24 de abril de 2014

Capitalismo e nazismo

Da próxima vez que alguém lhe disser que os nazistas eram anti-capitalistas, mostre-lhe isso.

Corey Robin


De Adam Tooze, do livro The Wages of Destruction: The Making and Breaking of the Nazi Economy.

Tradução / Alguns comentadores no meu blog afirmam que o gráfico acima nada nos diz sobre a relação entre nazistas e o capitalismo; que ele apenas nos diz que a economia melhorou sob o comando do nazismoAssim como aconteceu com os Estados Unidos no governo de Franklin Delano Roosevelt. Então, talvez o gráfico mostre apenas as melhorias gerais da economia na década de 1930 enquanto um crescimento compartilhado pelo mundo industrializado?

Para a minha sorte, Suresh Naidu, uma excepcional economista em Columbia, me forneceu os seguintes gráficos.

O primeiro, retirado da obra de Thomas Piketty, O capital no século XXI, compara a parte da renda nacional destinada ao capital tanto nos Estados Unidos quanto na Alemanha entre 1929 e 1938. Suresh afirma que, a grosso modo, essa parte ajuda a entender a taxa de retorno que o capital possuía nessa época e nesses países.

Resumindo a história: o capital estava indo melhor na Alemanha nazista do que sob o governo Roosevelt. E isso não era decorrente do retorno do crescimento da performance econômica num país, mas sim graças às políticas econômicas do regime estabelecido. Ou ao menos é o que me diz Suresh (e geralmente acadêmicos deveriam reconhecer os méritos das contribuições de seus amigos e leitores, mas admitir todos os erros para si: nesse caso, estou colocando tudo na conta de Suresh).


O segundo gráfico – que vem de um fascinante artigo de Thomas Ferguson e Hans-Joachim Voth chamado “Betting on Hitler: The value of political connections in Nazi Germany” – consegue rastrear a performance da bolsa de valores na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na França e na Alemanha entre janeiro de 1930 até novembro de 1933. Como vocês podem ver, nos primeiros meses em que Hitler esteve no poder, a performance das bolsas alemãs era bastante forte, superando todas as outras; é somente em julho que ela passa a ser rivalizada com a da Grã-Bretanha, a segunda mais competitiva.

De Thomas Ferguson e Hans-Joachim Voth, “Apostando em Hitler: O Valor das Conexões Políticas na Alemanha Nazista

No Twitter, Justin Paulson me mostrou este fascinante artigo do Journal of Economic Perspectives. Ele se chama “The coining of ‘privatization’ and Germany’s National Socialist Party”. Aparentemente, o primeiro uso da palavra ‘privatização’ (ou ‘reprivatização’) em língua inglesa ocorreu na década de 1930, no contexto em que se buscava explicar a política econômica do Terceiro Reich. De fato, a palavra inglesa (privatization) era uma tradução do termo alemão “reprivatisierung”, que recém tinha sido cunhado durante o regime nazista.

Depois que mandei esse artigo para ele, Phil Mirowski também me mandou o artigo de Germà Bell, “Against the mainstream: Nazi privatization in the 1930s”, da revista Economic History Review. Esse artigo também tem considerações interessantes, como essa em seu resumo:

“Na metade da década de 1930, o regime nazista transferiu patrimônio público para o setor privado. Ao fazer isso, eles foram contra a corrente política dominante da época nos países capitalistas ocidentais, sendo que nenhum deles reprivatizou empresas durante a década de 1930”.

Sobre o autor

Corey Robin é o autor de The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Sarah Palin e um editor contribuinte em Jacobin. 

18 de abril de 2014

O conforto da distopia

As elites nos dizem que o futuro será inevitavelmente brilhante; mesquinhos de esquerda insistem que será inevitavelmente sombrio. Não ganhamos por jogar este jogo.

Peter Frase

Jacobin
Policiais escoltam um Donuts gigante. Arte de Banksy.

Tradução / Quatro Futuros: a vida após o capitalismo, minha aplicação de ferramentas da ficção especulativa e das Ciências Sociais para pensar sobre os possíveis sucessores do capitalismo, em um mundo caracterizado pela automação persuasiva e pela crise ecológica, já no ensaio original de 2011 era uma extensão de “Anti-Star Trek”, um artigo que ainda recebe uma certa audiência na internet de tempos em tempos. A intuição principal de ambos os artigos era que embora vivamos em um mundo abundante em potencial utópico, a realização desse potencial depende do resultado de luta política. Uma elite rica que deseja preservar seus privilégios fará tudo o que for possível para garantir que não alcancemos um mundo de lazer e abundância, mesmo se tal mundo for materialmente possível.

No entanto, uma das coisas com as quais tenho me debatido, como escritor, é a tendência dos meus escritos mais especulativos de despertar uma linha de quietude apocalíptica na esquerda radical. Para mim, a história que estou contando é toda sobre esperança e ação: o futuro está aqui, só que mal distribuído, e apenas através de luta poderemos realizá-lo de maneira mais adequada. Suponho que não seja surpresa, entretanto, depois de décadas de recuo, que algumas pessoas prefiram contar para si mesmas fábulas sobre um destino inevitável ao invés de enfrentar o problema maior de descobrir como poderemos, coletivamente, seguir o caminho para o paraíso.

Assim, dos quatro futuros que descrevi, aquele que acredito ser o mais repleto de esperança e o mais interessante – que chamo de “comunismo” – é também o menos discutido. Ao invés dele, é o exterminismo, a mistura de restrições ecológicas, automação e elites assassinas que parece grudar nos cérebros das pessoas, com a distopia anti-Star Trek de rentistas de propriedade intelectual chegando num próximo segundo lugar.

Despidos do arcabouço marxista e utópico, tudo o que sobra nisso é uma recusa sombria da possibilidade de políticas igualitárias. Há algo nesse sentido quando Noah Smith ecoa minhas considerações sobre o exterminismo, mas as atualiza para os nossos tempos obsessivos sobre drones. Para muitos comentaristas intelectuais mais isolados, pode ser perversamente tranquilizador pensar que atingir um mundo melhor não é apenas difícil, mas na verdade impossível. De que outra forma explicar o apelo dos comentários de Chris Hedges sobre o colapso de sociedades complexas?

Outra notícia de alguns anos atrás que despertou essa sensibilidade foi um texto no jornal The Guardian sobre um suposto “estudo da NASA” que predizia o “colapso irreversível” da civilização industrial. Seguindo a dica de Doug Henwood, chegamos a uma crítica do estudo em si e da mídia preguiçosa que o propagou. Outro usuário do Twitter indicou um artigo ainda mais condenatório. Resumindo, o estudo – que o autor original não se deu ao trabalho nem mesmo de referenciar – não tinha nada a ver com a NASA, e era um modelo meramente teórico baseado em um punhado de equações. Francamente, até onde alcança a “futurologia”, acredito que Quatro Futuros se baseava em uma fundamentação científica bem mais razoável.

O que me deprime nem é tanto as perambulações de algum bitolado irresponsável com uma coluna no The Guardian – tais pessoas provavelmente estarão por aí para sempre. Porém, muitas pessoas que conheço e de quem gosto estavam ansiosas para compartilhar nas redes sociais esse pedaço de disparate com fontes duvidosas, sugerindo que essa ideia se conectava com um desejo por cenários apocalípticos entre pessoas de esquerda, acostumadas a ostentar o seu pragmatismo.

Esse fatalismo é o complemento perfeito para a positividade igualmente vazia que permeia o discurso burguês, venha ela na forma da autoajuda, como dissecado por Barbara Ehrenreich, ou como o pseudo-utopismo sem-vergonha dos plutocratas do Vale do Silício. A classe dirigente nos diz que o futuro é inevitavelmente brilhante, enquanto ranzinzas de esquerda reafirmam para si mesmos a convicção de que ele é inevitavelmente tenebroso. Nós não venceremos jogando esse jogo, ficando com nossas escassas recompensas emocionais enquanto nossos oponentes recebem seu pagamento em uma forma muito mais tangível.

Sobre o autor

Peter Frase está no conselho editorial de Jacobin e é autor do livro "Quatro futuro: a vida após o capitalismo", publicado pela Autonomia Literária em 2020.

Recuo ou normalização na política externa brasileira?

Oliver Stuenkel


Agradeço ao professor Dawisson Belém Lopes por sua resposta ("Recuo estratégico ou normalização da curva?", 17/3) ao meu artigo na Folha ("O risco do recuo estratégico brasileiro", 10/3), no qual defendo que o recuo diplomático do Brasil nos últimos anos prejudica o interesse nacional e reduz a capacidade da comunidade internacional de lidar com desafios globais.

Meu argumento foi pautado em dois pontos. Primeiro, afirmei que uma política externa ativa não é incompatível com a priorização de problemas internos. Pelo contrário, é uma ferramenta necessária ao enfrentamento desses desafios. Em segundo lugar, sustentei que não podemos mais nos dar ao luxo de viver em um mundo no qual apenas algumas potências estabelecidas têm redes diplomáticas globais que lhes proporcionam acesso a informações privilegiadas, permitindo que elas dominem o debate sobre questões-chave, tais como o terrorismo, a intervenção humanitária e a proliferação nuclear.

Em sua resposta, Belém Lopes argumenta que os diplomatas estão sendo gradualmente substituídos por novos atores, como ONGs, igrejas e empresas privadas. Ele também aponta para uma tendência de presidencialização da política externa brasileira, além de um crescente número de ministérios que se engajam diretamente com parceiros internacionais, reduzindo inevitavelmente a importância do Ministério de Relações Exteriores.

Concordo que os diplomatas estão longe de serem os únicos atores na formulação da política externa de um país. No entanto, um Ministério das Relações Exteriores forte continua sendo indispensável para qualquer país que pretende ter uma participação ampla nas discussões sobre os principais assuntos globais.

Consideremos os exemplos da China e do Afeganistão. Sem uma embaixada possante, ágil e bem conectada em Pequim, as empresas brasileiras não seriam capazes de prosperar no país. Sem uma embaixada em Cabul, o Brasil permanece um ator secundário durante os debates da ONU sobre o futuro do Afeganistão. Isso prejudica a legitimidade da campanha brasileira em prol da reforma das instituições internacionais, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

É importante a constatação de Belém Lopes de que a presidente Dilma, embora tenha viajado com menos frequência do que seu antecessor, fez mais viagens internacionais do que Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). O autor sugere que a política externa expansiva de Lula (2003-2010) é que representa um ponto fora da curva, enquanto a de Dilma nada faz além de trazê-la para sua inclinação normal.

O autor não comenta o meu argumento de que a retirada do Brasil é prejudicial para o interesse do país. Em vez disso, sugere que nem sequer houve recuo, mas apenas uma medida amenizadora a fim de compensar a expansão de Lula.

Há algo de verdadeiro nessa afirmação, e até partidários da política externa de Lula reconhecem que seu ativismo e expansão não poderiam durar para sempre. Ainda assim, discordo que a política externa brasileira possa voltar ao normal sem riscos, simplesmente porque o Brasil dos anos pré-Lula não existe mais.

O Brasil de hoje lidera as tropas de paz no Haiti, patrocinou uma rede de novas instituições regionais e tem interesses econômicos e humanitários em larga escala na África. Os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e o G-20 (grupo das 20 maiores potências do mundo), dos quais fazemos parte, transformaram-se em pilares do sistema internacional. O Brasil é a sétima economia do mundo e seu parceiro comercial mais importante -a China– está localizado em uma região sobre a qual sabemos pouco. As responsabilidades internacionais do Brasil são maiores hoje do que em qualquer outro momento da história.

A ordem global já não é a mesma do final dos anos 1990. Há um consenso de que o G7, grupo dos países mais ricos do mundo, é incapaz de resolver os desafios globais sozinho. As tentativas fracassadas de solucionar questões como mudanças climáticas, volatilidade financeira e violações dos direitos humanos são indicadores de que países como China, Índia e Brasil devem contribuir para encontrar soluções.

A redução da presença diplomática, a limitação excessiva do chanceler e a decisão de ficar longe de importantes encontros globais de segurança podem ser vistos por alguns como uma normalização da curva. Contudo, essa estratégia é mais arriscada do que seu nome sugere. Considerando o quanto o Brasil e o mundo mudaram desde o início do século 21, "recuo" é um termo mais adequado para descrever a atual estratégia da política externa brasileira.

OLIVER STUENKEL, 32, é professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo

17 de abril de 2014

Corrigindo a deformação do sistema político

Fábio Konder Comparato


A questão do financiamento das campanhas eleitorais, tão discutida nos últimos anos e nunca regulada, constitui um elemento central no sistema representativo de governo.

A Constituição Federal de 1988, ao proclamar que "todo poder emana do povo", acrescentou que este "o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". O artigo 14 explicitou que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.

Infelizmente, tais disposições solenes nada mais são do que a bela fachada do nosso edifício constitucional. Por trás dela, na triste realidade da vida política, o quadro é bem diverso. Os representantes do povo, salvo raras e honrosas exceções, exercem um mandato em causa própria ou atuam, dissimuladamente, como simples prepostos do grande empresariado.

Desde sempre, aliás, os potentados econômicos privados e os agentes políticos colaboram entre si, numa espécie de contrato bilateral.

O financiamento de campanhas eleitorais pelo empresariado constitui um entre os múltiplos objetos dessa troca de favores. Trata-se, bem pesadas as coisas, de uma modalidade de doação com encargo. Ou seja, o donatário sempre assume uma obrigação estipulada pelo doador.

Essa prática representa grosseira violação do princípio da soberania popular. As organizações empresariais não fazem parte do povo, que é o titular da soberania. Elas tampouco são registradas como partidos políticos, únicas entidades admitidas pela Constituição a arregimentar cidadãos para o exercício de seus direitos. É inadmissível, portanto, que elas possam dispor de uma influência determinante sobre as decisões do povo soberano, lançando mão de seu poder econômico.

