração qualificada aos direitos humanas levanta a questão: por que usar o termo de uma forma tão generalizada? Isso se origina dos que estão no topo e não dos que estão imersos na necessidade dos direitos humanos – o projeto atrai mais àqueles que estão no poder – qual é sua utilidade? O que resta, além da habilidade de tocar os corações do ocidente, além da habilidade de justificar chamados de intervenções humanitárias no exterior? Como esses dois projetos políticos – direitos humanos e intervenção humanitária – podem ser distinguidos? Questões como essas ficam sem respostas no livro Human Rights and the Uses of History.

Ainda assim, evidências de relacionamentos inconfortáveis de Moyn com direitos humanos são citadas ao decorrer do livro. Ao contrário de autores cujos livros ele desafia, corretamente ou não, Moyn não participa da celebração dos direitos humanos como uma nova utopia, ao invés disso, ele aponta seus pontos cegos e ridiculariza, seja implantando uma desculpa ao militarismo ou expurgos históricos.

Moyn procura endossar críticas de esquerda aos direitos humanos. Ele especialmente impugna proponentes pelos seus fracassos em conta à injustiça econômica, concluindo um capítulo com a seguinte frase: ‘’Ninguém descobriu como maximizar as condenações que atos de tortura causam e ao mesmo tempo incluir o sofrimento causado pela desigualdade global de poder e riquezas.’’

Jenny Martinez, autora do livro Slave Trade and the Origins of Internacional Human Rights Law, perde as limitações óbvias da Corte Criminal Internacional: “Nações poderosas e ricas nunca vão legalmente perder suas riquezas e superioridade – e nenhuma corte irá chama-las de inimigas da humanidade.’’

Se injustiça econômica é um dos motivos mais importantes do livro, isso também da origem a uma das tensões mais importantes. Defensores dos direitos humanos, salienta Moyn, devem defender as ‘’condições reais para o gozo de todos os direitos’’ – ‘’o direito ao bem-estar econômico’’ mais fundamental de todas essas condições. Na verdade, se o palavreado dos direitos humanos ajudam a agressão ocidental, ele também é o que ignora drasticamente o bem-estar econômico de seus próprios cidadãos

Mas curiosamente, Moyn não se relaciona com Marxismo, uma posição que poderia incentivá-lo a apoiar a emancipação econômica de muitos países. Muitos Marxistas, para ser preciso, endossaram a sátira de Moyn a Ikenberry. No entanto Moyn ainda diz que muitos marxistas não levam direitos humanos a sério.

Porém os Marxistas que ele menciona – Slavoj Zizek, um psicanalista Lacaniano e Robin Blackburn, um historiador sobre escravidão – dificilmente contam como Marxistas seriamente preocupados com direitos humanos. O livro American Crucible de Blackburn, segundo Moyn ‘’demonstra que direitos humanos se tornou uma estrutura moral tão poderosa que até mesmo Marxistas – que antes criticavam direitos burgueses e abstração formalistas em geral inútil para a emancipação econômica – agora não veem outra alternativa se não rever suas politicas em termos fixados pela explosão de direitos humanos nos nossos tempos’’

Mas o problema com esse tipo de reclamação é que Moyn nunca toma a crítica marxista dos direitos humanos a sério. Essa crítica marxistas enfatiza as conexões entre direitos humanos, o capital, propriedade privada; a necessidade de superar conceitos individuais de direitos a favor de entes coletivos, ou o fato que a campanha de direitos humanos resulta do Artigo 25 da Declaração Universal – “o direito a um padrão de vida com saúde e bem-estar… incluindo comida, roupas, casa, cuidados médicos, e os serviços sociais necessários.’’

Moyn muitas vezes pode parecer simpático com algumas partes substanciais dessa crítica, mas não chega a amenizar a sua rejeição da ênfase burguesa nos direitos individuais. Em outros momentos, ele parece rejeitar essa crítica por ser muito distante e por não prestar atenção às realidades empíricas etnográficas dos direitos humanos – seus trabalhadores e seus discursos.

Moyn, no entanto, é um historiador brilhante, e Human Rights and the Uses Of History mostra seu peso intelectual. Elegantemente ele indaga partidos e proclamadores dos direitos humanos em todas as partes. Ele revela quão equivocado todo esse esplendor pode parecer. Contudo, isso é parte do problema: a facilidade com que ele despacha sugere que ele deveria ter tomado um adversário mais difícil – como os marxistas.

Apesar de seus textos e a vitória em seus argumentos, o consenso de direitos humanos é algo a ser observado continuamente, o livro de Moyn teria se beneficiado ainda mais se tivesse envolvido alguns críticos da esquerda. Sua história sobre direitos humanos é um processo de Longue Durée. Mas evitando Marxistas ele cortou uma parte importante da discussão.

COLABORADOR

Bécquer Seguín é doutorando em estudos de romance na Cornell University.

15 de dezembro de 2014

A responsabilidade de Foucault

Foucault não fazia as "perguntas certas". E as respostas que ele encontrou ajudaram a desorientar a esquerda.

Daniel Zamora

Jacobin

Foto do filósofo francês Michel Foucault registrada em 16 de dezembro de 1981 no estúdio de rádio Europe 1 em Paris, França. (Alexis Duclos/AP Photo)

Tradução / A questão do papel do Estado de Bem Estar Social na sociedade capitalista é complexa. Claro, dependendo do contexto, ele pode servir para conter a contestação social, limitar movimentos de transformação radical, até mesmo para reproduzir certas estruturas sociais conservadoras (especialmente no que diz respeito à questões de raça e gênero).

O Estado de Bem Estar Sociais é obviamente o resultado de um compromisso entre classes sociais. Não é, consequentemente, uma questão de “parar por ali”, mas, pelo contrário, de entender que o Estado Providência pode ser o ponto de partida para algo novo. Meu problema com Michel Foucault, portanto, não é que ele procure “ultrapassar” o Estado de Bem Estar Social, mas que ele contribuiu ativamente para sua destruição, e que ele fez isso de uma maneira que estava totalmente em conformidade com a crítica neoliberal de seu momento. Seu objetivo não era de mover-se rumo ao “socialismo”, mas livrar-se dele.

Mas antes de discutir a questão do Estado de Bem Estar Social no final dos anos 1970 e o papel que ele pode ter nas políticas emancipatórias hoje, vamos retornar a algumas daquelas “boas questões” que Foucault estava perguntando.

Teria Foucault feito “algumas das questões certas?”

A primeira questão sobre o Estado de Bem Estar Social colocada por Foucault referia-se as “situações de dependência” que dizia ele causar. À seus olhos, “em uma mão damos às pessoas mais segurança, e na outra aumentamos sua dependência”. Seguridade social produz dependência? Essa crítica é de certo inesperada de um autor classificado como da “ala esquerda”.

Ainda assim, essa frase não é uma afirmação isolada. Dessa maneira, em uma entrevista de 1983, Foucault diz que ele concorda plenamente com um jornalista que afirma existir atualmente uma necessidade de “afirmar a responsabilidade pessoal de cada um por suas próprias escolhas” e continuar rumo a uma maior “accountability” (responsabilização).

Além da “dependência” que ele supostamente cria, Foucault acredita que a seguridade social em última instância serve principalmente aos ricos. Assim, em uma entrevista em 1976, ele invoca, novamente sem muito distanciamento, o argumento neoliberal clássico de acordo com o qual o Estado de Bem Estar Social, na verdade, torna-se um subsídio para os ricos pago pelos pobres, já que normalmente são os ricos que usam com mais frequência os serviços providos.

Como ele explica, “as transferências sociais que eram esperadas do sistema de seguridade social não realizaram completamente as expectativas... Os ricos continuam a utilizar muito mais os serviços médicos que os pobres. Esse é o caso hoje na França. O resultado é que pequenos consumidores, que são também os mais pobres, pagam com os tributos que recolhem o sobre-consumo dos ricos.”

Esse argumento, muito desenvolvido por Milton Friedman em seu pequeno opus Liberdade para Escolher – o qual Foucault com certeza conhecia – basicamente opõe-se a qualquer forma de sistema universal financiado pelo poder público. De acordo com Friedman, tal sistema sempre levará a “transferir do que vai pior para o que vai melhor”.

Como o economista explica, mesmo que “o programa de benefícios seja parcializado em favor das pessoas com menores salários”, “crianças de famílias pobres tendem a começar a trabalhar – e começar a pagar seus impostos trabalhistas – em uma idade relativamente mais jovem; crianças de famílias com rendas mais altas em uma idade muito mais avançada. No outro ponto do círculo da vida, pessoas com salários mais baixos normalmente tem uma vida mais curta que pessoas de salários mais altos. O resultado é que o pobre tende a pagar impostos por mais anos e receber benefícios por menos anos que o rico – tudo sob a alegação de defender os pobres!”

O último grande “problema” enfatizado por Foucault no que diz respeito na questão da saúde reside na natureza “arbitrária” do conceito de “direito” à saúde, e seus efeitos prejudiciais nos gastos sempre crescentes no sistema. De fato, ele afirma que como as necessidades no campo da saúde não são nem quantificáveis nem limitadas, “não é possível fixar objetivamente um campo teórico ou prático, válido para todos, no qual as necessidades de saúde sejam total e definitivamente satisfeitas”. Já que nossos desejos quanto à saúde são diferentes, como poderia haver um “direito” universal para respeitar?

Essa observação, reproduzindo o clássico argumento dos oponentes dos sistemas públicas de saúde, leva ele a concluir que é “claro que dificilmente fará sentido falar em ‘direito à saúde'”. De lá, ele naturalmente prossegue para colocar a questão, “deveria uma sociedade buscar por meios coletivistas a necessidade de saúde de indivíduos? E podem indivíduos legitimamente demandar a satisfação dessas necessidades?” E ele continua e declara que “uma resposta positiva à essa questão não teria uma aceitável, ou até imaginável, realização prática”.

Esse posicionamento é muito próximo dos argumentos neoliberais contra os sistemas universais de saúde, que foram construídos exatamente na noção de um “direito” universal à saúde que poderia ser determinado objetivamente para toda a população. Tal concepção seria repudiada pouco a pouco em favor de uma ideia defendida por Hayek que o cuidado à saúde é um bem de consumo como qualquer outro, e é da responsabilidade de cada indivíduo “escolher” obter tratamento ou não.

Assim, como A. W. Gaffney nota em seu excelente artigo na Jacobin, para Hayek “uma pessoa pode preferir pagar aluguel à ter uma mamografia, enquanto outra pode preferir uma cirurgia no coração ao invés de uma semana de férias.” Como resultado, “a ideia de que existe um padrão ‘objetivamente’ determinável para serviços médicos que pode e será obrigatoriamente provido à todos, um conceito que enfatiza o esquema Beveridge e todo o Sistema Nacional de Saúde Britânico, não tem relação com a realidade.”

Nesse sentido, Hayek, assim como Foucault, “disputa a própria noção de que possa existir algo como o desejo universal – muito menos um ‘direito’ – a qualquer bem de consumo, incluindo o cuidado à saúde.”

Para ser claro, Foucault se preocupa em explicar imediatamente que ele “não advoga, seria desnecessário dizer, um tipo de livre mercado selvagem que resultaria em cobertura individual para aqueles que tem os meios e uma ausência de cobertura para os outros”. Mas parece óbvio para ele, assim mesmo, que é “impossível, em qualquer evento, deixar os gastos crescerem sob essa fórmula no mesmo ritmo dos anos recentes.”

Foucault, então, não advoga pelo neoliberalismo, mas adota todas as suas críticas ao Estado de Bem Estar Social. Ele ataca a suposta “dependência” que ele produz, a própria noção de “direitos”, e seu efeito negativo sobre os pobres. Seu objetivo portanto, não é ir em direção a uma sociedade totalmente neoliberal, mas incorporar no corpus socialista alguns dos elementos decisivos da crítica neoliberal ao Estado. É precisamente nesse sentido que Colin Gordon o vê como um tipo de precursor do Blairismo.

Essa tese também é ilustrada pela proximidade de Foucault com Pierre Rosanvallon, o progenitor francês do “social-liberalismo” agora dominante dentro do Partido Socialista Francês

Além disso, é sob esse prisma que devemos entender o apoio de Foucault aos Novos Filósofos anticomunistas dos anos 1970. Como tem sido mostrado por Michael Scott Christofferson – a quem estou em débito – esse apoio buscou igualmente ir contra a União da Esquerda e toda a ideologia que ela representada. (A União da Esquerda foi uma aliança eleitoral socialista-comunista iniciada em 1970 pelo líder socialista francês François Mitterrand, marcando um agudo retorno à esquerda para os socialistas.)

Para mim, Foucault não estava dessa maneira fazendo as “perguntas corretas”. Pelo contrário, ele popularizou boa parte do senso comum neoliberal que constituiu a base teórica da guerra travada contra o Estado de Bem Estar Social. Esse senso comum, muito longe de ser uma questão secundária, representa na minha opinião um dos principais obstáculos para a instituição de políticas sociais que apontem tão longe.

Como podemos pensar seriamente que colocando em descrédito as ações estatais no campo social e abandonando a própria noção de “direitos” sociais constituem progresso para se pensar “além do Estado de Bem Estar Social”? Tudo que isso tem permitido é a destruição do Estado de Bem Estar Social, nem uma faísca de algo “além”.

O exemplo da frase de Beatriz Preciado é particularmente claro. Nessa afirmação sucinta, ela assume que o recuo do Estado de Bem Estar Social não é um problema político sério. Nos deveríamos provavelmente celebrá-lo, já que irá agora liberar indivíduos do controle social. O mínimo que alguém poderia dizer é que apenas um acadêmico, alguém relativamente protegido da precariedade social, poderia dizer algo assim.

A verdade é que na Europa Continental – mas também nos Estados Unidos – o recuo de programas universais tem levado à considerável regressão social cujo impacto não é só material, é ideológico. Não é apenas o Estado de Bem Estar Social que perdemos – é a nossa capacidade de pensar diferente, de pensar fora das categorias do neoliberalismo.

Qual é a pergunta “certa”? 

Em sua resposta à minha entrevista, um dos principais argumentos críticos de Peter Frase ao meu argumento é que ele não oferece um horizonte político radical fora do capitalismo. Minha análise é, em última instância, limitada à uma crítica interna ao neoliberalismo, e, talvez, espero — secretamente — por um retorno ao fordismo pós-guerra.

Na verdade, meu argumento é muito diferente. Como eu digo claramente no final de minha entrevista, um “retorno” ao passado não é nem possível nem desejável. No máximo, é uma fantasia que não tem chance de ser realizada por caminhos genuinamente emancipatórios. Pelo contrário, esse sentimento de nostalgia é hoje o cerne do sucesso político dos partidos de extrema direita, mas também, cada vez mais, da direita mainstream.

Esse retorno ao passado é sedutor para uma fração não negligenciável da classe trabalhadora. Ao defender uma reversão radical da liberalização cultural e dos efeitos culturais da globalização neoliberal, esses partidos conseguiram ganhar a batalha ideológica e econômica. Eles não propõem uma alternativa real ao capitalismo, enquanto ganham a luta política no terreno dos valores familiares, do trabalho e da responsabilidade.

Essa nostalgia, juntamente com seus efeitos conservadores claros, mesmo assim se esconde dentro de uma dimensão progressista. De maneira que, como a religião para Marx, ela é “o lamento da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, e a alma de condições sem alma. É o ópio do povo.” Mas esse ópio é “ao mesmo tempo, a expressão de um sofrimento real e o protesto contra o sofrimento real.”

Nós devemos, consequentemente, agarrar a natureza ambivalente desse lamento. Não é somente nostalgia por um mundo sem imigrantes, um mundo de fronteiras, e mulheres na cozinha. É também sobre as instituições da seguridade social e as conquistas sociais da era pós-guerra. Essa aspiração, como a religião aos olhos de Marx, deve então ser lida de ambas as faces. Não é tão só o desejo pela volta a uma sociedade mais conservadora, é também um declaração aos valores progressistas que representavam para a classe trabalhadora.

Meu ponto não é, obviamente, limitar-nos à esse legado, mas, ao contrário, defendê-lo, usá-lo não só para ganhar novamente a classe trabalhadora mas também permitir o desenvolvimento de ideias políticas genuinamente radicais. A questão que deveríamos estar nos fazendo atualmente não é se o Estado de Bem Estar Social que surgiu no pós-guerra é um “beco sem saída” para a esquerda. Pelo contrário, nós deveríamos estar nos perguntando como podemos usar suas dimensões progressistas para o propósito da transformação social.

É muito mais fácil imaginar como uma forma diferente de organização social pareceria com base em elementos mais progressistas dentro do Estado de Bem Estar Social do que começar de idéias abstratas que estão muitas vezes desconexas da realidade dos trabalhadores. É sempre fácil imaginar mundos diferentes e sociedades comunistas de uma maneira teórica e abstrata.

Mas essas ideias são normalmente formuladas em salas de seminário nas universidades e em encontros de grupos políticos marginais. Desligando-se das instituições que efetivamente (e não teoricamente) transformaram o mundo, a esquerda radical também desligou-se do mundo real e das necessidades do dia a dia da maioria da população.

As instituições que os movimentos dos trabalhadores conseguiram estabelecer depois da Segunda Guerra eram muito mais que apenas um instrumento para “estabilizar” o capitalismo. É verdade que essas instituições foram atravessadas por sérias contradições políticas, mas elas também representaram, em sua geminação, os elementos de uma sociedade diferente, onde o mercado poderia não ocupar o lugar central que ocupa hoje.

Nós deveríamos, então, continuar o trabalho político e ideológico que iniciou-se com o nascimento do Estado de Bem Estar Social. Nós devemos radicalizar seu legado, nós deveríamos levá-lo mais fundo, e imaginar com ele – e não contra ele – uma sociedade genuinamente igualitária e democrática.

14 de dezembro de 2014

O Estado inovador

Os governos deveriam criar mercados, e não apenas consertá-los

Mariana Mazzucato

Foreign Affairs

Kevin Lamarque / Courtesy Reuters

A visão convencional sobre o que o Estado deve fazer para promover a inovação é simples: basta sair do caminho. Na melhor das hipóteses, os governos apenas facilitam o dinamismo econômico do setor privado; na pior das hipóteses, as suas instituições pesadas, pesadas e burocráticas inibem-no ativamente. O setor privado, rápido, amante do risco e pioneiro, pelo contrário, é o que realmente impulsiona o tipo de inovação que cria o crescimento econômico. De acordo com esta visão, o segredo por trás de Silicon Valley reside nos seus empresários e capitalistas de risco. O Estado pode intervir na economia - mas apenas para corrigir falhas de mercado ou nivelar as condições de concorrência. Pode regular o setor privado para ter em conta os custos externos que as empresas podem impor ao público, como a poluição, e pode investir em bens públicos, como a investigação científica básica ou o desenvolvimento de medicamentos com pouco potencial de mercado. Contudo, não deverá tentar criar e moldar diretamente mercados. Um artigo da Economist de 2012 sobre o futuro da indústria transformadora resumiu esta concepção comum. "Os governos sempre foram péssimos na escolha de vencedores, e é provável que o sejam ainda mais, à medida que legiões de empreendedores e criadores trocam designs online, transformam-nos em produtos em casa e comercializam-nos globalmente a partir de uma garagem", afirma o artigo. "À medida que a revolução avança, os governos devem limitar-se ao básico: melhores escolas para uma força de trabalho qualificada, regras claras e condições de concorrência equitativas para empresas de todos os tipos. Deixe o resto para os revolucionários."

