30 de março de 2014

Doutrina dos porões: a escola que disciplinou a tortura

Centro de Formação do Exército formou a elite da repressão aos inimigos do regime

Chico Otavio

O Globo

Agentes formados pelo CEP, no Forte Duque de Caxias, seguiam as instruções trazidas da Escola das Américas, no Panamá, base militar americana acusada de treinar quadros da repressão na América Latina Foto: Lucio Marreiro/19/4/1988

Um número enfeita a ficha resumida de oficiais que marcaram a história recente das Forças Armadas: "063". No Almanaque do Exército, o código identifica os militares graduados no curso de Informações do Centro de Estudos do Exército (CEP), no Forte do Leme. Suas bancas escolares forjaram uma geração de majores, capitães e tenentes que operou a máquina de torturar, matar e fazer desaparecer dos porões do regime.

Desde 1964, logo após a derrubada de Jango, os militares contavam com o Serviço Nacional de Informações (SNI) para coordenar as atividades de inteligência e perseguir os inimigos do regime que se estabelecia. Mas foi no Forte do Leme, pelas mãos do general Octavio Pereira da Costa, que jovens oficiais conheceram a doutrina de "operações de informações": o enfrentamento direto, no qual teriam de buscar a qualquer custo, sem os limites impostos por lei, aquilo que era negado pelo adversário.

Os cursos de Informações do CEP, categorias B (para oficiais de nível médio) e C (subtenentes e sargentos), começaram em 1966, motivados pelo crescimento das ações armadas de organizações de esquerda e pelo fantasma do comunismo. Enquanto as altas patentes aprendiam a teoria no curso de Informações oferecido pela Escola Superior de Guerra (ESG), o CEP ensinava os alunos a conduzir interrogatórios, a disfarçar-se, a penetrar em residências sem deixar vestígios e a pensar e agir como guerrilheiros, à paisana, além de estourar "aparelhos subversivos".

Os instrutores não tiveram o trabalho de elaborar as aulas. O projeto chegou pronto do Forte Gulick, no Canal do Panamá, onde funcionava a Escola das Américas, base militar americana acusada de treinar quadros da repressão política na América Latina. Na lista de graduados na escola, figuravam ditadores como o nicaraguense Anastácio Somoza, o argentino Jorge Videla e o paraguaio Alfredo Stroessner.

Execuções: um mal necessário

Era preciso aprender rápido. Baseados em manuais que desaconselhavam o uso de ameaças contra o inimigo, “"a menos que pudessem ser cumpridas", e que consideravam prisões e execuções um mal necessário, os instrutores preparavam os quadros da repressão em menos de seis meses. Até 1971, quando foi transferido para Brasília e assumido pelo SNI, o curso tornou-se o caminho mais curto para quem seguiu carreira nos porões.

Paulo Malhães, o coronel que confessou recentemente às comissões estadual e nacional da Verdade o envolvimento da morte e ocultação de corpos de guerrilheiros, cursou o CEP. Arrancava dedos, dentes e vísceras dos corpos dos militantes para evitar que fossem identificados. Freddie Perdigão Pereira, um dos mais violentos agentes do regime, responsabilizado pela bomba do Riocentro (abril de 1981), também. O então tenente Ailton Guimarães Jorge, que mais tarde seria o Capitão Guimarães do jogo do bicho, só ingressou nas operações repressivas da Polícia do Exército, na Vila Militar, depois de passar pelo Forte do Leme.

Perdigão esteve no curso de janeiro a julho de 1966, logo na primeira turma. Ao concluí-lo, foi elogiado pelo general Octavio Costa pelo "valor intelectual, pela marcante curiosidade intelectual, seu valor humano, pela lealdade e espírito de colaboração". Mas o comandante ressalvou que o jovem capitão poderia produzir mais se mostrasse amadurecimento emocional. Cinco anos depois, mais maduro, Perdigão seria um dos torturadores da Casa da Morte de Petrópolis, um dos mais bárbaros aparelhos clandestinos do Centro de Informações do Exército (CIE).

Violência, mas "aplicada com inteligência". Regras sujas, mas sem perder a hierarquia e a disciplina. Poderes ilimitados, mas sem ceder às tentações pessoais. Era essa a aposta dos comandantes. O próprio CIE, unidade vinculada diretamente ao gabinete do Ministro do Exército, foi ungido à luz dos ensinamentos do CEP, no mesmo momento em que Informações transformava-se praticamente em nova Arma do Exército, tão forte quanto a Artilharia, a Cavalaria, a Infantaria e a Intendência.

Até hoje, o Exército resiste a fornecer dados como ementa, disciplinas, carga horária e nomes de instrutores e de alunos do curso. Chegou mesmo a negar a sua existência. Porém, o número "063" aparece em praticamente todas as fichas resumidas de torturadores. Versados em "Fundamentos de Informações", "Produção de Conhecimento", “"Operações de Inteligência", "Operações de Contrainformações", entre outras matérias, eles operariam uma mudança no combate à luta armada.

Para oferecer a primeira resposta à escalada de ações da guerrilha, o Exército praticamente catou a laço os agentes necessários. Muitos deles foram arregimentados nos quadros das polícias Civil e Militar, trazendo das delegacias e quartéis o pau-de-arara e outras técnicas rudimentares e violentas de interrogatórios de criminosos comuns. Contaminou também as casernas com a expertise das ruas e seus vícios.

Soco na cara não ajudava

O curso de Informações do Leme mudou o cenário. Com as primeiras levas de diplomados, foi possível renovar os quadros e aumentar o grau de controle sobre as operações. A lógica do sopapo e do pau-de-arara não chegou a ser afastada, mas passou a coexistir com métodos de tortura mais técnicos, que envolviam o terror psicológico e a criação de uma rede clandestina de cárceres, onde os agentes passaram a agir com extrema liberdade, sem as restrições de uma unidade militar formal.

Paulo Malhães, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, relatou a experiência pessoal com o processo. Ele admitiu que, nos primeiros anos de interrogador, imitava a polícia na dose de violência contra os presos. Disse que, depois, adotou métodos mais científicos, convencido de que um sujeito que leva um soco da cara jamais teria disposição de colaborar com os seus torturadores.

28 de março de 2014

Como Vladimir Putin se tornou mau

Os EUA e o Reino Unido condenaram-no pela Crimeia mas o apoiou durante a guerra na Chechênia. Por que? Porque agora ele se recusa a jogar o jogo.

Tariq Ali


Presidente russo, Vladimir Putin. Fotografia: Ria Novosti/Reuters

Tradução / Mais uma vez, parece que a Rússia e os Estados Unidos estão encontrando dificuldades para chegar a acordo sobre a forma de lidar com as respectivas ambições. Este choque de interesses atingiu o auge na crise ucraniana. A provocação, neste caso particular, como sugere a gravação que vazou de uma diplomata dos EUA, Victoria Nuland, dizendo “Foda-se a União Europeia”, veio de Washington.

Várias décadas atrás, no ápice da Guerra Fria, George Kennan, um estrategista da política externa americana informou a audiência de suas palestras: “Não há, deixe-me assegurá-los, nada na natureza mais egocêntrico do que a democracia em apuros. Logo ela se torna vítima de sua própria propaganda. Em seguida, ela tende a dar a sua causa um valor absoluto que distorce a sua própria visão... O inimigo se torna a personificação de todo o mal. Ela é o centro de todas as virtudes”.

E assim continua. Washington sabe que a Ucrânia tem sido sempre um assunto delicado para Moscou. Os ultranacionalistas que lutaram com o Terceiro Reich durante a Segunda Guerra Mundial mataram 30 mil soldados russos e comunistas. Pavel Sudoplatov, um chefe da inteligência soviética, escreveu em 1994: “As origens da Guerra Fria estão intimamente entrelaçadas com o apoio ocidental à agitação nacionalista nas áreas bálticas e na Ucrânia ocidental.”

Quando Gorbachev assinou o acordo da reunificação alemã, o secretário de Estado dos EUA Baker assegurou-lhe que “não haveria expansão da jurisdição da Otan nem uma polegada para o leste”. Gorbachev repetiu: “Qualquer expansão da Otan é inaceitável.” A resposta de Baker: “De acordo”. Uma das razões que levaram Gorbachev a apoiar publicamente Putin na Crimeia é que sua confiança no Ocidente foi tão cruelmente traída.

Enquanto Washington acreditava que os líderes russos cegamente faziam o que lhe interessava (especialmente o bêbado Yeltsin), Moscou teve apoiou. O ataque de Yeltsin ao parlamento russo em 1993 foi festejado nos meios de comunicação ocidentais. As agressões à Chechênia por Yeltsin e depois por Putin foram tratadas como um pequeno problema local por George Bush e Tony Blair. “A Chechênia não é o Kosovo”, disse Blair depois de sua reunião com Putin em 2000.

O livro de Tony Wood, “Chechênia: a favor da independência”, fornece capítulo e versículo dos horrores que foram infligidos a esse país. A Chechênia tinha sido independente entre 1991 e 1994. Seu povo observou a velocidade com que as repúblicas bálticas fizeram sua independência e queria o mesmo para si.

Em vez disso, foram bombardeados. Grozny, a capital, foi praticamente reduzida a pó. Em fevereiro de 1995 dois economistas russos corajosos, Andrey Illarionov e Boris lvin, publicaram um texto no Moscow News a favor da independência da Chechênia e o jornal também publicou algumas excelentes reportagens que revelaram atrocidades em grande escala, superando o cerco a Sarajevo e o massacre de Srebrenica. Estupro, tortura, refugiados desabrigados e dezenas de milhares de mortos. Nenhum problema para Washington e seus aliados da União Europeia.

No cálculo dos interesses ocidentais não há sofrimento, qualquer que seja a sua dimensão, que não possa ser justificado. Chechenos, palestinos, iraquianos, afegãos, paquistaneses são de pouca importância. No entanto, o contraste entre a atitude do Ocidente em relação à guerra na Chechênia e a Crimeia é surpreendente.

A invasão da Crimeia não teve nenhuma perda de vida e a população claramente queria fazer parte da Rússia. A reação da Casa Branca foi o oposto da sua reação à Chechênia. Por quê? Porque Putin, ao contrário de Yeltsin, está se recusando a baixar a cabeça para a expansão da Otan, as sanções ao Irã, a Síria etc. Como resultado, ele se tornou o mal encarnado. E tudo isso porque decidiu contestar a hegemonia dos EUA usando os métodos frequentemente implantados pelo Ocidente. (As repetidas incursões da França na África são apenas um exemplo.)

Se os EUA insistem em usar o ímã da Otan para atrair a Ucrânia, é provável que Moscou irá separar a parte oriental do país. Aqueles que realmente valorizam a soberania ucraniana devem optar pela independência real e uma neutralidade positiva: nem um brinquedo do Ociente e nem de Moscou.

26 de março de 2014

Importar-se demais. Essa é maldição das classes trabalhadoras


Por que a lógica básica da austeridade foi aceita por todo mundo? Porque a solidariedade passou a representar um flagelo?