Para se ter uma ideia do peso dessa influência, basta lembrar que a maior parte do financiamento de campanhas eleitorais origina-se de doações empresariais e que, entre 2009 e 2012, os três maiores partidos do país –PT, PMDB e PSDB– receberam de grandes empresas, fora das campanhas, nada menos do que R$ 1 bilhão de reais. Haverá algum ingênuo capaz de acreditar que tais recursos foram doados por pura liberalidade?

O Senado já aprovou o projeto que veda a doação de empresas ou pessoas jurídicas para campanhas eleitorais. Agora, cabe à Câmara dos Deputados analisar a proposta.

Há poucos dias a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal votou pelo acolhimento da ação direta de inconstitucionalidade nº 4.650, proposta pelo Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Nessa demanda, a Ordem pede que sejam declaradas contrárias à Constituição algumas disposições da lei que autorizam a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, bem como a realização de doações por pessoas jurídicas a partidos políticos.

Na mesma ação, o Conselho Federal pede que "seja instado o Congresso Nacional a editar legislação que estabeleça limite per capita uniforme para doações a campanha eleitoral ou a partido por pessoa natural, em patamar baixo o suficiente para não comprometer excessivamente a igualdade nas eleições". Pede igualmente que o Congresso "estabeleça limite para o uso de recursos próprios pelos candidatos em campanha eleitoral, no prazo de 18 meses, sob pena de, em não o fazendo, atribuir-se ao Tribunal Superior Eleitoral a competência para regular provisoriamente tal questão".

Para vencer a persistente deformação do nosso sistema político, é indispensável que o Judiciário reafirme peremptoriamente o ditado constitucional: só o povo brasileiro tem legitimidade para realizar a escolha de candidatos nas disputas eleitorais.

Sobre o autor

FÁBIO KONDER COMPARATO, 77, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é doutor honoris causa da Universidade pela Coimbra (Portugal)

8 de abril de 2014

A pré-história dos shopping centers

Sam Wetherell


Tradução / A paisagem dos Estados Unidos está entulhada com centenas de shopping centers mortos. Em lugares como o vasto Buckingham Square Mall, em Aurora, Colorado, que permanece vazio desde 2007, as fontes d’água internas pararam de funcionar, mas as plantas artificiais no interior continuam sinistramente verdes. Muitos outros vão se unir a eles. Calcula-se que 15% dos shoppings americanos vão fechar nos próximos dez anos.

O maior shopping center do mundo, o New South China Mall, em Dongguan, é também um local morto. Inaugurado em 2005, orgulhava-se de ter sete áreas, cada uma inspirada em grandes cidades internacionais, incluindo até uma réplica do Arco do Triunfo e um canal veneziano completo, com gôndolas. No entanto, o shopping permanece 99% vazio desde sua abertura. Com exceção de um conjunto de restaurantes fast-food perto da entrada, a instalação é uma rede de átrios amplos e vazios, cinemas e montanhas-russas desativados.

Sem condições de competir com os shoppings on-line, com a queda do poder aquisitivo dos consumidores, preços dos combustíveis em alta e um mercado imobiliário volátil, os shopping centers estão perdendo terreno rapidamente. O CEO de uma empresa instalada em um grande shopping alertou recentemente que “dentro de 10 a 15 anos”, esse tipo de centro “será um anacronismo histórico – uma aberração de 60 anos que não atende mais às necessidades do público”.

Quando arqueólogos de um futuro distante escavarem as vastas ruínas dessas estruturas peculiares, eles terão dificuldade de encontrar manifestações concretas mais representativas de nossa condição no final do século XX. A ascensão global do shopping center nesse período de 60 anos levou à maior padronização do espaço já ocorrida em toda a história da humanidade.

Na era do shopping, amplas porções do mundo são aquecidas para ficar na temperatura de 22 graus centígrados e iluminadas adequadamente. Shopping centers vêm sendo usados como ferramentas para o desenvolvimento na Índia, como local de protestos no Brasil e alvo de terrorismo em Nairóbi. Para geógrafos e historiadores, esses locais têm sido vistos como a forma arquitetural mais precoce do neoliberalismo, instrumentos para murar e segregar o espaço público, para a fusão de lazer e consumo e aniquilação de pequenos lojistas independentes.

Não foi sempre assim. Os shopping centers têm uma pré-história socialista pouco conhecida – e que foi amplamente esquecida. O inventor do shopping center suburbano nos moldes americanos, Victor Gruen, era um arquiteto socialista de Viena, forçado a fugir para os Estados Unidos depois da ocupação da Áustria, em 1938. Gruen enxergou no shopping o potencial para recentralizar os esparramados subúrbios. Seus planos eram os de criar ágoras internas, de propriedade do Estado, que iriam literalmente conter as forças do mercado que corriam desenfreadas fora de suas paredes. Era uma visão modernista para a refundação da vida pública americana.

Muitos dos shoppings construídos por Gruen e sua empresa nos anos 1950 retinham elementos dessa promessa, como o Southdale Mall, em Edina, Minnesota, planejado no entorno de um enorme local de encontro da população, tendo como modelo uma piazza europeia.

Por volta dos anos 1960, Gruen estava horrorizado com suas criações. O shopping center, com a via expressa (freeway) e os baratos financiamentos habitacionais federais tinham se tornado parte da arquitetura da supremacia branca suburbana. Gruen retornou à Áustria em 1968 e furiosamente trabalhou em um projeto para tornar Viena uma cidade pedestre.

Dois anos antes de sua morte, em 1980, ele afirmou: “Sou frequentemente chamado de pai do shopping center. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para negar a paternidade de uma vez por todas. Eu me recuso a pagar pensão alimentícia a esses empreendimentos bastardos. Eles destruíram nossas cidades”.

Na Grã-Bretanha, a pré-história do shopping center é ainda mais longa e estranha. Quando o planejador anarquista Ebenezer Howard esboçou sua visão utópica para as “cidades-jardins” britânicas em 1898, ele buscava criar em cada assentamento um “palácio de cristal” que iria combinar as funções das arcadas de compras de Londres com agradáveis jardins internos sob um telhado. Enquanto a estrutura seria financiada e construída pela autoridade municipal local, comerciantes individuais teriam permissão para operar livremente, mas seu número seria “limitado pelo princípio da opinião pública”.

Bastou a intervenção da Luftwaffe para que algo parecido com essa ideia fosse realizado na Grã-Bretanha. Coventry, uma pequena cidade na região inglesa de Midlands é um local improvável que, provavelmente, pode ter tido a primeira estrutura do tipo shopping center no mundo. A destruição total da cidade durante a II Guerra Mundial eliminou as densas e lotadas ruas comerciais medievais características da história da cidade.

Com a ajuda do governo britânico, o chefe dos arquitetos de Coventry, Donald Gibson, pôde usar uma nova legislação de emergência para efetivamente nacionalizar o centro da cidade, colocando mais de 200 hectares de terra sob o poder total da autoridade municipal. Lá, ele construiu um shopping center com múltiplas lojas, parcialmente murado e planejado holisticamente – indiscutivelmente, o primeiro do tipo no mundo. Enquanto a cidade detinha a posse da terra, provia a infraestrutura, pontes, estacionamentos e vegetação, os locatários se encarregavam do controle da temperatura, música, iluminação. As portas nunca eram fechadas.

Que o shopping center sofreria uma mutação para se tornar um dos marcos mais evidentes da cidade privatizada do século 20 não era algo que se previa nos anos 1940 e começo dos 1950. Essa história alternativa do consumo patrocinado pelo Estado, de massificação sem privatização, é incômoda para algumas das mais básicas dicotomias políticas de nossa era recente. Numa época em que as linhas políticas são delineadas entre a loja de comida orgânica e os grandes supermercados do subúrbio, os primeiros shoppings de Donald Gibson e Victor Gruen eram simultaneamente nenhum dos dois, e ambos.

Um manual dos anos 1970 para projetistas de shoppings é uma interessante janela para a violência coerciva à espreita sob o ruído do ar-condicionado – um lembrete de que sua expansão andou de mãos dadas com o crescimento dos tumultos urbanos e da violência política nas cidades interioranas cada vez mais segmentadas em guetos. O manual observa que “se parece que um grupo pode tornar-se violento, então o shopping deveria adotar medidas imediatas pra proteger certas áreas-chave” e que “a proteção contra incêndios é especialmente importante nesta década com a frequente ameaça de bombas incendiárias”.

A agressiva padronização e a privatização dos espaços dos shoppings no mundo teriam arrasado os socialistas pioneiros na construção desses empreendimentos. O vasto, quase imperial, Mall of America, em Minnesota, que já foi o maior shopping do mundo, fica a apenas dez minutos de carro da primeira criação de Victor Gruen em Edina, mas está separado por uma enorme ruptura histórica.

Como uma criança que cresceu em um subúrbio britânico, o shopping tornou-se parte central de minha vida. Muitas crianças primeiro visitavam o papai Noel na “praça da cidade”, um área gigante interna, do lado oposto ao supermercado, ou conseguiam seu primeiro emprego em uma das lojas. Meu primeiro beijo foi diante da Árvore, um carvalho gigante que se estende para fora de uma claraboia no teto do shopping. Na realidade, algumas das minhas primeiras experiências de protesto político foram contra a guerra no Iraque, junto com a coalizão política local, que banida do shopping center, foi forçada a protestar diante da estação ferroviária, normalmente deserta.

O declínio dos shoppings em decorrência do comércio on-line provocou uma certa tristeza em alguns comentaristas pela perda desse mundo social. Nos anos 1960, as pessoas reagiam à destruição das ruas de comércio britânicas e aos centros das cidades americanas por causa dos shopping centers com espasmos semelhantes de tristeza e nostalgia. Quem poderia ter previsto que esses shoppings iriam se tornar presas de uma forma de privatização ainda mais isoladora?

4 de abril de 2014

A linha vermelha e a linha do rato

Seymour M. Hersh sobre Obama, Erdoğan e os rebeldes sírios

Seymour M. Hersh



Em 2011, Barack Obama comandou uma intervenção de aliados contra a Líbia, sem consultar o Congresso dos EUA. Em agosto do ano passado, depois de um ataque com gás sarín em Ghouta, subúrbio de Damasco, estava pronto para ordenar ataque aéreo de norte-americanos e aliados, dessa vez para castigar o governo da Síria por, supostamente, ter infringido uma “linha vermelha” que Obama demarcou em 2012 sobre uso de armas químicas. Então, faltando menos de dois dias para o planejado ataque, Obama anunciou que pediria a aprovação do Congresso para a intervenção. O ataque foi adiado para que o Congresso realizasse audiências e, na sequência, foi cancelado, quando Obama aceitou a oferta, por Assad, de entregar seu arsenal químico, em negociação intermediada pela Rússia. Por que Obama adiou e depois cancelou o ataque à Síria, se não teve cuidado algum no momento de atacar a Líbia? A resposta está na disputa dentro do governo Obama, entre os que queriam fazer valer a “linha vermelha” e os líderes militares que entendiam que ir à guerra seria ao mesmo tempo injustificável e potencialmente desastroso.

A mudança, em Obama, começou em Porton Down, o laboratório que a Defesa britânica mantém em Wiltshire, Inglaterra. A inteligência britânica tinha obtido uma amostra do gás sarín usado no ataque do dia 21, e análises demonstraram que o gás não era o mesmo que se sabia que existia no arsenal químico sírio. A mensagem de que os sírios não mentiam e que o caso contra o exército de Assad logo seria desmontado, chegou rapidamente aos chefes do Estado-Maior dos EUA. O relato britânico fez aumentar as dúvidas dentro do Pentágono; os chefes militares já preparavam para avisar Obama de que seus planos para atacar com mísseis e bombas a infraestrutura síria levaria a guerra muito mais ampla no Oriente Médio. Consequência da notícia recém-chegada, os militares norte-americanos apressaram-se a levar ao presidente mais aquele alerta de cuidado, o qual, na visão dos militares, levou o presidente a cancelar o ataque.

Durante meses houve preocupação entre o alto comando militar e a comunidade de inteligência com o papel da guerra na convivência com os vizinhos da Síria, especialmente o papel da Turquia. Sabia-se que o Primeiro-Ministro Recep Erdoğan estava apoiando a Frente al-Nusra, grupo jihadista incorporado à oposição rebelde, e a outros grupos rebeldes islamistas. "Sabíamos que havia alguns, no governo turco", disse-me um ex-alto funcionário da inteligência dos EUA, com acesso à inteligência atual, "que acreditavam que poderiam enredar Assad, provocando um ataque com gás sarín dentro da Síria – o que forçaria Obama a fazer valer a ameaça da linha vermelha."

O alto comando militar também sabia que o que o governo Obama andava dizendo, que só o exército sírio tinha acesso ao sarín, era falso. As comunidades de inteligência norte-americana e britânica já sabiam, desde a primavera de 2013, que algumas unidades rebeldes na Síria estavam desenvolvendo armas químicas. Em de maio de 2013, analistas da Agência de Inteligência da Defesa dos EUA [orig. DIA] distribuíram documento altamente secreto de cinco páginas, dos “pontos de conversa” [(orig. talking points): são os itens que podem ser falados à imprensa e discutidos em público e os que não podem], para atualizar o vice-diretor da Agência DIA, David Shedd, no qual se lê que a Frente al-Nusra mantinha célula de produção de gás sarín; o programa, dizia o documento, era "o plano mais avançado para uso de sarín desde o esforço da al-Qaeda antes de 11/9." (Segundo um consultor do Departamento de Defesa, a inteligência dos EUA sabia, há muito tempo, que a al-Qaeda estava trabalhando em testes com armas químicas, e tem um vídeo de um de seus testes, com cachorros). O documento da Inteligência da Defesa prosseguia: "Antes, o foco da comunidade de inteligência tinha se mantido quase completamente fixo sobre as armas químicas sírias; agora já sabemos dos esforços da Frente al-Nusra para produzir suas próprias armas químicas (...) A relativa liberdade de operação da Frente al-Nusra dentro da Síria nos leva a estimar que, no futuro, será difícil conter as ambições desse grupo." O documento reunia informação secreta de várias agências: "Agentes facilitadores baseados na Turquia e na Arábia Saudita", dizia o documento, "tentaram obter os precursores do sarín em grande quantidade, dezenas de quilos, antecipando o esforço para produção em grande escala na Síria." (Perguntado sobre o documento da Inteligência da Defesa, o porta-voz do diretor da Agência Nacional de Inteligência disse: "Tal documento jamais foi solicitado ou entregue pela comunidade de analistas de inteligência.")