Essa visão é tão errada quanto generalizada. Na verdade, em países que devem o seu crescimento à inovação, o Estado tem servido historicamente não como um intrometido no setor privado, mas como um parceiro-chave deste - e muitas vezes mais ousado, disposto a assumir os riscos que as empresas não aceitarão. Ao longo de toda a cadeia de inovação, desde a investigação básica até à comercialização, os governos intensificaram os investimentos necessários que o setor privado teve medo demais de fornecer. Estas despesas revelaram-se transformadoras, criando mercados e sectores inteiramente novos, incluindo a Internet, a nanotecnologia, a biotecnologia e a energia limpa.

Hoje, porém, tornou-se cada vez mais difícil para os governos pensar grande. Cada vez mais, o seu papel tem se limitado a simplesmente facilitar o setor privado e, talvez, empurrá-lo na direção certa. Quando os governos ultrapassam esse papel, são imediatamente acusados de excluir o investimento privado e de tentar, ineptamente, escolher vencedores. A noção do Estado como mero facilitador, administrador e regulador começou a ganhar ampla aceitação na década de 1970, mas adquiriu nova popularidade na sequência da crise financeira global. Em todo o mundo, os decisores políticos têm como alvo a dívida pública (não importa que tenha sido a dívida privada que levou ao colapso), argumentando que o corte da despesa pública estimulará o investimento privado. Como resultado, as próprias agências estatais que foram responsáveis pelas revoluções tecnológicas do passado viram os seus orçamentos encolherem. Nos Estados Unidos, o processo de "sequestro" orçamental resultou em cortes no valor de 95 bilhões de dólares nas despesas federais em I&D entre 2013 e 2021. Na Europa, o "pacto fiscal" da UE, que exige que os estados reduzam os seus défices fiscais para três por cento do PIB, está comprimindo as despesas com a educação e a I&D.

Além disso, graças, em parte, à sabedoria convencional sobre o seu dinamismo e à lentidão do Estado, o setor privado conseguiu exercer pressão sobre os governos para enfraquecer as regulamentações e reduzir os impostos sobre ganhos de capital. Só entre 1976 e 1981, após um forte lobby da National Venture Capital Association, a taxa de imposto sobre ganhos de capital nos Estados Unidos caiu de 40% para 20%. E em nome de trazer o dinamismo de Silicon Valley para o Reino Unido, em 2002, o governo do primeiro-ministro britânico Tony Blair reduziu o tempo que os fundos de private equity têm de ser investidos para serem elegíveis para reduções fiscais de dez para dois anos. Estas políticas aumentam a desigualdade e não o investimento, e ao recompensarem os investimentos de curto prazo em detrimento dos de longo prazo, prejudicam a inovação.

Fazer com que os governos pensem grande sobre a inovação não significa apenas investir mais dinheiro dos contribuintes em mais atividades. Requer reconsiderar fundamentalmente o papel tradicional do Estado na economia. Especificamente, isso significa capacitar os governos para vislumbrarem uma direção para a mudança tecnológica e investirem nessa direção. Significa abandonar a forma míope como a despesa pública é normalmente avaliada. Significa acabar com a prática de isolar o setor privado do setor público. E significa descobrir formas de os governos e os contribuintes colherem algumas das recompensas do investimento público, em vez de apenas os riscos. Só quando os decisores políticos ultrapassarem os mitos sobre o papel do Estado na inovação é que deixarão de ser, como disse John Maynard Keynes em outra era, "escravos de algum economista já falecido".

A FALHA DA FALHA DO MERCADO

According to the neoclassical economic theory that is taught in most economics departments, the goal of government policy is simply to correct market failures. In this view, once the sources of failure have been addressed—a monopoly reined in, a public good subsidized, or a negative externality taxed—market forces will efficiently allocate resources, enabling the economy to follow a new path to growth. But that view forgets that markets are blind, so to speak. They may neglect societal or environmental concerns. And they often head in suboptimal, path-dependent directions. Energy companies, for example, would rather invest in extracting oil from the deepest confines of the earth than in clean energy.

In addressing societal challenges such as climate change, youth unemployment, obesity, aging, and inequality, states must lead—not by simply fixing market failures but by actively creating markets. They must direct the economy toward new “techno-economic paradigms,” in the words of the technology and innovation scholar Carlota Perez. These directions are not generated spontaneously from market forces; they are largely the result of deliberate state decisions. In the mass-production revolution, for example, the state invested in both the underlying technologies and their diffusion across the economy. On the supply side, the U.S. military-industrial complex, beginning in World War II, invested in improvements in aerospace, electronics, and materials. On the demand side, the U.S. government’s postwar subsidization of suburban living—building roads, backing mortgages, and guaranteeing incomes through the welfare state—enabled workers to own homes, buy cars, and consume other mass-produced goods.

As Michael Shellenberger and his colleagues at the progressive think tank the Breakthrough Institute have documented, despite the mythmaking about how the shale gas boom is being driven by wildcatting entrepreneurs operating independently from the state, the U.S. federal government invested heavily in the technologies that unleashed it. In 1976, the Morgantown Energy Research Center and the Bureau of Mines launched the Eastern Gas Shales Project, which demonstrated how natural gas could be recovered from shale formations. That same year, the federal government opened the Gas Research Institute, which was funded through a tax on natural gas production and spent billions of dollars on research into shale gas. And the Sandia National Laboratories, part of the U.S. Department of Energy, developed the 3-D geologic mapping technology used for fracking operations.

Likewise, as the physician Marcia Angell has shown, many of the most promising new drugs trace their origins to research done by the taxpayer-funded National Institutes of Health, which has an annual budget of some $30 billion. Private pharmaceutical companies, meanwhile, tend to focus more on the D than the R part of R & D, plus slight variations of existing drugs and marketing.

Silicon Valley’s techno-libertarians might be surprised to find out that Uncle Sam funded many of the innovations behind the information technology revolution, too. Consider the iPhone. It is often heralded as the quintessential example of what happens when a hands-off government allows genius entrepreneurs to flourish, and yet the development of the features that make the iPhone a smartphone rather than a stupid phone was publicly funded. The progenitor of the Internet was ARPANET, a program funded by the Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), which is part of the Defense Department, in the 1960s. Gps began as a 1970s U.S. military program called Navstar. The iPhone’s touchscreen technology was created by the company FingerWorks, which was founded by a professor at the publicly funded University of Delaware and one of his doctoral candidates, who received grants from the National Science Foundation and the CIA. Even Siri, the iPhone’s cheery, voice-recognizing personal assistant, can trace its lineage to the U.S. government: it is a spinoff of a darpa artificial-intelligence project. None of this is to suggest that Steve Jobs and his team at Apple were not brilliant in how they put together existing technologies. The problem, however, is that failing to admit the public side of the story puts future government-funded research at risk.

For policymakers, then, the question should not be whether to pick particular directions when it comes to innovation, since some governments are already doing that, and with good results. Rather, the question should be how to do so in a way that is democratically accountable and that solves the most pressing social and technological challenges.

A SMARTER STATE

State spending on innovation tends to be assessed in exactly the wrong way. Under the prevailing economic framework, market failures are identified and particular government investments are proposed. Their value is then appraised through a narrow calculation that involves heavy guesswork: Will the benefits of a particular intervention exceed the costs associated with both the offending market failure and the implementation of the fix? Such a method is far too static to evaluate something as dynamic as innovation. By failing to account for the possibility that the state can create economic landscapes that never existed before, it gives short shrift to governments’ efforts in this area. No wonder economists often characterize the public sector as nothing more than an inefficient version of the private sector.

This incomplete way of measuring public investment leads to accusations that by entering certain sectors, governments are crowding out private investment. That charge is often false, because government investment often has the effect of “crowding in,” meaning that it stimulates private investment and expands the overall pie of national output, which benefits both private and public investors. But more important, public investments should aim not only to kick-start the economy but also, as Keynes wrote, “to do those things which at present are not done at all.” No private companies were trying to put a man on the moon when NASA undertook the Apollo project.

Without the right tools for evaluating investments, governments have a hard time knowing when they are merely operating in existing spaces and when they are making things happen that would not have happened otherwise. The result: investments that are too narrow, constrained by the prevailing techno-economic paradigm. A better way of evaluating a given investment would be to consider whether it taught workers new skills and whether it led to the creation of new technologies, sectors, or markets. When it comes to government spending on pharmaceutical research, for example, it might make sense to move past the private sector’s fixation on drugs and fund more work on diagnostics, surgical treatments, and lifestyle changes.

Governments suffer from another, related problem when it comes to contemplating investments: as a result of the dominant view that they should stick to fixing market failures, they are often ill equipped to do much more than that. To avoid such problems as a regulatory agency getting captured by business, the thinking goes, the state must insulate itself from the private sector. That’s why governments have increasingly outsourced key jobs to the private sector. But that trend often rids them of the knowledge necessary for devising a smart strategy for investing in innovation and makes it harder to attract top talent. It creates a self-fulfilling prophecy: the less big thinking a government does, the less expertise it is able to attract, the worse it performs, and the less big thinking it is allowed to do. Had there been more information technology capacity within the U.S. government, the Obama administration would probably not have had such difficulty rolling out HealthCare.gov, and that failure will likely lead to only more outsourcing.

In order to create and shape technologies, sectors, and markets, the state must be armed with the intelligence necessary to envision and enact bold policies. This does not mean that the state will always succeed; indeed, the uncertainty inherent in the innovation process means that it will often fail. But it needs to learn from failed investments and continuously improve its structures and practices. As the economist Albert Hirschman emphasized, the policymaking process is by its nature messy, so it is important for public institutions to welcome the process of trial and error. Governments should pay as much attention to the business school topics of strategic management and organizational behavior as private companies do. The status quo approach, however, is to focus not on making the government more competent but on downsizing it.

PROFIT AND LOSS

Since governments often undertake courageous spending during the riskiest parts of the innovation process, it is key that they figure out how they can socialize not just the risks of their investments but also the rewards. The U.S. government’s Small Business Innovation Research program, for example, offers high-risk financing to companies at much earlier stages than most private venture capital firms do; it funded Compaq and Intel when they were start-ups. Similarly, the Small Business Investment Company program, an initiative under the auspices of the U.S. Small Business Administration, has provided crucial loans and grants to early stage companies, including Apple in 1978. In fact, the need for such long-term investments has only increased over time as venture capital firms have become more short term in their outlook, emphasizing finding an “exit” for each of their investments (usually through a public offering or a sale to another company) within three years. Real innovation can take decades.

As is the nature of early stage investing in technologies with uncertain prospects, some investments are winners, but many are losers. For every Internet (a success story of U.S. government financing), there are many Concordes (a white elephant funded by the British and French governments). Consider the twin tales of Solyndra and Tesla Motors. In 2009, Solyndra, a solar-power-panel start-up, received a $535 million guaranteed loan from the U.S. Department of Energy; that same year, Tesla, the electric-car manufacturer, got approval for a similar loan, for $465 million. In the years afterward, Tesla was wildly successful, and the firm repaid its loan in 2013. Solyndra, by contrast, filed for bankruptcy in 2011 and, among fiscal conservatives, became a byword for the government’s sorry track record when it comes to picking winners. Of course, if the government is to act like a venture capitalist, it will necessarily encounter many failures. The problem, however, is that governments, unlike venture capital firms, are often saddled with the costs of the failures while earning next to nothing from the successes. Taxpayers footed the bill for Solyndra’s losses yet got hardly any of Tesla’s profits.

Economists may argue that the state already receives a return on its investments by taxing the resulting profits. The truth is more complicated. For one thing, large corporations are masters of tax evasion. Google — whose game-changing search algorithm, it should be noted, was developed with funding from the National Science Foundation—has lowered its U.S. tax bill by funneling some of its profits through Ireland. Apple does the same by taking advantage of a race to the bottom among U.S. states: in 2006, the company, which is based in Cupertino, California, set up an investment subsidiary in Reno, Nevada, to save money.

Fixing the problem is not just a matter of plugging the loopholes. Tax rates in the United States and other Western countries have been falling over the past several decades precisely due to a false narrative about how the private sector serves as the sole wealth creator. Government revenues have also shrunk due to tax incentives aimed at promoting innovation, few of which have been shown to produce any R & D that would not have happened otherwise. What’s more, given how mobile capital is these days, a particular government that has funded a given company might not be able to tax it since it may have moved abroad. And although taxes are effective at paying for the basics, such as education, health care, and research, they don’t begin to cover the cost of making direct investments in companies or specific technologies. If the state is being asked to make such investments—as will increasingly be the case as financial markets become even more focused on the short term—then it will have to recover the inevitable losses that arise from this process.

There are various ways to do so. One is to attach strings to the loans and guarantees that governments hand out to businesses. For example, just as graduates who receive income-contingent student loans get their repayments adjusted based on their salaries, the recipients of state investments could have their repayments adjusted based on their profits.

Another way for states to reap greater returns involves reforming the way they partner with businesses. Public-private partnerships should be symbiotic, rather than parasitic, relationships. In 1925, the U.S. government allowed AT&T to retain its monopoly over the phone system but required the company to reinvest its profits in research, a deal that led to the formation of Bell Labs. Today, however, instead of reinvesting their profits, large companies hoard them or spend them on share buybacks, stock options, and executive pay. Research by the economist William Lazonick has borne this out: “The 449 companies in the S&P 500 index that were publicly listed from 2003 through 2012 . . . used 54% of their earnings—a total of $2.4 trillion—to buy back their own stock.”

An even bolder plan would allow the state to retain equity in the companies it supports, just as private venture capital firms do. Indeed, some countries adopted this model long ago. Israel’s Yozma Group, which manages public venture capital funds, has backed—and retained equity in—early stage companies since 1993. The Finnish Innovation Fund, or Sitra, which is operated under the Finnish parliament, has done the same since 1967, and it was an early investor in Nokia’s transformation from a rubber company into a cell-phone giant. Had the U.S. government had a stake in Tesla, it would have been able to more than cover its losses from Solyndra. The year Tesla received its government loan, the company went public at an opening price of $17 a share; that figure had risen to $93 by the time the loan was repaid. Today, shares in Tesla trade above $200.

The prospect of the state owning a stake in a private corporation may be anathema to many parts of the capitalist world, but given that governments are already investing in the private sector, they may as well earn a return on those investments (something even fiscal conservatives might find attractive). The state need not hold a controlling stake, but it could hold equity in the form of preferred stocks that get priority in receiving dividends. The returns could be used to fund future innovation. Politicians and the media have been too quick to criticize public investments when things go wrong and too slow to reward them when things go right.

A PRÓXIMA REVOLUÇÃO

As revoluções tecnológicas do passado - das ferrovias ao automóvel, do programa espacial à tecnologia da informação - não surgiram como resultado de pequenos ajustes no sistema econômico. Ocorreram porque os estados empreenderam missões ousadas que se centraram não na minimização do fracasso governamental, mas na maximização da inovação. Quando se aceita este propósito estatal mais pró-ativo, as questões-chave da política econômica são reformuladas. As questões sobre a exclusão do investimento privado e a escolha imprudente de vencedores caem no esquecimento à medida que questões mais dinâmicas - sobre a criação dos tipos de interações público-privadas que podem produzir novos cenários industriais - chegam ao topo.

Hoje, muitos países, da China à Dinamarca e à Alemanha, definiram a sua próxima missão: a energia verde. Dados os potenciais benefícios e a quantidade de dinheiro em jogo, é crucial que os governos apoiem esta missão da forma correta. Para começar, devem não só escolher diversas tecnologias ou setores nos quais investir, mas também perguntar o que pretendem desses setores. Por exemplo, se o que os governos pretendem do setor energético é um fornecimento estável de energia, então o gás de xisto servirá, mas se a missão for mitigar as alterações climáticas, então não o fará. Na verdade, as políticas orientadas para missões precisam de promover interações entre múltiplos domínios. A missão da NASA à lua exigiu a interação de muitos setores diferentes, desde foguetes até telecomunicações e têxteis. Da mesma forma, a revolução da energia verde exigirá investimento não apenas na energia eólica, na energia solar e nos biocombustíveis, mas também em novos motores, novas formas de manter as infra-estruturas de forma mais eficiente e novas formas de fazer com que os produtos durem mais. Assim, o Estado deve inspirar-se no mundo do capital de risco e diversificar a sua carteira, distribuindo o capital por muitas tecnologias e empresas diferentes.

Ao fazer investimentos verdes, os governos devem financiar as tecnologias que o setor privado tem ignorado e fornecer uma direção forte e clara para a mudança, permitindo que vários empresários experimentem as especificidades. Os governos devem estabelecer metas ambiciosas, não no antigo estilo de comando e controle, mas através de uma combinação de cenouras e castigos. O governo alemão seguiu esta abordagem na sua iniciativa de transição energética, ou Energiewende, que visa eliminar gradualmente a energia nuclear e substituí-la por energias renováveis; está fazendo estabelecendo metas elevadas para a redução das emissões de carbono e subsidiando o desenvolvimento tecnológico da energia eólica e solar.

De um modo mais geral, os governos devem celebrar acordos que lhes permitam partilhar os lucros dos seus investimentos bem-sucedidos. E, acima de tudo, deveriam construir os órgãos públicos do futuro, transformando-os em focos de criatividade, adaptação e exploração. Isso exigirá o abandono da atual obsessão de limitar a intervenção do Estado à resolução dos problemas depois de estes terem acontecido - e a destruição do mito popular de que o Estado não pode inovar.

MARIANA MAZZUCATO é professora de Economia da Inovação na Unidade de Pesquisa em Política Científica da Universidade de Sussex. Ela é autora de The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths.

4 de dezembro de 2014

Quem deve controlar a internet?

Julian Assange sobre viver em uma sociedade de vigilância.

Julian Assange

The New York Times

Tradução / Hoje, dizer que o livro "1984" de George Orwell foi profético já é um clichê jornalístico, e suas profecias são um lugar-comum da modernidade. Sua leitura agora pode ser uma experiência entediante. Comparados às maravilhas oniscientes do estado de vigilância atual, os dispositivos do Big Brother — televisores vigilantes e microfones ocultos — parecem pitorescos, até mesmo reconfortantes.