David Graeber


"As pessoas da classe trabalhadora se preocupam mais com seus amigos, famílias e comunidades - elas são fundamentalmente mais legais." Ilustração de Matt Kenyon

Tradução / "O que eu não consigo entender é porque as pessoas não estão protestando nas ruas?" Eu ouço isso, de vez em quando, vindo de pessoas de boa condição e poderosos. Há uma espécie de incredulidade. “Afinal de contas”, o subtexto parece ser, “nós ficamos furiosos quando alguém ameaça nossos paraísos fiscais; se alguém ameaçasse o meu acesso a comida ou moradia, eu certamente estaria queimando bancos e/ou ocupando o parlamento. O que há de errado com as pessoas?”

É uma boa pergunta. Você imaginaria que um governo que provocou tanto sofrimento àqueles com menos condições de resistir, sem ao menos mudar os rumos da economia, correria risco de suicídio político. Em vez disso, a lógica básica da austeridade foi aceita por quase todo mundo. Por quê? Por que políticos que prometem sofrimento prolongado ganham qualquer condescendência da classe trabalhadora, pra não falar em apoio?

Acredito que a própria incredulidade com a qual comecei fornece uma resposta parcial. Os trabalhadores podem ser, como incessantemente nos lembram, menos meticulosos com assuntos de lei e propriedade que seus “superiores”, mas eles também são muito menos obcecados consigo mesmos. Eles se importam mais com seus amigos, famílias e comunidades. No conjunto, ao menos, são pessoas fundamentalmente melhores.

Em certa medida isso parece refletir uma lei sociológica universal. Há muito as feministas apontam que aqueles que estão na parte de baixo de qualquer arranjo social desigual tendem a pensar mais sobre, e portanto importar-se mais com, aqueles no topo do que os do topo em relação a eles. As mulheres em toda parte tendem a pensar e saber mais sobre as vidas dos homens do que os homens pensam sobre as mulheres, assim como os negros sabem mais sobre os brancos, os empregados sobre os empregadores e os pobres sobre os ricos.

E sendo os humanos as criaturas empáticas que são, o conhecimento leva à compaixão. Os ricos e poderosos, no entanto, podem permanecer alheios e indiferentes, porque podem se garantir. Vários estudos psicológicos recentes confirmam isso. Pessoas nascidas em famílias da classe trabalhadora invariavelmente se dão melhor em testes de percepção dos sentimentos alheios do que os filhos dos ricos ou das classes médias. De certa forma, o resultado não é exatamente inesperado. Afinal, isso é o que ser “poderoso” fundamentalmente significa: não ter de prestar muita atenção no que os outros ao redor estão pensando e sentindo. Os poderosos empregam outros para fazê-lo por eles.

E quem eles empregam? Principalmente filhos das classes trabalhadoras. Aqui, creio que tendemos a ser tão cegos por uma obsessão com o (ouso dizer, uma romantização do?) trabalho fabril como nosso paradigma de “trabalho de verdade” que nos esquecemos do que a maior parte do trabalho humano de fato consiste.

Mesmo na época de Karl Marx ou Charles Dickens, os bairros de trabalhadores abrigavam mais empregadas domésticas, engraxates, varredores, cozinheiros, enfermeiros, taxistas, professores, prostitutas e feirantes que empregados em minas de carvão, fábricas têxteis ou fundições. Hoje, isso é ainda mais verdadeiro. O que consideramos arquetipicamente como trabalho de mulheres – cuidar de pessoas, encarregar-se de suas vontades e necessidades, explicar, confortar, antever o que o patrão quer ou está pensando, para não mencionar cuidar, vigiar e conservar plantas, animais, máquinas e outros objetos – representa uma proporção muito maior daquilo que a classe trabalhadora faz quando está trabalhando do que martelar, talhar, carregar ou colher coisas.

Isso é verdade não apenas porque a maioria das pessoas da classe trabalhadora são mulheres (pois a maioria das pessoas em geral são mulheres), mas porque temos uma versão distorcida do que os homens fazem. Como os trabalhadores do metrô em greve recentemente tiveram de explicar a usuários indignados, os funcionários do metrô não passam a maior parte de seu tempo recolhendo bilhetes: eles passam a maior parte de seu tempo explicando coisas, consertando coisas, procurando crianças perdidas, e cuidando dos idosos, doentes e desorientados.

Se pensarmos bem, não é isso, basicamente, a vida? Os seres humanos são projetos de criação mútua. A maior parte do trabalho que fazemos é uns com os outros. As classes trabalhadoras apenas fazem uma parte desproporcional. Elas são as classes cuidadoras, e sempre foram. É apenas a incessante demonização dos pobres por aqueles que se beneficiam dos seus cuidados que torna difícil, num fórum público como este, reconhecê-lo.

Como filho de uma família de classe trabalhadora, posso atestar que é disso mesmo que nos orgulhamos. Constantemente nos disseram que o trabalho é uma virtude em si – que ele forma caráter ou coisa assim – mas ninguém acreditava nisso. A maioria de nós entendia que o melhor seria evitar o trabalho, a menos que ele beneficiasse outras pessoas. Mas do trabalho que você fizesse, fosse ele construir pontes ou esvaziar penicos, você poderia se orgulhar. E há outra coisa de que definitivamente nos orgulhávamos: que somos pessoas que cuidam umas das outras. Isso é o que nos distinguia dos ricos que, na nossa percepção, a metade do tempo sequer se dedicava a cuidar de seus próprios filhos.

Há uma razão pela qual a maior virtude burguesa é a austeridade, e a maior virtude na classe trabalhadora é a solidariedade. Porém essa é precisamente a corda na qual a classe hoje está pendurada. Houve um tempo em que se preocupar com sua comunidade podia significar lutar pela própria classe trabalhadora. Naqueles dias costumávamos falar de “progresso social”. Hoje vemos os efeitos de uma guerra sem trégua contra a própria noção de uma política da classe trabalhadora ou comunidade de classe trabalhadora. Isso deixou a maioria dos trabalhadores com poucos meios de expressar essa preocupação, senão dirigindo-a a noções artificiais: “nossos netos”; “a nação”; seja através de patriotismo chauvinista ou de apelos ao sacrifício coletivo.

Como resultado, tudo está posto ao revés. Gerações de manipulação política finalmente transformaram esse senso de solidariedade num flagelo. Nossa preocupação com o outro foi transformada em arma contra nós mesmos. E assim deve permanecer até que a esquerda, que pretende falar pelos trabalhadores, comece a pensar séria e estrategicamente sobre no que consiste a maior parte do trabalho, e o que aqueles que o realizam pensam ser a virtude contida nele.

David Graeber é um antropólogo, ativista político e autor norte-americano. He is currently reader in social anthropology at Goldsmiths College, University of London, and was formerly an associate professor of anthropology at Yale University. David is a member of the labour union Industrial Workers of the World, and has played a role in events such as the 2002 New York protests against the World Economic Forum. Seu livro mais recente é Dívida: os primeiros 5.000 anos (2011).

23 de março de 2014

Que juventude é essa?

Marcelo Ridenti


Marcelo Cipis

De modo inesperado, tomaram as ruas os netos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964 e da Passeata dos Cem Mil de 1968. Os filhos dos que apoiaram a eleição de Collor em 1989 e dos que se manifestaram por seu impeachment em 1992. Todos contraditoriamente juntos.

Claro, em outro contexto. Diversidade de insatisfações com sinais ideológicos misturados, que se expressam também nas várias interpretações, cada qual identificando no movimento a realização dos próprios desejos e tentando influenciá-lo.

Setores de esquerda encantaram-se com o que lhes pareceu o início de uma revolução espontânea, mas ficaram embasbacados com as hostilidades sofridas, não por parte da polícia, mas de alguns anticomunistas. Adeptos do PT, percebendo que o movimento redunda em questionamentos variados a seus governos, tendem a reduzi-lo ao caráter fascista de certos manifestantes.

Os conservadores -inclusive na imprensa, sobretudo televisiva- ressaltam os protestos ordeiros contra a corrupção, tentando restringir o movimento a um aspecto pontual, como se todas as mazelas da ordem constituída se devessem à malversação das verbas públicas pelo PT.

Por sua vez, os defensores de causas como a tarifa zero sonham que a multidão está envolvida numa nova democracia horizontal e plebiscitária, pacificamente movida a internet, mas também se assustaram com a ferocidade de alguns grupos.

Em todos os pontos de vista, há algo de verdade e mistificação. O enigma começa a ser resolvido com a pergunta: quem se lança às ruas? Ao que tudo indica até o momento, são principalmente setores da juventude, até há pouco tida como despolitizada, e que não deixa de expressar as contradições da sociedade.

Parece tratar-se de uma juventude sobretudo das camadas médias, beneficiadas por mudanças nos níveis de escolaridade, mas inseguras diante de suas consequências e com pouca formação política.

Dados do MEC apontam que há hoje cerca de 7 milhões de universitários. O acesso ao ensino superior praticamente dobrou em uma década. Em 2000, eram admitidos anualmente 900 mil calouros. Em 2011, quase 1,7 milhão. Dois terços no ensino privado.

A título de comparação, tome-se a década das manifestações estudantis. Em 1960, havia 35.909 vagas disponíveis no ensino superior, número que saltou para 57.342 em 1964, ano do golpe de Estado, chegando a 89.582 no tempo das revoltas de 1968, a maioria no ensino público. Em termos absolutos, a evolução foi enorme. Não obstante, apenas 15% dos brasileiros com idade para estar na faculdade cursam o ensino superior.

Quanto à origem dos universitários, muitos compõem a primeira geração familiar com acesso ao ensino superior. Outros são de famílias com capital cultural e/ou econômico elevado, atônitos com a ampliação do meio universitário.

No que se refere às expectativas, parece haver o temor de alguns de não poder manter o padrão de vida da família e de outros de não ver realizada sua esperada ascensão social.

Produziu-se uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no mercado de trabalho nem tampouco na política. Ademais, detecta-se insatisfação com o individualismo exacerbado.

Em suma, um meio social efervescente em busca de causas na era da i(nc)lusão pelo consumo, em meio à degradação da vida urbana.

E por onde andam os 70% de jovens de 18 a 24 anos que não estão na escola? Alguns, no mercado de trabalho precarizado. Outros compõem o chamado "nem nem", nem escola nem trabalho. Massa ressentida que em parte também integra as manifestações.

No ano que vem, completam-se os 50 anos do golpe de 1964, cuja bandeira ideológica era o combate aos políticos e à corrupção. O risco está dado novamente? Por sorte, as manifestações trazem também reivindicações por liberdades democráticas, busca de reconhecimento e respeito, tocando num aspecto central: a luta pelo investimento em transporte, saúde e educação, contra a apropriação privada do fundo público.

Chegaram ao limite as possibilidades de mudança dentro das estruturas sociais consolidadas no tempo da ditadura e que não foram tocadas após a redemocratização? Será possível aperfeiçoar a democracia política, também num sentido social? Abre-se um tempo de incertezas.