Em maio do ano passado, mais de dez membros da Frente al-Nusra foram presos no sul da Turquia, com o que a polícia local informou a jornalistas que seriam dois quilos de sarín. Em documento de acusação de 130 páginas, o grupo foi acusado de tentar comprar pavios e detonadores para construção de morteiros e produtos químicos precursores do gás sarín. Cinco dos detidos foram libertados logo depois. Os demais, inclusive o líder, Haytham Qassab, para quem o procurador pediu sentença de 25 anos de prisão, foram postos em liberdade condicional à espera de julgamento. Ao mesmo tempo, a imprensa turca fervia com especulações sobre se o governo Erdoğan estaria ocultando a extensão de seu envolvimento com os rebeldes. Numa conferência de imprensa no verão passado, Aydin Sezgin, embaixador da Turquia em Moscou, não deu importância às prisões e disse aos jornalistas que o suposto gás sarín não passaria de “anticongelante”.

Segundo o documento da Inteligência da Defesa, as prisões seriam sinal de que a Frente al-Nusra estava expandindo seu acesso a armas químicas. Dizia que Qassab se “tinha de auto-identificado” como membro da Frente al-Nusra e que era diretamente conectado a Abd-al-Ghani, “o emir da Frente al-Nusra para produção de equipamento militar”. Qassab e seu associado Khalid Ousta haviam trabalhado com Halit Unalkaya, empregado de uma empresa turca, Zirve Export, que ofereceu “cotação para preços de grandes quantidades de precursores de sarín”. O plano de Abd-al-Ghani era que dois associados aperfeiçoassem a produção de sarín e, na sequência, fossem para a Síria para treinar outros e iniciar a produção em larga escala num laboratório não identificado, na Síria. O documento da Inteligência da Defesa dizia que um de seus operadores comprara um precursor no “mercado químico de Bagdá”, o qual “serviu de base a pelo menos sete esforços para produzir armas químicas desde 2004”.

Uma série de ataques com armas químicas em março e abril de 2013 foram investigados nos poucos meses seguintes, por uma comissão especial da ONU enviada à Síria. Uma pessoa com conhecimento bem próximo da atividade da ONU na Síria disse-me que havia provas que ligavam a oposição síria ao primeiro ataque com gás, dia 19 de março de 2013, em Khan Al-Assal, vila próxima de Aleppo. No relatório final, em dezembro, a missão disse que pelo menos 19 civis e um soldado sírio estavam entre as vítimas fatais, além de muitos feridos. A Comissão não tinha a atribuição de determinar a responsabilidade pelo ataque, mas a mesma pessoa, muito bem informada sobre a missão da ONU, disse: "Os investigadores da ONU entrevistaram o povo que estava lá, inclusive os médicos que atenderam as vítimas. Era perfeitamente claro que os rebeldes lançaram o gás. Não veio a público, porque ninguém quis saber."

Nos meses antes do início dos ataques, um ex alto funcionário do Departamento da Defesa contou-me que a Agência de Inteligência da Defesa estava fazendo circular um relatório secreto diário, conhecido como SYRUP com toda a inteligência relacionada ao conflito na Síria, incluindo material sobre armas químicas. Mas na primavera, a distribuição da parte do relatório sobre armas químicas foi suspensa, por ordens de Denis McDonough, Chefe de Gabinete da Casa Branca. “Havia alguma coisa ali que fez McDonough entrar em surto”, disse o ex-funcionário do Departamento da Defesa. “Num dia, era grande uma coisa. De repente, depois dos ataques com sarín em março e abril”, ele estalou os dedos, “não estava mais lá”. A decisão de restringir a distribuição de informações foi tomada quando o Estado-Maior dos comandantes militares ordenou intensa planificação de urgência para uma possível invasão por terra contra a Síria, cujo principal objetivo seria eliminar armas químicas.

Meu informante, o ex alto oficial da inteligência, disse que muitos, no establishment de segurança nacional dos EUA há muito tempo estavam tendo problemas com interpretar a tal “linha vermelha” do presidente: "Os comandantes militares perguntaram à Casa Branca “o que significa essa linha vermelha?”, “Como se traduz em termos de ordens para os militares? Coturnos em solo? Ataque massivo?Ataque limitado?”. A inteligência militar recebeu ordens de estudar um modo de cumprir a ameaça. Nunca obtiveram qualquer resposta sobre o que o presidente estaria pensando."

Logo depois do ataque de 21 de agosto, Obama ordenou que o Pentágono listasse os alvos a serem bombardeados. No início do processo, disse meu informante, “a Casa Branca rejeitou 35 alvos propostos pelos comandantes militares, por serem insuficientemente dolorosos para o regime de Assad”. Esses primeiros alvos só incluíam alvos militares e nada próximo da infraestrutura civil. Sob pressão da Casa Branca, o plano de ataque dos EUA evoluiu para um “ataque monstro”: dois bombardeiros B-52 e tripulações foram deslocadas para bases aéreas próximas à Síria, além de submarinos e outras naves da Marinha equipadas com mísseis Tomahawk. "A cada dia, a lista ficava mais longa – disse-me meu informante –Os estrategistas do Pentágono disseram “não se pode usar só Tomahawks para atacar os silos de mísseis na Síria, porque o equipamento está protegido muito fundo, no subsolo. Por isso foram designados para a missão os dois B-52, com bombas de uma tonelada. E precisaremos de equipes de resgate para pilotos derrubados, e de drones para alvos selecionados. Virou operação monstro”." As novas listas de alvos estavam pensadas para “erradicar qualquer capacidade militar que Assad tenha”, disse-me meu informante, o ex funcionário da Inteligência. Os principais alvos envolviam redes elétricas, depósitos de petróleo e gás, todos os depósitos conhecidos de armas e logística, todos os comandos e controles de instalações e todos os prédios conhecidos da estrutura militar e de inteligência.

Grã-Bretanha e França teriam ambas de participar. Dia 29 de agosto, dia em que o Parlamento britânico rejeitou o pedido de Cameron para que a Grã-Bretanha se integrasse ao ataque, o jornal The Guardian noticiou que Cameron já ordenara que seis jatos de combate RAF Typhoon fossem deslocados para Chipre e oferecera um submarino capaz de disparar mísseis Tomahawk. A Força Aérea francesa – que teve papel crucial em 2011 no ataque à Síria – estava também profundamente comprometida, segundo matéria publicada no Le Nouvel Observateur; François Hollande ordenara que vários jatos Rafale se unissem à força de ataque norte-americana. Seus alvos, segundo o noticiário, estavam no oeste da Síria.

Nos últimos dias de agosto, o presidente dera aos comandantes militares uma data final para o início do ataque. "A hora H estava marcada para algum momento antes da segunda-feira [2/9/2013] de manhã, o ataque massivo para neutralizar Assad– continua meu informante." Por isso, foi surpresa para muitos quando, em discurso no Jardim das Rosas na Casa Branca, dia 31/8, Obama disse que o ataque estava suspenso, e que ele pedira autorização do Congresso, a ser votada.

Naquela altura, a premissa de Obama – de que só o exército sírio tinha capacidade para usar sarín – já estava em farrapos. Em poucos dias depois do ataque de 21 de agosto, disse-me meu informante, agentes da inteligência militar russa já haviam recolhido amostras do agente químico, em Ghouta. Analisaram tudo e passaram as amostras para a inteligência militar britânica. Esse é o material recebido em Porton Down, Inglaterra. (Um porta-voz de Porton Down disse: “Muitas das amostras analisadas na Grã-Bretanha deram resultado positivo para o agente de efeito neurológico, sarín. O MI6 disse que não comenta assuntos de inteligência”).

O mesmo ex funcionário da inteligência dos EUA disse que o russo que entregou as amostras ao Reino Unido, era “fonte segura – alguém com acesso, conhecimento e currículo de confiabilidade”. Depois dos primeiros usos noticiados de armas químicas na Síria, ano passado, agências de inteligência norte-americanas e aliadas "fizeram um esforço para encontrar a resposta sobre o que fora usado, se algo tivesse sido usado – e a origem do material – disse-me meu informante. – Usamos a troca de dados como parte da Convenção sobre Armas Químicas." "A linha básica sobre a qual trabalhava a DIA consistia em conhecermos a composição de cada linhagem de armas químicas fabricadas pelos soviéticos. Mas não sabíamos que linhagens havia então nos arsenais do governo Assad. Poucos dias depois do incidente em Damasco, pedimos a uma fonte no governo sírio que fornecesse uma lista das armas químicas realmente existentes no arsenal sírio. Por isso conseguimos confirmar tão rapidamente que o sarín usado em Damasco não era do governo sírio."

Na primavera anterior o processo não dera muito certo, disse-me meu informante, porque os estudos da inteligência ocidental “eram inconclusivos para o tipo de gás. Ninguém, então, falou em “sarín”. Discutiu-se muito sobre isso, mas dado que não se podia concluir que gás fora usado, não se podia dizer que Assad tivesse cruzado a tal “linha vermelha” do presidente”. Em 21/8/2013, continuou meu informante, “a oposição síria com certeza já sabia disso e anunciou, antes de qualquer análise, que teria sido usado “sarín” do exército sírio. E a imprensa-empresa e a Casa Branca saltaram para apanhar aquela chance: se era sarín, então... “Foi Assad”.

A equipe de Defesa da Grã-Bretanha que divulgou os resultados das análises feitas em Porton Down para os comandantes militares estava, simultaneamente, mandando um “recado”, disse meu informante: “Nós estamos sendo enganados nessa história”. (Isso explica uma mensagem tensa, que um alto funcionário da CIA distribuiu no final de agosto: “Não é coisa do atual regime [sírio]. Grã-Bretanha e EUA sabem”.) Mas naquele momento, faltavam poucos dias para o ataque, e aviões, navios e submarinos dos EUA, Grã-Bretanha e França já estavam em prontidão.

O comandante responsável geral pelo planejamento e execução do ataque à Síria era o general Martin Dempsey, Comandante do Estado-Maior das forças conjuntas. "Desde o início da crise, disse meu informante, os Comandantes do Estado-Maior mantiveram sérias dúvidas quanto ao argumento do governo Obama de que havia fatos a confirmar sua certeza de que Assad era culpado. Pressionaram a Agência de Inteligência da Defesa e outras agências, para que apresentassem provas mais substanciais." "Não havia o que os convencesse de que a Síria teria usado gás sarín, porque sabiam que Assad estava vencendo a guerra – disse meu informante." Dempsey irritou muita gente no governo Obama, de tanto que repetiu, também no Congresso, sobre o risco de um envolvimento militar dos EUA na Síria. Em abril, depois de uma avaliação otimista sobre avanços dos rebeldes feita pelo secretário de Estado John Kerry diante da Comissão de Assuntos Estrangeiros da Câmara de Deputados, Dempsey disse à Comissão de Forças Armadas do Senado que “há risco de esse conflito estar em empate”.

A ideia inicial de Dempsey depois de 21 de agosto de 2013 era que um ataque dos EUA à Síria – baseado na certeza de que o governo Assad fosse responsável pelo ataque com sarín – seria completa estupidez, do ponto de vista militar, disse meu informante. Mas depois que chegaram as informações de Porton Down, os chefes militares viram-se obrigados a levar ao presidente uma preocupação ainda mais grave: que o ataque que a Casa Branca tanto estava querendo, seria injustificado e injustificável ato de agressão. Foram os chefes militares que levaram Obama a mudar completamente de curso. A explicação oficial da Casa Branca para dar meia volta – a história que a imprensa-empresa contou – foi que o presidente, em caminhada pelo Jardim das Rosas com seu chefe de Gabinete, Denis McDonough, repentinamente, decidiu buscar aprovação para o ataque, num Congresso ferozmente dividido, com o qual Obama vivia em conflito já há anos. Meu informante contou-me que a Casa Branca deu outra explicação, diferente, aos membros do comando civil do Pentágono: o bombardeio havia sido suspenso, porque haveria inteligência que informava que “o Oriente Médio pegaria fogo”, se o ataque acontecesse.

A decisão do presidente de ir ao Congresso foi vista inicialmente pelos principais assessores na Casa Branca − disse meu informante − como replay do gambito de George W. Bush no outono de 2002, antes da invasão do Iraque: "Quando ficou claro que não havia armas de destruição em massa no Iraque, o Congresso, que havia apoiado a guerra do Iraque, e a Casa Branca, ambos, partilharam a culpa e sempre falaram de inteligência errada. Se o atual Congresso fosse obrigado a votar para apoiar o ataque, a Casa Branca conseguiria o que queria, e ainda mais – varreria a Síria com ataque massivo e validaria a palavra do presidente sobre a tal “linha vermelha”; e o presidente ainda poderia atribuir metade da culpa ao Congresso, no caso de algum dia vir a público que o governo sírio nada tivera a ver com o uso de gás em Goutha." O “meia volta, volver” colheu de surpresa até as lideranças Democratas no Congresso. Em setembro, o Wall Street Journal noticiou que três dias antes do discurso do Jardim das Rosas, Obama telefonara a Nancy Pelosi, líder dos Democratas na Câmara de Deputados, “para discutir as opções”. Mais tarde, ela mesma disse a deputados, segundo o Wall Street Journal, que não sugeriu ao presidente que pusesse o bombardeio em votação no Congresso.