Tudo sobre o mundo que Orwell imaginou tornou-se tão óbvio que temos dificuldade com as deficiências narrativas do romance.

Impressiono-me mais com outro dos seus oráculos: um ensaio de 1945 intitulado "Você e a Bomba Atômic", em que Orwell antecipa mais ou menos a forma geopolítica do mundo no meio século que se seguiu. "Épocas em que a arma dominante é cara ou difícil de fazer", ele explica. "Será uma era de despotismo, ao passo que, quando a arma dominante é barata e simples, as pessoas comuns têm uma chance. Uma arma complexa deixa o forte mais forte, enquanto uma arma simples — desde que não haja resposta a ela — fortalece os fracos".

Ao descrever a bomba atômica (que havia sido lançada apenas dois meses antes em Hiroshima e Nagasaki) como uma "arma inerentemente tirânica", ele prevê que ela irá concentrar o poder nas mãos de "dois ou três superestados monstruosos" com avançadas bases de indústria e pesquisa necessárias para produzí-la. E se, ele pergunta, "as grandes nações sobreviventes fizessem um acordo tácito para nunca usar a bomba atômica uma contra a outra? E se elas apenas a usassem, ou ameaçassem usá-la, contra povos incapazes de retaliar?".

O resultado provável, ele conclui, seria "uma época tão horrivelmente estável quanto os impérios de escravos da antiguidade". Ao inventar o termo, ele prevê "um permanente estado de 'guerra fria': uma paz sem paz", em que "os povos e as classes oprimidas têm menos perspectivas e esperança".

Há paralelos entre a época de Orwell e a nossa. Por um lado, nos últimos meses, fala-se muito sobre a importância de "proteger a privacidade", mas pouco sobre por que isso é importante. Não é, como nos querem fazer acreditar, que a privacidade seja inerentemente valiosa. Isso não é verdade. A verdadeira razão está no cálculo do poder: a destruição da privacidade amplia o desequilíbrio de poder existente entre as facções que decidem e o povo, deixando "os povos das classes oprimidas", como Orwell escreveu, "ainda mais sem esperança".

O segundo paralelo é ainda mais grave e menos compreendido. Nesse momento, mesmo aqueles que lideram o ataque contra o estado de vigilância continuam a tratar a questão como se ela fosse um escândalo político, culpa de políticas corruptas de alguns homens maus, que devem ser responsabilizados. Acredita-se que as sociedades precisem apenas aprovar algumas leis para corrigir a situação.

A doença é muito mais profundo do que isso. Vivemos não só em um estado de vigilância, mas em uma sociedade de vigilância. A vigilância totalitária não está apenas em nossos governos; está incorporada na nossa economia, em nossos usos mundanos da tecnologia e em nossas interações cotidianas.

O conceito da internet — uma rede única, global, homogênea que abrange o mundo todo — é a essência de um estado de vigilância. A internet foi construída em um modo de vigilância amigável porque os governos e organismos comerciais importantes assim o quiseram. Havia alternativas a cada passo do caminho. Elas foram ignoradas.

Em sua essência, empresas como o Google e o Facebook estão no mesmo ramo de negócio que a Agência de Segurança Nacional (NSA) do governo dos EUA. Elas coletam uma grande quantidade de informações sobre os usuários, armazenam, integram e utilizam essas informações para prever o comportamento individual e de um grupo, e depois as vendem para anunciantes e outros mais. Essa semelhança gerou parceiros naturais para a NSA, e é por isso que eles foram abordados para fazer parte do PRISM, o programa de vigilância secreta da internet. Ao contrário de agências de inteligência, que espionam linhas de telecomunicações internacionais, o complexo de vigilância comercial atrai bilhões de seres humanos com a promessa de "serviços gratuitos". Seu modelo de negócio é a destruição industrial da privacidade. E mesmo os maiores críticos da vigilância da NSA não parecem estar pedindo o fim do Google e do Facebook.

Recordando as observações de Orwell, há um lado "tirânico" inegável na internet. Mas ela é muito complexa para ser inequivocamente classificada como um fenômeno "tirânico" ou "democrático".

Quando os povos começaram a formar cidades, foram capazes de coordenar grandes grupos pela primeira vez e rapidamente ampliar a troca de ideias. Os consequentes avanços técnicos e tecnológicos geraram os primórdios da civilização humana. Algo semelhante está acontecendo em nossa época. É possível se comunicar e fazer negócios com mais pessoas, em mais lugares em um único instante de modo nunca antes visto na história. A mesma evolução que facilita a vigilância da nossa civilização, dificulta sua previsibilidade. Grande parte da humanidade teve facilitada a busca pela educação, a corrida para o consenso e a competição com grupos de poder entrincheirados. Isso é encorajador, mas a menos que seja cultivado, pode ter vida curta.

Se há uma analogia moderna do que Orwell chamou de "arma simples e democrática", que "fortalece os fracos", ela seria a criptografia, a base da matemática por trás do bitcoin e dos programas de comunicações mais seguros. A produção é barata: um software de criptografia pode ser produzido em um computador doméstico. E a distribuição é ainda mais barata: um programa pode ser copiado de uma forma que objetos físicos não podem. Mas também é insuperável — a matemática no coração da criptografia moderna é sólida e pode suportar o poder de uma superpotência. A mesma tecnologia que permitiu que os aliados criptografassem suas comunicações de rádio para protegê-las contra interceptações, agora pode ser baixada através de uma conexão com a internet e instalada em um laptop barato.

Considerando-se que, em 1945, grande parte do mundo passou a enfrentar meio século da tirania em consequência da bomba atômica, em 2015 enfrentaremos a propagação inexorável da vigilância em massa invasiva e a transferência de poder para aqueles conectados às suas superestruturas. É muito cedo para dizer se o lado "democrático" ou o lado "tirânico" da internet finalmente vencerá. Mas reconhecê-los — e percebê-los como o campo de luta — é o primeiro passo para se posicionar efetivamente junto com a grande maioria das pessoas.

A humanidade agora não pode mais rejeitar a internet, mas também não pode se render a ela. Ao contrário, temos que lutar por ela. Assim como os primórdios das armas atômicas inaugurou a Guerra Fria, a lógica da internet é a chave para entender a iminente guerra em prol do centro intelectual da nossa civilização.

1 de dezembro de 2014

Abolir o Senado

O Senado dos EUA é uma das legislaturas mais antidemocráticas do mundo. Ele precisa acabar.

Daniel Lazare


Câmara do Senado. Biblioteca do Congresso

Com as vitórias republicanas no Senado em Montana, Dakota do Sul, Iowa, Arkansas, Colorado, Carolina do Norte e Virgínia Ocidental, os democratas estão se recuperando de sua pior derrota política em décadas. As coisas, proclama a classe dos especialistas, nunca mais serão as mesmas.

A varredura do Partido Republicano do Senado em 2014 é realmente uma grande notícia, e é por isso que gerou manchetes tão grandes. Mas uma história ainda maior diz respeito à natureza da câmara que os republicanos acabaram de capturar.

O Senado dos EUA é agora a legislatura principal menos representativa do “mundo democrático”. Graças ao princípio da representação estadual igualitária, que concede a cada estado dois senadores independentemente da população, a grande maioria das pessoas acaba sendo grosseiramente marginalizada pelo órgão. É um problema que só piorou com o tempo.

  • Embora a Califórnia tenha o mesmo número de votos que Wyoming, sua população, atualmente de 38,3 milhões, é agora cerca de sessenta e cinco vezes maior. Assim, um californiano tem 1,5 por cento do poder de voto nas eleições para o Senado em relação a alguém que vive a apenas algumas centenas de quilômetros a leste.
  • Como a maioria dos americanos vive agora em apenas nove estados, eles acabam com apenas dezoito votos, enquanto a minoria detém oitenta e dois, uma proporção de mais de quatro para um.
  • Graças às bizarras regras de obstrução do Senado, quarenta e um senadores representando menos de 11% da população podem impedir que qualquer projeto de lei seja votado.
  • Graças à exigência de que as emendas constitucionais propostas sejam aprovadas por pelo menos dois terços de cada casa, trinta e quatro senadores de estados que representam apenas 5% da população podem vetar qualquer mudança constitucional, por menor que seja.
  • O mesmo vale para os tratados, que também exigem a aprovação de dois terços.
  • O sistema de "suspensão" do Senado é ainda mais injusto, pois permite que um único senador representando apenas um cidadão em mil paralisar um projeto de lei ou nomeação executiva quase indefinidamente.

O resultado é um dos sistemas de governo minoritário mais distorcidos da história, que permite que pequenos círculos mantenham todo o país como refém até que suas demandas sejam atendidas. O Congresso não é a única legislatura bicameral da Terra. Mas enquanto a Câmara dos Lordes britânica, o Senado holandês e o Bundesrat alemão são muitas vezes menos do que totalmente representativos, seu poder real varia de mínimo a inexistente, o que ajuda a suavizar o golpe.

No entanto, graças ao Artigo I, que dá ao Senado poder de veto sobre tratados e nomeações executivas, a câmara alta dos Estados Unidos é realmente mais poderosa que a inferior e, ao mesmo tempo, muito mais desigual.

É um golpe duplo na democracia que alimenta as piores tendências oligárquicas do capitalismo americano. E, no entanto, o problema é quase completamente invisível. Onde seria de esperar milhões de pessoas nas ruas protestando contra a resistência do governo dos EUA ao voto de uma pessoa, as multidões não estão em lugar algum.

Não é de surpreender que a representação estatal igualitária também se revele racialmente não representativa. Embora os hispânicos e as minorias raciais representem 44% da população nos dez maiores estados, todos fortemente urbanizados, representam apenas 18% dos dez menores estados (nos quais o poder de voto individual é cerca de dezoito vezes maior). Como consequência, os não-brancos acabam sendo extremamente prejudicados. No entanto, embora os líderes das minorias tenham muito a dizer sobre os senadores individuais, parecem não ter nada a dizer sobre o racismo institucionalizado do Senado como um todo.

Outros grupos também são penalizados. Embora as mulheres não sejam afetadas da mesma forma, uma vez que a sua população está distribuída uniformemente, questões como o aborto e a igualdade de remuneração dificilmente são bem servidas por um acordo que multiplique o poder dos conservadores rurais. Mas a comunidade LGBT, cuja base ativista mais expressiva se encontra tipicamente em áreas urbanas, sofre com o reinado do Senado. No entanto, se o Lambda Legal Defense Fund ou outros grupos de defesa dos homossexuais têm algo a dizer sobre a igualdade de representação estatal contrária aos interesses dos seus membros, tem sido tão silencioso que ninguém notou.

O mesmo se aplica aos socialistas, aos sindicatos, aos ativistas dos cuidados de saúde, aos conservacionistas e outros. Todos sofrem sob um sistema de exclusão que priva os moradores urbanos progressistas da sua legítima representação. No entanto, todos são estranhamente aquiescentes.

Se os republicanos propusessem retirar aos trabalhadores 80% dos seus direitos de voto, o alvoroço seria esmagador. Mas como tudo é resultado de forças que os fundadores da nação puseram em movimento há mais de dois séculos, só há silêncio.

Qual pode ser a razão para tal passividade? Qualquer tentativa de resposta requer uma viagem às profundezas do constitucionalismo americano. Como todo estudante de ciências políticas sabe, Roger Sherman, advogado, lojista e agrimensor que se tornou político, apresentou seu famoso Compromisso de Connecticut no meio da Convenção Constitucional de 1787, em um esforço para amenizar os temores de que pequenos estados estivessem prestes a ser inundados por gigantes como Virgínia e Nova York.

Em vez de um sistema unicameral, a modesta proposta de Sherman era dividir a responsabilidade legislativa entre uma câmara baixa que cuidaria dos interesses populares e uma câmara alta que cuidaria dos interesses dos estados. Nasceu o bicameralismo americano, uma variação da divisão do Parlamento britânico entre comuns e senhores.

Mas isso não era tudo o que o compromisso implicava. Também exigia que a câmara alta fosse pelo menos tão poderosa quanto a câmara baixa para garantir que os interesses do Estado seriam adequadamente protegidos, bem como modificações na cláusula de alteração para garantir que o acordo fosse efetivamente imune à pressão popular. O resultado foi o aumento do poder do Senado sobre os tratados e nomeações estabelecidos no Artigo I, além de uma cláusula no Artigo V que estipula “que nenhum Estado, sem o seu consentimento, será privado do seu sufrágio igual no Senado”.

Onde outras partes da Constituição podem ser alteradas com a aprovação de dois terços de cada câmara e três quartos dos estados, qualquer desvio do princípio da representação igualitária do estado no Senado é proibido sem o consentimento unânime dos estados.

Isso foi suficiente para tornar o Senado praticamente intocável em 1790, quando Delaware tinha menos de um duodécimo do tamanho da Virgínia. Mas à medida que o número de estados cresceu e as disparidades populacionais aumentaram, as garantias tornaram-se ainda mais rígidas. Hoje, um microestado demográfico como o Wyoming retira tantos benefícios do sistema que as probabilidades de algum dia dizer sim à reforma aproximam-se de zero. A própria ideia é indescritível.

Tendo em conta estes obstáculos, os americanos tomaram a decisão pragmática de se concentrarem naquilo que podem mudar e ignorarem o que não podem. Mas o problema envolve não apenas impedimentos legais específicos, mas também a própria natureza da Constituição e o seu lugar na sociedade em geral.

Os americanos pensam na sua Constituição como um documento que se eleva sobre a sociedade, o que não surpreende, uma vez que precedeu a nação e essencialmente lhe deu origem, um processo que continuou durante a Guerra Civil e mesmo depois.

A Declaração de Independência não disse nada sobre um Estado-nação, referindo-se, em vez disso, apenas às “boas pessoas destas colõnias”, que “de direito deveriam ser Estados livres e independentes”. Os Artigos da Confederação, adotados em 1781, foram igualmente cautelosos, especificando que “cada estado mantém a sua soberania, liberdade e independência” e caracterizando a nova união como nada mais do que “uma firme liga de amizade”.

“Nós, o povo”, a famosa frase de abertura da Constituição de 1787, foi a primeira referência oficial aos americanos como algo que se aproxima de uma entidade única.

Os americanos consideram isso perfeitamente natural. Afinal, a Constituição criou o governo federal, que lançou então as bases para os primeiros movimentos de uma sociedade unificada. Mas em outros lugares o processo foi diferente. A partir da primavera de 1789, os franceses convocaram a primeira assembleia nacional, emitiram a Declaração dos Direitos do Homem e invadiram a Bastilha, tudo sem redigir uma constituição até mais de dois anos depois.

A Constituição deu origem à nação na América, a nação deu origem à constituição na França.

Como resultado, a nação americana esteve acima da Constituição num caso e abaixo dela noutro. O preâmbulo aparentemente estabelece “nós, o povo” como a autoridade máxima no país, uma vez que os descreve como ordenando um plano de governo e, no processo, descartando implicitamente outro, os malfadados Artigos da Confederação.

Mas a Constituição passa então a subordinar o povo, limitando severamente a sua capacidade de alterar um documento feito em seu nome e, pelo menos num caso, o da representação igualitária do Estado, eliminando-o completamente. A Constituição estabeleceu o povo como soberano e não-soberano praticamente ao mesmo tempo.

É tentador descartar os resultados como pouco mais que uma confusão. Se um camelo é um cavalo concebido por um comit~e, então a Constituição, o produto de quatro meses de trabalho de cinquenta e cinco comerciantes, fazendeiros e advogados, é um dromedário multicorcunda saído diretamente do Dr. Seuss.

Mas também se poderia descrevê-lo em termos mais modernos como uma espécie de programa de computador antigo, que liga um processador, liga-o e depois ordena-lhe que execute determinadas tarefas específicas. A Constituição confere ao povo o poder suficiente para desempenhar as funções que ela dita.

Se assim for, isto explica muita coisa sobre o sistema político americano - o seu baixo nível ideológico, a sua estreiteza de debate, a sua total negligência. Em vez de pensarem livremente sobre os problemas que têm pela frente, exige-se dos americanos - programados, na verdade - que pensem apenas de forma ditada pelos fundadores.

São criaturas de uma democracia pré-ordenada que limita o seu papel ao preenchimento de certas lacunas. Discutirão interminavelmente sobre a cláusula “necessária e adequada” no Artigo I ou sobre o significado da Segunda Emenda, mas nunca sobre a razão pela qual, depois de mais de dois séculos, deveriam permanecer vinculados a tais preceitos em primeiro lugar. Debatem o que a Constituição lhes permite debater e desconsideram o resto.

Daí o silêncio sobre a natureza antidemocrática do Senado. Dado que a representação estatal igualitária é a parte mais imóvel da estrutura política, é a característica mais resistente à pressão popular e, portanto, a que está mais fora dos limites do debate.

Os americanos fazem campanha a favor e contra vários candidatos ao Senado, gastam milhões em anúncios políticos e batem no peito quando o lado errado vence. Mas nunca param para se perguntar por que razão jogam este jogo ou qual o propósito que ele serve numa sociedade democrática.

Como não estão programados para pensar nessas questões, eles não estão mais inclinados a fazê-lo do que um laptop está inclinado a pensar nos méritos do Microsoft Word.

Isto é o equivalente ao que o teórico político escocês da Nova Esquerda, Tom Nairn, certa vez descreveu como “socialismo real”, a noção de que os deputados trabalhistas podem nacionalizar a indústria, expandir o estado de bem-estar social e promover a igualdade, tudo isso enquanto se ajoelham diante da rainha e rezam por um título de nobreza. Assume que o progresso pode continuar indefinidamente dentro de certos parâmetros fixos, sejam os de uma constituição não escrita no Reino Unido ou de um documento escrito de 227 anos nos Estados Unidos que é praticamente inalterável.

Mas não pode. Em vez de um Estado operário, o socialismo real na Grã-Bretanha levou à grotesca hipocrisia dos anos Tony Blair e à crescente ditadura financeira da city de Londres. A versão americana resultou em algo ainda pior: o eclipse do trabalho organizado e um aumento dramático na polarização dos rendimentos, para não mencionar a crise econõmica, o desemprego e a guerra no Oriente Médio.

As restrições constitucionais conseguem, portanto, virar-se contra os seus apoiadores e mordê-los no traseiro quando menos esperam. O que parece generoso e complacente numa época torna-se sufocante e restritivo noutra. Nos Estados Unidos, toda uma geração atingiu a maioridade pensando no Supremo Tribunal como a chave para o progresso social. O congelamento profundo poderia continuar no Capitólio enquanto Ike continuava a passear pelo campo de golfe, mas “as Supremas” devolveriam toda a sua glória à Declaração de Direitos.