Folha de S.Paulo
Marcelo Ridenti, 54, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e autor de "O Fantasma da Revolução Brasileira"

O golpe de 1964, aqui e agora

Marcelo Ridenti


Se for verdadeiro o adágio de que "o brasileiro não tem memória", não é por falta de informações e análises publicadas, pelo menos sobre o golpe de 1964 e o tempo da ditadura. As obras contam-se às centenas, escritas nos últimos 50 anos por jornalistas, memorialistas, economistas, sociólogos, cientistas políticos, historiadores e outros, até mesmo das gerações mais jovens. Talvez nenhum outro período tenha sido esquadrinhado tão detalhadamente em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.

As interpretações sobre o golpe e seus desdobramentos são variadas. Algumas enfatizam o tema como indissociável das mudanças do capitalismo brasileiro, outras centram-se nos impasses do sistema político, terceiras na cultura política autoritária e conciliadora ou até mesmo na ação de agentes individuais, ora mirando a especificidade da ação militar, ora suas conexões com a sociedade civil. Cada corrente analítica aponta deficiências em suas concorrentes, embora todas busquem evitar simplificações.

Para além das querelas e da especialização das pesquisas, é importante incorporar as diversas contribuições, compreender a complexidade de cada conjuntura, a mescla de repressão e busca de convencimento, sem minimizar as diferenças no interior do regime nem perder de vista um aspecto central: a ditadura não foi um acontecimento isolado da história do Brasil, antes um capítulo decisivo do longo processo de industrialização e urbanização caracterizado pelo que alguns chamam de modernização conservadora, outros de via prussiana ou revolução passiva.

Trata-se de uma característica da política brasileira até hoje, em que as classes dirigentes tendem a se recompor e encampar a seu modo a pressão social por mudanças num país pleno de desigualdades, sem realizar transformações estruturais, em que o suposto "moderno" se combina com o dito "arcaico", o "progresso" é indissociável do "atraso".

O que esteve em jogo no pré-1964 foi a possibilidade de uma modernização alternativa, cujos contornos estavam apenas esboçados e eram objeto de disputas políticas, mas o sentido geral era o de alargar os direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, politizando-os e diminuindo as desigualdades sociais, algo que os conservadores consideravam "comunismo". No contexto da Guerra Fria –e numa sociedade como a brasileira, cujos privilegiados são tradicionalmente temerosos dos movimentos populares–, as reformas de base (agrária, bancária, eleitoral, tributária, educacional) que estavam na pauta do governo e das esquerdas pareciam ameaçadoras.

Abriam-se disputas, gerando incertezas sobretudo nas classes dirigentes, que preferiram apoiar o golpe de Estado, início de um regime que aprofundou a modernização conservadora, consolidada no período do "milagre econômico". Ela não sofreu fortes abalos após a redemocratização, mesmo em governos liderados por partidos com raízes na oposição à ditadura, como o PSDB e o PT, que em nome da governabilidade fizeram alianças com forças que deram respaldo ao regime militar, reiterando a tradição conciliadora de negociação pelo alto, sem rupturas. O custo foi não realizar transformações de fundo, o que ajuda a entender os protestos multifacetados de junho passado.

Uma bela adormecida em 1984 nas manifestações pelas Diretas-Já que por encanto despertasse hoje ficaria espantada de ver Fernando Henrique Cardoso ao lado de Marco Maciel, Lula aliado a Sarney.

O país continua refém das forças que deram o golpe de 1964 e impedem mudanças que possam aprofundar a democracia política também num sentido social e econômico, diminuindo as desigualdades. O desafio continua posto, daí a atualidade da discussão sobre os acontecimentos de 50 anos atrás.

Sobre o autor

Marcelo Ridenti, 54, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e coorganizador de "A Ditadura que Mudou o Brasil"

17 de março de 2014

Recuo estratégico ou normalização da curva?

Dawisson Belém Lopes


Motivado pela importante e provocativa reflexão do professor Oliver Stuenkel publicada nesta Folha ("O risco do recuo estratégico brasileiro", 10/3), gostaria de contrapor alguns argumentos.

Em primeiro lugar, penso que o autor confunde em seu artigo a perda de centralidade da via diplomática –uma tendência das atuais políticas externas latino-americanas– com um suposto "recuo estratégico" do Brasil nas relações internacionais.

A rigor, a gradual substituição dos agentes tradicionais da política externa –diplomatas, cônsules, oficiais de chancelaria– por outros atores, governamentais e não governamentais não implicou necessariamente a deterioração da presença do Brasil no mundo.

Antes, foi o xadrez da política internacional que começou a ser jogado com outras regras.

Por um lado, constituiu-se de uma ampla rede transnacional para além dos canais oficiais do Estado. ONGs, igrejas, empresas, autoridades subnacionais, entre outros invadiram a cena –e a política externa brasileira não passou incólume por essa transformação.

Por outro lado, os Poderes Executivos nos países da América Latina ampliaram suas frentes de atuação internacional. No Brasil, tanto a Presidência da República quanto os diversos ministérios desenvolveram, desde a redemocratização, novas estruturas para dar suporte à projeção externa do país.

A combinação desses fatores levou ao esvaziamento das fórmulas diplomáticas convencionais no continente. Assim, perderam força Ministérios de Relações Exteriores, missões oficiais e academias diplomáticas, ao passo que novos interlocutores e processos se estabeleceram.

Quero discordar do professor Stuenkel também no que concerne à avaliação conjuntural. Parece-me excessiva a associação que propõe em seu artigo entre o "recuo estratégico" e a "atenção e tempo" escassos que a presidente Dilma Rousseff dedica aos temas internacionais.

Aceitar essa correlação sem ressalvas seria subestimar a complexidade institucional brasileira e sucumbir a impressões que, até o momento, não passaram por escrutínio mais severo.

Na literatura acadêmica, o critério das viagens presidenciais é mobilizado para indicar a "presidencialização" da atividade diplomática. Pois bem: para surpresa geral, quando se compara a média de visitas anuais dos mandatários brasileiros ao estrangeiro, nota-se que, embora menos frequente que Lula na ponte aérea, Dilma viajou mais que Fernando Henrique Cardoso, ironicamente alcunhado, por um humorístico popular dos anos 1990, de "Viajando Henrique Cardoso".

Outro parâmetro usual para aferir a inserção internacional do país é contabilizar brasileiros na direção de grandes agências intergovernamentais. Nesse quesito, o atual governo já emplacou duas candidaturas vitoriosas: José Graziano na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e Roberto Azevêdo na Organização Mundial do Comércio (OMC).

A título de comparação, a máquina diplomática lulista não conseguiu eleger, em oito anos, nem sequer um compatriota.

Do ponto de vista administrativo, o baixo número de vagas abertas para ingresso na carreira diplomática durante o governo Rousseff –um suposto indicador de desapreço presidencial pelos diplomatas– foi o mesmíssimo da segunda presidência de FHC. É oportuno lembrar que ambos enfrentaram graves crises econômicas internacionais e tiveram de operar com restrições orçamentárias.

Ademais, eventos pontuais –como o não comparecimento da delegação brasileira a uma conferência em Munique ou a não abertura de uma representação diplomática em Cabul– não constituem, por si sós, evidências de "recuo estratégico". Cumpre resgatar o contexto em que tais decisões foram tomadas para não exagerar o seu significado.

Para usar o dialeto dos estatísticos, a hipótese mais provável é que o ativismo da política externa brasileira entre 2003 e 2010 seja correspondente a um "ponto fora da curva". Com Rousseff, essa curva estaria retomando sua inclinação normal. Para o bem ou para a mal.

DAWISSON BELÉM LOPES, 33, é professor de política internacional e comparada na Universidade Federal de Minas Gerias e autor de "Política Externa e Democracia no Brasil"

10 de março de 2014

O risco do recuo estratégico brasileiro

Oliver Stuenkel


Em um contexto econômico incerto, fala-se que o Brasil deveria focar nos problemas domésticos antes de engajar-se internacionalmente.

É essa a linha de argumentação que levou a presidente Dilma Rousseff a reverter a política externa ativa de seus predecessores. De fato, muitos percebem o ativismo global do Brasil na década passada como elitista, dispensável e sem importância para a vida do cidadão comum.

A expansão da rede diplomática brasileira no mundo durante o governo Lula teria sido, assim, um desperdício de recursos públicos. Alega-se que as embaixadas são boas para quem faz parte do "trem da alegria", mas muito ruins para o contribuinte.

No entanto, argumentar que uma política externa forte seja incompatível com o enfrentamento dos desafios internos é um erro. Primeiramente, uma política externa brasileira ativa não envolve grande emprego de força militar no exterior nem a assunção de obrigações relativas a segurança que possam ocasionar a entrada em conflitos custosos em regiões distantes –como acontece com os Estados Unidos.

Manter uma abrangente rede diplomática e um papel ativo nas negociações e nos debates internacionais não é caro. Além disso, é algo que pode ser conduzido pelo Itamaraty –contanto que ele tenha a autonomia e a confiança presidencial para que possa expor suas opiniões. Exige, portanto, apenas uma quantidade limitada da atenção e do tempo de um presidente.

O orçamento anual do Ministério das Relações Exteriores é tão pequeno em comparação a outros ministérios que seria enganoso destacar o Itamaraty como um exemplo de desperdício do dinheiro público.

Quem argumenta que diplomatas aceitam viver em Bagdá, no Iraque, Pyongyang, na Coreia do Norte, ou Kinshasa, no Congo, por conta de vantagens financeiras ignora as privações associadas à lotação em um desses postos. Afinal, há maneiras mais simples de se tornar um marajá do serviço público.

Em segundo lugar, uma política externa ativa não é incompatível com a priorização de problemas internos. Pelo contrário, é uma ferramenta essencial ao enfrentamento desses desafios.

Levar adiante negociações comerciais multilaterais (que afetam a agricultura brasileira), promover a democracia no vizinho Paraguai (garantindo a segurança energética do Brasil) e a integração regional (tráfico de armas e de pessoas, segurança das fronteiras) são questões profundamente relacionadas a interesses nacionais que afetam a vida diária dos cidadãos. Relacionadas de forma mais indireta, mas não menos importante para os interesses nacionais do Brasil, estão questões como a promoção da paz no Afeganistão (terrorismo global), a paz no Oriente Médio (custo internacional da energia) e as negociações acerca da mudança climática.

Ainda assim, a temática aponta para um importante debate: como avaliar e medir os benefícios de nossa política externa? Como a abertura de uma embaixada em um país distante do Brasil serve aos interesses nacionais? Quais países devem ter uma rede diplomática global e quais não devem? O Itamaraty precisa responder a essas importantes questões de modo mais claro.

Há um importante argumento, todavia, em apoio a um Brasil internacionalmente ativo que vai além do interesse nacional. Historicamente, apenas alguns poucos países ricos mantiveram embaixadas em todas as partes do mundo, o que lhes forneceu acesso direto a informações privilegiadas em regiões estratégicas como Afeganistão, Coreia do Norte e Ruanda. Esses países dominaram, consequentemente, o debate acerca dessas regiões e moldaram a opinião da comunidade global sobre assuntos-chave tais como intervenção humanitária e proliferação nuclear.

Seguindo sua atual estratégia de retração, o Brasil se afastará dos debates sobre muitas das questões internacionais fundamentais, e seu apelo para que as instituições internacionais sejam reformadas soará vazio.