Rapidamente, o movimento de Obama de buscar a aprovação do Congresso chegou a um beco sem saída. "O Congresso não poderia deixar que aquilo prosseguisse – disse meu informante. O Congresso, então, decidiu que, diferente do que fora feito quando da autorização para guerra ao Iraque, dessa vez haveria uma série de audiências públicas." "Nesse ponto, a Casa Branca foi tomada por uma espécie de desespero − diz meu informante − e foi quando surgiu o Plano B. Não se fala mais de bombardear a Síria, e Assad concordaria em assinar unilateralmente o tratado sobre guerra química e aceitaria entregar seu arsenal químico para ser destruído sob supervisão da ONU." Numa conferência de imprensa em Londres, dia 9/9/2013, Kerry ainda falava sobre intervenção: “O risco de não agir é maior que o risco de agir”. Mas quando um repórter perguntou-lhe se haveria algo que Assad pudesse fazer para deter o bombardeio, Kerry disse: "Claro! Ele que entregue cada pedacinho [orig. every single bit] de seu arsenal químico à comunidade internacional semana que vem... Mas não vai acontecer, não pode ser feito, obviamente." Como o New York Times noticiou dia seguinte, o acordo negociado pelos russos que emergiu em seguida já teria sido discutido antes entre Obama e Putin, no verão (julho) de 2012. Mas embora os planos de ataque tivessem sido arquivados, o governo Obama não mudou sua versão pública da justificativa para ir à guerra. “Naquele nível, ninguém nunca erra” – disse o ex funcionário da inteligência com quem conversei, falando dos altos funcionários da Casa Branca. “Ninguém ali jamais declarará: Nós estávamos errados”. (O porta-voz da Inteligência Nacional da Defesa disse: “O regime Assad, e só o regime Assad, pode ter sido responsável pelo ataque químico que aconteceu dia 21 de agosto de 2013”).

***

Ainda demorará para que venha à luz a extensão da cooperação entre EUA, Turquia, Arábia Saudita e Qatar, na ajuda que deram e dão à oposição rebelde na Síria. O governo Obama jamais admitiu publicamente o papel que teve na criação do que a CIA chama “um caminho de rato” – um caminho clandestino, de fato, uma ampla rodovia, que leva direto à Síria. O caminho de rato, autorizado no início de 2012, foi usado para infiltrar armas e munições vindas da Líbia, pelo sul da Turquia e pela fronteira com a Síria, para a oposição síria. Muitos dos que, no fim da trilha, na Síria, receberam as armas eram jihadistas, alguns dos quais afiliados à al-Qaeda. (O porta-voz da Inteligência da Defesa disse: “A ideia de que os EUA forneceram a quem quer que fosse armas vindas da Líbia é falsa”).

Em janeiro, a Comissão de Inteligência do Senado distribuiu documento sobre o assalto, por uma milícia local, em setembro de 2012, ao consulado norte-americano e a uma instalação clandestina da CIA que funcionava na mesma área, em Benghazi, e que resultou na morte do embaixador Christopher Stevens dos EUA e três outros. A crítica que o documento fez ao Departamento de Estado, por não ter dado adequada segurança ao consulado; e à comunidade de inteligência, por não ter alertado os militares sobre a presença da CIA na mesma área, recebeu manchetes de primeira página e reacendeu animosidades em Washington, com os Republicanos acusando Obama e Hillary Clinton de operarem na clandestinidade. O documento divulgado veio acompanhado e um anexo, que não foi divulgado, e que informa sobre um acordo secreto, assinado no início de 2012, entre o governo Obama e o governo Erdoğan. É o acordo que criou a linha do rato. Pelos termos desse acordo, o dinheiro veio da Turquia, da Arábia Saudita e do Qatar; a CIA, com apoio do MI6, ficou responsável por infiltrar na Síria armas retiradas do arsenal de Gaddafi. Várias empresas de fachada foram criadas na Líbia, algumas criadas como se fossem entidades australianas. Soldados norte-americanos aposentados, que nem sempre souberam quem realmente os empregava, foram contratados para administrar despacho e embarque. Essa operação era comandada por David Petraeus, diretor da CIA que logo renunciaria, quando se divulgou que mantinha um affair com sua biógrafa. (Porta-voz de Petraeus negou que essa operação tenha algum dia existido).

Essa operação jamais foi informada, quando foi montada, às comissões de Inteligência do Senado e da Câmara de Deputados no Congresso, nem às lideranças do Congresso, como a lei exige, desde a década de 1970. O envolvimento do MI6 permitiu à CIA burlar a lei, apresentando a missão como operação de ligação. Meu informante explicou que durante muitos anos havia uma exceção reconhecida na lei que permite que a CIA não informe ao Congresso suas atividades de ligação, porque implicaria revelar atividade de terceiros. (Operações clandestinas da CIA [que não sejam operação de ligação] têm de ser informadas num documento escrito, chamado finding, submetido às lideranças no Congresso, e têm de ser aprovadas). Esse anexo só foi lido pelos redatores do documento e por oito pessoas no Congresso: os líderes Republicano e Democrata na Câmara, no Senado e nas Comissões de Inteligência da Câmara e do Senado. Não se pode dizer que haja aí alguma genuína prestação de informação ou possibilidade de controle: não há instância, no governo dos EUA, na qual esses oito líderes encontrem-se para discutir informação secreta que só eles, em todo o governo, recebem.

O anexo não conta toda a história do que aconteceu em Benghazi antes do ataque nem explica por que o consulado dos EUA foi atacado. "A única missão daquele consulado era dar cobertura ao movimento de armas – disse meu informante, ex funcionário da inteligência, que leu o anexo − não tinha nenhuma real função política."

Depois do ataque ao consulado, Washington pôs fim repentinamente ao trabalho da CIA na transferência de armas da Líbia para a Síria, mas a linha de rato continuou ativa. "Os EUA já não têm qualquer controle sobre o que os turcos estão entregando aos jihadistas – disse meu informante." Em poucas semanas, cerca de 40 lançadores portáteis de mísseis terra-ar, conhecidos como manpads, estavam em mãos de rebeldes sírios. No dia 28 de novembro de 2012, Joby Warrick do Washington Post noticiou que, na véspera, rebeldes na região de Aleppo haviam, quase com certeza, usado um manpads para derrubar um helicóptero de transporte sírio. "O governo Obama − escreveu Warrick − muito se opôs a que se armasse a oposição síria com esses equipamentos, alertando que essas armas facilmente cairiam em mãos de terroristas e poderiam a qualquer momento ser usadas para derrubar aviões comerciais." Dois funcionários da inteligência do Oriente Médio apontaram o Qatar como fonte das armas, e um ex-analista de inteligência dos EUA especulou que os manpadspoderiam ter sido roubados de depósitos de armas do exército sírio assaltados por rebeldes. Não há qualquer indicação de que a posse desse tipo de armamento pelos rebeldes possa ser algum tipo de consequência não desejada de alguma operação clandestina dos EUA que tenha escapado do controle dos EUA.

No final de 2012, toda a inteligência norte-americana entendia que os rebeldes estavam perdendo a guerra. "Erdoğan estava furioso – continua meu informante – Sentia-se deixado para trás, pendurado no galho. Era dinheiro dele. E a saída da CIA foi interpretada como traição." Na primavera de 2013, a inteligência dos EUA soube que o governo turco – usando elementos de sua agência nacional de inteligência, MIT, e a Gendarmerie, unidade policial militarizada – estava trabalhando diretamente com a Frente al-Nusra e seus aliados para desenvolver capacidade de armas químicas. "O MIT fazia a ligação política com os rebeldes, e a Gendarmeriecuidava da logística militar, aconselhamento e treinamento em campo – inclusive treinamento para guerra química. Ampliar o papel da Turquia na primavera de 2013 foi visto como movimento chave − disse meu informante." "Erdoğan sabia que, se ele suspendesse o apoio aos jihadistas, a coisa estaria acabada. Os sauditas não têm como apoiar diretamente a guerra na Síria, por causa da logística – as grandes distâncias envolvidas e a dificuldade para mover armas e suprimentos. A esperança de Erdoğan era criar um fato que forçasse os EUA a acionar a linha vermelha. Mas em março e abril, Obama não respondeu."

Não houve nenhum sinal público de discordância, quando Erdoğan e Obama encontraram-se, dia 16 de maio de 2013 na Casa Branca. Em conferência de imprensa, depois, Obama disse que os dois concordavam que “Assad tem de sair”. Perguntado sobre se entendia que a Síria tivesse cruzado a linha vermelha, Obama disse que havia evidência de que aquelas armas haviam sido usadas, mas acrescentou: “É importante para nós garantir que obtenhamos informação mais específica sobre o que, exatamente, está acontecendo lá”. A linha vermelha continuava ainda intacta.

Um especialista em política externa dos EUA, que fala regularmente com funcionários em Washington e Ancara contou-me sobre um jantar de trabalho que Obama ofereceu a Erdoğan, durante sua visita em maio. O jantar foi dominado pela insistência, dos turcos, de que a Síria já ultrapassara a linha vermelha, e suas reclamações de que Obama relutava em fazer alguma coisa quanto a isso. Obama estava acompanhado por John Kerry e Tom Donilon, o conselheiro de segurança nacional que pouco depois deixaria o cargo. Erdoğan estava com Ahmet Davutoglu, Ministro de Relações Exteriores da Turquia, e Hakan Fidan, chefe do MIT. Fidan é conhecido por ser fortemente leal a Erdoğan, e tem sido visto como dedicado apoiador da oposição rebelde na Síria.

Esse especialista em política externa dos EUA contou-me que o que ouviu ele ouviu de Donilon. (Adiante a informação foi confirmada por um ex-funcionário do governo dos EUA, que ouviu o mesmo relado de um alto diplomata turco). Segundo esse especialista, Erdoğan quis o encontro para demonstrar a Obama que a linha vermelha fora infringida, e levou Fidan para expor os detalhes de sua posição. Quando Erdoğan tentou introduzir Fidan na conversa e Fidan começou a falar, Obama o interrompeu: “Já sabemos”. Erdoğan tentou outra vez introduzir Fidan, uma segunda vez, e, pela segunda vez, Obama cortou-lhe a palavra: “Nós sabemos”. Nesse ponto, furioso, Erdoğan disse “Mas sua linha vermelha já foi ultrapassada!”, e Donilon contou ao especialista, meu informante: "aquele filho da puta do Erdoğan meteu o dedo no nariz do presidente, dentro da Casa Branca." Obama então se virou para Fidan e disse: “Nós sabemos o que você está fazendo com os radicais na Síria”. (Donilon, que passou a integrar o Conselho de Relações Exteriores em julho passado (2013) não responde perguntas sobre esse jantar. O Ministério de Relações Exteriores da Turquia não responde perguntas sobre esse jantar. Um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional confirmou que o jantar aconteceu e enviou uma fotografia em que se vê Obama, Kerry, Donilon, Erdoğan, Fidan e Davutoglu à mesa. Disse que “além do que aí vai, não há detalhes das discussões”).

Nem por isso Erdoğan saiu de mãos abanando. Obama continua a permitir que a Turquia explore um furo numa ordem executiva do presidente que proíbe exportar ouro para o Irã, item do regime de sanções dos EUA contra o país. Em março de 2012, respondendo a sanções contra bancos iranianos impostas pela União Europeia, o sistema de pagamento eletrônico SWIFT, que facilita pagamentos trans-fronteiras, expulsou dúzias de instituições financeiras iranianas, o que restringiu severamente a capacidade do país para atuar no comércio internacional. Os EUA vieram logo depois, com a ordem executiva, em julho, mas deixaram aberta uma porta que viria a ser conhecida como “furo dourado”: podem continuar os embarques de ouro para entidades privadas iranianas. A Turquia é a maior compradora de petróleo e gás iranianos, e beneficia-se do “furo dourado”, depositando seus pagamentos pela energia que compra em liras turcas, numa conta iraniana na Turquia; esse dinheiro então é usado para comprar ouro turco que é exportado para empresas no Irã. Sabe-se que entraram US$13 bilhões em ouro, no Irã, por essa via, entre março de 2012 e julho de 2013.

Esse programa rapidamente se converteu em vaca de tetas fartas para políticos corruptos e comerciantes na Turquia, no Irã e nos Emirados Árabes Unidos. "Os intermediários fazem o que sempre fazem – disse o ex funcionário da inteligência, meu informante – Ficam com 15%. ACIA estimou em cerca de 2 bilhões de dólares a parte não oficial desses negócios. Ouro e liras turcas grudam nos dedos." O escândalo do “gás por ouro” veio a público na Turquia em dezembro, e resultou em denúncias criminais contra duas dúzias de pessoas, empresários conhecidos e familiares de altos funcionários do governo, além de ter gerado renúncia de três ministros, um dos quais exigiu que Erdoğan também renunciasse. O principal executivo de um banco estatal turco envolvido no escândalo insistiu que os mais de US$ 4,5 milhões em dinheiro que a polícia encontrou em sua casa, metidos em caixas de sapato, destinavam-se a doações para instituições de caridade.

No final do ano passado, Jonathan Schanzer e Mark Dubowitz em matéria para aForeign Policy noticiaram que o governo Obama fechara o “furo dourado” em janeiro de 2013, mas “trabalhou para garantir que a legislação só começasse a viger depois de seis meses”. Os autores especulam que o governo quis usar aquele tempo “extra” como “incentivo para trazer o Irã à mesa das barganhas sobre seu programa nuclear, ou para acalmar seu aliado turco na guerra civil síria. Os seis meses garantiram alguns bilhões a mais, em ouro, ao Irã, e minaram ainda mais o regime de sanções”.