Mas isso foi no século passado. Com o tribunal restaurado ao seu conservadorismo histórico normal e o poder executivo provavelmente também a se inclinar para a direita em 2016, a estratégia está agora esgotada. Entretanto, no Congresso, a guerra de trincheiras torna-se cada vez mais perigosa.

O colunista nacional Alexander Cockburn trabalhou para dar um toque positivo ao impasse. “Gostamos disso”, escreveu ele em 2000, porque impede os conservadores de forçar iniciativas como a privatização da Segurança Social e os vouchers escolares. Mas isso estava errado naquela época e ainda mais errado agora.

A longo prazo, é evidente que o impasse faz o jogo da direita que não sabe nada, que quer que os americanos acreditem que a democracia é igual ao domínio da multidão e que o governo é um beco sem saída. Quanto mais a democracia é amarrada, mais frustrados ficam os trabalhadores e mais os interesses corporativos têm o campo só para si.

O Senado é agora o centro da conspiração. Os republicanos estão regozijados com o que provavelmente será uma maioria de 54 a 46. Mas como as suas forças estão concentradas em estados menos populosos no Oeste e no Sul, eles representam, na verdade, menos americanos do que a maioria das pessoas imagina - apenas 46 por cento.

Em termos democráticos - os únicos termos, claro, que contam - eles ainda são o partido minoritário. Mas isso não os impedirá de aproveitar ao máximo as suas prerrogativas constitucionais.

Os calouros republicanos do próximo ano incluem trogloditas como o executivo de software Steve Daines, de Montana, que afirma que os ciclos solares causam o aquecimento global; o milionário “especialista em recuperação” David Perdue, da Geórgia, que disse num comício de campanha: “Acredito no bom Deus, acredito na Bíblia e acredito na nossa Constituição”; e o executivo da IBM, Thom Tillis, da Carolina do Norte, que é anti-aborto, anti-controle de natalidade e, ainda por cima, cético em relação ao aquecimento global.

Uma estrutura cada vez mais antidemocrática alimenta um ataque antidemocrático crescente. No entanto, o problema só pode piorar. Ao longo da próxima década, prevê-se que a porção branca dos dez maiores estados continue a descer, enquanto o oposto ocorrerá nos dez mais menores.

Até 2030, estima-se que o rácio populacional entre o maior e o menor estado aumente de sessenta e cinco para um para quase oitenta e nove para um. Como consequência, o Senado será mais racista, menos representativo e mais um brinquedo nas mãos da direita militante.

Se quiser saber como será o futuro, parafraseando Orwell, imagine a velha legislatura pré-reforma do estado do Mississippi pisando na democracia - para sempre. Os reformadores enfrentarão uma luta difícil, mesmo na defesa dos ganhos existentes. No entanto, não haverá nada que os liberais possam fazer a respeito sem contrariar as regras que anteriormente exaltavam. As suas opções serão ficar de braços cruzados e observar enquanto a democracia se desfaz rapidamente ou, de alguma forma, avançar para uma nova direção radical.

Com a crescente polarização dos rendimentos e uma Constituição cada vez mais rígida, a estrutura política dos EUA é mais frágil do que a maioria das pessoas imagina. Os americanos não tiveram a oportunidade de votar a Constituição como um todo desde as batalhas de ratificação de 1787-88. E uma vez que apenas os proprietários brancos do sexo masculino foram autorizados a votar - com apenas um quarto a optar por fazê-lo - essas eleições dificilmente se qualificam como democráticas.

“Nós, o povo”, portanto, nunca foram consultados. Eles simplesmente concordaram. Mas a grande questão é: por quanto tempo?

Colaborador

Daniel Lazare é o autor de The Velvet Coup: The Constitution, the Supreme Court and the Decline of American Democracy

A alemã tranquila

A surpreendente ascensão de Angela Merkel, a mulher mais poderosa do mundo.

George Packer


Herlinde Koelbl fotografa Merkel desde 1991. Koelbl diz que Merkel sempre foi "um pouco desajeitada", mas "você podia sentir sua força desde o começo". Fotografias por Herlinde Koelbl/ Agentur Focus/ Contact Press Images.

Tradução / Tarde de verão no Reichstag. A cúpula de vidro filtra a luz de Berlim, iluminando os turistas na rampa espiralada e penetrando no salão do Parlamento. Metade dos assentos reservados aos deputados está vazia. Da tribuna, uma figura baixinha, um tanto encurvada, de casaquinho fúcsia, calça comprida preta e um penteado semelhante a um capacete “cor de burro quando foge”, lê um discurso. Angela Merkel, chanceler da República Federal da Alemanha, faz todo o esforço para não ser interessante.

“Desde o início da crise na Ucrânia, estamos executando uma política com três vertentes”, diz ela, com os olhos no papel. Sua oratória monocórdica leva a plateia a prestar atenção em outra coisa. “Ao lado da primeira vertente, o apoio à Ucrânia, há uma segunda, que é o empenho incessante para encontrar, por meio do diálogo com a Rússia, uma solução diplomática para a crise.” Durante anos, falar em público sempre lhe foi penoso, sobretudo por não saber o que fazer com as mãos. Com o tempo, ela aprendeu a juntar as pontas dos dedos, formando um losango sobre a barriga.

O prédio do Reichstag foi construído na década de 1880, sob o governo do imperador Guilherme I e do chanceler Otto von Bismarck, quando uma Alemanha recém-unificada ascendia pela primeira vez a uma posição de destaque na Europa. Dois dias antes do fim da Primeira Guerra Mundial, um político social-democrata interrompeu seu almoço no interior do Reichstag, postou-se numa sacada do 1º andar do edifício e declarou a morte da Alemanha imperial: “Vida longa à República Alemã!” O Reichstag foi a sede do turbulento Parlamento durante a República de Weimar e os primórdios do governo nazista, até que, na noite de 27 de fevereiro de 1933, um incêndio suspeito teve início no plenário e quase devastou o edifício. O novo chanceler da Alemanha, Adolf Hitler, correu para o local em companhia de seu assessor Joseph Goebbels e pôs a culpa do fogo nos comunistas, valendo-se da crise para suspender liberdades civis, esmagar a oposição e consolidar o poder nas mãos do partido nazista. O Parlamento votou por sua própria insignificância, e os nazistas nunca reformaram o prédio. Quando a Segunda Guerra Mundial terminava, os soviéticos – que viam no Reichstag o símbolo do Terceiro Reich – fizeram do edifício um alvo primordial na batalha por Berlim. A fotografia de um soldado do Exército Vermelho hasteando a bandeira de seu país em meio às estátuas neoclássicas do telhado transformou-se na imagem da derrota alemã.

Durante a Guerra Fria, a cúpula arruinada do Reichstag e suas paredes repletas de buracos de balas não passavam de relíquias abandonadas na terra de ninguém que era o Centro de Berlim. O Muro, construído em 1961, ficava a poucos metros dos fundos do edifício, mantido a salvo das intempéries por uma reforma mínima efetuada na década de 60. De modo geral, o Reichstag permaneceu marginalizado até a Queda do Muro, em 1989. À meia-noite de 3 de outubro de 1990, postado do lado de fora do prédio, o presidente Richard von Weizsäcker anunciou – diante de uma multidão de 1 milhão de pessoas – a reunificação da Alemanha, em liberdade e paz. Berlim se tornou a capital do país.

Ao longo da década seguinte, até que o Bundestag, a Câmara dos Deputados, começasse a se reunir ali oficialmente, a reconstrução do Reichstag se deu em meio a um debate franco e carregado de simbolismo – assim como o edifício em ruínas evocava os anos de totalitarismo, sua reconfiguração expressava uma Alemanha reunificada. A cúpula magnífica, projetada por Norman Foster, sugeria transparência e abertura. Obedecendo a um senso de fidelidade histórica, preservou-se a sentença DEM DEUTSCHEN VOLKE (Ao Povo Alemão) – feita do metal de canhões franceses capturados nas Guerras Napoleônicas –, que encimava as colunas da entrada. Após discussões no Parlamento, porém, encomendou-se a um artista teuto-americano a criação de um jardim interno, no qual a frase DER BEVÖLKERUNG (À População), desprovida do tom nacionalista do antigo lema, foi instalada em letras brancas em meio às plantas. Durante a reforma, descobriram nas paredes do 1º andar rabiscos em cirílico feitos por soldados do Exército Vermelho. Depois de novo debate, algumas dessas inscrições foram preservadas: nomes de combatentes, “de Moscou a Berlim, 9/5/45” e mesmo “Meti no cu de Hitler”. Lembretes históricos.

Nenhum outro país exibe a memória de seus conquistadores em seu mais importante edifício público. Os crimes alemães foram únicos, mas único também é seu modo de acertar as contas com a história. Ao integrar slogans dos soldados vitoriosos à sede de seu Parlamento, a Alemanha mostra que aprendeu lições essenciais de seu passado (coisa que os russos não aprenderam). Encarando o século XX, os alemães abraçam uma narrativa de libertação de si próprios do pior de sua história. Em Berlim, as reminiscências estão por toda parte. Basta pegar o metrô na Stadtmitte, entre o Memorial aos Judeus Mortos da Europa e o museu Topografia do Terror, dedicado aos crimes da Gestapo, e dar uma olhadinha nas notícias que o monitor de vídeo exibe: “Há oitenta anos, o PEN Clube de Berlim foi forçado a se exilar.” Qual um aplicado paciente psicanalítico, a Alemanha trouxe seu passado à superfície, discutiu-o infinitamente, aceitou-o, e esse trabalho de muitos anos a libertou, possibilitando-lhe uma vida nova e bem-sucedida.

Da tribuna, Merkel continua falando. Relata uma reunião em Bruxelas do Grupo dos Sete, que acaba de expulsar seu oitavo membro, a Rússia, por causa da guerra na Ucrânia. “Seremos persistentes quando se tratar de estabelecer a liberdade, a justiça e a autodeterminação no continente”, diz. “Nossa tarefa é proteger o caminho soberano da Ucrânia e responder com ideias do século XXI globalizado à ultrapassada noção das esferas de influência, que remonta aos séculos XIX e XX.” Merkel alcançou o ápice de sua retórica – o tom monótono se desacelera, sua mão faz um gesto sutil, esticando os dedos. Para quem não fala alemão, é como se ela estivesse lendo as normas de regulação do sistema ferroviário nacional.

A chanceler recebe um longo aplauso e vai se acomodar atrás da tribuna, entre os ministros de seu gabinete. Merkel perdeu 10 quilos – no início de 2014 fraturou a pélvis num acidente de esqui e, acamada, trocou os sanduíches de linguiça por cenouras. O rosto mais fino, os olhos fundos e as bochechas caídas denunciam seu cansaço. Ela é chanceler desde 2005 e ganhou um terceiro mandato em setembro de 2013, sem nenhum rival à vista.

Discurso encerrado, é a vez da oposição, ou do que resta dela. A coalizão governista, formada pelos democratas-cristãos do CDU – o partido de Merkel – e pelos sociais-democratas do SPD, tem 80% das cadeiras no Bundestag. O Partido Verde, que foi mal na eleição de 2013, tem tido dificuldade para diferenciar sua agenda da de Merkel, a quem com frequência apoia. No momento, a oposição ficou restrita ao Die Linke, o partido de esquerda composto, em sua maioria, de políticos da antiga Alemanha Oriental, com apenas 10% dos assentos. De terninho vermelho brilhante, a marxista ortodoxa Sahra Wagenknecht sobe à tribuna e passa a repreender Merkel pela política externa e econômica, responsável, afirma, por trazer o fascismo de volta à Europa. “Não podemos continuar abusando da posição altamente perigosa, semi-hegemônica, para a qual o país derrapou, no velho e implacável estilo alemão”, declara a deputada. Em seguida, cita o historiador francês Emmanuel Todd: “Sem dar-se conta, os alemães mais uma vez caminham para levar a calamidade aos demais povos europeus e, mais tarde, a si próprios.”

Merkel a ignora. Ri de alguma coisa com seu ministro da Economia, Sigmar Gabriel, e com o ministro das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, ambos sociais-democratas. Enquanto Sahra Wagenknecht acusa o governo de apoiar fascistas em Kiev, Merkel se levanta para conversar com os ministros da fila de trás. Retorna à cadeira e remexe na bolsa vermelho-alaranjada, que destoa do casaquinho. Quando ergue os olhos para a oradora, ela o faz com um misto de tédio e desdém.

A deputada conclui sua catilinária, e os únicos a aplaudi-la são os membros de seu partido, isolados na extrema esquerda do plenário. Um a um, parlamentares do SPD e do Partido Verde se apresentam para defender Merkel. “Como é que a senhora pode nos comparar, a nós, alemães, com os fascistas?”, pergunta uma das líderes dos Verdes, Katrin Göring-Eckardt, e é aplaudida. Outra parlamentar, essa do Die Linke, intervém com uma citação de Bertolt Brecht: “Quem não sabe a verdade é só estúpido, mas quem sabe e diz que é mentira é criminoso.” Katrin se sente injuriada. A vice-presidente do Bundestag exige que a deputada do Die Linke obedeça ao protocolo. Merkel segue ignorando a discussão; em certo momento, chega a voltar as costas para o plenário; em outro, deixa o salão. Mais tarde, os noticiários falarão em cenas dramáticas no normalmente sonolento Bundestag, mas a linguagem corporal de Merkel é inequívoca: o drama foi obra de uma minoria insignificante. A chanceler tem o Parlamento sob controle.

O historiador Fritz Stern considera a era da reunificação “a segunda chance da Alemanha” – uma nova oportunidade para que ela desfrute da posição de o mais poderoso país europeu, depois do catastrófico período que começou um século atrás. Merkel parece perfeitamente adequada às exigências dessa segunda chance. Num país que a retórica apaixonada e a pose de macho conduziram à ruína, o distanciamento analítico e a ausência de um ego aparente são vantagens políticas. Num continente em que o medo da Alemanha está longe de haver desaparecido, a chanceler, com seu ar de pessoa comum, atenua a eventual ameaça que uma Alemanha novamente em ascensão possa ocasionar. Os alemães a chamam de Mutti, “mamãe”. No início o apelido pretendia ser um insulto de seus adversários no CDU, e ela não gostou; mas, tão logo ele pegou, ela o adotou.

Enquanto boa parte da Europa está estagnada, a Alemanha é um gigante econômico, com desemprego baixo e uma sólida base manufatureira. A atual crise monetária da zona do euro transformou a maior nação credora da Europa numa superpotência regional. Se os Estados Unidos mergulham numa desigualdade cada vez mais profunda, a Alemanha preserva sua classe média e um alto nível de solidariedade social. Jovens indignados ocupam as praças em diversos países, mas na Alemanha as multidões se reúnem para concertos ao ar livre e para celebrar a Copa do Mundo. Hoje quase pacifista, a Alemanha ficou de fora de boa parte das guerras recentes, que se revelaram expedições punitivas inúteis para outros países ocidentais. Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2014, partidos da extrema esquerda e da extrema direita cresceram por todo o continente; na Alemanha, os vencedores foram centristas cujos rostos insipidamente afáveis sorriam nos cartazes, nenhum deles mais onipresente que o de Merkel, que nem sequer estava na disputa. A política americana está tão polarizada que o Congresso parou de funcionar na prática; o consenso na Alemanha é tão estável que novas leis brotam do Parlamento, ainda que o debate relevante tenha quase desaparecido.

“Autocrítica e autodepreciação integram a história de sucesso alemã – fortalecer-se odiando a si mesmo”, disse-me Mariam Lau, que cobre política para o semanário Die Zeit. “E Merkel também teve de se reeducar. Ela é fruto da autorreeducação da Alemanha.”


Entre os líderes alemães, Angela Merkel configura uma anomalia tripla: é mulher (divorciada, casada de novo, sem filhos), é cientista (química quântica) e é uma Ossi (ou seja, proveniente da Alemanha Oriental). Embora tais atributos façam dela uma outsider na política alemã, eles também ajudaram a impulsionar sua extraordinária ascensão. E, no entanto, na tentativa de explicar seu sucesso, alguns observadores olham para todos os lados, menos para a própria chanceler. Ao longo de sua carreira, a atual chanceler tem feito políticos mais velhos e mais poderosos – quase todos homens – pagarem um preço alto por subestimá-la.

Merkel nasceu em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, em 1954. Seu pai, Horst Kasner, era pastor da Igreja Luterana, uma das poucas instituições que operou nas duas Alemanhas. Severo e exigente, ele atravessou a fronteira com a família poucas semanas depois que Angela nasceu – e contra o desejo da mulher –, para assumir missões eclesiásticas na República Democrática Alemã. Naquele ano, quase 200 mil alemães orientais fugiram na direção contrária. A decisão insólita de Kasner valeu-lhe a pecha de “pastor vermelho” por parte de dirigentes da igreja alemã-ocidental. Joachim Gauck, ex-pastor e dissidente alemão-oriental – eleito presidente da Alemanha (cargo em grande parte decorativo) em 2012 –, certa vez disse a um colega que, no lado comunista, os membros da Igreja Luterana mantinham distância de Kasner, integrante da Federação dos Pastores Evangélicos, controlada pelo Estado. Segundo a maioria dos relatos, as motivações de Kasner eram tanto carreiristas como ideológicas.

Angela, a mais velha de três filhos, foi criada nos arredores de Templin, uma cidade de paralelepípedos entre os pinheiros da floresta de Brandemburgo, ao norte de Berlim. Os Kasner moravam no seminário em Waldhof, um complexo de cerca de trinta edificações, muitas do século XIX, pertencente à Igreja Luterana. Waldhof abriga – até hoje – centenas de deficientes físicos e mentais, que lá aprendem um ofício e trabalham na agricultura. Ulrich Schöneich, administrador do local na década de 80, disse que no período comunista o lugar era horrível, com até sessenta homens entulhados num único cômodo, mobiliado apenas com camas de armar. Merkel certa vez comentou ter visto residentes amarrados a bancos, mas acrescentou: “Crescer perto de pessoas com deficiências foi uma experiência importante. Aprendi a tratá-los de um jeito muito normal.”

A formação de Angela num país comunista foi tão normal quanto ela conseguiu fazer que o fosse. “Nunca senti a RDA como meu país natal”, ela afirmou à fotógrafa alemã Herlinde Koelbl em 1991. “Tenho um espírito relativamente ensolarado e sempre tive a expectativa de que minha trajetória de vida seria também relativamente ensolarada, a despeito do que acontecesse. Nunca me permiti ser amarga. Sempre me vali da margem de liberdade que a RDA me permitia [...] Não havia sombra sobre minha infância. E, mais tarde, agi de maneira tal a não me colocar em permanente conflito com o Estado.” Durante sua primeira campanha para a chefia do governo, em 2005, Merkel descreveu seus cálculos de forma mais direta: “Decidi que, se o sistema se tornasse demasiado terrível, eu tentaria fugir. Mas, se as coisas não fossem tão ruins, eu não faria da minha vida uma luta contra o sistema, porque tinha medo do mal que aquilo poderia me causar.”