Não podemos mais resolver desafios globais simplesmente nos apoiando no conhecimento de uns poucos países. Os fracassos no enfrentamento de questões como a mudança climática, a volatilidade financeira e as violações de direitos humanos ao longo das últimas décadas são indicadores de que novos atores precisam contribuir para a busca de soluções significativas.

Deixar isso claro tanto para a presidente quanto para o público geral é crucial. Assumir a dianteira do debate acerca da governança da internet, enviar o ministro das Relações Exteriores para participar de uma conferência de paz importante ou desenvolver novas ideias acerca de como utilizar o agrupamento Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul ) são decisões que não custam muito, mas apoiá-las requer confiança e crença na capacidade do Brasil de contribuir positivamente para o debate global e defender seus interesses nacionais –como já fez muitas vezes no passado.

OLIVER STUENKEL é professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo

8 de março de 2014

Lembrem-se da Rumélia Oriental

Glen Newey


Em 1878, a guerra russo-turca estava no auge, os britânicos temiam a expansão russa, e G.H. MacDermott, astro do music-hall, cantava seu número que deu à língua inglesa (e outras) a palavra “ufanismo”. Como McDermott dizia, “nós combatemos esse Urso antes” e “temos os navios, os homens, e também o dinheiro”.

Agora, temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou, como guincho repetido, o tom moralista altissonante. Um governo democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita (Pravy Sektor) e Svoboda (Liberdade). A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais como “o governo da Ucrânia”, seu ministro das Relações Exteriores é festejado no Europolo. A Rússia age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russófonos e cidadãos russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.

Tudo isso é ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país. Entrementes, um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado pelo “governo” em Kiev e por euro-líderes.

A reunião da União Europeia na quinta-feira sobre a crise ofereceu o mínimo imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Não há surpresas. Nós na União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA. Sem exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima reunião de cúpula UE-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.

Sem os meios para projetar força, a UE pode pelo menos indulgenciar nas fantasias morais dos impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade russa. Sebastopol oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro, no “quintal dos EUA”, que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há trinta e tantos anos. A Rússia, ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy fez na Baía dos Porcos em 1961; a Crimeia, ao contrário de Cuba, abriga número considerável de cidadãos do país invasor.

Com a displicente falta de perspectiva histórica que marca a atual geração de políticos, o vice-primeiro-ministro disse na televisão nessa semana que a Rússia agia como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Mas Putin tem mais de czar que de comissário, e suas ambições são imperiais. No florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo significaram apoio vital aos otomanos (conhecidos, um pouco incongruente, como "o homem doente da Europa"), querelas na Crimeia, o “Grande Jogo” no Afeganistão, e tentativas no Congresso de Berlin em 1878 para conter a maré do pan-eslavismo o qual, como então se temia, daria ao “Urso” um habitat na Europa continental. Em Berlim, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da “Rumélia Oriental” no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo eslavo. Durou sete anos inteiros.

O que quer o jogo em que se meteram EUA−UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da UE no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o ocidente tem promovido com tanto sucesso nos últimos anos? Como a Spectator disse alguns anos depois de Berlim: "o experimento de Lord Beaconsfield já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da 'Rumélia Oriental' é desastroso fracasso".

Sobre o autor

Glen Newey é um filósofo político inglês, professor de Teoria Política na Université Libre de Bruxelles, na Bélgica. Até 2011 foi professor na School of Politics, International Relations & Philosophyna Keele University, Staffordshire, England. Membro proeminente da escola “realista” de filósofos políticos que também inclui figuras como Bernard Williams, John N. Gray, e Raymond Geuss.

6 de março de 2014

Turquia sai do controle

Christopher de Bellaigue

The New York Review of Books

The Rise of Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, Soner Cagaptay, Potomac, 168 pp., $25.95

Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World, Joshua D. Hendrick, New York University Press, 276 pp., $49.00

I’mamin Ordusu [The Imam’s Army], Ahmet Şık, 298 pp., disponível em The Opinions

Dois pilotos que pilotam juntos um avião começam a esmurrar-se na cabine. Um deles ejeta membros da tripulação, que ele suspeita que apoiem seu rival; o outro berra que seu copiloto nem é piloto, é ladrão. Nesse momento o avião começa a girar descontrolado e perde altura rapidamente, enquanto os passageiros olham em pânico.

Essas linhas apareceram publicadas em recente coluna de jornal, assinada por Can Dündar, jornalista turco, e não consigo pensar em melhor fórmula para apresentar a confrontação pervertida, evitável, quase de história em quadrinhos, que tomou conta da Turquia desde dezembro passado, e que ameaça desfazer todos os ganhos políticos e econômicos de uma década.

As partes em confronto são o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan, 60 anos, e um clérigo turco, Fethullah Gülen, 73 anos. Erdoğan lidera o partido que está no governo, “Partido Justiça e Desenvolvimento” (AKP), e trabalha na agitação de Ankara, capital do país. Gülen é o pregador e didata moral mais conhecido da Turquia. Vive em reclusão na Pennsylvania, ao que se sabe em estado precário de saúde (sofre do coração). Gülen preside de modo pouco formal, mas sem dúvida preside, um império de escolas, negócios e uma rede de simpatizantes.

Esse império é que Erdoğan agora chama de “um estado paralelo” ao que ele foi eleito para governar; e está decidido a eliminá-lo. A disputa começou para valer em dezembro passado e tem tido efeito extraordinariamente destrutivo. Muito dos seguidores de Gülen trabalham dentro do governo e têm muito poder. Agora, vastas partes do funcionalismo público foram evisceradas, grande parte da mídia foi reduzida a porta-vozes de uma espécie de revelação politicamente motivada e insinuações, e a economia está parando, depois de uma década de forte crescimento. O milagre turco é passado.

O governo do AKP de Erdoğan e o movimento de Gülen partilham uma ideologia de islamismo modernizante, e embora as relações entre os dois já viessem se deteriorando há algum tempo, antes da atual crise ainda era possível ser associado aos dois grupos. A coexistência acabou repentinamente em 17 de dezembro, quando mais de 50 figuras pró-AKP, entre as quais o presidente do banco estatal Halkbank; um magnata da construção; e os filhos de três ministros do Gabinete foram detidos para interrogatório por procuradores de justiça considerados homens de Gülen.

As prisões foram executadas, ao que se sabe, por policiais gülenistas, e receberam muita atenção dos jornais e redes de televisão, esses, também, com tendência semelhante pro-Gülen. Denúncias de que os bem relacionados prisioneiros seriam culpados de suborno, contrabando e outros malfeitos foram tuitadas e retuitadas num frenesi condenatório-executório; o ataque pelos gülenistas, de dentro do governo e também de fora dele, foi bem planejado. Descobriram-se provas, entre as quais cerca de $4,5 milhões escondidos em caixas de sapatos na casa do principal executivo do banco Halkbank, além de indicações de pagamentos feitos a ministros. Rapidamente se divulgou que uma segunda fase da mesma investigação atingiria também o filho do primeiro-ministro.

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A velocidade e o vigor da reação de Erdoğan a esses eventos indicam que ele os considerou como precursores de sua própria destruição. Imediatamente, começou a varrer de sua própria entourage traidores potenciais ou nomes que lhe parecessem comprometidos; em poucos dias substituiu metade do próprio Gabinete, inclusive os ministros cujos filhos haviam sido presos para interrogatório. O expurgo alcançou pontos longínquos do funcionalismo civil. Como parte da campanha de Erdoğan contra a influência de Gülen, milhares de policiais foram tirados dos respectivos postos, além de altos procuradores de justiça, envolvidos no caso de corrupção e burocratas associados aos ministros demitidos.

No início de fevereiro, o governo começou a investigar oficiais de polícia gülenistas, acusados de formarem “uma organização ilegal dentro do estado”. Erdoğan suspendeu as investigações judiciais e partiu para a ação direta. A dois meses de eleições municipais e a seis meses de uma eleição presidencial à qual espera concorrer, Erdoğan ainda sobrevive. Mas a tradição política que ele representa, uma síntese de islamismo e livre-mercado, essa, foi gravemente ferida; o primeiro-ministro está também muito gravemente abalado; e há mais abalos por vir.

Antes de o confronto Erdoğan-Gülen começar a ser visto, no início de 2013, e com certeza antes dos protestos nacionais do verão passado, quando liberais turcos tomaram as ruas contra seu autoritário primeiro-ministro, a corrente turca do islamismo modernizante gozava de muitas simpatias. E estava personificada em Erdoğan – que chegou ao poder em 2003, depois de décadas de lutas, pelos islamistas, contra as táticas opressivas de instituições seculares há muito tempo entrincheiradas, sobretudo no Exército e no Judiciário. Nos seus primeiros anos no cargo de primeiro-ministro, Erdoğan pareceu estar conseguindo encaminhar soluções para muitos dos problemas do país. Explorando a forte maioria que tinha o partido AKP no Parlamento, ele conseguiu estabilizar e liberalizar a economia errática, semiplanejada, tornando os turcos mais ricos do que jamais antes; e introduziu várias reformas liberais (o fim da tortura e maiores direitos para os curdos). Talvez mais importante que tudo, pôs as Forças Armadas sob controle das autoridades civis eleitas, as mesma forças armadas que, desde 1960, haviam conseguido derrubar nada menos que quatro governos eleitos.

Em todo esse processo, o partido AKP esteve em uma coalizão não oficial com islamistas menos visíveis; e seu mais poderoso parceiro de coalizão era o movimento de Fethullah Gülen. Suas escolas formavam turcos bem comportados, patriotas e piedosos, e o governo os acolhia bem nas elites burocráticas e de negócios que, aos poucos iam deslocando a velha guarda secular. Erdoğan e Gülen pareciam encarnar a ânsia de muitos turcos por um Islã em harmonia com uma democracia eleitoral, com empreendedorismo e consumismo. E o elemento islamista na fórmula deveria assegurar altos padrões de ética e bom comportamento. Durante anos, a vida pública fora venal, movida a ganância, ambições e apetites; os islamistas prometiam fazer as coisas de outro modo.

Mas há ganância e apetites também entre os islamistas. Pouco depois das primeiras prisões de aliados de Gülen na polícia, em dezembro, um vídeo distribuído por internet mostrava um alto dirigente do partido AKP em flagrante delito. (Abdurrahman Dilipak, colunista conhecido e pró-governo, alegou que haveria mais de 40 outros vídeos em circulação, todos “forjados”). Conversas gravadas envolvendo Gülen também foram vazadas e ouvidas por milhões de turcos. Numa delas, Gülen é ouvido em uma conversa em que se decidia que empresa turca receberia um contrato oferecido por governo estrangeiro. Em outra fita, Gülen e um de seus assessores discutem a probabilidade de três “amigos” (i.e., seus seguidores) em posições chaves na entidade do estado turco que controla os bancos, garantirem proteção a um banco ligado ao grupo de Gülen, o Bank Asya, contra investigações a serem conduzidas pelo governo. (Pouco depois do vazamento, os três funcionários em questão foram demitidos.) Tudo isso mostrava imagem muito diferente de um santo, que vivia vida frugal, de estudos e caminhadas pelas colinas da Pennsylvania, que Gülen cultivara.