***

A decisão dos EUA de pôr fim ao apoio da CIA ao embarque de armas para a Síria deixou Erdoğan exposto politicamente e militarmente. "Uma das questões da reunião de maio era o fato de que a Turquia é a única via para fazer chegar armas aos rebeldes na Síria – disse meu informante ex funcionário da inteligência. As armas não podem chegar pela Jordânia porque o terreno ao sul é aberto e há sírios por toda parte. Não podem ser deslocadas pelos vales e colinas do Líbano – porque ninguém nunca sabe o que encontrará do outro lado.” Sem o apoio militar dos EUA aos rebeldes – disse ele – o sonho de Erdoğan de ter na Síria um estado cliente está evaporando. Depois de a Síria vencer a guerra, Erdoğan sabe para onde irão aqueles milhares de rebeldes. E para onde iriam?! Erdogan está a um passo de ter milhares de radicais bem ali, no quintal dele."

Um consultor de inteligência dos EUA contou-me que poucas semanas antes de 21/8/2013, viu um documento altamente secreto preparado para Dempsey e o Secretário de Defesa, Chuck Hagel, que falava da “aguda ansiedade” do governo Erdoğan quanto às perspectivas sombrias para os rebeldes. A análise alertava que a liderança turca expressara “a necessidade de fazer alguma coisa que precipite uma resposta militar dos EUA”. No final do verão (agosto/setembro 2013), o exército sírio ainda estava em vantagem sobre os rebeldes, disse o ex funcionário da inteligência, e só o poder aéreo norte-americano conseguiria inverter a maré. No outono, prosseguiu ele, analistas de inteligência dos EUA que continuavam a trabalhar sobre os eventos de 21/8/2013, "já sentiam que a Síria não era responsável pelo ataque com sarín. Mas o gorila gigante continuava ali, diante deles: quem teria feito aquilo, em Goutha? Os suspeitos, de imediato, foram os turcos, porque só os turcos tinham todas as peças para fazer acontecer o que aconteceu. "Com mais dados e novas comunicações interceptadas relacionadas aos ataques de 21/8/2013, a comunidade de inteligência viu provas que apoiavam suas suspeitas. "Agora já sabemos que foi operação clandestina planejada por gente de Erdoğan, para forçar Obama a atacar, por “infração à linha vermelha” – disse-me meu informante, ex funcionário da inteligência dos EUA. – Eles tinham de escalar para um ataque a gás, em Damasco ou perto de Damasco, quando os inspetores da ONU (que chegaram a Damasco dia 18/8, para investigar ataques anteriores) – “estivessem lá”. Era indispensável fazer algo espetacular. Nossos mais altos funcionários militares foram informados pela Agência de Inteligência da Defesa e outras fontes de inteligência, de que o sarín chegou até lá através da Turquia – que só poderia ter chegado lá com apoio da Turquia. Os turcos também deram treinamento para produzirem e manusearem o gás sarín." Muita da informação que dá apoio a essa avaliação veio dos próprios turcos, através de conversas interceptadas logo depois do ataque. "A principal prova veio das muitas manifestações de alegria e felicitações mútuas, claras em numerosas conversas interceptadas. Operações secretas sempre são muito supersecretas durante o planejamento, mas milhares de moscas voam para todos os lados, na hora das comemorações. Não há vulnerabilidade maior que os autores, depois, quando começam a querer parabéns pelo sucesso, disse meu informante." "Para Erdoğan, seus problemas estariam, no dia seguinte, resolvidos: Soltem o gás, Obama declara “pisou na linha vermelha’, EUA atacam a Síria... Ou pelo menos, a ideia era essa. Mas não funcionou como o esperado, concluiu."

A inteligência sobre a Turquia, depois do ataque, não chegou à Casa Branca. "Ninguém quer falar sobre isso – disse o ex oficial de inteligência, meu informante. – Há muita relutância em contradizer o presidente, embora a comunidade de inteligência jamais tenha apoiado unanimemente a versão da culpa dos sírios. Jamais surgiu nem fiapo de prova posterior do envolvimento dos sírios no ataque com sarín que tenha sido apresentada pela Casa Branca, desde que o bombardeio foi cancelado. O governo de Obama nada pode dizer, porque eles mesmos agimos de modo muito irresponsável. Além do mais, já que culpamos Assad, agora não podemos nos desdizer e culpar Erdoğan."

A presteza com que a Turquia manipula os eventos na Síria na direção de seus próprios objetivos foi bem demonstrada no final do mês passado (março/2014), alguns dias antes de eleições locais na Turquia, quando a gravação de uma conversa, supostamente entre Erdoğan e seus associados, foi postada emYouTube. Incluía discussão sobre uma operação a ser atribuída a terceiros, que justificaria uma incursão de militares turcos na Síria. A operação girava em torno do túmulo Suleyman Shah, avô do reverenciado Osman I, fundador do Império Otomano, localizado perto de Aleppo, mas túmulo que foi cedido à Turquia em 1921, quando a Síria estava sob governo francês. Uma das facções islamistas rebeldes ameaçava destruir o túmulo, como local de idolatria, e o governo Erdoğan ameaçava publicamente retaliar, se o túmulo sofresse qualquer ataque. Segundo matéria distribuída pela Reuters, sobre a conversa que vazou, uma voz, que se suspeita seja Fidan, falava de criar uma provocação: "Olhe aqui, meu comandante [Erdoğan], se precisa de justificativa, a justificativa é eu mandar quatro homens até o outro lado. Mando dispararem oito mísseis em terra vazia [perto do túmulo].Isso não é problema. A justificativa, se cria." O governo turco reconheceu que houve uma reunião de segurança nacional, sobre ameaças vindas da Síria, mas disse que a gravação fora manipulada. Na sequência, o governo turco bloqueou completamente o acesso público ao canal YouTube.

Exceto essa ação, que foi barrada por Obama, o mais provável que a intromissão da Turquia na Síria prossiga. "Perguntei a colegas meus se há algum modo de vedar o continuado apoio de Erdoğan aos rebeldes, sobretudo agora, que tudo está tomando rumo tão ruim” – disse-me meu informante, ex funcionário da inteligência dos EUA. A resposta deles foi “Estamos ferrados”. Até poderíamos tentar ir a público, se fosse outro. Mas a Turquia é caso especial. A Turquia é aliada na OTAN. Os turcos não confiam no ocidente. Não continuariam conosco se adotássemos qualquer procedimento ativo contra interesses turcos. Se fôssemos a público com o que sabemos sobre o papel de Erdoğan no caso do gás, seria um desastre. Os turcos nos odiariam. Diriam: “Não nos digam o que podemos ou não podemos fazer.”

3 de abril de 2014

Rememorar 1964

Marcos Napolitano


Qual é o sentido de rememorarmos o meio século do golpe de Estado, militar ou, como o evento de 1964 vem sendo qualificado, civil-militar?

Em primeiro lugar, é preciso rememorar 1964 como ruptura histórica. Um dos objetivos mais claros do golpe era neutralizar uma elite política reformista que então se gestava. Com isso, os novos donos do poder isolaram por décadas o coração do Estado de uma pauta política de esquerda que tentava, apesar de seus eventuais erros políticos, corrigir os efeitos de uma exclusão social secular na sociedade.

Ademais, reprimiram duramente um conjunto incipiente de movimentos sociais e sindicais que se afirmavam como protagonistas da história. O golpe, portanto, destruiu uma frágil, porém inédita, experiência democrática entre nós, a "República de 46". Foi demais para a nossa tradição conservadora e autoritária.

Por outro lado, paradoxalmente, é preciso rememorar 1964 enquanto continuidade histórica. A heterogênea coalizão civil-militar conservadora que saiu vencedora convergia no anticomunismo visceral, o fantasma ameaçador da Guerra Fria. Também queria aprofundar o desenvolvimento capitalista dentro de um dado modelo associado ao grande capital internacional, modelo que, a rigor, foi consolidado por Juscelino Kubitschek.

O golpe, nesse sentido, reforçou tendências ideológicas, políticas de desenvolvimento e posições geopolíticas do Brasil que eram anteriores à tomada de poder pelos militares.

Finalmente, é preciso rememorar 1964 de maneira autorreflexiva, como marco de memória. Todo evento histórico, ainda mais com essa magnitude, conecta-se a outros eventos, anteriores e posteriores, produzindo várias memórias sociais, algumas dominantes e hegemônicas, outras marginalizadas. Nesse processo, grupos sociais veem sentidos diferentes para o mesmo evento.

As formas dominantes da memória social são sempre mutáveis. Lembrar 1964 hoje pode ter um sentido diferente de lembrar o golpe em 1974, em 1984, em 1994, ou em 2004.

O Brasil de 2014 experimenta uma situação paradoxal. A democracia institucional parece consolidada, apesar das fragilidades políticas de sempre, das histerias conservadoras em relação ao "projeto de poder" da esquerda e da incompetência das autoridades para superar problemas sociais graves.

Já os valores democráticos parecem cada vez mais ameaçados por uma opinião pública difusa, porém crescente, ganhando até expressão em setores da mídia. As vozes contra a extensão de direitos sociais e civis, sem falar na crítica pueril aos direitos humanos, estão agressivas e disseminadas mesmo entre a classe média escolarizada, ao contrário de outros aniversários do golpe.

O fantasma da ditadura, ao que parece, mudou de casa, cresceu e continua nos assombrando. Por isso é preciso rememorar, lembrar criticamente como 1964 começou. Nunca esquecer que palavras de ordem que parecem defender a coletividade como "segurança", "liberdade", "moralidade pública" e "família" podem estar preparando uma nova catástrofe se não forem acompanhadas de profunda reflexão do que significa a democracia: direito de manifestação crítica e discordância, igualdade perante a lei e dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor


Marcos Napolitano, 51, é professor de história do Brasil da Universidade de São Paulo.

1 de abril de 2014

Por trás do laboratório secreto de Marx

Behind exchange there lurks production, but what is more hidden still? The disavowed conditions of capital’s possibility - in reproduction, politics and nature - as sites for expanded anti-capitalist struggle.

Nancy Fraser

New Left Review


Tradução / O Capitalismo esta de volta! Apos décadas em que o termo raramente era encontrado fora dos escritos de pensadores Marxianos, comentadores de vertentes variadas agora abertamente se preocupam com a sua sustentabilidade, acadêmicos de todas as escolas se apressam a sistematizar suas criticas e ativistas pelo mundo afora se mobilizam em oposição as suas praticas. (1) Certamente, o retorno do "capitalismo" e um desdobramento desejável e um marco preciso, se e que um era necessário, da profundidade da crise atual--e da carência generalizada de uma elaboração sistemática a respeito dela. O que toda essa conversa sobre o capitalismo indica, sintomaticamente, e a intuição crescente de que os males heterogêneos - financeiro, econômico, ecológico, politico, social - que nos cercam podem ter uma raiz comum; e de que as reformas que se recusarem a lidar com os profundos alicerces estruturantes destes males inevitavelmente falharão. Igualmente, o ressurgimento do termo aponta para o anseio, em vários campos, por uma analise capaz de iluminar as relações entre as distintas lutas sociais de nosso tempo e de fomentar uma cooperação organizada, ate mesmo completamente unificada, de suas correntes mais avançadas e progressistas em um bloco anti-sistêmico. O palpite de que o capitalismo e a categoria central desta analise e certeiro.

A atual intensificação das conversas sobre o capitalismo, contudo, ainda e predominantemente retorica-e mais um sintoma da vontade de uma critica sistemática que de fato uma contribuição efetiva para ela. Gracas a décadas de amnesia coletiva, gerações inteiras de jovens ativistas e acadêmicos se tornaram sofisticados praticantes de analises de discurso, mas permaneceram completamente afastados das tradições do Kapitalkritik. Somente agora eles começam a se perguntar como estas analises poderiam ser praticadas para esclarecer a conjuntura atual. Seus 'anciãos', veteranos de eras passadas de agitação anticapitalista, que poderiam ter fornecido alguma orientação, tem sua própria forma de miopia. Eles falharam retumbantemente, apesar das pretensas boas intenções declaradas, em incorporar de forma sistêmica a perspicácia do feminismo, do pós-colonialismo e do pensamento ecológico na sua compreensão do capitalismo.

A consequência disto e que estamos vivendo uma crise capitalista de enorme intensidade, sem uma teoria critica que possa elucida-la adequadamente. Certamente, a crise atual não se encaixa nos modelos que herdamos: ela e multidimensional, englobando não apenas a economia formal, incluindo a financeira, mas também fenômenos nao-econômicos, como aquecimento global, 'assistência deficitária' e esvaziamento do poder publico em todos os níveis. Ate o momento, os modelos de crise aceitos tendem a focar exclusivamente os aspectos econômicos, os quais são isolados e privilegiados em relação aos outros fatores. Some-se a isso o fato de que a crise atual esta gerando novas configurações politicas e gramaticas de conflito social. As lutas pelo meio-ambiente, pela reprodução social e pelo poder publico são centrais nesta constelação, pois envolvem as múltiplas facetas da desigualdade, incluindo nacionalidade/raça/etnia, religião, sexualidade e classe. Todavia, neste caso os modelos teóricos aceitos também não nos servem, pois continuam a privilegiar as lutas por trabalho a partir da produção.