Ser filha de um pastor protestante do Ocidente implicava privilégios e riscos. Os Kasner tinham dois carros: o onipresente Trabant – um caixote de lata de baixa potência que se tornou objeto de uma Ostalgiekitsch – e um Wartburg, mais luxuoso, que era o carro oficial da igreja. A família recebia roupa e comida de parentes em Hamburgo, assim como Forumschecks, cheques em marcos ocidentais aceitos nas lojas de hotéis de Berlim Oriental que vendiam produtos do Oeste. “Eles pertenciam à elite”, disse Erika Benn, a professora de russo de Angela em Templin. A igreja, porém, mantinha certa independência do Estado, o bastante para que os Kasner vivessem sob suspeita. Durante a infância de Angela, organizações religiosas passaram a ser vistas como agentes da inteligência ocidental. Em 1994, um relatório oficial sobre a repressão na Alemanha Oriental concluiu: “Ao final da RDA, o país de Martinho Lutero havia sido descristianizado.”

Quem mais sofria na família era Herlind, a mãe de Angela, que transmitiu à filha a paixão pelo estudo. Professora de inglês, todo ano ela solicitava um emprego às autoridades educacionais, e elas sempre lhe respondiam não haver vagas disponíveis, embora carecessem de professores de inglês.

Angela era desajeitada, tanto que mais tarde ela se classificaria como “uma idiota motora”. Aos 5 anos, mal conseguia descer uma ladeira sem cair. “O que uma pessoa normal faz automaticamente para mim era, primeiro, um esforço mental, depois, objeto de exaustivos exercícios”, disse certa vez. De acordo com Erika Benn, na adolescência Merkel nunca foi “atirada” nem namoradeira. Não ligava para roupas, “sempre sem cor”, e “o corte de cabelo era uma coisa: ela parecia ter uma panela na cabeça”. Um ex-colega de escola certa vez a caracterizou como membro do Clube das Bocas Virgens, as que nunca foram beijadas – o tal colega se tornou chefe de polícia de Templin e quase perdeu o emprego quando esse comentário foi ventilado. Merkel era uma estudante excepcional, com uma motivação feroz. Um parceiro político de longa data identifica naqueles primeiros anos em Templin a origem do ímpeto da chanceler. “Ela decidiu: ‘Não quer me comer? Tudo bem. Eu é que vou engolir você com as armas de que disponho’”, disse-me ele. “E essas armas eram sua inteligência, sua vontade e seu poder.”

Quando Angela estava na 8ª série, Erika Benn a recrutou para o Clube Russo, treinando-a para a Olimpíada de Língua Russa da Alemanha Oriental. Durante os ensaios de pequenos esquetes, a professora precisava exortar a aluna a erguer os olhos e sorrir ao oferecer um copo d’água a um colega: “Será que você poderia ser um pouco mais simpática?” Merkel saiu-se vencedora em todos os níveis, da competição entre escolas à nacional, feito que conseguiu três vezes, para a glória de Frau Benn, um membro do partido com ambições compatíveis com sua cidadezinha. Em seu apartamento em Templin, Erika Benn, hoje com 76 anos, mostrou com orgulho um certificado de vitória de 1969. “O busto de Lênin está no porão”, acrescentou. Pouco antes de morrer, em 2011, Horst Kasner enviou um recorte de jornal a uma colega de Erika com uma foto da filha ao lado de Vladimir Putin. O presidente da Rússia externava sua admiração pelo fato inédito de poder conversar em sua língua materna com um líder mundial.

In 1970, an incident exposed the fragile standing of the bürgerlich Kasner family. At a local Party meeting, the Russian Club’s latest triumph was announced, and Benn expected praise. Instead, the schools supervisor observed acidly, “When the children of farmers and workers win, that will be something.” Benn burst into tears.

Angela Merkel estudou física na Universidade de Leipzig e concluiu um doutorado em química quântica em Berlim. Como nunca bateu de frente com o partido, foi favorecida no momento de ser aceita na pós-graduação. Ulrich Schoeneich – que, depois da reunificação, tornou-se prefeito de Templin – expressou sua amargura por não terem cobrado de Merkel sua acomodação ao sistema. O pai dele, Harro, também tinha sido pastor protestante, mas, ao contrário de Kasner, discordava publicamente do regime. Schoeneich se recusou a entrar para a Juventude Livre Alemã, a “reserva combatente” do partido, organização à qual a maioria dos adolescentes da RDA aderia, inclusive Angela Kasner, que dela participou até a idade adulta. “Não apenas como um nome a mais, mas como a responsável por agitação e propaganda”, contou ele, mencionando Das Erste Leben der Angela M. [A Primeira Vida de Angela M.], uma recente e controvertida biografia da chanceler. E acrescentou: “Estou convencido de que ela só pôde fazer o doutorado porque era ativa na Juventude Livre Alemã, até mesmo na pós-graduação. Muitos dizem que éramos coagidos, mas eu sou a prova de que ninguém era obrigado a entrar para a organização.” A própria Merkel já admitiu que seu envolvimento era “70% oportunismo”.

Ulrich Schoeneich não obteve permissão para terminar o colegial, e passou boa parte da juventude pagando o pato pela oposição de sua família ao regime. Angela Kasner tinha outros planos para o futuro e fez, no máximo, uma oposição passiva. Evelyn Roll, uma das biógrafas da chanceler, descobriu um documento da Stasi de 1984 que a descrevia como “bastante crítica em relação ao Estado”, e prosseguia: “Desde a fundação do Solidariedade na Polônia, ela foi uma entusiasta de suas reivindicações e ações. Ainda que Angela identifique na União Soviética uma ditadura a que todos os demais países socialistas obedecem, ela é fascinada pela língua russa e pela cultura soviética.”

Rainer Eppelmann, corajoso clérigo dissidente do comunismo, conheceu Merkel logo após a Queda do Muro e se recusa a criticá-la: “As pessoas, em sua maioria, apenas sussurravam. Nunca diziam o que pensavam, o que sentiam, do que tinham medo. Até hoje, não temos plena consciência do efeito disso nos indivíduos.” Eppelmann acrescenta: “Para ser fiel a suas esperanças, ambições, crenças e sonhos, era preciso ser herói 24 horas por dia. Ninguém consegue.”

Depois de 1989, quando Merkel teve a oportunidade de entrar na política democrática, essas mesmas qualidades lhe foram úteis, mas de outra maneira. Eppelmann explica: “Uma pessoa acostumada a sussurrar pode ter mais facilidade para aprender uma vida nova: espera para ver, em vez de pôr tudo para fora de uma vez – ou seja, reflete antes de falar. Quem sussurra pensa: ‘Como é que posso dizer isso sem me prejudicar?’ É como um jogador de xadrez. Tenho a impressão de que ela pensa com mais cuidado e está sempre alguns lances à frente do adversário.”


Em 1977, aos 23 anos, Angela se casou com o físico Ulrich Merkel, mas o casamento logo fracassou, acabando em 1981. Passou a década final da RDA como química quântica na Academia de Ciências da Alemanha Oriental, uma sombria instalação de pesquisa em frente a um quartel da Stasi. Era a única mulher na seção de química teórica – observadora sagaz e curiosa a respeito de tudo.

Pessoas que acompanharam sua carreira atribuem a chave de seu sucesso político ao hábito de pensar em termos científicos. “Ela é praticamente a melhor analista de qualquer situação que eu possa imaginar”, afirma um alto funcionário do governo. “Examina vários vetores, extrapola e diz: ‘As coisas estão indo nessa direção.’” Treinada para ver o mundo invisível das partículas e das ondas, Merkel aborda os problemas de maneira metódica, traçando comparações, imaginando cenários, pesando riscos, prevendo reações e, então, mesmo depois de tomada a decisão, deixa-a descansar antes de agir. Certa vez, ela contou um episódio de sua infância: havia ficado em pé no trampolim durante toda a aula de natação – só pulou na piscina quando a campainha tocou.

Distanciamento científico e cautela podem ser qualidades complementares numa ditadura. No caso de Merkel, a essas características juntaram-se os modos reticentes, com uma pitada de ironia, de uma mulher navegando por um mundo masculino. She once joked to the tabloid Bild Zeitung, with double-edged self-deprecation, “The men in the laboratory always had their hands on all the buttons at the same time. I couldn’t keep up with this, because I was thinking. And then things suddenly went ‘poof,’ and the equipment was destroyed.” Throughout her career, Merkel has made a virtue of biding her time and keeping her mouth shut.

“Ela não é uma mulher de emoções fortes”, diz Bernd Ulrich, subeditor do Zeit. “Emoção demais perturba a razão. She watches politics like a scientist.” He called her “a learning machine.” Volker Schlöndorff, the director of “The Tin Drum” and other films, got to know Merkel in the years just after reunification. “Before you contradict her, you would think twice—she has the authority of somebody who knows that she’s right,” he said. “Once she has an opinion, it seems to be founded, whereas I tend to have opinions that I have to revise frequently.”

De manhãzinha, Merkel deixava seu apartamento em Prenzlauer Berg – um bairro boêmio perto do Centro – e pegava o trem para a Academia de Ciências. Em vários trechos, seu trem corria paralelamente ao Muro, os telhados de Berlim Ocidental quase ao alcance da mão. Às vezes, ia para o trabalho em companhia de um colega, Michael Schindhelm. “Todo dia, desde cedo, você se confrontava com o absurdo desta cidade”, ele lembrou. Schindhelm considerava Merkel a pesquisadora mais séria da seção de química teórica, invariavelmente frustrada pela falta de acesso a publicações e cientistas ocidentais. Sempre que os colegas desciam para saudar a caravana que trazia do aeroporto alguma autoridade do mundo comunista, ela ficava trabalhando. “Queria mesmo chegar a algum lugar”, recorda o ex-colega. “Outros só queriam saber de ficar naquele nicho confortável, enquanto o país ia para o brejo.”

Em 1984, Schindhelm e Merkel passaram a dividir um escritório e, entre um e outro café turco que ela fazia, aproximaram-se. Os dois tinham uma visão relativamente crítica da Alemanha Oriental. Schindhelm estudara cinco anos na União Soviética e, quando as primeiras notícias da perestroika de Mikhail Gorbachev começaram a chegar, Merkel perguntou ao colega se ele via potencial de mudança naquele movimento. Ambos sentiam que o mundo além-Muro era mais desejável do que aquele em que viviam. (Years later, Schindhelm, who became a theatre and opera director, was revealed to have been coerced by the Stasi into serving as an informer, though he apparently never betrayed anyone.)

One day in 1985, Merkel showed up at the office with the text of a speech by the West German President, Richard von Weizsäcker, given on the fortieth anniversary of the end of the Second World War. Weizsäcker spoke with unprecedented honesty about Germany’s responsibility for the Holocaust and declared the country’s defeat a day of liberation. He expressed a belief that Germans, in facing their past, could redefine their identity and future. In the West, the speech became a landmark on the country’s return to civilization. But in East Germany, where ideology had twisted the history of the Third Reich beyond recognition, the speech was virtually unknown. Merkel had procured a rare copy through her connections in the Church, and she was deeply struck by it.

Being an East German meant retaining faith in the idea of Germany even though many West Germans, who needed it less, had given up on reunification. As East Germany decayed, its citizens had nothing else to hold on to, whereas Westerners had been taught to suppress feelings of nationhood. “People were really lacking identity—there was an enormous vacuum to making sense of your existence,” Schindhelm said. Merkel’s excitement about the speech showed that “she had a very particular passion for Germany as a country, its history and culture.”

No ano seguinte, Merkel foi autorizada a ir ao casamento de um primo em Hamburgo. Depois de experimentar os trens milagrosamente confortáveis da Alemanha Ocidental, ela voltou a Berlim Oriental convencida de que o sistema socialista estava condenado. “Voltou muito impressionada, mas voltou”, disse Schindhelm. “Ficou na Alemanha Oriental não por lealdade ao Estado, mas porque era onde tinha sua rede de conhecidos, sua família.” Merkel, aos 30 e poucos anos, ansiava por 2014, quando, aos 60 anos, receberia a aposentadoria e teria permissão para viajar à Califórnia.


A segunda vida de Angela Merkel começou na noite de 9 de novembro de 1989. Em vez de se juntar à multidão delirante que afluía ao recém-aberto Muro, ela foi com uma amiga a sua sauna das quintas-feiras. Mais tarde cruzou o lado ocidental pelo controle da Bornholmer Strasse, mas, em vez de se encaminhar, como os demais, às lojas elegantes da Kurfürstendamm, logo voltou para casa – trabalhava no dia seguinte e precisava levantar cedo. Nos meses seguintes, porém, nenhum alemão-oriental agarrou as novas liberdades com mais fervor do que Angela Merkel. Poucos princípios irredutíveis ficaram evidentes em sua carreira política, mas um deles é o direito de perseguir a própria felicidade. “Não são muitos os sentimentos que ela preza, mas a liberdade é um deles”, afirmou Katrin Göring-Eckardt, a líder do Partido Verde. “E isso, claro, tem a ver com a experiência de alguém que cresceu numa sociedade que censurava os jornais, bania os livros e proibia as viagens.”

Um mês depois da Queda do Muro, Merkel visitou o Despertar Democrático, um novo grupo político cujo escritório ficava perto de seu apartamento. “Posso ajudar?”, perguntou. E logo a encaminharam para instalar os computadores que haviam sido doados pelo governo alemão-ocidental. Voltava sempre, embora de início quase ninguém tenha notado sua presença. Era um momento em que as coisas acontecem rapidamente e o acaso e as circunstâncias podem fazer toda a diferença. Em março de 1990, o líder do Despertar Democrático, Wolfgang Schnur, foi denunciado como informante da Stasi e, numa reunião de emergência, Rainer Eppelmann, o clérigo dissidente, foi escolhido para substituí-lo. Merkel foi incumbida de cuidar da multidão ruidosa de jornalistas, e ela o fez com tamanha calma e confiança que, passadas as eleições daquele mês na Alemanha Oriental, Eppelmann sugeriu o nome dela para porta-voz do primeiro e último primeiro-ministro eleito democraticamente no país: Lothar de Maizière.

“Ela era fleissig – o contrário de preguiçosa”, lembra Eppelmann. “Nunca se colocava em primeiro plano. Entendia que tinha um trabalho a fazer ali, e que precisava fazê-lo bem, mas que não era a chefe.” De Maizière já tinha um porta-voz, e Merkel se tornou a porta-voz assistente. “O Número 1 só se exibia, enquanto era ela quem fazia todo o trabalho”, conta Eppelmann. E assim Merkel ganhou a confiança de De Maizière, que passou a levá-la consigo em visitas a capitais estrangeiras. Certa ocasião, ele descreveu Merkel como uma “típica cientista da RDA”, de “saia longa, sandálias com tiras de couro e cabelo batidinho”. Depois de uma viagem ao exterior, ele pediu que seu staff a levasse para comprar roupas.

o começo dos anos 90, o cineasta Volker Schlöndorff, diretor de O Tambor, frequentou jantares mensais de um pequeno grupo de pessoas – do Leste e do Oeste – que incluía Merkel e seu parceiro, Joachim Sauer, outro cientista. (Eles viriam a se casar em 1998.) A cada encontro os convivas se reuniam numa casa diferente. O anfitrião falava de sua formação, e assim se sabia um pouco de como era a vida de um e outro lado. Schlöndorff viu em Merkel uma interlocutora muito séria, mas espirituosa. Num fim de tarde, na casa de campo extremamente modesta que ela e Sauer haviam construído perto de Templin, os dois foram passear pelos arredores. “Conversamos sobre a Alemanha, sobre o futuro do país”, Schlöndorff lembra. “Fui irônico e sarcástico, mas aquilo não colava com ela. Era como se me dissesse: ‘Olha, vamos falar sério, não se pode brincar com esses assuntos.’”

A determinação de entrar para a política é o principal mistério de uma vida opaca. Angela Merkel raras vezes fala sobre si mesma em público e nunca explicou essa decisão. Não foi um plano de longo prazo. Como a maioria dos alemães, ela não previu o colapso repentino do comunismo nem as oportunidades que ele acarretou. Mas, chegado o momento, Merkel, aos 30 e poucos anos, viu-se solteira e sem filhos, trabalhando numa instituição sem futuro da Alemanha Oriental. Uma mulher ambiciosa como ela há de ter compreendido que a política seria a esfera mais dinâmica da nova Alemanha. Schlöndorff resume: “Hesitante, ela agarrou a oportunidade.”

Na verdade, a reunificação significou a anexação do Leste pelo Oeste, o que demandava que se dessem a alemães-orientais postos importantes no governo. O fato de Merkel ser mulher e jovem fazia dela uma opção bastante atraente. O Despertar Democrático se fundiu ao CDU antes da primeira eleição na Alemanha reunificada, em outubro de 1990, e ela conquistou uma cadeira de deputada. Mexeu seus pauzinhos e foi apresentada ao chanceler Helmut Kohl, a quem De Maizière sugeriu seu nome para o gabinete. Para surpresa de Merkel, ela foi nomeada ministra da pasta Mulheres e Juventude – um posto, segundo admitiu a um jornalista, que não a interessava minimamente. Não era feminista nem tinha como causa a defesa da paridade econômica para a antiga Alemanha Oriental. Na verdade, não tinha agenda política. De acordo com Karl Feldmeyer, repórter de política do Frankfurter Allgemeine, ela era movida por um “instinto perfeito para o poder”.

Kohl, à época no auge, apresentava Merkel a dignitários estrangeiros como uma peça rara, diminuindo-a ao chamá-la de mein Mädchen – “minha garota”. Foi preciso ensiná-la a usar cartão de crédito. As reuniões de gabinete eram dominadas pelo chanceler e Merkel, embora sempre bem preparada, raramente falava. Em seu Ministério, no entanto, era respeitada pela eficiência com que absorvia informações, e temida por seu temperamento e falta de papas na língua. Segundo sua biógrafa Evelyn Roll, ela ganhou o apelido de “Angie, a cobra”, e a fama de ser pouco receptiva a críticas. Em 1994, ao ser nomeada para o Meio Ambiente, ela exonerou o mais importante funcionário do Ministério quando ele sugeriu que ela precisaria de sua ajuda para tocar o trabalho.