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O conflito assume agora tons absolutamente desbragados, e já é visível nos postos mais altos. Erdoğan recusa-se a pronunciar o nome de Gülen em público, mas quando fala de “falsos profetas, videntes e pseudos sábios vazios”, seu alvo é claro. Em um dos frequentes sermões que Gülen pronuncia de sua própria casa, e alcança vastas audiências na Turquia graças a redes de televisão que o apoiam e à Internet, o pregador exilado lançou uma maldição contra seus inimigos: “que Deus consuma em fogo as casas deles, destrua os ninhos deles, quebre os acordos entre eles.” Denúncias de vasta corrupção dentro do governo, muitas das quais envolvendo contratos viciados para projetos de construção e violação de áreas reservadas de zoneamento, são insistentemente repetidas pelos veículos de imprensa gülenistas, tão insistentemente repetidas que acabam por já serem vistas como verdade comprovada. Em 24 de fevereiro, gravações de conversas telefônicas entre o primeiro-ministro e seu filho Bilal, nas quais pai e filho estariam combinando o modo de esconder dezenas de milhões de euros, foram distribuídas pelo YouTube. O primeiro-ministro declarou que as gravações eram forjadas, mas elas foram ouvidas dois milhões de vezes em 24 horas imediatamente depois de postadas. Ainda que os expurgos que Erdoğan promoveu no judiciário e na polícia impliquem que não haverá processos nem, portanto, condenações (e a imunidade parlamentar na Turquia proteja alguns dos aliados de Erdoğan), é difícil imaginar o governo recuperar a sua antiga reputação de probidade.

O terreno da disputa é tanto comercial quanto político. O governo acusou o Bank Asya de afiliados de Gülen de ter comprado 2 bilhões em moeda estrangeira pouco antes das operações policiais de dezembro passado – o que implica dizer que os funcionários do banco teriam sido avisados com antecedência sobre o que viria e da consequente queda do valor da lira turca. O banco luta agora para deter uma corrida de saques, que fez o preço das ações cair cerca de 46% entre 16 de dezembro e 5 de fevereiro. Até especialistas não gülenistas entendem que o governo orquestrou a corrida ao banco, tentando arruinar o Bank Asya, sem se preocupar com danos colaterais, tanto contra os pequenos correntistas como contra todo o sistema bancário que a corrida fatalmente causaria. O capitalismo turco é só muito tenuemente controlado pelo Estado de direito.

A imagem de Erdoğan também está abalada. No verão passado, as manifestações mostraram ao público turco um primeiro-ministro enfurecido, tomado de ira e de medo, como quando reagiu contra a insatisfação de uma minoria predominantemente secular, não com gestos magnânimos, que teriam satisfeito muitos dos manifestantes, mas com cassetetes, porretes, bombas de gás e denúncias de um complô sinistro orquestrado do exterior, mantido por um sinistro “lobby das taxas de juros”, para negar aos turcos o seu bem merecido lugar ao sol.

Quando diz “lobby das taxas de juros”, Erdoğan fala de especuladores ocidentais inescrupulosos – judeus, por implicação –, e os discursos dele despertam antigas lembranças; dentre outras, de uma Turquia terrivelmente endividada nos bancos europeus, nos tempos otomanos, o que enfraqueceu mortalmente o império antes do colapso, na I Guerra Mundial. Mas Erdogan invoca também os sombrios anos 1990, quando uma economia inflacionada, corroída de dívidas e improdutiva foi usada como playground por investidores sanguinários, realizavam seus lucros quando o mercado inchava e só reapareciam depois do crash inevitável, beneficiando-se de juros reais de, em média, 32%.

Esses traumas marcaram a abordagem que Erdoğan deu aos aspectos monetários da crise. Mesmo antes de 17 de dezembro, uma combinação de compras de bônus do Federal Reserve; a ameaça de subida nas taxas globais de juros; sinais de que a economia turca começava a esfriar, e tumultos políticos causados pelos protestos do verão passado derrubaram a lira, que caiu cerca de 9%. A queda acentuou-se depois das prisões em dezembro, mas o primeiro-ministro só autorizou ligeira alteração na taxa de juros depois que a moeda já caíra mais 13%, e as empresas turcas, fortemente expostas no curto prazo, com dívidas em dólares, lutavam para cumprir suas obrigações financeiras. Finalmente, dia 28 de janeiro, o Banco Central aumentou as taxas, e a queda da lira foi afinal contida.

A resistência ideológica de Erdoğan, contra o aumento dos juros, custou muito caro a empresas turcas. Nas palavras de Inan Demir, economista do Finansbank, em Istanbul: “Não havia outra saída, além de aumentar os juros, ou haveria pânico em grande escala, mas deveriam ter sido aumentados muito antes. Agora, as empresas turcas estão no pior dos mundos, com dificuldades sempre crescentes para pagar, por causa da lira fraca; e com custos financeiros sempre mais altos, por causa dos juros altos.”

Em apenas quatro meses, o Finansbank revisou a previsão de crescimento para 2014, de 3,7% para 1,7% – depois de uma década de crescimento médio de mais de 5%.

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For all its troubles, Turkey’s economy is still big, its citizens 43 percent better off than they were when Erdoğan came to power. Este país mais bem sucedido é o tema de The Rise of Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, novo livro de Soner Cagaptay, um especialista em Turquia do Washington Institute for Near East Policy. One sympathizes with Cagaptay, who finished his book long before the present crisis, but even then his tone might have struck one as triumphal—a reminder of the tendency of many observers, captivated by the spectacle of Turkey shedding the complexes of the past, to downplay the perils of the future. Cagaptay dwells at length on the political and economic advances of the Erdoğan years, but he does not go into the tensions within Turkish Islamism, which are likely to define the country’s politics for some time, or the corruption that underlies the country’s capitalist successes.

The Rise of Turkey não diz nada sobre o movimento Gülen, exceto que organizou reluzente conferência internacional, da qual o autor do livro participou, sobre “o papel de liderança da Turquia na Primavera Árabe”. Essa conferência seria impensável agora, porque os Irmãos da Fraternidade Muçulmana aliados de Erdoğan foram já expulsos do poder no Egito, e toda a política deles para a Síria (que previa, erradamente, que seria fácil derrubar o governo de Bashar al-Assad) já fracassou completamente. Cagaptay não é, absolutamente, o único acadêmico que aceitou a hospitalidade do movimento Gülen, que ele classifica como movimento “de prestígio”. O problema é que Fethullah Gülen além de ser feito de “prestígio”, também é feito de muito dinheiro.

Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World foi escrito por um sociólogo norte-americano, Joshua Hendrick, que trabalhou durante sete meses como editor voluntário numa editora afiliada ao movimento gülenista em Istanbul. Eu, que passei recentemente alguns dias com gülenistas, que me pareceram entusiasmados, radiantes, extremamente solícitos e surpreendentes, de início, e, logo depois, cansativos e tediosos, só posso admirar o tempo que Hendrick sobreviveu entre eles. Afinal, valeu a pena, porque nos oferece um estudo detalhado de um movimento que se define, se tal coisa é possível, pela ofuscação.

Fethullah Gülen nega que comande qualquer tipo de movimento ou que mantenha qualquer vínculo institucional com organizações que o reverenciam. Seus seguidores – já estimados em cerca de 5 milhões – dizem que não formam rede; que são unidos exclusivamente pelo respeito pelo Hocaefendi, o “estimado professor”, movidos por sua visão de um Islã moderno e tolerante, que valoriza o conhecimento e o progresso material, tanto quando a piedade e a caridade. Empresas que pertençam ou sejam apoiadas por gülenistas não se identificam como tais, embora haja uma associação, a Confederação Turca de Empresários e Industriais, cujos membros não ocultam a admiração pelo líder. Por tudo isso, é difícil saber quantos bilhões de dólares circulam nessa comunidade. O retrato de Gülen nunca desaparece das paredes das mais de mil escolas privadas, em mais de 120 países, organizadas por seus aderentes, ou das manchetes do jornal Zaman, também de seguidores de Gülen – e o maior jornal da Turquia.

Como observa Hendrick, muita gente sequer se dá conta de que vive na órbita de Gülen – um pai que envie a filha para uma escolha de gülenistas na África do Sul, por exemplo; ou um empregado de serviço terceirizado de uma empresa de construção, mandado trabalhar na Rússia. A negabilidade e a ambiguidade sempre foram e continuam a ser “cruciais para o crescimento ininterrupto [do movimento] por três décadas.”

O outro fator é o próprio Gülen. O magnetismo pessoal sempre o ajudou a conquistar seguidores desde os anos 1960, quando, ainda jovem imã de mesquita, já era conhecido pelo estilo emocional de pregar, frequentemente explodindo em lágrimas e, mesmo, atirando-se e rolando pelo chão. Um seguidor que acabava de voltar de uma visita ao Hocaefendi nos EUA, descreveu-o para Hendricks como “dono de poderes que uma pessoa medianamente culta e educada nem consegue imaginar. É um presente de Deus.” Em alguns sentidos, Gülen é reverenciado como se reverenciam os “pole” sufis, seres humanos eleitos por Deus para difundir a verdade divina; mas o movimento Gülen é mundano demais para ser incluído entre movimentos sufis. “Agir” é o princípio orientador declarado dos gülenistas, não qualquer distanciamento ou introspecção.

Baseando-se no ensino de uma divindade turca do século XX, Bediüzzaman Said Nursi, Gülen acredita que a humanidade tenha de ser salva do pecado e aprender o caminho da revelação e o exemplo profético do Corão. A partir do mesmo ponto, outros revivalistas muçulmanos no século XIX, sobretudo Sayyid Qutb, do Egito, justificaram a violência e a aplicação à força da lei sagrada. Gülen tende na direção inversa. Prega “abraçar as pessoas, sem considerar diferenças de opinião, visão de mundo, ideologia, etnia ou crença” e com vistas à “democracia, aos direitos humanos e às liberdades” – o que para Qutb é anátema.

***

A visão de mundo de Gülen ajuda a entender, em certa medida, o internacionalismo do movimento, a ênfase no ensino de idiomas nas suas escolas, e a busca do diálogo entre várias fés, em encontros, conferências e projetos universitários. Diferente de outras organizações islâmicas, o movimento Gülen não recolhe dinheiro exclusivamente para muçulmanos, mas também para não muçulmanos (para as vítimas do terremoto no Haiti, por exemplo). Gülen e seus principais assessores dedicam muito trabalho no esforço de se afastarem de qualquer antissemitismo, e, até, de qualquer crítica contra Israel. Assim, os esforços do movimento para fixar-se nos EUA foram muito facilitados; há ali cerca de 140 escolas especiais gülenistas, e Gülen cultivou boas relações com aliados poderosos na política, na educação e nas artes. Ainda assim, os gülenistas estão sendo examinados de perto por pais e mães norte-americanos que enviam seus filhos para aquelas escolas, e que se preocupam com a opacidade de seus objetivos e métodos; e, em termos mais gerais, também por observadores que não veem com clareza o que, exatamente, Gülen prega ou representa.