Em geral, então, nos faltam concepções sobre o capitalismo e a crise capitalista que sejam adequadas ao nosso tempo. Meu objetivo neste artigo e sugerir um caminho que possa suprir esta lacuna. O caminho passa pelo de Karl Marx, cuja concepção do capitalismo eu me proponho a reexaminar com este objetivo em mente. O pensamento de Marx tem muito a oferecer como uma fonte de conceitos gerais. Todavia ele e incapaz de reconhecer sistematicamente gênero, ecologia e poder politico como princípios estruturantes e eixos de desigualdade das sociedades capitalistas - quanto mais como apostas e campos de luta social. Suas melhores ideias portanto devem ser reconstruídas a partir destas perspectivas. Assim, neste artigo minha estrategia e olhar primeiro para Marx e depois para alem dele, na esperança de jogar uma nova luz sobre algumas velhas questões: o que exatamente e o capitalismo - como melhor defini-lo? Devemos pensar sobre ele como um sistema econômico, um modelo ético de vida ou uma ordem social institucionalizada? Como devemos caracterizar as suas 'tendencias a crises', e onde devemos localiza-las?

Características definidoras

Para lidar com estas questões, eu devo começar retomando o que Marx considerou serem as quatro características centrais do capitalismo. Por isso, minha abordagem ira parecer a primeira vista muito ortodoxa, mas pretendo "des-ortodoxiza"-la ao mostrar como essas quatro características pressupõem outras, que na verdade constituem as suas condições de possibilidade de fundo. Enquanto Marx olhou para alem da esfera de troca, analisando o 'laboratório secreto' da produção, para descobrir os segredos do capitalismo, eu procurarei as condições de possibilidade da produção para alem desta esfera, em domínios ainda mais secretos. Para Marx, a primeira característica definidora do capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção, o que pressupõe uma divisão de classes entre os proprietários e os produtores. Esta divisão surge como resultado do fim de um mundo social anterior, no qual a maioria das pessoas, independentemente de sua posição, tinha acesso aos meios de subsistência e aos meios de produção; acesso, em outras palavras, a comida, moradia e vestimenta, e a ferramentas, terra e trabalho, sem a necessidade de mediação dos mercados de trabalho. O capitalismo decididamente acabou com esta configuração. Ele cercou o comum, revogou o direito costumeiro de uso da maioria e transformou os recursos compartilhados em propriedade privada de uma reduzida minoria.

Isso nos leva diretamente a segunda característica central de Marx, o mercado de trabalho livre, porque os outros - isto e, a vasta maioria - agora precisa se desdobrar de uma forma bastante peculiar, a fim de que possa trabalhar e conseguir o necessário para continuar vivendo e criar seus filhos. Vale ressaltar o quão bizarra, o quão 'não natural', o quão historicamente anômala e especifica esta instituição do mercado de trabalho livre e. O trabalho aqui e livre em dois sentidos: primeiro, em termos de status jurídico - não escravizado, não servil, não legatário ou de alguma outra maneira atado a algum lugar ou a algum dono particular - portanto flexível e apto a participar de um contrato de trabalho. Mas em segundo lugar, 'livre' do acesso aos meios de subsistência e de produção, inclusive do direito costumeiro de uso da terra e ferramentas - e portanto desprovido dos recursos e prerrogativas que permitem a alguém se ausentar do mercado de trabalho.

Depois vem o fenômeno igualmente estranho do valor auto-expansivo, que e a terceira característica central de Marx. O capitalismo e peculiar por ter um impulso objetivo e sistêmico ou uma orientação: a saber, a acumulação de capital. Em principio, desta forma, tudo o que os proprietários fazem qua capitalistas objetiva expandir seu capital. Como os produtores, eles também obedecem a uma peculiar compulsão sistêmica. E os esforços de todos para satisfazer suas necessidades são secundários, vinculados a outra coisa que adquire prioridade: um imperativo primordial inscrito em um sistema impessoal, a propria necessidade do capitalismo de uma auto-expansão sem fim. Marx e brilhante neste ponto. Numa sociedade capitalista, ele diz, o capital em si torna-se o Sujeito. Os seres humanos são seus peões e apenas lhes resta descobrir, nos intervalos, como podem conseguir o que precisam, alimentando a besta.

A quarta característica especifica o papel distintivo dos mercados na sociedade capitalista. Os mercados sempre existiram ao longo da historia humana, inclusive em sociedades não capitalistas. O seu funcionamento sob o capitalismo, contudo, se distingue por duas outras características. Primeiro, os mercados numa sociedade capitalista servem para alocar os principais insumos a produção de mercadorias. Entendidos pela economia politica burguesa como os "fatores de produção", estes insumos eram originalmente identificados como terra, trabalho e capital. Alem de utilizar os mercados para alocar o trabalho, o capitalismo também os utiliza para alocar os bens imoveis, os bens de produção, as matérias-primas e o credito. A medida que aloca estes insumos produtivos por meio dos mecanismos de mercado, o capitalismo os transforma em mercadorias. E, na notável elaboração de Piero Sraffa, um sistema para a 'produção de mercadorias por meio de mercadorias', apesar de também se apoiar, como veremos, em um pano de fundo de não-mercadorias. (2)

Mas também há uma segunda função-chave que os mercados cumprem em uma sociedade capitalista: eles determinam como investir o excedente de produção. Para Marx, excedente de produção significava o fundo coletivo das energias sociais que superavam as necessárias para reproduzir uma dada forma de vida e para reabastecer o que foi esgotado no curso de vivê-la. A forma como uma sociedade usa suas capacidades excedentes é absolutamente central, levantando questões fundamentais sobre como as pessoas querem viver - onde elas decidem investir as suas energias coletivas, como elas propõem contra-­‐balancear ‘trabalho produtivo’ e vida familiar, lazer e outras atividades - bem como a maneira pela qual elas pretendem se relacionar com a natureza não-humana e o que elas ambicionam deixar para gerações futuras. As sociedades capitalistas tendem a deixar estas decisões para as ‘forças do mercado’. Esta é talvez a sua característica mais influente e perversa - esta delegação dos assuntos mais importantes a um aparato voltado ao reforço do valor monetizado. Isto se aproxima da nossa terceira característica central, a orientação inerente porém cega do capital, o processo auto-expansivo pelo qual ele se constitui como o sujeito da história, deslocando os seres humanos que o criaram e os tornando seus criados.

Ao ressaltar estes dois papéis dos mercados, eu pretendo me contrapor à visão amplamente difundida, segundo a qual o capitalismo impulsiona a sempre crescente comodificação da vida como tal. Eu acho que esta visão nos leva por um beco sem saída a fantasias distópicas de um mundo completamente comodificado. Não somente estas fantasias negligenciam os aspectos emancipatórios dos mercados, mas também não atentam para o fato, acentuado por Immanuel Wallerstein, de que o capitalismo tem funcionado frequentemente na base de lares ‘semi-proletarizados’. Sob esses arranjos, que permitem aos donos pagarem menos aos trabalhadores, vários lares retiram uma significativa parcela de seu sustento de fontes outras que não o salário em espécie, incluindo auto- provisionamento (jardinagem, costura), reciprocidade informal (ajuda mútua, transações em espécie) e transferências do Estado (benefícios assistenciais, serviço social, bens públicos).3 Tais arranjos deixam uma significativa parcela dessas atividades e bens fora do alcance do mercado. Eles nem são meros resquícios residuais de tempos pré-capitalistas, nem estão prestes a acabar. Eles eram intrínsecos ao Fordismo, que era capaz de promover o consumismo da classe trabalhadora nos países centrais apenas por meio da semi-proletarização dos lares, que combinava o emprego masculino com a domesticidade feminina, e da restrição ao desenvolvimento do consumo de mercadorias na periferia. A semi-proletarização é até mais nítida no neo-liberalismo, que construiu toda uma estratégia de acumulação por meio da expulsão de bilhões de pessoas da economia formal para as zonas cinzentas informais, das quais o capital desvia valor. Como veremos, este tipo de ‘acumulação primitiva’ é um processo contínuo que gera lucros ao capital e no qual este se apoia.

O ponto então é que aspectos mercantis das sociedades capitalistas coexistem com aspectos não mercantis. Isto não é uma casualidade ou uma contingência empírica mas sim uma característica inscrita no DNA do capitalismo. De fato, ‘coexistência’ é um termo muito fraco para capturar a relação entre aspectos mercantis e não mercantis de uma sociedade capitalista. Um termo melhor seria ‘imbricação funcional’ ou, ainda mais forte e direto, ‘dependência’.4 Os mercados dependem, para a sua existência, de relações sociais não mercantis que fornecem as suas condições de possibilidade de fundo.

Condições de fundo

Até agora, elaborei uma definição do capitalismo bastante ortodoxa, baseada em quatro características centrais que parecem ser ‘econômicas’. Eu efetivamente segui Marx ao olhar para além da perspectiva do senso comum, focado na troca do mercado para o ‘laboratório secreto’ da produção. Agora, porém, eu gostaria de olhar para além deste laboratório secreto para ver o que é mais secreto ainda. Afirmo que a explicação de Marx, a respeito da produção capitalista, só faz sentido quando começamos a completá-­‐la com as suas condições de possibilidade de fundo. Então a próxima pergunta será: o que deve existir por trás dessas características centrais, de maneira que elas sejam possíveis? O próprio Marx aborda uma questão desse tipo quase ao final do volume I d’O Capital, no capítulo da chamada acumulação ‘primitiva’ ou original.5 De onde o capital vem, ele pergunta - como a propriedade privada dos meios de produção passou a existir e como os produtores se separaram deles? Nos capítulos anteriores, Marx escancarou a lógica econômica do capitalismo, abstraindo as condições de possibilidade de fundo, que foram consideradas simplesmente como dadas. Mas acontece que havia toda uma história de fundo sobre de onde vem o capital em si - uma história bastante violenta de despossessão e expropriação. Ademais, como David Harvey salientou, esta história de fundo não está localizada somente no passado, nas ‘origens’ do capitalismo.6 A expropriação é um mecanismo contínuo, apesar de não oficial, de acumulação, que segue ao lado do mecanismo oficial da exploração - a história aparente de Marx, por assim dizer.

Este movimento, da história aparente da exploração para a história de fundo da expropriação, constitui um importante giro epistemológico, que coloca tudo o que foi dito anteriormente sob nova luz. É análogo ao movimento que Marx faz mais cedo, no começo do Volume I, quando nos convida a deixar para trás a esfera da troca e a perspectiva do senso-comum burguês a ela associada, para entrar no laboratório secreto da produção, que possibilita uma perspectiva mais crítica. Como resultado deste primeiro movimento, descobrimos um segredo sujo: a acumulação se dá via exploração. O Capital se expande, em outras palavras, não pela troca de equivalentes, como sugere a perspectiva de mercado, mas precisamente por meio de seu oposto: pela não-remuneração de uma porção do tempo de trabalho dos trabalhadores. Igualmente, quando nos movemos, no final do volume, da exploração para a expropriação, descobrimos um segredo ainda mais sujo: por trás da coerção sublimada do trabalho remunerado, há evidente violência e roubo de fato. Em outras palavras, a longa elaboração da lógica econômica do capitalismo, que constitui a maior parte do Volume I, não é a última palavra dada. A ela segue uma mudança para outra perspectiva, a perspectiva da despossessão. Este movimento para além do ‘laboratório secreto’ também é um movimento para a história - e para o que tenho chamado de ‘condições de possibilidade’ de fundo para a exploração.

Certamente, contudo, existem outros giros epistemológicos igualmente importantes sugeridos na abordagem de Marx do capitalismo, mas não desenvolvidos por ele. Estes movimentos, para laboratórios mais secretos, ainda precisam de uma conceituação. Eles precisam ser escritos em novos volumes d’O Capital, de preferência, se pretendermos desenvolver uma compreensão adequada do capitalismo do século XXI. Um deles é o giro epistemológico da produção para a reprodução social -­‐ as formas de provisionamento, atenção e interação que produzem e mantêm os laços sociais. Denominada de distintas maneiras como ‘cuidado’, ‘trabalho afetivo’ ou ‘subjetivação’, esta atividade forma os sujeitos humanos do capitalismo, sustentando-os como seres naturais corporificados, enquanto também os constitui como seres sociais, formando seus habitus e a substância sócioética, ou Sittlichkeit, na qual eles se movimentam. O central aqui é o trabalho de socialização da juventude, a construção das comunidades, a produção e a reprodução dos significados compartilhados, as disposições afetivas e os horizontes de valor que estruturam a cooperação social.

Nas sociedades capitalistas, boa parte, embora não tudo, destas atividades acontece fora do mercado, nos lares, nas vizinhanças e em algumas instituições públicas, incluindo escolas e creches; e boa parte disto, embora não tudo, não assume a forma de trabalho remunerado. Todavia, a atividade sócio-reprodutiva é absolutamente necessária à existência do trabalho remunerado, à acumulação de mais-valia e ao funcionamento do capitalismo como tal. O trabalho remunerado não poderia existir sem o trabalho doméstico, a criação de filhos, a educação escolar, o cuidado afetivo e uma série de outras atividades que ajudam a produzir as novas gerações de trabalhadores, a reabastecer as existentes, a manter laços sociais e compreensões compartilhadas. Tal como a ‘acumulação original’, portanto, a reprodução social é uma condição de possibilidade de fundo indispensável da produção capitalista.

Ademais, estruturalmente a divisão entre reprodução social e produção de mercadoria é central ao capitalismo - realmente, é um artefato dele. Como dezenas de teóricas feministas ressaltaram, a distinção é profundamente marcada pelo gênero, com a reprodução associada às mulheres e a produção, aos homens. Historicamente, a separação entre trabalho produtivo remunerado e trabalho reprodutivo não-remunerado tem estruturado as formas capitalistas modernas de subordinação das mulheres. Como aquela entre proprietários e trabalhadores, esta divisão também se apóia no rompimento com um mundo anterior. Neste caso, o que foi destruído foi um mundo no qual o trabalho das mulheres, apesar de distinto do dos homens, era ainda assim visível e publicamente reconhecido, uma parte integrante do universo social. Com o capitalismo, ao contrário, o trabalho reprodutivo é cindido, relegado a uma esfera separada, doméstica e ‘privada’, na qual a sua importância social é obscurecida. E neste novo mundo, no qual o dinheiro é um meio primário de poder, o fato de não ser remunerado encerra o assunto: quem realiza este trabalho está estruturalmente subordinado a quem ganha salário em espécie, mesmo que seu trabalho também forneça as pré-condições necessárias ao trabalho remunerado.