Em 1991, Herlinde Koelbl deu início a seu projeto Vestígios do Poder – ao longo de uma década, ela fotografaria políticos alemães, para registrar em que medida a vida pública os modificaria. A maior parte dos homens – como Gerhard Schröder, social-democrata que se tornou chanceler em 1998, e Joschka Fischer, que foi seu ministro das Relações Exteriores – pareceu inflar de orgulho. Herlinde disse que Merkel permaneceu ela mesma: “Um tanto desajeitada em sua linguagem corporal.” Todavia, acrescentou, “podia-se sentir sua força desde o começo”. No primeiro retrato, com o queixo ligeiramente caído, ela olha para a câmera; não demonstra propriamente timidez, e sim prudência. As fotografias sucessivas revelam uma confiança crescente. Nas sessões, Merkel estava sempre com pressa, sem tempo para conversa mole. “Schröder e Fischer são vaidosos”, diz Koelbl. “Merkel não, continua sem vaidade. E isso a ajudou, porque, se você é vaidoso, vê tudo de forma subjetiva. Se não é, é mais objetivo.”

Fazer política numa democracia era um jogo que Merkel tinha de aprender com o mesmo método que ensinara seu corpo a controlar sua “idiotia motora”, aos 5 anos. Tornou-se uma estudante tão aplicada que preocupou alguns colegas da antiga Alemanha Oriental. Petra Pau, deputada do Die Linke, certa feita flagrou-a dizendo: “Nós, alemães-ocidentais...” Mas o que fez de Merkel uma figura potencialmente transformadora na política alemã foi que, no fundo, ela não era parte daquilo. O CDU era mais receptivo que o SPD a alemães-orientais de mentalidade liberal. Mas era também um patriarcado enfadonho, cuja base era o sul católico da Alemanha. “Mentalmente, ela nunca integrou o CDU”, observa Feldmeyer, o jornalista do Frankfurter Allgemeine. “É estranha a tudo no partido. Ele não passa de uma ferramenta para o poder dela.”

Alan Posener, do jornal conservador Die Welt, disse: “A pauta que motiva a base do CDU nada significa para ela” – questões como “mães que trabalham fora, casamento gay, imigração, divórcio”. O mesmo vale para a aliança transatlântica com os Estados Unidos, a pedra fundamental da segurança da Alemanha Ocidental. Posener disse que Merkel estudou os detalhes dessa aliança “no manual do CDU”. Michael Naumann, editor de livros e jornalista que foi ministro da Cultura de Schröder, comenta: “A atitude dela em relação aos Estados Unidos é uma atitude aprendida.” Dirk Kurbjuweit, biógrafo de Merkel e jornalista da revista Spiegel, afirma: “Ela de fato preza a liberdade, porque sofreu com a falta dela na RDA. Por outro lado, aprendeu a democracia – não é uma democrata inata, como ocorre com os americanos.”

Os políticos da Alemanha Ocidental da geração de Merkel se formaram nas rebeliões culturais subsequentes às revoltas de 68, que mal chegaram a ela. Certa noite, num jantar em meados da década de 90, Merkel pediu ao ex-radical Schlöndorff que lhe explicasse a violência cometida pelo grupo Baader-Meinhof. Ele lhe disse que os jovens queriam romper com a cultura autoritária que vigorava na Alemanha, mesmo com a derrota dos nazistas. Quanto mais explicava, menos ela parecia se solidarizar: não era contra a autoridade, a não ser aquela do tipo praticado na Alemanha Oriental. No Ocidente, os jovens reclamavam do quê? Para Merkel, os alemães-ocidentais pareciam crianças mimadas.

A despeito de todo o terreno que ela teve de recuperar em sua educação política, ser alemã-oriental lhe deu certas vantagens: tinha a autodisciplina, a força de vontade e o silêncio como ferramentas essenciais. “Para sobreviver e ter sucesso, cometer erros estava fora de questão”, disse Feldmeyer.

No início de sua carreira política, Merkel contratou a jovem Beate Baumann, do CDU, para administrar seu escritório. Baumann, até hoje sua conselheira mais influente, era a Número 2 perfeita: leal, discreta e a única que se dirigia à chefe com total franqueza. “Baumann não podia ser uma política, e Merkel não estava familiarizada com o Ocidente”, disse Bernd Ulrich, do Zeit. “Ela era sua intérprete para tudo que fosse tipicamente alemão-ocidental.” Cansadas das atitudes intimidatórias e presunçosas de Kohl, as duas praticavam uma forma de “crueldade invisível”: jogavam duro, mas saboreavam as vitórias em particular, sem provocar inimizades desnecessárias. “O estilo delas”, diz Ulrich, “não é o de House of Cards.” Numa única e rara oportunidade, Merkel mostrou os dentes. Em 1996, durante negociações sobre uma lei relativa a lixo atômico, Gerhard Schröder, a dois anos de se tornar chanceler, classificou de “lamentável” o desempenho dela como ministra do Meio Ambiente. Na sessão de fotos daquele ano, Merkel afirmou a Herlinde Koelbl: “Eu vou encurralá-lo, como ele fez comigo. Ainda preciso de tempo, mas esse dia vai chegar.” Foram necessários nove anos para que se cumprisse seu veredicto.


Em 1998, em meio a uma recessão, Schröder derrotou Kohl e se tornou chanceler. No verão seguinte, Volker Schlöndorff, numa recepção ao ar livre em sua casa em Potsdam, apresentou Merkel a um produtor de cinema e, meio brincando, chamou-a de “a primeira chanceler da Alemanha”. Merkel fuzilou-o com o olhar, como se ele a tivesse forçado a mostrar suas cartas – Como você se atreve?–, o que convenceu Schlöndorff de que ela de fato queria o cargo. O produtor, um integrante do CDU, mal pôde acreditar. Schlöndorff comentou: “Esses caras cujo partido estava no poder desde sempre não podiam imaginar que uma mulher pudesse se tornar chanceler – e ainda por cima uma alemã-oriental.”

Em novembro de 1999, o CDU foi engolido por um escândalo de financiamento de campanha, acusado de não declarar doações em dinheiro e de possuir contas bancárias secretas. Tanto Kohl como seu sucessor na chefia do partido, Wolfgang Schäuble, estavam implicados, mas Kohl era tão reverenciado que ninguém no CDU ousava criticá-lo. Merkel, que ascendera ao posto de secretária-geral do partido depois da derrota nas eleições, viu sua oportunidade. Telefonou para Karl Feldmeyer e disse: “Eu gostaria de dar algumas declarações para o seu jornal.”

“A senhora sabe o que quer dizer?”, perguntou Feldmeyer.

“Tenho tudo por escrito.”

Feldmeyer sugeriu que, em vez de uma entrevista, ela publicasse um artigo. Cinco minutos mais tarde, um fax chegou, e Feldmeyer espantou-se ao ler seu conteúdo. Merkel, uma figura relativamente nova no CDU, conclamava o partido a romper com seu líder de tanto tempo: “É hora de aprender a andar e se lançar em futuras batalhas contra os oponentes políticos sem ‘o velho cavalo de guerra’, como tantas vezes Kohl referia-se a si próprio”, escreveu Merkel. “Nós, que hoje carregamos a responsabilidade pelo partido – e não tanto Helmut Kohl –, decidiremos que caminhos tomar na nova era.” Ela publicou o artigo sem avisar Schäuble, o presidente do CDU, envolvido no escândalo. Num gesto que misturava virtude protestante com crueldade, a “garota” de Kohl se desprendia de seu genitor político e apostava a própria carreira num oferecimento explícito para ocupar seu lugar. Deu certo. Em poucos meses, Merkel era eleita presidente do partido, e Kohl se retirava para a história. “Ela enfiou a faca nas costas dele e girou duas vezes”, diz Feldmeyer. Foi o momento em que pela primeira vez muitos alemães se deram conta da existência de Angela Merkel.

Anos mais tarde, num jantar, Michael Naumann perguntou a Kohl: “Herr Kohl, o que ela quer de fato?”

“Poder”, foi a resposta concisa. A outro amigo, Kohl disse que seu apoio à jovem Merkel tinha sido o maior erro de sua vida: “Trouxe comigo a minha assassina”, disse ele. “Enrolei a cobra no braço.”

Em 2002, Merkel se viu à beira de perder uma votação no CDU que definiria o candidato a chanceler nas eleições daquele ano. Às pressas, ela agendou um café da manhã com seu rival, o líder bávaro Edmund Stoiber, na terra natal dele. Disciplinada o bastante para controlar as próprias ambições, Merkel disse a Stoiber que estava retirando sua candidatura em favor da dele. Ao evitar uma derrota que teria prejudicado seu futuro dentro do partido, Merkel acabou fortalecendo sua posição. Stoiber perdeu para Schröder, e ela foi em frente, suplantando uma série de pesos-pesados do Oeste. Esperava até que cometessem um erro ou que se engolissem uns aos outros, antes de se livrar de cada um deles com um peteleco.

John Kornblum, ex-embaixador dos Estados Unidos na Alemanha que continua morando em Berlim, disse: “Se você cruzar o caminho dela, vai acabar morto. Ela não é fácil. Há toda uma lista de machos alfa que pensaram poder derrubá-la. Todos mudaram de ramo.” No quinquagésimo aniversário de Merkel, em 2004, o político conservador Michael Glos publicou uma homenagem a ela:

Cuidado: despretensão pode ser uma arma! [...] Um dos segredos do sucesso de Angela Merkel é que ela sabe lidar com homens vaidosos. Sabe que o momento certo de abater um pavão é quando ele está cortejando a fêmea. Angela Merkel é uma caçadora paciente de pavões. Com a paciência de um anjo, ela espera o momento adequado.

A política alemã estava entrando numa nova era. À medida que o país se tornava mais “normal”, já não precisava de líderes que também fossem figuras paternas dominadoras. “Merkel teve a sorte de viver numa época em que a figura do macho estava em declínio”, diz Ulrich. “Os homens não notaram isso, mas ela sim. Não precisou lutar contra eles.” E acrescenta: “Se tem uma coisa que ela conhece, essa coisa é o macho a ser abatido. É o que ela come no café da manhã, no lugar dos cereais.” A aparência física pouco atraente, combinada à opacidade emocional, tornou difícil aos rivais reconhecer a ameaça que ela representava. “Não é fácil conhecê-la, e essa é a razão do seu sucesso”, afirma o parceiro político de longa data. “It seems she is not from this world. Psychologically, she gives everybody the feeling of ‘I will take care of you.’ ”

Quando Schröder antecipou as eleições em 2005, Merkel se tornou a candidata do CDU à Chancelaria. Na política dos machos, Schröder e Fischer – valentões de rua que adoravam uma discussão política e vinhos caros, com um total de sete ex-mulheres, somando os dois – tinham precedência. Ambos desprezavam Merkel, e o sentimento era recíproco. Segundo Dirk Kurbjuweit, da Spiegel, Schröder e Fischer às vezes riam como “garotos num playground” quando Merkel discursava no Bundestag. Em 2001, depois da publicação de fotos que mostravam Fischer, ainda jovem militante nos anos 70, atacando um policial, Merkel o condenou, declarando-o inepto para a vida pública até que “pagasse” por seus erros – um comentário que muitos alemães acharam demasiado veemente. Durante a campanha de 2005, Fischer disse em conversas particulares que Merkel era incapaz para o exercício do cargo.

À época, Schröder governava numa coalizão com os verdes, e o público se cansara da prolongada estagnação econômica. Durante boa parte da campanha, o CDU liderou com folga, mas os sociais-democratas diminuíram a diferença e, no dia da eleição, os dois partidos apareceram praticamente empatados no voto popular. Alan Posener, do Welt, viu Merkel naquela noite, no quartel-general do CDU. Ela parecia ter murchado, ladeada por políticos que dispensara no passado e que não escondiam sua alegria. Merkel havia cometido dois erros quase fatais. O primeiro, pouco antes da invasão do Iraque – impopular na Alemanha e repudiada por Schröder –, ao publicar um artigo no Washington Post intitulado “Schröder não fala por toda a Alemanha”, no qual por pouco não declarou apoio à guerra. “Mais uma frase a favor de Bush e contra Schröder, e hoje ela não seria chanceler”, opina Ulrich. O segundo, pelo fato de muitos de seus conselheiros, defensores do livre mercado, advogarem mudanças tributárias e trabalhistas que iam muito além do que os alemães aceitariam. Passados quinze anos, ela ainda não conseguia detectar as inclinações da opinião pública.

Na noite da eleição, Schröder, Fischer e outras lideranças partidárias se reuniram num estúdio de tevê para discutir os resultados. Merkel, parecendo exausta e em choque, permanecia quase muda. Schröder, cabelos castanhos tingidos e penteados para trás, sorria irônica e maliciosamente e, na prática, declarou-se o vencedor. “Continuarei sendo chanceler”, disse. “O senhor acredita mesmo”, perguntou a um dos moderadores, “que meu partido aceitaria uma oferta da senhora Merkel para conversar, se ela diz que gostaria, ela própria, de se tornar chanceler? Sejamos objetivos.” Muitos telespectadores pensaram que ele estivesse bêbado. Enquanto Schröder seguia se gabando, Merkel foi aos poucos ganhando vida, como se a performance do chanceler a divertisse. Ela pareceu se dar conta de que a fanfarronice de Schröder acabava de lhe garantir a chancelaria. Com um leve sorriso, pôs Schröder no devido lugar. “Falando clara e simplesmente, o senhor não ganhou hoje”, disse. De fato, o CDU tinha uma vantagem minúscula. “Com um pouco de tempo para refletir, até os sociais-democratas vão acabar aceitando essa realidade. E prometo que não vamos virar as regras democráticas de cabeça para baixo.”

Dois meses depois, Angela Merkel tomava posse como primeira chanceler da Alemanha.


Aqueles que conhecem Merkel dizem que ela é tão animada e divertida em privado quanto soporífera em público – uma cisão no modo de se apresentar que ela aprendeu ainda jovem, como alemã-oriental. (Por intermédio de seu porta-voz, Merkel, que dá poucas entrevistas – quase sempre para publicações alemãs e todas elas anódinas –, recusou uma conversa comigo.) Em papos off the record com jornalistas alemães, ela reproduz diálogos inteiros que teve com outros líderes mundiais e faz excelentes imitações. Entre seus alvos preferidos já figuraram Kohl, Putin, o recentemente falecido rei Abdullah, da Arábia Saudita, o papa Bento XVI e Al Gore. (“Ah have to teach mah people,” she mimics, in a Prussian approximation of central Tennessee.) Após uma reunião com Nicolas Sarkozy, durante a crise do euro, Merkel contou a um grupo de jornalistas que o pé do presidente francês balançava o tempo todo.

Schlöndorff once asked Merkel what she and other leaders discuss during photo ops. The Chancellor described one such moment with Dmitri Medvedev, who briefly interrupted Putin’s fifteen-year reign as Russia’s President. She and Medvedev were posing for the cameras in Sochi when, gesturing toward the Black Sea, she said, in the Russian she had learned from Frau Benn, “President Putin told me that every morning he swims a thousand metres out there. Do you do things like that?” Medvedev replied, “I swim fifteen hundred metres.” To Schlöndorff, the story showed that, “even when she is involved, she is never so totally involved that she could not observe the way people behave and be somehow amused by it.”

“Ela é mestre na arte de ouvir”, diz o parceiro político de longa data. “Numa conversa, fala 20% do tempo, e você, oitenta. Dá a todo mundo aquela impressão de ‘eu quero ouvir o que você tem a dizer’. Mas a verdade é que forma seu juízo em três minutos, e às vezes acha que os dezoito restantes são um desperdício de tempo.” She is like a computer—‘Is this possible, what this man proposes?’ She’s able in a very quick time to realize if it’s fantasy.”

Merkel também é capaz de causar embaraço a seus subordinados. Certa vez, num quarto de hotel de Viena, ela contava a assessores da chancelaria e do Ministério das Relações Exteriores histórias engraçadas de viagens que fizera quando estudante. Os assessores se dobravam de tanto rir, até que ela os cortou: “Eu já contei essa história a vocês.” Eles insistiram que não, nunca tinham ouvido aquilo, mas não adiantou: madame chanceler os estava chamando de bajuladores. Depois das eleições de 2013, ela encontrou o líder social-democrata Sigmar Gabriel, que hoje é seu ministro da Economia. Gabriel a apresentou a um de seus assessores, dizendo: “Ele é quem tem estado de olho em mim nos últimos anos, para garantir que eu não faça nenhuma besteira em público.” Merkel emendou na lata: “E tem funcionado, de vez em quando.”

“Schadenfreude”, rir da desgraça alheia, “é a maneira que ela tem de se divertir”, afirma Kurbjuweit, da Spiegel.

Como chanceler, Angela Merkel tem procurado ficar o mais próximo possível da opinião pública alemã. Segundo Posener, depois de quase perder para Schröder, ela disse a si mesma: “Quero ser tudo para todas as pessoas.” Tanto críticos como apoiadores a descrevem como uma estrategista talentosa, mas desprovida de uma visão mais ampla. Kornblum, o ex-embaixador, certa vez perguntou a um assessor de Merkel sobre a visão de longo prazo de sua chefe. “Sua visão de longo prazo é de cerca de duas semanas”, foi a resposta. O termo pejorativo mais frequentemente empregado contra ela é “oportunista”. Quando perguntei a Katrin Göring-Eckardt, a líder do Partido Verde, se a chanceler tinha algum princípio, ela fez uma pausa e respondeu: “Ela valoriza muito a liberdade. Todo o resto é negociável.” (Outros alemães acrescentaram à lista o apoio firme a Israel.)

“As pessoas dizem que não há um projeto, que não há uma ideia”, diz o alto funcionário – aquele que afirmara não conhecer melhor analista que ela –, “que são nove anos de um zigue-zague de jogadas inteligentes.” Mas, completa, “ela diria que os tempos não favorecem estratégias ambiciosas”. Americans don’t like to think of our leaders as having no higher principles. We want at least a suggestion of the “vision thing”—George H. W. Bush’s derisive term, for which he was derided. But Germany remains so traumatized by the grand ideologies of its past that a politics of no ideas has a comforting allure.

O desafio mais assustador enfrentado por Angela Merkel tem sido a crise na zona do euro, que ameaçou derrubar economias do sul da Europa e pôs em risco a integridade da moeda única. Para ela, a crise confirmou o perigo que iniciativas muito ambiciosas podem representar. Kohl, que pensava em termos históricos, atrelou a Alemanha a uma moeda europeia sem a união política que poderia fazer com que isso funcionasse. “Acabou virando uma máquina infernal”, afirma o alto funcionário. “Ela ainda está tentando consertá-la.”