Desde o início do século XIX, a educação é preocupação central dos reformadores muçulmanos – com ênfase nas ciências –, e o movimento de Gülen não é diferente. Na Turquia, o movimento já controla oito universidades, dúzias de escolas secundárias privadas e cerca de 350 outras instituições que preparam os alunos para os exames vestibulares, de acesso às universidades. O sistema público de educação na Turquia não tem boa reputação; assim, os pais economizam para conseguir mandar os filhos para essas instituições pré-vestibulares.

Em uma dessas instituições, imaculadamente limpa e muito bem equipada, um gülenista, professor graduado, disse-me que os cursos preparatórios gülenistas põem alunos nas melhores universidades da Turquia, e que reservam 15% dos lugares para alunos pobres, que recebem bolsas de estudo. O professor interrompeu nossa conversa para ir à mesquita, do outro lado da rua, fazer suas preces; e voltou depois, acompanhado de dois alunos agradáveis, de boas maneiras (as moças estudam em ala separada dos rapazes). Contaram-me sobre o sistema “grande irmão”, pelo qual se assegura apoio moral e material aos alunos que vivem longe de casa e que se distribuem pelos dormitórios da escola preparatória. Um dos rapazes observou que os professores o tratavam “como seu próprio filho.” O movimento gülenista é dado a analogias familiares. Não aprecia trabalhadores que só se dedicam “das nove às cinco”; e a dedicação é apreciada igualmente nos alunos e nos professores.

Riqueza, sucesso, a excitação de participar de uma verdade sublime – o movimento Gülen difunde-se com muita energia, empurrado por esses estímulos. É fácil imaginar o senso de dever que toma os gülenistas mais pobres depois que são elevados àquele mundo de brilhos, cosmopolita e, sobretudo, muito firmemente entretecido. Tanto quanto mediante os livros e discursos do Hocaefendi, eles são também promovidos por laços de amizade; no caso de as famílias originais não quererem trilhar os novos caminhos, então os gülenistas têm de escolher entre a família velha e a nova família.

Cultos e organizações fechadas em todo o mundo se têm servido de métodos semelhantes, e os resultados nem sempre são felizes. Uma psicóloga em Istanbul contou-me sobre um menino muito pobre, filho de um porteiro no distrito mais caro da cidade, que a procurou depois de ter tido contato com um grupo de gülenistas. Eles o acolheram, convidaram-no a visitar a casa onde viviam juntos, o apresentaram às ideias do Hocaefendi, e o fizeram sentir-se vivo, realizado e acolhido. Até que um dia, sozinho em casa, mexendo numa pilha de DVDs, pôs no aparelho um dos discos. Era um guia para atrair novos recrutas, com táticas que o rapaz reconheceu que haviam sido usadas para atraí-lo. Pouco adiante, o rapaz procurou minha amiga psicóloga.

No início de seu livro, Hendrick reproduz parte da transcrição de um vídeo vazado e que foi item da acusação em processo movido contra Gülen em 2000, no qual foi julgado in absentia (Gülen já havia fugido da Turquia para os EUA) por conspiração contra o estado secular. Nesse já famoso excerto, Gülen diz aos seus apoiadores: “Vocês devem mover-se nas artérias do sistema, sem que ninguém perceba a presença de vocês, até alcançarem os centros de poder (...) Vocês têm de esperar até terem tomado todo o poder do estado.”

Mas Hendrick não avança muito profundamente na discussão das várias denúncias que se fizeram contra Gülen ao longo dos anos; como sociólogo, talvez entenda que não é trabalho que lhe caiba.

Alegações de que Gülen estaria tentando tomar o controle de órgãos do estado, particularmente o Judiciário e a Política, datam, pelo menos, de 1971, quando Gülen cumpriu pena de sete meses de prisão por trabalhar para minar o secularismo. Essas acusações têm a ver com uma importante diferença entre o movimento de Gülen e outras tradições islamistas turcas. Enquanto outras tradições reagiram de modo ortodoxo contra os obstáculos legais e políticos que lhes foram impostos, concorrendo em eleições e disputando postos de poder, os gülenistas tentaram permanecer corretamente alinhados às instituições seculares (nem sempre com sucesso, como o comprovam a condenação e a prisão de Gülen), ao mesmo tempo em que, gradualmente, se infiltravam dentro delas.

Em 2011, um jornalista, Ahmet Şık, lançou um livro The Imam’s Army [O Exército do Imã], no qual expôs o modo como os gülenistas assumiram o controle da força policial turca, ao longo de vinte anos.

***

The Imam’s Army é livro rico de detalhes fascinantes. Fala de uma diretiva que teria sido lançada para os policiais gülenistas no final dos anos 1990, no auge de uma campanha, pelas autoridades seculares, contra os islamistas turcos. Por essa diretiva, os seguidores de Gülen na Polícia receberam ordens para retirar de suas casas todos os livros, espalhar latas vazias de cerveja pela casa, não usar turbantes para, assim, exibir imagem “secular”. Şık também escreve sobre transferências e demissões que são rotina para todos os policiais veteranos ou procuradores que tentam atacar gülenistas, e as campanhas de vilificação movidas contra eles pelas imprensa ligadas aos gülenistas, em especial pelo jornal Zaman.

Şık recuperou parte de seu material de livro publicado antes, escrito por um ex-chefe de polícia, Hanefi Avcı. Em setembro de 2010, dois dias antes da data em que teria de comprovar suas denúncias em uma conferência de imprensa, e apesar de sua manifesta tendência de direita, Avcı foi preso e acusado de pertencer a uma organização de esquerda. Şık foi preso no ano seguinte, pouco antes da data prevista para o lançamento de The Imam’s Army. (Apesar dos esforços da polícia para destruir todas as cópias digitais do livro, o texto foi postado na Internet, e foi baixado 100 mil vezes em dois dias.) Mais jornalistas foram presos em seguida, sob pretextos variados, e todos os casos foram reunidos em uma só grande investigação sobre um alegado complô contra o governo, pelo antigo establishment secular. A conspiração recebeu o nome de Ergenekon, da pátria mítica da nação turca na Ásia Central.

Quando foi iniciada em 2007, a investigação Ergenekon foi bem recebida por muitos turcos, como oportunidade para o país pôr ponto final aos abusos cometidos pelas forças armadas e seus aliados. Mas muito antes de a investigação chegar ao clímax, em agosto do ano passado, com a prisão de 242 pessoas, incluído um ex-chefe do Estado-maior, acusado de pertencer à “organização terrorista Ergenekon”, já muitos haviam mudado de opinião sobre todo o processo, dadas as flagrantes irregularidades no inquérito e no julgamento. Houve condenações sem outras provas além de gravações ilegalmente obtidas; vários casos visíveis de provas plantadas contra um ou outro acusado. A maior irregularidade de todas, provavelmente, se verificou em um processo relacionado a esse, em que 330 membros, entre aposentados e do serviço ativo das Forças Armadas foram encarcerados, condenados por planejarem um golpe, em 2003, embora não houvesse qualquer prova contra eles além de um único CD cujo exame mostrou que, um dia, ali estivera gravada a versão 2007 do Microsoft Office.

O julgamento “Ergenekon” deveria ter sido a vingança final colhida pelos longamente reprimidos islamistas turcos e Erdoğan como seu líder. Mas há boas razões para afirmar que jamais existiu algo semelhante à tal organização Ergenekon e que todo o processo foi motivado por desejo de vingança. Segundo Gareth Jenkins, acadêmico britânico que analisou a fundo todo o caso, a operação foi montada e executada não por Erdoğan mas por “uma gangue de seguidores de Gülen na polícia e nos baixos escalões do Judiciário.” Na opinião de Jenkins, os gülenistas usaram a operação para castigar seus inimigos. Jenkins acredita que Ahmet Şık, Hanefi Avcı e os demais jornalistas presos – alguns dos quais ainda esperam pela sentença –, foram punidos por serem “críticos, opositores ou rivais do movimento Gülen.”

Ainda em 2006, Fethullah Gülen foi absolvido da acusação de tentar tomar o estado turco, mas Erdoğan, seu ex-aliado, deu nova vida à mesma ideia. Tendo apoiado aquela investigação Ergenekon, Erdoğan dedica-se agora a reabrir o mesmo caso, sem dúvidas para usar como publicidade e propaganda os abusos judiciários cometidos pelos gülenistas. Mês passado, Erdoğan reagiu com abuso de sua própria autoria: fez aprovar uma lei, pelo Parlamento, que dá maior poder ao governo para controlar juízes e procuradores. A disputa entre Gülen e Erdoğan marca o fim de uma parceria que levou o islamismo ao poder na Turquia, e põe por terra a crença, cara até a alguns liberais, de que, se a Turquia deixasse falar sua maioria religiosa e pia, seria também país mais justo.

4 de março de 2014

Trotsky em Cuba

Como seu narrador em O Homem que Amava os Cachorros, Leonardo Padura foi feito para importar menos do que deveria.

Samuel Farber

Jacobin

Trotsky, a esposa Natalya e filho Sedov em Alma Ata (1928). Wikimedia.

Tradução / Há algum tempo, o escritor cubano Leonardo Padura explora seu desencanto com algumas das realidades de sua amada cidade por meio de seus romances sobre o detetive Mario Conde. Mas é em seu O Homem que Amava os Cachorros, que suas reflexões sociais e políticas sobre o socialismo e a liberdade – em Cuba e fora dela – alcançam sua maior profundidade.

Padura entrelaça as histórias do revolucionário russo Leon Trotsky e de seu assassino, o comunista catalão Ramón Mercader, que ele traz pelas lentes de um narrador cubano, um jornalista despedido do cargo por motivos políticos e forçado a trabalhar como revisor para um diário veterinário.

O fato histórico de que Mercader viveu em Cuba por cerca de quatro anos no final dos anos setenta, trabalhando como assessor do repressivo Ministério do Interior (e que sua mãe Caridad trabalhou durante sete anos como funcionária encarregada de relações públicas na embaixada cubana em Paris nos anos 60), dá a Padura os meios para conectar o assassino com o jornalista. Eles se encontram um dia quando Mercader, acompanhado por um guarda-costas, está passeando com seus amados cachorros na praia de Santa María del Mar onde o jornalista tinha ido ver o pôr do sol.

Sem expor sua identidade, Mercader revela muito de sua vida ao jornalista cubano, fingindo que está falando de uma terceira pessoa e não de si mesmo. E é por meio dessa convenção artística que Padura articula suas idéias sobre o stalinismo, sua psicologia e seus horrores, tanto na esfera da alta política quanto no plano individual. Ao contrário do estereótipo de comunistas semelhantes a robôs, Padura apresenta uma visão diferenciada de uma série de personalidades comunistas. Apesar do peso esmagador da ortodoxia ideológica e do terror, a individualidade de Mercader permanece.

Mercader é inicialmente um comprometido revolucionário lutando do lado republicano na Guerra Civil Espanhola, uma pessoa pensante com uma mente independente. Essa independência começa a ruir sob a pressão de seus camaradas comunistas, que continuamente o lembram de que “o partido está sempre certo e se você não entende, não importa: você tem que obedecer”.