Longe de ser universal, então, a divisão entre produção e reprodução surgiu historicamente com o capitalismo. Mas não foi simplesmente dada de uma vez por todas. Pelo contrário, a divisão sofreu historicamente uma mutação, tomando diferentes formas em diferentes fases do desenvolvimento capitalista. Durante o século XX, alguns aspectos da reprodução social foram transformados em serviços públicos e bens públicos, estatizados mas não comodificados. Hoje, a divisão sofre novamente uma mutação, pois o neoliberalismo (re)privatiza e (re)comodifica alguns destes serviços, ao mesmo tempo em que comodifica pela primeira vez outros aspectos da reprodução social. Ademais, ao demandar ao mesmo tempo a redução do provisionamento público e o recrutamento em massa de mulheres para o trabalho em serviços mal remunerados, essa divisão está remapeando as fronteiras institucionais que antes separavam a produção de mercadorias da reprodução social, e portanto reconfigurando a hierarquia de gênero no processo. Igualmente importante, ao organizar um grande assalto contra a reprodução social, ela está transformando esta condição de fundo para a acumulação de capital em um importante ponto crítico da crise capitalista.

Natureza e poder

Mas devemos também considerar mais dois giros igualmente importantes na perspectiva epistemológica, que nos levam a outros laboratórios secretos. O primeiro está melhor representado no trabalho dos pensadores ecossocialistas, que agora estão escrevendo outra história de fundo sobre o parasitismo do capitalismo em relação à natureza. Esta história diz respeito à anexação da natureza pelo capital - sua Landnahme, tanto como uma fonte de ‘insumos’ para a produção como um ‘ralo’ para absorver os resíduos desta última. A natureza é aqui transformada em um recurso para o capital, cujo valor é ao mesmo tempo pressuposto e negado.Tratada como gratuita nas contas do capital, ela é expropriada sem compensação ou reabastecimento, sendo implicitamente considerada infinita. Portanto, a capacidade da natureza de dar suporte à vida e de se renovar constitui uma outra condição de fundo necessária para a produção de mercadoria e a acumulação de capital.

Estruturalmente, o capitalismo assume - de fato, inaugura - uma divisão nítida entre o reino da natureza, concebido como a oferta gratuita de matéria-prima não-produzida e disponível para apropriação, e o reino econômico, concebido como a esfera do valor, produzida por e para seres humanos. A reboque, vem o fortalecimento da distinção pré-existente entre o humano - visto como espiritual, sócio-cultural e histórico - e a natureza não-humana, vista como material, dada objetivamente e a-histórica. O aprofundamento desta distinção também se apóia no rompimento com um mundo prévio, no qual os ritmos da vida social estavam em vários aspectos adaptados aos da natureza não-humana. O capitalismo brutalmente separou os seres humanos dos ritmos naturais e sazonais, recrutando-os para a indústria manufatureira, movida a combustíveis fósseis, e para a agricultura voltada ao lucro, anabolizada pelos fertilizantes químicos. Introduzindo o que Marx chamou de “falha metabólica”, isso inaugurou o que agora foi chamado de Antropoceno, uma era geológica inteiramente nova na qual a atividade humana tem um impacto decisivo nos ecossistemas e na atmosfera da Terra.7

Surgindo com o capitalismo, esta divisão também sofreu uma mutação ao longo do desenvolvimento capitalista. A atual fase neoliberal inaugurou uma nova rodada de cercamentos - a comodificação da água, por exemplo - os quais estão trazendo ‘mais da natureza’ (se é possível dizer assim) para o primeiro plano da economia. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo promete ofuscar a fronteira natureza/humanidade - atestam as novas tecnologias reprodutivas e os ‘cyborgs’ de Donna Haraway.8 Longe de oferecerem uma ‘reconciliação’ com a natureza, contudo, estes desenvolvimentos intensificam a comodificação e sua anexação pelo capitalismo. Diferentemente dos cercamentos de terra sobre os quais Marx e Polanyi escreveram, que ‘apenas’ mercantilizavam fenômenos naturais existentes, os novos cercamentos penetram fundo ‘dentro’ da natureza, alterando sua gramática interna. Finalmente, o neoliberalismo mercantilizou o ambientalismo, como atesta a ativa troca de licenças e compensações das emissões de carbono e de ‘derivativos ambientais’, que distanciam o capitalismo do investimento de longo prazo e em larga escala, necessário para transformar modos de vida insustentáveis dependentes de combustíveis fósseis. Sobre o pano de fundo do aquecimento global, este assalto ao que resta dos bens comuns ecológicos está transformando a condição natural da acumulação de capital em outro nó central da crise capitalista.

Finalmente, vamos considerar um último giro epistemológico, que aponta para as condições políticas de possibilidade do capitalismo - sua dependência dos poderes públicos para estabelecer e impor suas normas constitutivas. O capitalismo é inconcebível, afinal, na ausência de um marco legal que estruture a iniciativa privada e a troca de mercado. A sua história aparente depende em especial dos poderes públicos para garantir os direitos de propriedade, fazer valer os contratos, adjudicar as disputas, debelar as rebeliões anti-­‐capitalistas e manter, nos termos da Constituição dos EUA, a ‘inteira fé e crédito’ da oferta de dinheiro que constitui a seiva do capitalismo. Historicamente, os poderes públicos em questão estiveram alojados nos estados territoriais, incluindo aqueles que operavam como poderes coloniais. Foi o sistema jurídico destes estados que estabeleceu os contornos das arenas aparentemente despolitizadas, nas quais os atores privados poderiam buscar os seus interesses ‘econômicos’, livres de uma evidente interferência ‘política’, de um lado, e de obrigações patronais derivadas do parentesco, de outro. Igualmente, foram os estados territoriais que mobilizaram a ‘força legítima’ para abater a resistência às expropriações, por meio das quais as relações capitalistas de propriedade foram originadas e sustentadas. Finalmente, foram esses estados que nacionalizaram e garantiram o dinheiro.9 Historicamente, podemos dizer que o estado ‘constituiu’’ a economia capitalista.

Aqui encontramos outra importante divisão estrutural que é constitutiva da sociedade capitalista: aquela entre política e economia. Com essa divisão vem a diferenciação institucional entre poder público e privado, entre coerção política e econômica. Como as outras divisões centrais que discutimos, esta também surge como o resultado de um rompimento com um mundo prévio. Neste caso, o que foi desmantelado foi o mundo social no qual poder político e econômico estavam efetivamente fundidos -­‐ como por exemplo na sociedade feudal onde o controle do trabalho, da terra e da força militar estava investido numa única instituição de senhorio e vassalagem. Na sociedade capitalista, ao contrário, como Ellen Wood elegantemente mostrou, o poder econômico e o poder político são separados; cada um está designado a sua própria esfera, seus próprios meios e modus operandi. 10 Contudo a história aparente do capitalismo também tem condições políticas de possibilidade em um nível geo-­‐político. O que está em questão aqui é a organização de um espaço mais amplo no qual os estados territoriais estão incorporados. Este é um espaço no qual o capital se move muito facilmente, dado o seu ímpeto expansionista. Mas esta habilidade de operar além das fronteiras depende do direito internacional, de acordos negociados entre as grandes potências e de regimes supranacionais, que parcialmente pacificam (de uma maneira amigável ao capital) um reino que frequentemente é imaginado como um estado de natureza. Ao longo de sua história, a história aparente do capitalismo tem dependido das capacidades militares e organizativas de sucessivas hegemonias globais que, conforme Giovanni Arrighi argumentou, buscaram nutrir a acumulação numa escala de expansão progressiva em um sistema pluri-estatal.11

Aqui encontramos outras divisões estruturais que são constitutivas das sociedades capitalistas: a divisão ‘ocidentalista’ entre o ‘doméstico’ e o ‘internacional’, de um lado, e a divisão imperialista entre centro e periferia, de outro - ambas alicerçadas numa divisão mais fundamental entre a economia capitalista crescentemente global, organizada como um ‘sistema mundial’ e um mundo político como um sistema internacional de estados territoriais. Estas divisões estão atualmente sofrendo mutações também, na medida em que o neoliberalismo esvazia as capacidades políticas nas quais o capital historicamente se apoiou, tanto em nível estatal quanto em nível geopolítico. Muito mais pode ser dito sobre cada um desses pontos; mas a direção geral do meu argumento deve estar clara. Ao apresentar a minha compreensão inicial do capitalismo, mostrei que suas características ‘econômicas’ em primeiro plano dependem de condições ‘não-econômicas’ de fundo. Um sistema econômico definido pela propriedade privada, a acumulação do valor auto-expansivo, mercados de trabalho livre e outros insumos para a produção de mercadorias e pela alocação do excedente social pelo mercado é possibilitado por três condições cruciais de fundo, ligadas respectivamente à reprodução social, à ecologia da terra e ao poder político. Para compreender o capitalismo, portanto, precisamos relacionar a sua história aparente com estas três histórias de fundo. Precisamos conectar a perspectiva Marxista às perspectivas feminista, ecológica e teórico-política - teórico-estatal, colonial/pós-colonial e transnacional.

Uma ordem social institucionalizada

Que tipo de animal é o capitalismo nesta abordagem? O retrato que elaborei aqui difere de maneira importante da ideia familiar de que o capitalismo é um sistema econômico. De fato, pode ter parecido à primeira vista que as características centrais que identificamos eram ‘econômicas’. Mas essa aparência era enganadora. Uma das peculiaridades do capitalismo é que ele trata as suas relações sociais estruturantes como se elas fossem econômicas. Na verdade, nós rapidamente compreendemos ser necessário falar sobre as condições de fundo ‘não-­‐econômicas’ que permitiram tal ‘sistema econômico’ existir. Estas são características não de uma economia capitalista, mas de uma sociedade capitalista; e nós concluímos que essas condições de fundo não podem ser apagadas do retrato, mas devem ser conceituadas e teorizadas como parte da nossa compreensão do capitalismo. Então o capitalismo é algo além de uma economia.

Igualmente, o retrato que desenhei difere da perspectiva do capitalismo como uma forma reificada de vida ética, caracterizada pela comodificação e monetarização penetrantes. Nesta perspectiva, conforme foi articulada no celebrado artigo de Lukács ‘A reificação e a consciência do proletariado’, a forma mercadoria coloniza toda a vida, imprimindo sua marca em fenômenos tão diversos quanto direito, ciência, moral, arte e cultura.12 Na minha visão, a comodificação é um fenômeno que está longe de ser universal numa sociedade capitalista. Ao contrário, onde está presente, ela depende para a sua própria existência de zonas de não-­‐comodificação. Social, ecológica e política, essas zonas não-­‐comodificadas não espelham simplesmente a lógica da mercadoria, mas corporificam distintas gramáticas normativas e ontológicas próprias. Por exemplo, práticas sociais orientadas para reprodução (em oposição à produção) tendem a engendrar ideais de cuidado, responsabilidade mútua e solidariedade, ainda que pareçam hierárquicos e paroquiais. 13 Igualmente, práticas orientadas para a política, em vez da economia, frequentemente se referem aos princípios de democracia, autonomia pública e auto-determinação coletiva, ainda que pareçam restritas ou excludentes. Finalmente, práticas ligadas às condições de fundo do capitalismo, associadas à natureza não-humana, tendem a nutrir valores como conservação ecológica, não dominação da natureza e justiça entre gerações, ainda que pareçam românticas e sectárias. Evidentemente, meu ponto não é idealizar essas normatividades ‘não-econômicas’, mas registrar sua discrepância em relação aos valores associados ao primeiro plano do capitalismo: acima de tudo, crescimento, eficiência, troca igualitária, escolha individual, liberdade negativa e avanço meritocrático.

Essa divergência faz toda a diferença na maneira como conceituamos o capitalismo. Longe de gerar uma única e inteiramente penetrante lógica de reificação, a sociedade capitalista é normativamente diferenciada, englobando uma determinada pluralidade de ontologias sociais distintas mas inter-­‐ relacionadas. Ainda está para ser visto o que acontece quando estas colidem. Mas a estrutura que as sustenta já é clara: a topografia normativa característica do capitalismo surge das relações entre primeiro plano e fundo que identificamos. Se pretendemos desenvolver uma teoria crítica dele, devemos substituir a perspectiva do capitalismo como uma forma de vida ética reificada por uma perspectiva estrutural mais diferenciada.

Se capitalismo não é nem um sistema econômico nem uma forma de vida reificada, então o que é? Minha resposta é que ele é mais bem compreendido como uma ordem social institucionalizada, da mesma forma que, por exemplo, o feudalismo. Entender o capitalismo dessa forma evidencia suas divisões estruturais, especialmente as separações institucionais que identifiquei. Constitutiva do capitalismo, nós vimos, é a separação institucional entre ‘produção econômica’ e ‘reprodução social’, uma separação baseada no gênero que sustenta especificamente formas capitalistas de dominação masculina, enquanto também permite a exploração capitalista da força de trabalho e, por meio desta, seu modo de acumulação oficialmente sancionado. Também própria do capitalismo é a separação institucional entre ‘economia’ e ‘política’, uma separação que expulsa os assuntos definidos como ‘econômicos’ da agenda política dos estados territoriais, enquanto libera o capital para circular numa terra de ninguém transnacional, onde ele colhe os benefícios da ordem hegemônica enquanto escapa do controle político. Igualmente fundamental ao capitalismo, finalmente, é a divisão ontológica, preexistente mas massivamente intensificada, entre seu fundo ‘natural’ (não-humano) e seu primeiro plano ‘humano’ (aparentemente não-natural). Portanto, falar de capitalismo como uma ordem social institucionalizada, dependente destas separações, é sugerir a sua imbricação estrutural não-acidental com a opressão de gênero, com a dominação política - tanto a nacional quanto a transnacional, colonial e pós-colonial - e com a degradação ecológica; articulada evidentemente com a sua dinâmica de exploração do trabalho igualmente estrutural e não-acidental em primeiro plano.

