29 de julho de 2014

Punição coletiva em Gaza

Rashid Khalidi

The New Yorker

Créditos: Paolo Pellegrin/Magnum.

Tradução / Três dias após o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ter iniciado a atual guerra em Gaza, ele reuniu uma coletiva de imprensa em que disse, em hebraico, de acordo com o jornal Times de Israel: “Eu acredito que o povo israelense entenda agora o que eu sempre disse: que não pode haver uma situação, sob nenhum acordo, em que nós abandonemos o controle de segurança do território a oeste do Rio Jordão”.

Vale a pena ouvir cuidadosamente quando Netanyahu fala sobre o povo israelense. O que ocorre na Palestina hoje não diz respeito ao Hamas. Não diz respeito aos foguetes. Não diz respeito aos “escudos humanos” ou terrorismo ou túneis. Diz respeito ao controle permanente de Israel sobre as terras palestinas e sobre as vidas de palestinos. É disso que Natanyahu está falando, e é o que ele agora admite ser aquilo de que ele “sempre” falou: a inabalável política israelense, há décadas em vigor, de negar a autodeterminação, liberdade e soberania da Palestina.

O que Israel está fazendo em Gaza configura uma punição coletiva. É uma punição pela recusa de Gaza a ser um gueto dócil. É uma punição aos palestinos por ter a ousadia de unificarem-se, e do Hamas e outras facções, por responderem ao estado de sítio e suas provocações com resistência, armada ou não, depois de Israel ter reagido repetidamente com força destrutiva contra protestos desarmados. Apesar de anos de cessar-fogo e tréguas, o estado de sítio de Gaza nunca foi suspenso.

Como as próprias palavras de Netanyahu desmonstram, contudo, Israel não aceita que os palestinos não concordem com sua própria subordinação. Aceita apenas um “estado” palestino despido de todos os atributos de um verdadeiro estado: controle sobre sua própria segurança, fronteiras, limites marítimos, contiguidade territorial e, portanto, soberania. A farsa de vinte e três anos de “processo de paz” mostra que isto é tudo que Israel oferece, com a aprovação total de Washington. Sempre que palestinos resistiram ao seu patético destino (como qualquer outra nação o faria), Israel os puniu por sua insolência. Isso não é novidade.

Punir palestinos por existir tem uma longa história. Essa foi a política de Israel anterior ao Hamas, e seus rudimentares foguetes foram o bicho-papão do momento para Israel, antes de tornar Gaza uma presídio a céu aberto, saco de pancadas e laboratório de armas. Em 1948, Israel matou milhares de inocentes e aterrorizou outros milhares em nome da criação de um estado de maioria judaica numa terra com 65% de árabes. Em 1967, desalojou centenas de milhares de palestinos novamente, ocupando o território que até hoje controla, em grande medida, 47 anos depois.

Em 1982, numa cruzada para expulsar a Organização pela Liberação da Palestina (OLP) e extinguir o nacionalismo palestino, Israel invadiu o Líbano, matando 17 mil pessoas, a maioria civis. Desde os anos 80, com o levante da ocupação palestina, de forma geral atirando pedras e organizando greves gerais, Israel prendeu dezenas de milhares de palestinos: mais de 750.000 pessoas foram para prisões israelenses desde 1967, um número equivalente a 40% da população adulta hoje. Eles sairam da prisão com depoimentos de tortura, fundamentados por grupos de direitos humanos como o B’tselem. Durante a segunda intifada, que começou em 2000, Israel invadiu novamente a Cisjordânia (de onde de fato nunca saiu). A ocupação e colonização das terras palestinas continuou ininterruptamente através do “processo de paz” dos anos 90, e até os dias de hoje. E, ainda assim, nos Estados Unidos a discussão ignora esse contexto opressivo crucial, e está sempre limitada à “auto-defesa” de Israel e à suposta responsabilidade de palestinos por seu próprio sofrimento.

Nos últimos sete anos ou mais, Israel sitiou, atormentou e atacou regularmente a Faixa de Gaza. Os pretextos mudam: eles elegeram o Hamas; eles se recusam a ser dóceis; eles se recusam a reconhecer Israel; eles lançam foguetes; eles constroem túneis para contornar o estado de sítio etc. Mas cada pretexto é uma falácia, porque a verdade dos guetos – o que acontece quando você aprisiona 1,8 milhão de pessoas em 225 mil metros quadrados, quase um terço da área da cidade de Nova York, com controle de fronteiras, quase sem acesso ao mar para pescadores (apenas três de 20 quilômetros são permitidos, segundo o Acordo de Oslo), sem meio de entrada ou saída e com mísseis guiados sobre suas cabeças noite e dia – é que eles acabarão contra-atacando. Isso aconteceu em Soweto e Belfast e acontece em Gaza. Nós podemos desaprovar o Hamas e alguns de seus métodos, mas isso nao é o mesmo que aceitar a ideia de que palestinos devem concordar de maneira apática com a recusa do seu direito de existir como povo livre em sua terra ancestral.

Esta é precisamente a razão pela qual o apoio dos Estados Unidos à atual política de Israel é insano. A paz foi alcançada no norte da Irlanda e na África do Sul porque os Estados Unidos e o mundo acordaram para o fato de que eles teriam de colocar pressão no lado mais forte, cobrando responsabilidade e dando fim à impunidade. O norte da Irlanda e a África do Sul estão longe de serem exemplos perfeitos, mas vale a pena recordar que para conquistar um resultado justo foi necessário que os Estados Unidos lidassem com grupos como o Exército Republicano Irlandês (IRA, sigla original) e o Congresso Nacional Africano (CNA), que se envolveram com guerrilha e até mesmo terrorismo. Essa foi a única maneira de trilhar um caminho em direção à paz verdadeira e à reconciliação. O caso da Palestina não é fundamentalmente diferente.

Ao invés disso, os Estados Unidos estão fazendo pender a balança em favor do lado mais forte. Nessa visão de mundo surreal e inversa, o que parece é que os israelenses foram ocupados pelos palestinos — e não o contrário. Nesse universo distorcido, aqueles aprisionados nos presídios a céu aberto estão sitiando armas nucleares nas mãos de uma das mais sofisticadas forças militares do mundo.

Se pretendemos nos afastar dessa irrealidade, os EUA precisam mudar suas políticas ou abandonar o argumento de que são um “mediador honesto”. Se o governo estadunidense quer subsidiar e armar Israel e repetir os argumentos israelenses que ignoram a razão e o direito internacional, então que o façam. Mas não deveriam então reivindicar autoridade moral e falar solenemente sobre a paz. Com certeza, não deveriam insultar palestinos ao dizer que se preocupam com eles e suas crianças, que estão morrendo em Gaza hoje.

Rashid Khalidi é o professor Edward Said de Estudos Árabes na Universidade de Columbia e o autor, mais recentemente, de “Brokers of Deceit: How the U.S. Has Undermined Peace in the Middle East”.

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