Isso é minado ainda mais quando, depois de ter sido recrutado por oficiais da inteligência soviética, seu superior o informa no meio da Guerra Civil que o próprio Stalin ordenou o expurgo do comando republicano leal ao presidente socialista Largo Caballero. Com isso, Padura também desafia um dos muitos mitos sobre o papel do Partido Comunista e da URSS como salvadores da República Espanhola que ainda prevalecem em grande parte da esquerda internacional.

O golpe final na capacidade já decadente de Mercader de raciocinar de forma independente ocorre quando, em uma das cenas mais assustadoras do livro, o ativista comunista é transformado, em um campo de treinamento na URSS, no soldado anônimo número treze e é compelido a matar um homem desamparado e esfarrapado por ser um “cachorro trotskista, inimigo do povo”.


O outro comunista no romance de Padura é Trotsky, um homem que também amava cães. Com profundo conhecimento e compreensão da obra do líder bolchevique, o escritor cubano o descreve com genuína simpatia: perdido no exílio, privado da cidadania soviética e incapaz de encontrar asilo em qualquer país até que o presidente mexicano Lázaro Cárdenas lhe dá abrigo no México.

O Trotsky de Padura é um homem perseguido – muitos de seus parentes e seguidores foram assassinados por ordem de Stalin. Mas existem diferentes tipos de pessoas perseguidas. Existem aqueles como Nelson Mandela que, durante suas décadas sombrias na prisão, foi apoiado por um grande movimento social e político. E há quem, como Trotsky, perceba, como Padura o fez dizer: “Estou cada vez mais só, sem amigos, sem camaradas, sem família… Stalin levou todos eles. ”

Compreender essa solidão permite a Padura descrever um Trotsky que não se surpreende com as confissões absurdas extraídas das vítimas dos grandes expurgos dos anos 30 na URSS, mas que se entristece muito com a confissão auto-incriminatória de Christian Rakovsky, seu antigo camarada na luta contra Stalin, no terceiro julgamento de Moscou em 1938.

Instigado pela simpatia ao líder russo, Padura mostra Trotsky censurando-se internamente por não ter reconhecido os excessos que ele mesmo cometeu ao tentar defender a sobrevivência da revolução, “embora nunca o admitisse publicamente”, afirma o autor. O Trotsky imaginado por Padura lamenta as ações que tomou para militarizar os sindicatos ferroviários e as políticas coercitivas aplicadas durante a reconstrução pós-Guerra Civil, a substituição de dirigentes sindicais e até mesmo seu papel no esmagamento sangrento da revolta de Kronstadt.

Estas são especulações plausíveis, embora excessivas, de Padura à luz das revisões que Trotsky fez durante os anos 30 sobre muitas das idéias políticas que ele havia adotado particularmente durante a Guerra Civil de 1918-20 – revisões que o fizeram rejeitar, por exemplo, o princípio do partido único como pedra angular do socialismo no poder. Ao mesmo tempo, essas podem muito bem ser as projeções de Padura refletindo retrospectivamente sobre como um sistema semelhante foi implantado em seu próprio país.

Padura, vivendo sob uma espécie de comunismo em Cuba, também destaca Trotsky como um crítico literário que afirma, sem hesitar, que “tudo é permitido na arte”. Não por acaso, o escritor cubano destaca a ocasião em que André Breton, em sua visita ao México, diz a Trotsky que tudo é permitido na arte exceto ataques à revolução proletária. Trotsky responde que na arte nenhuma restrição pode ser permitida – que não há nada que uma ditadura deva impor ao criador sob a desculpa de necessidade histórica e política, e que a arte deve obedecer apenas às suas próprias exigências.


Com tanta simpatia e respeito pela verdade histórica como pela forma que trata Trotsky, seria um grande erro ver Padura como simpatizante do trotskismo. Sem diminuir a notável realização de Padura em retratar não apenas Trotsky, o homem, mas também Trotsky, o pensador político, ele falha em compreender, talvez por causa de sua própria formação política, certos conceitos estratégicos do pensamento trotskysta.

Padura apresenta com precisão a dura crítica de Trotsky ao comunismo alemão e sua política suicida em relação ao nazismo que tratava a social-democracia (“social fascismo”, de acordo com a linguagem dos stalinistas) como equivalente ao nazismo. Mas ele erroneamente deixa implícito que Trotsky defendeu uma espécie de Frente Popular de todas as forças de “centro e esquerda” para combater o nazismo e o fascismo. Em vez disso, ecoando o Comintern do início dos anos 20, Trotsky propôs uma política da Frente Unida que reuniria todas as forças da classe trabalhadora, que incluía a social-democracia, mas excluía os partidos burgueses, independentemente de quão liberais e democráticos eles fossem.

Em outras palavras, Trotsky apoiava uma política de classe, não uma política “popular”. Ele supôs, como no caso da Espanha, que a oposição ao fascismo só poderia ter sucesso se fosse baseada na mobilização dos interesses de classe, o que acabaria por levar à revolução socialista – a única alternativa real ao fascismo para Trotsky, dada a decadência da sociedade capitalista, mesmo em suas versões democráticas.

Qualquer dúvida que possa ter permanecido sobre as possíveis inclinações trotskistas de Padura foi removida por sua recente entrevista ao Espacio Laical, a publicação liberal católica cubana, onde ele disse que Trotsky tinha sido tão “fanático” quanto Mercader – uma declaração que parece completamente em desacordo com o espírito e a letra de O Homem que Amava os Cachorros.


Ainda assim, o personagem principal de O Homem que Amava os Cachorros não é Leon Trotsky nem Ramón Mercader. É a única figura da trama totalmente fictícia, a única das três que é cubana: o próprio narrador. Iván é um jovem jornalista que já foi punido duas vezes pelo sistema por ser muito independente na época que conhece Mercader.

Pouco depois de se formar na universidade, as autoridades o enviaram para a longínqua cidade de Baracoa para trabalhar como chefe da estação de rádio local – uma ação destinada a servir como um “corretivo” do governo cubano para “me derrubar e me impor este mundo”. Na segunda vez, ele foi enviado para trabalhar para uma revista veterinária como revisor. Então, para aumentar seus infortúnios profissionais, seu irmão é excluído da universidade por ser gay e desaparece ao tentar fugir para os EUA.

A história pessoal de Iván começa a se desenrolar na década de setenta, período que marca os quatro anos em que Mercader residiu em Cuba como assessor do Ministério do Interior e também o ponto alto da repressão política e cultural do stalinismo na ilha.

Foi durante esses anos “amargos” que Iván foi marginalizado e reprimido pelas autoridades cubanas – justamente quando começava a se revelar como escritor sério. Iván esclarece que a vida de escritores como ele não corria perigo naquela época. Em vez disso, o sistema os transformou em nada. Ou seja, conta Iván, quando soube o que era o medo:

Acho que naqueles anos devemos ter sido os únicos membros de nossa geração em toda a civilização estudantil ocidental que, por exemplo, nunca colocaram um baseado entre os lábios e que, apesar do calor correndo em nossas veias, nos libertaríamos tardiamente do atavismo sexual, liderado pelo maldito tabu da virgindade (não há nada mais próximo da moralidade comunista do que os preceitos católicos); no Caribe espanhol éramos os únicos que vivíamos sem saber que estava nascendo a salsa ou que os Beatles (os Rolling Stones e Mamas and the Papas também) eram os símbolos da rebelião e não da cultura imperialista, como nos diziam muitas vezes; e além disso, éramos, na época, os menos informados sobre a extensão das feridas físicas e filosóficas produzidas em Praga por tanques que funcionavam como mais do que ameaças, sobre o massacre de estudantes em uma praça mexicana chamada Tlatelolco, sobre a devastação histórica e humana desencadeada pela Revolução Cultural do nosso querido camarada Mao, e sobre o nascimento, para as pessoas da nossa idade, de outro tipo de sonho, morto nas ruas de Paris e nos concertos de rock da Califórnia.

Em seguida, situando-se nos anos 90, Iván revisita o nascimento e a morte das esperanças suscitadas pela Perestroika, a descoberta da verdade sobre o ditador romeno Nicolae Ceaucescu, os horrores da Revolução Cultural na China e a decepção por ter descoberto que o grande sonho de emancipação humana e igualdade estava mortalmente doente, e que genocídios como o cometido no Camboja pelo regime do Khmer Vermelho de Pol Pot foram cometidos em seu nome. O que parecia indestrutível havia se rasgado nas costuras.


Leonardo Padura, é um dos principais representantes de um novo ambiente intelectual e cultural da ilha que apoia a liberalização e democratização da sociedade cubana. Mas ele está em uma posição única no sistema cubano: embora tolerado e até festejado, sua obra mais crítica não foi divulgada ao grande público. Ele parece ter alcançado um grau muito maior de independência das autoridades do que outros artistas e intelectuais conhecidos na ilha.

Assim, ele tem apoiado criticamente o programa de reforma do governo, mas tem agido com muito mais independência do regime do que outros artistas e intelectuais cubanos de renome – por exemplo, abstendo-se de endossar muitas das declarações denunciando dissidentes patrocinados pelo aparato cultural do Estado cubano. Como o próprio Padura sugeriu em várias ocasiões, isso foi possível em parte devido à sua independência econômica do governo, que foi conquistada com a publicação de suas obras no exterior.

Nos agradecimentos ao final de O Homem que Amava os Cachorros, Padura escreve que a “semente” do livro começou a germinar em sua mente durante uma visita que fez, pouco tempo antes do colapso do bloco soviético, a casa de Trotsky no bairro de Coyoacán na Cidade do México, um museu que para ele era “um verdadeiro monumento à ansiedade, ao medo e ao triunfo do ódio durante a época em que os Trotsky moravam lá”.

Quinze anos depois, com a URSS morta e enterrada, diz o romancista cubano, ele contou a história do assassinato de Trotsky “para refletir sobre como a grande utopia do século XX foi corrompida”. Vergonhosamente, após ter sido publicado e comentado favoravelmente pela imprensa oficial da ilha, e mesmo tendo recebido o Prêmio Nacional de Literatura em 2012, a tiragem da edição cubana de seu livro foi tão pequena que ficou indisponível logo após sua apresentação pública.

O governo cubano quer matar dois coelhos com uma cajadada só: relaxar alguns controles políticos e ao mesmo tempo impedir a difusão de idéias que podem subverter seu monopólio de poder. Padura não foi censurado ou reprimido pelo governo cubano. Mas, semelhante a seu narrador Iván, ele foi modulado para ter menos importância do que deveria.

Colaborador

Samuel Farber nasceu e foi criado em Cuba e é autor de vários livros e artigos que tratam desse país. Ele é membro do Jewish Voice for Peace e apoia o BDS.

2 de março de 2014

Um pouquinho de Brasil

Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de "12 Anos de Escravidão"

Lilia Moritz Schwarcz

Maria Helena Pereira Toledo Machado


[RESUMO] Narrativa de Solomon Northup, que inspirou filme concorrente ao Oscar, enseja ensaio sobre as condições da escravatura no Brasil e nos EUA. Ao contrário do que parecem supor as plateias, as sevícias impostas aos cativos eram tão ferozes aqui como nos EUA, assim como era comum a captura de homens livres por direito.