Isto não é para sugerir, contudo, que as divisões institucionais do capitalismo são simplesmente dadas de uma vez por todas. Ao contrário, como vimos, precisamente onde e como as sociedades capitalistas marcam a divisão entre produção e reprodução, economia e organização política, natureza humana e não-­‐humana varia historicamente, de acordo com o regime de acumulação. Na verdade, podemos conceituar o capitalismo competitivo do laissez-faire, o capitalismo de monopólio gerido pelo estado e o capitalismo neoliberal globalizante exatamente nesses termos: como três maneiras historicamente específicas de separar economia de organização política, produção de reprodução e natureza humana de não-humana.

Lutas sobre os limites

Igualmente importante, a configuração específica da ordem capitalista em qualquer lugar ou tempo depende da política -­‐ do balanço entre o poder social e o resultado das lutas sociais. Longe de ser simplesmente dadas, as divisões institucionais do capitalismo frequentemente se tornam focos de conflito, conforme os atores se mobilizam para desafiar ou defender os limites estabelecidos que separam economia da política, produção da reprodução e natureza humana da não-humana. Na medida em que eles buscam reposicionar os processos contestados no mapa institucional do capitalismo, os sujeitos do capitalismo se inspiram nas perspectivas normativas associadas às várias zonas que identificamos. Nós podemos ver isso acontecendo hoje. Por exemplo, alguns adversários do neoliberalismo se inspiram nos ideais de cuidado, solidariedade e responsabilidade mútua, associados à reprodução, para se contrapor às iniciativas de comodificação da educação. Outros convocam as noções de conservação da natureza e justiça entre gerações, associadas à ecologia, para militar por energia renovável. Ainda outros evocam os ideais de autonomia pública, associados à organização política, para defender os controles sobre o capital internacional e estender a responsabilidade da democracia para além do estado. Estas reivindicações, junto com as contra-reivindicações que elas inevitavelmente incitam, são a própria substância da luta social das sociedades capitalistas - tão fundamentais quanto as lutas de classe sobre o controle da produção de mercadorias e da distribuição da mais-valia privilegiadas por Marx. Estas lutas sobre os limites, como as chamarei, modelam decisivamente a estrutura das sociedades capitalistas.14 Elas desempenham um papel constitutivo na visão do capitalismo como uma ordem social institucionalizada.

O foco nas lutas sobre os limites impede qualquer compreensão errônea de que a minha perspectiva é funcionalista. De fato, começo caracterizando reprodução, ecologia e poder político como as condições de fundo necessárias para a história econômica aparente do capitalismo, ressaltando sua funcionalidade para a produção de mercadoria, exploração do trabalho e acumulação de capital. Mas esse momento estrutural não dá conta da história completa das relações entre o primeiro plano e o plano de fundo do capitalismo. Ela coexiste na verdade com outro ‘momento’, já sugerido, que é igualmente central e que emerge da caracterização do social, do político e do ecológico como reservas de normatividade ‘não-­‐econômica’. Isto implica que, mesmo que essas ordens não-­‐econômicas sejam responsáveis por tornar a produção de mercadoria possível, elas não são redutíveis a esta função capacitadora. Longe de ser completamente exaurida nas ou inteiramente subserviente às dinâmicas de acumulação, cada um destes laboratórios secretos cultiva distintas ontologias de prática social e ideais normativos.

Ademais, estes ideais ‘não-­‐econômicos’ estão prenhes de possibilidade crítico-política. Especialmente em tempos de crise, eles podem se virar contra as práticas econômicas centrais associadas à acumulação de capital. Em tempos como estes, as divisões estruturais que normalmente servem para segregar as várias normatividades dentro de suas próprias esferas institucionais tendem a se enfraquecer. Quando as separações falham em se manter, os sujeitos do capitalismo - que afinal vivem em mais de uma esfera - experimentam um conflito normativo. Longe de trazerem ideias de ‘fora’, eles se inspiram na própria complexidade normativa do capitalismo para criticá-­‐lo, mobilizando contra a corrente a multiplicidade de ideais que coexistem, por vezes de maneira desconfortável, numa ordem social institucionalizada que depende das divisões primeiro plano-­‐plano de fundo. Portanto, a perspectiva do capitalismo como uma ordem social institucionalizada nos ajuda a compreender como é possível uma crítica ao capitalismo de dentro dele.

Todavia, esta perspectiva também sugere que seria errado conceber a sociedade, a organização política e a natureza de maneira romântica, como ‘exteriores’ ao capitalismo e inerentemente opostas a ele. Esta perspectiva romântica é defendida hoje por um número considerável de pensadores anti-capitalistas e ativistas da esquerda, incluindo as feministas culturalistas, os ecologistas profundos e os neo-anarquistas, bem como muitos proponentes das economias ‘plural’, ‘pós-crescimento’, ‘solidária’ e ‘popular’. Frequentemente, estas correntes tratam ‘cuidado’, ‘natureza’, ‘ação direta’ ou ‘comunização’ como intrinsecamente anti-capitalistas. Como resultado eles ignoram o fato de que suas práticas favoritas não são apenas fontes de crítica, mas também partes integrantes da ordem capitalista. Na verdade, o argumento aqui é que sociedade, organização política e natureza surgiram concomitantemente com a economia e se desenvolveram em simbiose com ela. Elas são efetivamente ‘os outros’ desta última e apenas adquirem sua especificidade em contraste com ela. Portanto, reprodução e produção formam um par em que cada termo é co-definido pelo outro. Nenhum faz sentido sem o outro. O mesmo vale para organização política/economia e natureza/humanidade. Partes integrantes da ordem capitalista, nenhum desses reinos ‘não-econômicos’ consegue sustentar um ponto de vista completamente externo capaz de articular uma crítica inteiramente radical e absolutamente pura. Ao contrário, projetos políticos que apelam para o que eles imaginam ser o que está de fora do capitalismo acabam reciclando estereótipos capitalistas, na medida em que eles opõem cuidado feminino a agressão masculina, cooperação espontânea a cálculo econômico, organicidade holística da natureza a individualismo antropocêntrico. Lastrear as lutas nessas oposições não é desafiar, mas desavisadamente refletir a ordem social institucionalizada da sociedade capitalista.

Contradições

Disto concluímos que uma abordagem apropriada das relações entre o primeiro plano e o plano de fundo do capitalismo precisa abarcar três ideias distintas. Primeiro, os reinos "não-econômicos" do capitalismo servem como condições de fundo de possibilidade para a sua economia; esta depende, para a sua própria existência, dos valores e insumos daqueles. Segundo, contudo, os reinos "não-econômicos" do capitalismo têm um peso e um caráter próprios que podem, em determinadas circunstâncias, prover recursos para as lutas anti-capitalistas. Todavia, e este é o terceiro ponto, estes reinos são partes integrantes da sociedade capitalista, historicamente co-constituídas em conjunto com a sua economia e marcadas pela simbiose com ela.

Há também uma quarta ideia que nos leva de volta ao problema da crise com a qual comecei. As relações entre primeiro plano-plano de fundo do capitalismo cultivam fontes internas de instabilidade social. Como vimos, a produção capitalista não é autossustentável, mas pega carona na reprodução social, na natureza e no poder político; ainda que a sua orientação à acumulação infinita ameace desestabilizar essas suas próprias condições de possibilidade. No caso de suas condições ecológicas, o que está em risco são os processos naturais que sustentam a vida e fornecem os insumos materiais para o provisionamento social. No caso de suas condições sócio-reprodutivas, o que está em perigo são os processos socioculturais que proveem as relações de solidariedade, as disposições afetivas e os horizontes de valor que estruturam a cooperação social, enquanto também forjam os seres humanos hábeis e devidamente socializados que constituem o trabalho. No caso de suas condições políticas, o que está comprometido são os poderes públicos tanto nacional como transnacional, que garantem os direitos de propriedade, que fazem cumprir os contratos, que adjudicam as disputas, que debelam as rebeliões capitalistas e que mantêm a oferta de dinheiro.

Aqui, nos termos de Marx, estão três contradições do capitalismo: a ecológica, a social e a política, que correspondem a três ‘tendências de crise’. Diferentemente das ‘tendências de crise’ destacadas por Marx, contudo, essas não derivam das contradições internas da economia capitalista. Elas estão fundadas, na verdade, nas contradições entre o sistema econômico e as condições de possibilidade de fundo - entre economia e sociedade, economia e natureza, economia e organização política.15 O efeito delas, como anotado anteriormente, é incitar uma ampla possibilidade de lutas sociais na sociedade capitalista: não apenas a luta de classes no momento da produção, mas também lutas sobre limites da ecologia, reprodução social e poder político. Respostas às tendências de crise inerentes à sociedade capitalista, essas lutas são endêmicas à nossa perspectiva expandida do capitalismo como uma ordem social institucionalizada. Que tipo de crítica ao capitalismo decorre da concepção aqui esboçada? A perspectiva do capitalismo como ordem social institucionalizada requer uma forma de reflexão crítica multifacetada, muito parecida como aquela desenvolvida por Marx n’O Capital. Conforme o li, Marx entrelaça uma crítica sistêmica da tendência inerente do capitalismo à crise (econômica), uma crítica normativa da sua dinâmica interna de dominação (de classes), e uma crítica política do potencial para transformação social emancipatória inerente à sua forma característica de luta (de classes). A perspectiva que elaborei implica um entrelaçamento análogo de críticas, mas o entrelaçar aqui é mais complexo, na medida em que cada fio é internamente múltiplo. A crítica à crise sistêmica inclui não apenas as contradições econômicas discutidas por Marx, mas também as três contradições inter-­‐reinos aqui discutidas, que desestabilizam as condições de fundo necessárias à acumulação de capital, ao ameaçar a reprodução social, a ecologia e o poder político. Igualmente, a crítica à dominação abarca não apenas as relações de dominação de classe analisadas por Marx, mas também aquelas de dominação de gênero e de dominação da natureza. Finalmente, a crítica política abarca uma multiplicidade de conjuntos de atores - classes, gêneros, grupos sociais, nações, demoi, possivelmente até espécies - e de vetores de luta: não apenas lutas de classe, mas também lutas sobre limites das separações entre sociedade, organização política, natureza e economia.

O que conta como luta capitalista é, portanto, bem mais amplo do que os Marxistas tradicionalmente imaginaram. Assim que olhamos além da história aparente para a história de fundo, todas as condições de possibilidade de fundo indispensáveis à exploração do trabalho se tornam focos de conflito na sociedade capitalista. Não apenas lutas entre trabalho e capital no momento da produção, mas também lutas sobre os limites da dominação de gênero, da ecologia, do imperialismo e da democracia. Mas igualmente importante: esta última agora aparece sob outra luz - como lutas no, ao redor do e, em alguns casos, contra o próprio capitalismo. Se elas se compreenderem nestes termos, estas lutas podem de fato cooperar entre si ou se unir.

1 Estes argumentos foram elaborados em conversas com Rahel Jaeggi e estarão no nosso Crisis, Critique, Capitalism, prestes a ser publicado pela Polity. Agradeço a Blair Taylor pela assistência com a pesquisa e ao Centre for Gender Studies (Cambridge), o Collège d’Éjtudes Mondiales, o Forschungskolleg Humanwissenschaften e o Centre for Advanced Studies ‘Justitia Amplificata’, pelo o apoio.

2 Piero Sraffa, Production of Commodities by Means of Commodities: Prelude to a Critique of Economic Theory, Cambridge 1960.

3 Immanuel Wallerstein, Historical Capitalism, London 1983, p. 39.

4 Karl Polanyi, The Great Transformation, New York 2002; Nancy Fraser, ‘Can Society Be Commodities All the Way Down?’, Economy and Society, vol. 43, 2014. 5 Karl Marx, Capital, vol. I, London 1976, pp. 873–6.

6 David Harvey, The New Imperialism, Oxford 2003, pp. 137–82.

7 Karl Marx, Capital, vol. iii, New York 1981, pp. 949–50; John Bellamy Foster, ‘Marx’s Theory of Metabolic Rift: Classical Foundations of Environmental Sociology’, American Journal of Sociology, vol. 105, no. 2, September 1996. 8 Donna Haraway, ‘A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-­‐ Feminism in the Late Twentieth Century’, in Socialist Review 80, 1985.

9 Geoffrey Ingham, The Nature of Money, Cambridge 2004; David Graeber, Debt: The First 5,000 Years, New York 2011.

10 Ellen Meiksins Wood, Empire of Capital, London and New York 2003. 11 Giovanni Arrighi, The Long Twentieth Century: Money, Power and the Origins of Our Times, London and New York 1994.

12 Georg Lukács, History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics, London 1971. 13 Sara Ruddick, Maternal Thinking: Towards a Politics of Peace, London 1990; Joan Trento, Moral Boundaries: A Political Argument for an Ethic of Care, New York 1993.

14 Nancy Fraser, ‘Struggle over Needs: Outline of a Socialist-­‐Feminist Critical Theory of Late-­‐Capitalist Political Culture’, in Fraser, Unruly Practices: Power, Discourse and Gender in Contemporary Social Theory, Minneapolis and London 1989.

15 James O'Connor, "Capitalism, Nature, Socialism: A Theoretical Introduction", Capitalism, Nature, Socialism, vol. 1, no. 1, 1988, pp. 1-22.

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