As decisões tomadas por Merkel no momento mais agudo da crise refletem cálculos de um político mais preocupado com seus eleitores do que com seu lugar na história. No final de 2009, quando se soube que a dívida grega chegara a níveis críticos, ela demorou a se comprometer a colocar dinheiro dos contribuintes alemães num fundo de resgate. A Alemanha tinha, de longe, a economia mais forte da Europa, com uma indústria e exportações robustas que se beneficiaram do enfraquecimento do euro. No governo de Schröder, reformas trabalhistas e da previdência social haviam tornado o país mais competitivo, e Merkel colheu os benefícios. Ao longo de toda a crise, ela mergulhou em minúcias econômicas e se recusou a ir além do que os eleitores alemães – que tendiam a ver os gregos como perdulários e preguiçosos – estariam dispostos a aceitar, ainda que essa demora prolongasse o problema e ameaçasse o próprio euro. O romancista e jornalista Peter Schneider a comparou a um motorista na neblina: “Você só vê 5 metros adiante, e não 100; portanto, é melhor ser cauteloso, não dizer muita coisa, dar um passo de cada vez. Ou seja, visão nenhuma.”

Karl-Theodor zu Guttenberg, que foi ministro da Defesa entre 2009 e 2011, disse que Merkel optou por uma abordagem “maquiavélica” da crise. Manteve todas as possibilidades pelo máximo de tempo possível e, depois, encobriu suas decisões numa “nuvem de complexidade”. “Isso lhe possibilitou mudar de opinião diversas vezes, mas, à época, ninguém notou”, disse o ex-ministro. No fim, sob a pressão de outros líderes europeus e do presidente Obama, Merkel endossou em maio de 2010 um plano que, mediante a compra de títulos gregos pelo Banco Central Europeu, impediria um default da Grécia – como, aliás, o Federal Reserve havia feito durante a crise financeira norte-americana. Em troca, os países do sul da Europa se submeteram a regras orçamentárias estritas e à supervisão de seus bancos centrais pela União Europeia. Merkel percebeu que não podia permitir que a crise da zona do euro arruinasse o projeto de unidade europeia. “Se o euro acabar, a Europa acaba”, declarou. O euro foi salvo, mas à custa de políticas ruinosas de austeridade e de alto desemprego. Em boa parte da Europa, predomina o ressentimento em relação à filha do pastor protestante, vista como uma puritana rígida e dona da verdade, enquanto o apoio à União Europeia cai a seus níveis históricos mais baixos.

O compromisso com uma Europa unida não provém de um idealismo de Merkel, mas de sua percepção dos interesses alemães – uma forma branda de nacionalismo que reflete a confiança e a força crescente do país. O problema alemão histórico, o país que Henry Kissinger descreveu como “grande demais para a Europa, mas pequeno demais para o mundo”, só pode ser superado com uma Europa unida. Segundo Kurbjuweit, o biógrafo, “ela precisa da Europa porque – e isto é duro de dizer, mas é verdade – a Europa torna a Alemanha maior”.

Yet Merkel’s austerity policies have helped make Europe weaker, and Europe’s weakness has begun affecting Germany, whose export-driven economy depends on its neighbors for markets. The German economy has slowed this year, while European growth is anemic. Nevertheless, Germany remains committed to a balanced budget in 2015, its first since 1969, and is standing in the way of a euro-zone monetary policy of stimulating growth by buying up debt. In recent weeks, with global markets falling, a divide has opened between Merkel and other European leaders.

After 2005, Merkel had to mute her free-market thinking at home in order to preserve her political viability. Instead, she exported the ideas to the rest of the Continent, applying them with no apparent regard for macroeconomic conditions, as if the virtues of thrift and discipline constituted the mission of a resurgent Germany in Europe. Merkel é obcecada com questões demográficas e de competitividade. Adora ler gráficos. Em setembro, um dos seus principais assessores me mostrou uma pilha de gráficos que ela acabara de examinar. Mostravam o desempenho relativo de diferentes economias europeias com base numa variedade de indicadores. Em termos do custo unitário do trabalho, destacou ele, a Alemanha possui índices bem abaixo da média da zona do euro, mas a população alemã – a maior da Europa – está estagnada e envelhecendo. “Um país como esse não pode se endividar mais e mais”, concluiu o assessor.

Stefan Reinecke, do diário esquerdista Tageszeitung, observa: “Não importa o discurso que esteja fazendo, depois de meia hora, quando todo mundo já dormiu, Merkel diz três coisas: que a Europa tem apenas 7% da população mundial, 25% da produção econômica, mas 50% do gasto com o bem-estar social – e precisamos mudar isso.” Ela se queixa de que a Alemanha não tem um Vale do Silício. “Não existe um Facebook ou uma Amazon alemães”, diz o assessor. “Além disso, há essa tendência que você pode ver em Berlim: somos tão afluentes que imaginamos que sempre vai ser assim, mesmo sem saber de onde virá a riqueza. Somos totalmente acomodados.”

O fato de a Alemanha ser forte demais, enquanto a Europa é demasiado fraca, deixa os alemães extremamente inquietos. Mas Merkel jamais discute o problema. Joschka Fischer – que já a elogiou em outras questões – critica esse silêncio. “Intelectualmente, é um desafio muito grande transformar a força nacional em força europeia”, diz ele. “E a maioria da elite política e econômica na Alemanha, incluindo a chanceler, não tem a menor ideia de como fazer isso.”


Os dois líderes mundiais com quem Merkel mantém as mais importantes e complexas relações são Obama, a quem ela respeita com certa relutância, e Putin, por quem ela nutre profunda desconfiança. Quando o Muro caiu, Putin era um major da kgb lotado em Dresden. Valendo-se de seu alemão fluente e de um revólver, impediu que uma multidão de alemães-orientais invadisse o escritório da KGB e pilhasse documentos secretos, que posteriormente destruiu. Doze anos mais tarde, um Putin bem mais conciliador falou ao Bundestag “na língua de Goethe, Schiller e Kant”, declarando a Rússia um “país europeu amistoso” cujo “principal objetivo é uma paz estável no continente”. Louvou a democracia, condenou o autoritarismo e foi ovacionado por uma plateia que incluía Angela Merkel.

Depois de décadas de guerra, destruição e ocupação, as relações entre Alemanha e Rússia retornavam à dinâmica mais amistosa que prevalecia antes do século XX. Os formuladores das políticas alemãs falaram em “parceria estratégica” e numa “reaproximação pela via da integração econômica”. Em 2005, Schröder aprovou a construção de um gasoduto que cruzava o mar Báltico até a Rússia. Ele e Putin ficaram amigos, e Schröder caracterizou o russo como um “democrata impecável”. Na última década, a Alemanha se tornou uma das maiores parceiras comerciais da Rússia, que agora fornece 40% do gás consumido na Alemanha. Duzentos mil cidadãos russos vivem na Alemanha, e a Rússia possui extensos vínculos com o empresariado alemão e com o SPD.

Como na juventude viajava de carona pelas repúblicas soviéticas, conversando na língua local, Merkel – mais do que os outros políticos ocidentais – é sensível às aspirações e aos ressentimentos russos. Em seu escritório, há um retrato emoldurado de Catarina, a Grande, a imperatriz nascida na Prússia que no século XVIII conduziu a Rússia a uma época de ouro. Como ex-alemã-oriental, porém, a chanceler tem poucas ilusões a respeito de Putin. Depois que ele discursou no Bundestag, Merkel disse a um colega: “É a típica conversa da KGB. Nunca confie nesse sujeito.” Ulrich, do Zeit, afirma: “Ela sempre foi cética em relação a Putin, mas não o odeia. Odiar seria emoção demais para ela.”

Quando Putin e Merkel se encontram, nas vezes em que conversam em alemão – ele fala melhor a língua dela que ela a dele –, o russo corrige seu próprio intérprete, para que a interlocutora saiba que nada lhe escapa. O tipo de macho que Putin representa desperta nela uma espécie de interesse científico. Em 2007, na residência do presidente russo em Sochi, os dois discutiam sobre o fornecimento de energia. O anfitrião chamou seu labrador preto, Koni, para dentro da sala onde ocorria a conversa. Quando o cachorro se aproximou de Merkel, a chanceler ficou paralisada. Certa ocasião, em 1995, um cachorro a mordera, e aquele trauma não há de ter escapado ao anfitrião, que se recostou na poltrona para desfrutar do momento, as pernas bem abertas. “Tenho certeza de que ele vai se comportar”, disse. Merkel teve a presença de espírito de responder, em russo: “Bom, ele pelo menos não come jornalistas.” A imprensa alemã ficou furiosa com o tratamento dispensado à chanceler e estava “disposta a dar um murro em Putin”, segundo um repórter que estava presente. Mais tarde, Merkel interpretou o comportamento dele: “Eu entendo por que Putin precisa fazer isso. É para provar que é homem”, disse. “Teme a própria fraqueza. A Rússia não tem nada, não tem uma política nem uma economia bem-sucedida. Ela só tem isso.”

No começo de 2008, quando George W. Bush tentou trazer a Ucrânia e a Geórgia para a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, Merkel bloqueou a iniciativa, preocupada com a reação russa e com a desestabilização que aquilo poderia provocar na fronteira oriental da Europa. No mesmo ano, depois de a Rússia invadir duas regiões da Geórgia – Abecásia e Ossétia do Sul –, ela mudou de ideia e se mostrou aberta à entrada da Geórgia na Otan. Merkel continuou tentando manter o equilíbrio entre a unidade europeia, a aliança com os Estados Unidos, os interesses comerciais da Alemanha e as relações com a Rússia. Atribui-se ao imperador Guilherme I a observação de que somente Bismarck, que atrelou a Alemanha a um conjunto de alianças que se contrabalançavam, era capaz de tamanho malabarismo, mantendo quatro ou cinco bolinhas no ar. Seu sucessor, Leo von Caprivi, queixou-se de que mal conseguia equilibrar duas; em 1890, pôs fim ao tratado da Alemanha com a Rússia, contribuindo para o cenário que levou à Primeira Guerra Mundial.

Quando, em março de 2014, a Rússia anexou a Crimeia e incitou uma guerra separatista no leste da Ucrânia, coube a Merkel obter sucesso naquilo que líderes alemães anteriores haviam fracassado catastroficamente.


A agressão russa à Ucrânia espantou os alemães, assombrados pela história e defensores da obediência às regras. “Putin surpreendeu todo o mundo, Merkel inclusive”, disse-me o assessor graduado da chanceler. “A rapidez, a brutalidade, a frieza. É tão século XX – os tanques, a propaganda, os agentes provocadores.”

Suddenly, everyone in Berlin was reading Christopher Clark’s “The Sleepwalkers,” about the origins of the First World War. The moral that many Germans drew was to tread carefully—small fires could quickly turn into conflagrations. During a discussion about the First World War with students at the German Historical Museum, Merkel said, “I am regarded as a permanent delayer sometimes, but I think it is essential and extremely important to take people along and really listen to them in political talks.”

Embora tenha descartado qualquer reação militar, a chanceler declarou que as ações da Rússia eram inaceitáveis – a integridade territorial era parte inviolável da ordem europeia no pós-guerra – e exigiam uma resposta séria do Ocidente. Pela primeira vez depois de ocupar o cargo, Merkel não tinha o público a seu lado. As primeiras pesquisas de opinião mostravam que a maioria dos alemães queria que ela adotasse uma posição intermediária entre o Ocidente e a Rússia. Uma minoria substancial – sobretudo na antiga Alemanha Oriental – se solidarizava com o argumento russo de que a expansão da Otan havia forçado Putin a agir defensivamente, e que os líderes ucranianos eram provocadores fascistas. Helmut Schmidt, o ex-chanceler social-democrata, manifestou opiniões nesse sentido, assim como Gerhard Schröder – que agora atuava como lobista para uma companhia controlada pela gigante russa de petróleo e gás, a Gazprom, e que havia comemorado seu septuagésimo aniversário com Putin, em São Petersburgo, um mês depois de a Rússia anexar a Crimeia. The attitude of Schmidt and Schröder deeply embarrassed the Social Democrats.

Um fosso se abriu entre a opinião popular e a elite. Cartas de protesto inundaram as redações de jornais que defendiam o endurecimento contra a Rússia. Merkel, fiel a seu estilo, nada fez para aproximar os dois lados. A crise provocava em grande parte da população uma mescla de indiferença e ansiedade. Ukraine was talked about, if at all, as a far-off place, barely a part of Europe (not as the victim of huge German crimes in the Second World War). Eles se ressentiam de ter seu belo sono perturbado. “A maioria quer paz e uma vida confortável”, disse Alexander Rahr, conselheiro da companhia de petróleo e gás alemã Wintershall. “Não querem conflito nem uma nova Guerra Fria. E, para tanto, gostariam que os Estados Unidos se mantivessem bem longe da Europa. Se a Rússia quer a Ucrânia, com a qual poucos se solidarizam, que fique com ela.” De certo modo, a culpa histórica da Alemanha – que inclui a morte de mais de 20 milhões de soviéticos na Segunda Guerra Mundial – contribui para a passividade do país. A sense of responsibility for the past demands that Germany do nothing in the present. Ulrich, of Die Zeit, expressed the point brutally: “We once killed so much—therefore, we can’t die today.”

Alemães e russos compartilham memórias tão terríveis que qualquer sugestão de conflito conduz ao impensável. Michael Naumann analisou a crise ucraniana no contexto desse “vínculo emocional gigantesco entre criminoso e vítima”, no qual a Alemanha sempre assume a posição mais fraca. Em 1999, Naumann, então ministro da Cultura de Schröder, tentou negociar a devolução de milhões de objetos de arte que os russos levaram da Alemanha Oriental depois da Segunda Guerra Mundial. Durante as negociações, ele e seu colega russo, Nikolai Gubenko, falaram do próprio passado. Naumann, nascido em 1941, ficou órfão de pai no ano seguinte, na Batalha de Stalingrado. Gubenko, também de 1941, perdeu o pai em ação. Cinco meses depois, sua mãe seria enforcada pelos alemães.

“Xeque-mate”, o russo disse ao alemão. E os dois choraram.

“Não havia nada a negociar”, Naumann recorda. Gubenko disse: “Enquanto eu viver, não vamos devolver coisa nenhuma.”

Angela Merkel, como é de seu feitio, tem uma visão da Rússia desprovida de sentimentalidade. Alexander Lambsdorff, deputado alemão do Parlamento Europeu, comentou: “Ela pensa na Rússia como um poder hegemônico tradicional que, subjugado por um tempo, agora reemergiu.” A Ucrânia obrigou a chanceler a praticar um malabarismo digno de Bismarck, e ela começou a dedicar duas ou três horas diárias à crise. Em público, pouco disse, esperando que o mau comportamento russo mudasse a opinião pública alemã. Precisava cuidar de sua coalizão no Bundestag, que incluía os sociais-democratas, mais favoráveis aos russos. E tinha de manter a Europa unida, o que significava afinar-se com 27 outros líderes e entender as limitações de cada um – como sanções à Rússia afetariam os mercados financeiros londrinos; se os franceses concordariam em suspender a entrega de navios de assalto anfíbios já vendidos aos russos; se a Polônia e os países do Báltico se sentiam seguros do apoio da Otan; a influência da propaganda russa na Grécia; a dependência búlgara de gás russo. Para que as sanções surtissem efeito, a Europa tinha de permanecer unida.

Merkel também precisava manter aberto o canal com Putin. Mesmo depois de a União Europeia ter aprovado a primeira leva de sanções, em março de 2014, a política da Alemanha não era isolar a Rússia – os vínculos entre os dois países são muito fortes. A chanceler é o mais importante interlocutor de Putin no Ocidente; eles conversam no mínimo toda semana. “Ao longo dos últimos meses, ela falou mais com Putin que Obama, Hollande e Cameron somados”, diz o alto funcionário. Merkel pode ser dura a ponto de se tornar desagradável e, ao mesmo tempo, oferecer a Putin saídas para a encrenca em que ele se meteu. Acima de tudo, ela tenta entender como ele pensa. “Com a Rússia, mesmo agora que a gente sente muita raiva, eu me forço a conversar independentemente dos meus sentimentos”, disse ela no Museu Histórico Alemão, durante uma reunião com estudantes. “Toda vez que faço isso, fico surpresa com a quantidade de pontos de vista que se pode ter sobre uma questão que para mim é bastante clara. Aí, tenho de lidar com esses outros pontos de vista, e isso também pode trazer uma solução nova.” Soon after the annexation of Crimea, Merkel reportedly told Obama that Putin was living “in another world.” She set about bringing him back to reality.

A German official told me, “The Chancellor thinks Putin believes that we’re decadent, we’re gay, we have women with beards”—a reference to Conchita Wurst, an Austrian drag queen who won the 2014 Eurovision song contest. “That it’s a strong Russia of real men versus the decadent West that’s too pampered, too spoiled, to stand up for their beliefs if it costs them one per cent of their standard of living. That’s his wager. We have to prove it’s not true.” It’s true enough that, if Merkel were to make a ringing call to defend Western values against Russian aggression, her domestic support would evaporate. When eight members of a European observer group, including four Germans, were taken hostage by pro-Russian separatists in April—practically a casus belli, had they been Americans—the German government simply asked Putin to work for their release. Merkel was playing the game that had been successful for her in German politics: waiting for her adversary to self-destruct.

On at least one phone call, Putin lied to Merkel, something that he hadn’t done in the past. In May, after Ukrainian separatists organized a widely denounced referendum, the official Russian statement was more positive than the stance that Merkel believed she and Putin had agreed on in advance. She cancelled their call for the following week—she had been misled, and wanted him to sense her anger. “The Russians were stunned,” the senior official said. “How could she cut the link?” Germany was the one country that Russia could not afford to lose. Karl-Georg Wellmann, a member of parliament from Merkel’s party, who sits on the foreign-affairs committee, said that, as the crisis deepened and Germans began pulling capital out of Russia, Kremlin officials privately told their German counterparts that they wanted a way out: “We went too far—what can we do?” In Moscow restaurants, after the third vodka, the Russians would raise the ghosts of 1939: “If we got together, Germany and Russia, we would be the strongest power in the world.”

Em 6 de junho, na Normandia, nas comemorações do septuagésimo aniversário do Dia D, Merkel e Putin se encontraram pela primeira vez desde o começo da crise. Obama, Hollande, Cameron e Petro Poroshenko, o recém-eleito presidente da Ucrânia, também estavam presentes. As fotografias que saíram na imprensa mostraram o desgosto da alemã ao cumprimentar o russo – os lábios franzidos, as sobrancelhas arqueadas –, ao passo que Putin tinha uma expressão que parecia tentar agradar a colega. Sob a ótica do poder, ela estava ganhando. “Esse isolamento político é prejudicial a ele”, disse o assessor graduado de Merkel. “Putin não gosta de ser excluído.” (A Rússia tinha acabado de ser suspensa do Grupo dos Oito.) Mais tarde, a chanceler orquestrou uma conversa rápida entre Putin e Poroshenko. No aniversário do Dia D, a líder da Alemanha estava no centro dos acontecimentos. Como disse Kurbjuweit: “Foi espantoso ver todos os vencedores da Segunda Guerra Mundial, ver a perdedora e o país responsável por tudo aquilo – e, no entanto, a líder é ela, é com ela que todo o mundo quer falar! Isso é muito estranho. E só é possível, acho, porque é a Merkel – porque ela é tão simpática e tranquila.”