*

Há situações que parecem estar além de qualquer racionalização: diante delas quem sabe a única resposta seja a profunda indignação. Esse é o caso do sistema escravista recriado em bases mercantis a partir do século 16, que instituiu um modelo de trabalho pautado na naturalização da violência, na compra e no tráfico de viventes. Difícil descrever por meio de interpretações objetivas um cotidiano que invadia a todos e se esmerava na aplicação de uma cartografia de castigos, vexações e punições.

"12 Anos de Escravidão" procura traduzir em imagens o que é praticamente indizível em palavras. O filme, que chegou há pouco às nossas telas, foi precedido por debates e críticas, aqui como no contexto norte-americano. Não foram poucos os que acusaram o diretor Steve McQueen de fazer um filme vocacionado para o Oscar --o longa concorre hoje a nove prêmios.


Outros destacaram o exagero sentimental, cenas apelativas e o recurso a um fundo musical que tem por objetivo deixar ainda mais tenso um assunto já por si nervoso.

Não por acaso a escravidão permaneceu por muito tempo no silêncio, nos EUA e no Brasil, ou foi tratada como um não tema. Talvez este seja um bom momento para fazer do passado uma indagação. Por que tantos e por tanto tempo sustentaram tal sistema?

O filme se baseia na narrativa de vida de Solomon Northup --negro livre de Nova York, sequestrado e vendido na década de 1840 como escravo para trabalhar nas fazendas nas fronteiras do sul do país. A publicação de sua história, em 1853, serviu como veículo para a difusão das novas ideias abolicionistas. Esquecido desde então, o relato de Northup voltou às livrarias propelido pelo lançamento do filme --no Brasil, saíram duas edições (pela Penguin/Companhia das Letras e pela Seoman).

A reconstituição feita no cinema, minuciosa, realista e muito colada ao livro, se detém nos aspectos sombrios do funcionamento da escravidão no sul dos EUA, trazendo para a tela as engrenagens do tráfico interno e ilegal, a organização do trabalho compulsório nas "plantations", as políticas senhoriais de controle, punição e compensação de escravizados, as regras de submissão, as relações inter-raciais e, sobretudo, a violência de um sistema que supõe a posse de um homem por outro.

Para completar a fatura, "12 Anos" ainda mostra como era frágil a situação civil dos negros livres e libertos --assim como a própria noção de liberdade. A sensação que fica é a de que nada era seguro no período anterior à Guerra Civil, com os negros livres norte-americanos contando apenas com direitos sociais limitados. Tal perfil valia até para o norte dos EUA, que exaltava valores republicanos e cidadãos. O direito ao voto para negros era um privilégio raro e a política de segregação já começava ser implantada em muitos lugares. Sem ter o direito de testemunhar contra brancos ou de a eles igualar-se constitucionalmente, o negro livre era entendido --como bem notou a historiadora Barbara Fields em ensaio clássico-- quase como um estrangeiro. A fronteira entre cativeiro e liberdade era mais fluida do que se podia esperar.

No contexto norte-americano, existe uma considerável tradição de narrativas escritas por escravizados e libertos; no cinema, porém, é novidade apresentar a escravidão a partir do ângulo dos afro-americanos. O filme de McQueen, por economia de argumentos ou conservadorismo, optou por deixar a trama mais previsível, conferindo o papel de libertador a um homem branco, educado e canadense --certamente remetendo-se à tradição daquele país de acolher escravos fugidos.

REAÇÕES

O díptico livro-filme fez estourar nos Estados Unidos um debate volumoso. Voltando os olhos para a recepção que o longa de McQueen recebeu por aqui, podemos dizer que é no mínimo revelador observar as reações da plateia, que, entre entristecida e atônita diante da dureza das imagens, sai do cinema com questões do tipo: "Como era dura a escravidão nos Estados Unidos! Os senhores lá eram mesmo cruéis --no Brasil não era assim, não é?".

Esse tipo de resposta denuncia uma espécie de política de compensação e certo "alívio" tentador: joga-se a sensação incômoda sempre para o lado do outro, para bem longe de nós. No entanto o que hoje se sabe é que a escravidão no Brasil não foi essencialmente diferente da retratada em "12 Anos de Escravidão". Ao contrário, foi maior em número de africanos entrados no país, assim como tomou todo o território e por um período de tempo ainda mais extenso.

As similaridades entre os regimes escravocratas de lá e de cá são muitas, a começar pela notável porosidade das fronteiras entre cativeiro e liberdade que são tema de "12 Anos" (o sequestro, aprisionamento, transporte, venda e revenda do protagonista se concretizam quase sem estorvo por parte das autoridades ou da população).

Novos estudos nos EUA e no Brasil têm demonstrado a escandalosa ilegitimidade da escravidão. Amparada firmemente no costume e fazendo vistas grossas a sua flagrante ilegalidade, a escravidão, concluem muitos pesquisadores, foi um sistema marcado pela bastardia jurídica.

Em artigo publicado em 2012 na revista "Afro-Ásia", Rebecca Scott e Jean Hébrard, ao acompanhar a trajetória de Rosalie, da nação poulard, do Haiti dos finais do século 18 até Nova Orleans, nos EUA, passando por Cuba, desvelam os pés de barro da legislação escravista em três contextos jurídicos.

No Brasil, é conhecido o proverbial desrespeito à lei de 1831 que proibia o tráfico atlântico. Tal atitude política produziu gerações de africanos e descendentes submetidos à escravidão ilegal, como denunciou pioneiramente o rábula negro Luiz Gama (1830-82) --ele próprio mantido em cativeiro ilegal por anos de sua juventude--, seguido por muitos outros abolicionistas. A precarização da liberdade foi, assim, o pão de cada dia de negros livres, libertos e africanos livres na sociedade brasileira.

O notável desprezo das sociedades escravistas pelas leis se espraiava por toda a sociedade, facilitando a reescravização. No Brasil, a exigência de passaportes, passes e bilhetes senhoriais que deveriam acompanhar o deslocamento dos cativos comprova a preocupação das autoridades em manter o controle dos escravos --e sobre qualquer indivíduo que apresentasse possíveis traços de pertencimento à escravidão.

Situação comuníssima era a detenção de negros e negras para a conferência dos documentos de deslocamento e comprovação de identidade. Nestas ocasiões, muitos homens livres, detidos fora de seu meio social imediato, foram facilmente aprisionados e vendidos como escravos, conforme mostra uma série de investigações, sugerindo que, no Brasil, existiram milhares de Northups.

TRANSFORMAÇÃO

Outro aspecto a ser lembrado é o da transformação de Northup, homem livre, de certas posses, bem educado e alfabetizado, exímio violinista e carpinteiro --um gentleman negro integrado à burguesia branca-- em escravo do eito, degradado, quebrado por castigos, e que passa ao anonimato como cativo.

Tal mudança encontra paralelo, no Brasil, no quebra-negro, castigo muito utilizado para sazonar escravos novos ou recém-adquiridos, que obrigava os cativos a sempre olhar para o chão diante de qualquer autoridade e, sobretudo, a esconder sua identidade e aptidões. O escravo devia se apresentar como ser ignorante, desprovido de conhecimentos ou especialidades, sendo a obediência e a lealdade qualidades muito apreciadas. Lealdade, por sinal, era atributo necessário também para libertos, sendo que a falta de deferência a um antigo senhor poderia levar à recondução ao cativeiro.

A despeito das altas doses de sadismo, é claro que a violência do sistema tinha um sentido econômico claro: a de moldar a prontidão do escravo e fazê-lo trabalhar ao máximo. Northup recebeu sua dose de sevícias pedagógicas e disciplinares, à semelhança do que ocorria no Brasil, conforme atestam uma série de processos criminais envolvendo escravos.

David de Angola, por exemplo, morador de Campinas no ano de 1861, foi chicoteado por juntar café apenas com uma mão, fazendo o serviço demorar mais. O escravo Caetano de Taubaté, quando voltava da roça no ano de 1885, foi surrado por quebrar uma espiga de milho verde para comer.

Não há como esquecer, ainda, os anúncios de fuga de escravos, presentes cotidianamente nos jornais do país. Neles, os escravizados eram descritos a partir de seus corpos maltratados, das pejas e ganchos ainda neles presas na ocasião das fugas, sendo todos esses detalhes convertidos em formas de reconhecimento e apreensão. Tudo sem peja ou vergonha.

Aliás, se podemos notar uma significativa diferença estrutural entre a escravidão nos EUA e aqui, esta seria contrária ao que espera o público dos nossos cinemas.

No Brasil --e contrariando a ladainha que descreve um sistema menos severo-- os escravos reagiram mais, mataram mais os seus senhores e feitores, se aquilombaram mais e, finalmente, também se revoltaram mais. A provável explicação dessas diferentes reações pode repousar na fragilidade de nossas instituições policiais e jurídicas bem como em uma menor coesão da classe senhorial, dividida entre pequenos, médios e grandes proprietários, espraiados por todo o país. Com certeza mostra, também, como violência chama sempre mais violência.

O filme permite ainda explorar ambivalências que cercaram a escravidão, cuja realidade era atravessada pelo paternalismo e por toda forma de intimidação.

Entre tantas histórias, sobressai no longa a de Patsey, jovem escrava e exímia colhedora de algodão. Seu corpo não é apenas apropriado como produtor de riqueza mas também enquanto instrumento de prazer, gozo e culpa por parte de seu proprietário --e de ódio por conta do ciúmes da senhora.

Aqui aparece pintada, e com tintas ainda mais fortes, a clássica análise de Gilberto Freyre sobre a sexualidade exercida na intimidade da alcova escravista: o autoritarismo senhorial aí se encontrava com a "aparente" passividade da mulher escravizada, a qual era antes uma rendição aterrorizada.

Nada mais angustiante do que o silêncio de Patsey e sua vontade de ser assassinada por outro escravo, que ao menos reconhece sua dor. Pesada é a ironia anotada pela feminista afro-americana Bell Hooks, que critica a incapacidade do filme de dar voz à escrava, já que é Northup quem vocaliza o sofrimento de Patsey. Segundo Hooks, as narrativas de escravas seguem silenciadas e silenciosas.

Não há escravidão melhor ou pior. Sempre e em qualquer lugar ela gera o sadismo, a naturalização da violência e a perversão social. O que resta, nos EUA ou aqui, é a má consciência, a culpa da perpetuação de um sistema como esse por tanto tempo. Pesa na nossa agenda nacional o fato de o Brasil ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Marca pesada, ela ainda é vista como um descuido, uma circunstância. Não foi.

Talvez por isso o Hino da Proclamação da República, criado apenas um ano e meio após a abolição da escravidão em 1888, ainda entoe um envergonhado e indireto apelo: "Nós nem cremos que escravos outrora/tenha havido em tão nobre país". Outrora era ontem, e o país, ao menos no que se refere a essa questão, nada tinha de "nobre". "Crer", nesse caso, não implica no ato libertador de imaginar, mas de esconder.

Lilia Moritz Schwarcz, 56, é professora titular de antropologia da USP e "global scholar" da Universidade de Princeton.

Maria Helena Pereira Toledo Machado, 58, é professora titular de história da USP.

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