A última bolinha que a chanceler precisa manter no ar é a americana. A opinião de Merkel sobre Barack Obama melhorou na mesma proporção em que a popularidade dele caiu. Em julho de 2008, como candidato presidencial, Obama quis discursar no Portão de Brandemburgo em Berlim – coração histórico da cidade e local reservado a chefes de Estado e de governo, não a senadores americanos. Merkel não permitiu, e Obama falou sobre a unidade entre Europa e Estados Unidos na Coluna da Vitória, no Tiergarten, para o delírio de 200 mil fãs – uma multidão que a chanceler jamais teria conseguido reunir, que dirá encantar. “O que a desagrada em Obama é sua retórica extravagante”, diz o alto funcionário. “Merkel não confia nela e não é boa nesse tipo de coisa. O que ela diz é ‘quero ver ele cumprir o que promete’.”

Nos primeiros anos do governo Obama, Merkel era frequentemente comparada a ele, levando a pior. Essa crítica a irritava. Segundo a revista Stern, a piada favorita da chanceler é aquela em que Obama caminha sobre as águas. “Ela de fato não acha que ele seja um bom parceiro”, afirma Torsten Krauel, articulista do Welt. “Julga-o um acadêmico, uma voz solitária incapaz de construir coalizões.” O relacionamento dela com Bush era bem mais caloroso, disse-me o parceiro político de longa data. Um homem efusivo como Bush provoca uma reação, ao passo que Obama e Merkel são como “dois assassinos de aluguel numa mesma sala. Não precisam conversar – ficam calados, são matadores”. For weeks in 2011 and 2012, amid American criticism of German policy during the euro-zone crisis, there was no contact between Merkel and Obama—she would ask for a conversation, but the phone call from the White House never came.

À medida que foi conhecendo Obama, Merkel passou a ver com mais simpatia as semelhanças entre os dois – duas pessoas analíticas, cautelosas, distantes, de um humor seco. Benjamin Rhodes, subconselheiro para segurança nacional de Obama, contou-me que “o presidente acha que não há outro líder no mundo com quem tenha trabalhado mais de perto do que com ela”. Obama é a antítese dos líderes fanfarrões que Merkel se especializou em deglutir no café da manhã. Numa viagem a Washington, ela se reuniu com vários senadores, incluindo os republicanos John McCain, do Arizona, e Jeff Sessions, do Alabama. Achou-os mais preocupados em se mostrarem duros com o ex-adversário de Guerra Fria do que com os acontecimentos na Ucrânia. Para Merkel, a Ucrânia era um problema prático a ser resolvido. Essa era a visão de Obama também.

No dia em que falei com Rhodes, 17 de julho, a tevê em seu escritório no subsolo da Casa Branca mostrava os destroços do avião da Malaysia Airlines espalhados por um campo no leste da Ucrânia. A causa do acidente ainda não estava definida, mas Rhodes disse: “Se os russos abateram o avião, e se havia americanos e europeus a bordo, isso vai mudar o jogo.” Na Alemanha, a reviravolta foi imediata. A visão de combatentes separatistas pilhando os passageiros mortos – era um avião civil, com vítimas holandesas – afetou os alemães mais do que meses de combates entre ucranianos. Embora a crise estivesse começando a prejudicar a economia alemã, Merkel tinha agora 75% da opinião pública a seu favor. No final de julho, a UE concordou em aprovar uma nova e abrangente leva de sanções financeiras e energéticas contra a Rússia.

Since then, Russian troops and weapons have crossed the border in large numbers, and the war has grown worse. In a speech in Australia last week, Merkel warned that Russian aggression was in danger of spreading, and she called for patience in a long struggle: “Who would’ve thought that twenty-five years after the fall of the Wall . . . something like that can happen right at the heart of Europe?” But, on the day she spoke, the E.U. failed to pass a new round of sanctions against Russia. Guttenberg, the former defense minister, said, “We are content with keeping the status quo, and kicking the can up the road—not down—and it keeps falling back on our feet.”


The close coöperation behind the scenes between Washington and Berlin coincides with a period of public estrangement. Germans told me that anti-Americanism in Germany is more potent now than at any time since the cruise-missile controversy of the early eighties. The proximate cause is the revelation, last fall, based on documents leaked by Edward Snowden to Der Spiegel, that the National Security Agency had been recording Merkel’s cell-phone calls for a decade. Merkel, ever impassive, expressed more annoyance than outrage, but with the German public the sense of betrayal was deep. It hasn’t subsided—N.S.A. transgressions came up in almost every conversation I had in Berlin—particularly because Obama, while promising that the eavesdropping had stopped, never publicly apologized. (He conveyed his regret to Merkel privately.) “Grampear o telefone dela foi mais que falta de educação”, disse Rainer Eppelmann, o ex-dissidente alemão-oriental: “É coisa que não se faz. Amigos não espionam amigos.” (Representantes do governo norte-americano com quem conversei, ainda que preocupados com os efeitos do vazamento da informação, reviraram os olhos ante a ingenuidade e a hipocrisia alemãs, já que a espionagem é praticada pelos dois lados.)

Funcionários do governo alemão propuseram aos americanos um acordo de não espionagem, mas ouviram um não. Os Estados Unidos não mantêm um acordo desse tipo com país nenhum, nem mesmo dentro dos chamados Five Eyes – os aliados de língua inglesa que compartilham virtualmente toda informação coletada por seus serviços de inteligência. Segundo os alemães, os Estados Unidos teriam convidado a Alemanha a integrar os Five Eyes, mas depois voltaram atrás. Os americanos negam ter feito o convite. “Isso nunca foi discutido a sério”, disse uma autoridade graduada do governo Obama. “Os Five Eyes não são um mero acordo, e sim toda uma infraestrutura desenvolvida ao longo de mais de sessenta anos.”

“I tend to believe them,” the German diplomat said. “The Germans didn’t want Five Eyes when we learned about it. We’re not in a position, legally, to join, because our intelligence is so limited in scope.”

Em julho de 2014, funcionários do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha, o BND, prenderam em seu escritório de Munique um burocrata suspeito de espionagem para os Estados Unidos. O sujeito fora flagrado querendo fazer negócios com os russos via Gmail. Quando os alemães pediram aos colegas americanos informação sobre ele, a conta no Gmail foi abruptamente encerrada. Levado a interrogatório, o burocrata admitiu ter passado documentos (aparentemente inócuos) a um agente da CIA na Áustria durante dois anos, tendo recebido 25 mil euros pelo serviço. Os alemães retaliaram de forma inédita: expulsaram o chefe da CIA em Berlim. Por ter acontecido logo depois das revelações sobre a NSA, esse segundo escândalo foi pior que um crime – foi uma asneira. Angela Merkel ficou fora de si. Nenhum funcionário do governo americano, em Washington ou Berlim, parece ter aquilatado os benefícios da operação de espionagem e seu potencial custo político. Obama não sabia do espião. “O presidente espera das pessoas que levem em consideração a dinâmica política ao tomarem decisões sobre o que fazemos ou não fazemos na Alemanha”, disse Rhodes, o subconselheiro de segurança nacional de Obama.

The spying scandals have undermined German public support for the NATOalliance just when it’s needed most in the standoff with Russia. Lambsdorff, the E.U. parliamentarian, told me, “When I stand before constituents and say, ‘We need a strong relationship with the U.S.,’ they say, ‘What’s the point? They lie to us.’ ” Germany’s rise to preëminence in Europe has made Merkel a committed transatlanticist, but “that’s useless now,” Lambsdorff said. “It deducts from her capital. Rebuffing Washington is good now in Germany.”

O presidente americano preocupou-se o bastante para enviar a Berlim, no final de julho, seu chefe de gabinete, Denis McDonough, a fim de apaziguar o governo alemão. Depois de uma reunião de quatro horas, os dois países concordaram em elaborar regras mais claras na espionagem e no compartilhamento de informações de inteligência. Mas os detalhes ainda precisam ser definidos, e a proporção de alemães que hoje expressa uma opinião favorável aos Estados Unidos mal chega a 50% – o nível mais baixo em toda a Europa, só ultrapassado pela sempre hostil Grécia.

In a sense, German anti-Americanism is always waiting to be tapped. There’s a left-wing, anti-capitalist strain going back to the sixties, and a right-wing, anti-democratic version that’s even older. In the broad middle, where German politics plays out today, many Germans, especially older ones, once regarded the U.S. as the father of their democracy—a role that sets America up to disappoint. Peter Schneider, the novelist and journalist, expressed the attitude this way: “You have created a model of a savior, and now we find by looking at you that you are not perfect at all—much less, you are actually corrupt, you are terrible businessmen, you have no ideals anymore.” With the Iraq War, Guantánamo, drones, the unmet expectations of the Obama Presidency, and now spying, “you actually have acted against your own promises, and so we feel very deceived.”


Por trás do antiamericanismo e da solidariedade com a Rússia, pode estar acontecendo algo mais profundo. Durante a Primeira Guerra, Thomas Mann interrompeu A Montanha Mágica e dedicou-se a ensaios apaixonados sobre a Alemanha e a guerra, publicados em 1918, pouco antes do armistício. Nessas Considerações de um Apolítico, Mann abraça o caráter nacional e a filosofia da causa alemã. Como artista, alia-se à Alemanha – “cultura, alma, liberdade, arte” – contra a civilização liberal da França e da Inglaterra (apoiada por Heinrich, seu irmão mais velho), uma civilização na qual a atividade intelectual sempre foi politizada. A tradição alemã era autoritária, conservadora, “apolítica”, mais próxima do espírito russo que do materialismo raso da Europa democrática. A guerra representava a antiga rebelião contra o Ocidente. A Alemanha imperial se recusou a aceitar a imposição forçada dos princípios universais da igualdade e dos direitos humanos. Embora Thomas Mann tenha se tornado um defensor dos valores democráticos em seu exílio durante os anos do nazismo, ele nunca renegou essas Considerações.

Várias pessoas em Berlim sugeriram que esse livro difícil e esquecido possa dizer algo sobre a Alemanha da era Merkel. A reunificação pacífica do país e sua força durante a crise do euro podem estar conduzindo a Alemanha de volta a uma identidade que é mais antiga que a República Federal do pós-guerra, cuja constituição foi escrita sob pesada influência americana. “A Alemanha Ocidental era um bom país”, disse-me o colunista e escritor Georg Diez. “Era jovem, sexy, ousada, ocidental – americana. Mas talvez fosse apenas uma casca. A Alemanha está se tornando mais alemã, menos ocidental. Ela descobriu suas raízes nacionais.”

Diez não quis dizer que isso seja positivo. Disse apenas que a Alemanha está se tornando menos democrática, porque, em essência, o que os alemães querem é estabilidade, segurança, crescimento econômico – querem, acima de tudo, que os deixem em paz, enquanto alguns cuidam do seu dinheiro e mantêm o país longe das guerras. Têm, pois, exatamente a chanceler que desejam. “Merkel tirou a política da política”, concluiu ele.

Aos 60 anos, Angela Merkel é a estadista mais bem-sucedida da história alemã moderna. Sua popularidade oscila em torno de 75% – dado inaudito para uma época de ressentimentos contra líderes eleitos. A simplicidade permanece sendo sua assinatura política, temperada com virtude protestante e retidão prussiana. Uma vez, na companhia de um grupo de jornalistas num bar de hotel no Oriente Médio, ela disse: “Dá para acreditar? Aqui estou eu, a chanceler! O que estou fazendo aqui? Na minha adolescência narda, imaginávamos os capitalistas com capotes pretos, cartola, charuto e pés grandes, como nos desenhos. Agora, aqui estou eu, e eles têm que me ouvir!” É claro que há um bocado de cálculo em sua imagem pública. “Ela toma tanto cuidado em não se mostrar pretensiosa que isso já é uma espécie de pretensão”, diz o alto funcionário.

Merkel ainda mora no Centro de Berlim, num apartamento alugado em frente a um canal que ladeia o Museu Pergamon, o grande prédio neoclássico que abriga peças da Antiguidade. A plaquinha de bronze do interfone do prédio traz o nome do marido – PROF. DR. SAUER –, e um único policial monta guarda do lado de fora. No imenso escritório no gigantesco edifício de concreto e vidro da sede da Chancelaria, Merkel trabalha numa escrivaninha comum perto da porta, preferindo-a à mesa de 4 metros que Schröder mandou instalar na outra extremidade da sala. “É uma mulher neuroticamente ocupada”, diz o parceiro político de longa data. “Nunca dorme mais que cinco horas. Posso ligar para ela à uma da manhã. Vai estar acordada, lendo – papelada burocrática, não literatura.”

Ela recebe convidados na Chancelaria com comida caseira alemã: sopa de batatas e repolho recheado. Quando sai para comer em seu restaurante italiano preferido, vai com uns poucos amigos e não desvia os olhos da conversa para cumprimentar o público, que sabe deixá-la em paz. Quando o marido liga para a Filarmônica para comprar ingressos (Merkel e Sauer têm paixão por Wagner e Webern), insiste em pagar com seu cartão de crédito. O casal entra e toma seus lugares quase sem ser notado. Uma amiga minha certa vez se sentou ao lado de Merkel no salão de beleza que a chanceler frequenta, e as duas conversaram sobre cabelos. “A tintura é a coisa mais importante para uma mulher”, disse a chanceler, cujo penteado já não é alvo de gozação.

Há pouco tempo, o presidente Joachim Gauck apareceu nas manchetes ao conclamar a Alemanha a assumir suas responsabilidades globais com mais seriedade, incluindo seu papel nas questões militares. Foi o tipo de discurso que Merkel (que nem o comentou) jamais faria, sobretudo depois de uma pesquisa encomendada pelo Ministério das Relações Exteriores ter revelado que 60% da população mostravam-se céticos quanto a um maior envolvimento do país no mundo. Os jornalistas alemães acham quase impossível cobrir Angela Merkel. “É um sacrifício encontrar assunto”, diz Ulrich Schulte, que escreve para o Tageszeitung. A Merkel que eles admiram e apreciam em particular, mas são proibidos de citar, desaparece em público. Qualquer assessor ou amigo que trair sua confiança é banido de imediato. A mídia alemã, num reflexo dos tempos, é cada vez mais centrista, preocupada com “bem-estar físico” e outros tópicos relacionados a comportamento. Quase todos os repórteres de política com quem falei votaram em Merkel, apesar da sensação de que ela está tornando irrelevante o trabalho deles. Não havia razão para não votar nela.

Enquanto isso, a chanceler neutralizou a oposição, em grande parte apropriando-se de seu programa. Além disso, acolheu as reivindicações dos sindicatos, baixou a idade mínima para a aposentadoria de certas categorias e aumentou o auxílio do Estado às mães e aos idosos. (Merkel disse a Dirk Kurbjuweit, da Spiegel, que, à medida que a Alemanha envelhecia, ela dependia cada vez mais do voto dos idosos.) Em 2011, o desastre nuclear de Fukushima, no Japão, chocou a chanceler, que recuou em sua posição sobre energia nuclear: decidiu que a Alemanha vai abolir esse tipo de energia ao longo da próxima década, e ao mesmo tempo seguirá liderando as maiores economias industriais do mundo em matéria de energia solar e eólica. (Um quarto da energia gerada no país provém hoje de fontes renováveis.) Nesse meio-tempo, vem tentando abolir de seu partido certas ideias que expressam intolerância – por exemplo, quando discorre sobre a necessidade de dar melhor acolhida a imigrantes. Os apoiadores dos sociais-democratas e do Partido Verde têm cada vez menos motivos para votar, e o comparecimento às urnas diminuiu. O escritor Peter Schneider, líder estudantil de 1968, afirma: “Essa é a genialidade de Angela Merkel: na verdade, ela tornou sem sentido as diferenças entre os partidos.”

No final de 2014, nas eleições em três estados antes pertencentes à Alemanha Oriental, um novo partido de direita mostrou força – o Alternativa para a Alemanha, AfD –, conquistando 10% dos votos. O AfD quer que a Alemanha se retire da zona do euro e se opõe às políticas liberais de Merkel em relação ao casamento gay e à imigração. Ao mover seu próprio partido para o centro, a chanceler criou espaço na política alemã para um populismo equivalente ao da Frente Nacional francesa e ao do Partido da Independência do Reino Unido. Se a economia alemã continuar desacelerando, porém, ela terá dificuldade em seguir pairando sobre a política partidária na incontestada condição de Mutti, a torcedora Número 1 da equipe campeã da Copa do Mundo.

Por enquanto, a questão política mais premente em Berlim é se ela vai ou não se candidatar a um quarto mandato em 2017. Joschka Fischer descreveu a Alemanha sob Merkel como um país que retornou ao período Biedermeier – os anos entre o final das Guerras Napoleônicas, em 1815, e as revoluções de 1848 –, quando a Europa Central desfrutava de paz e o foco da classe média consistia na riqueza crescente e no estilo de decoração. “Ela está governando a Alemanha numa época em que o sol brilha todos os dias, e esse é o sonho de todo político democraticamente eleito”, afirmou ele. “Mas não há debate intelectual.” Sugeri que todo Biedermeier tem um fim. “Sim”, ele concordou, “em geral termina em desastre.”

Um consenso político fundado no sucesso econômico, com cidadãos satisfeitos, uma imprensa favorável e uma líder imensamente popular, que raras vezes se afasta da opinião pública – a Alemanha de Merkel lembra os Estados Unidos de Dwight Eisenhower. Mas se hoje tal quadro talvez cause inveja aos americanos, preocupados com o declínio nacional, aos alemães mais afeitos à reflexão provoca certa inquietação: a democracia alemã não tem idade suficiente para ter direito a descanso.

“Nós recebemos dos americanos a democracia, como um presente, eu diria, durante as décadas de 40 e 50”, disse Kurbjuweit. “Mas não tenho certeza de que as atitudes democráticas estejam solidamente enraizadas em meu país. Nós, alemães, precisamos praticá-las. Ainda estamos em período de treinamento.” Kurbjuweit has just published a book called “There Is No Alternative.” It’s a phrase that Merkel coined for her euro policy, but Kurbjuweit uses it to describe the Chancellor’s success in draining all the blood out of German politics. “I don’t say democracy will disappear if Merkel is Chancellor for twenty years,” he said. “But I think democracy is on the retreat in the world, and there is a problem with democracy in our country. You have to keep the people used to the fact that democracy is a pain in the ass, and that they have to fight, and that everyone is a politician—not only Merkel.”

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