10 de outubro de 2013

Além das greves na indústria de Fast Food

Por que a esquerda não deve desqualificar greves contra baixos salários.

Trish Kahle

Créditos: Steve Rhodes/Flickr.

Há pouco tempo, num dia frio e chuvoso de março, enquanto juntava carros de compras no parque de estacionamento da Whole Foods de Chicago, onde trabalho, um dos meus patrões, parado ao pé da porta, afirmou sem qualquer cerimónia: “Este tempo é mesmo chato”. Eu balancei a cabeça, laconicamente. “Mas o que é que se pode fazer?”, continuou rindo, “Uma greve?”.

Fazia sentido que ele considerasse absurda a ideia de entrarmos em greve – as greves nunca atingiram um nível de registo tão baixo, sendo praticamente inexistentes em estabelecimentos comerciais como o meu; e quase nenhum dos meus colegas alguma vez pertenceu a um sindicato. Porém, um mês depois, entramos em greve. Dez trabalhadores da Whole Foods abandonaram o seu posto de trabalho em protesto contra uma política de atendimento draconiana e contra salários de pobreza, juntando-se a 200 trabalhadores da restauração e do comércio de Chicago e a milhares em todo o país.

Sujeitos a baixos salários, os trabalhadores da restauração e do comércio assumiram, durante este Verão, um protagonismo no seio do movimento sindical norte-americano. A Campanha pelos 15 (FF15 – Fight For15) tornou-se pública em novembro do ano passado, tendo eclodido ao longo da primavera deste ano, quando trabalhadores abandonaram os seus empregos em Nova Iorque e depois em Chicago, St. Louis, Milwaukee, Detroit e Seatle. Sete cidades organizaram uma segunda semana de greves de um dia em finais do mês de julho. Então, a 29 de agosto, cerca de 62 cidades e milhares de trabalhadores uniram-se em torno de duas principais reivindicações: salário mínimo de 15 dólares à hora e o direito à organização sindical sem quaisquer represálias.

Somos parte de uma geração de trabalhadores à descoberta das nossas armas mais poderosas: o sindicato e a greve. Em plena era da austeridade, levantámo-nos. Fizemo-lo com o apoio de um sindicato que, no passado, foi alvo de muitos ataques (certeiros) à esquerda pela sua colaboração próxima com o capital. Apesar da sua história recente ter ficado marcada pela fuga ao confronto, a União Internacional dos Empregados dos Serviços (SEIU) ajudou a impulsionar uma eventual onda de militância entre os trabalhadores precários do século XXI – uma onda que, caso continue a expandir-se, poderá ultrapassar as expectativas de qualquer um.

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Muitos de nós nunca pensaram ficar presos a um trabalho mal pago. Ao longo da minha vida, disseram-me que, se fosse para a faculdade e obtivesse uma licenciatura, viria a ter um melhor nível de vida do que até agora havia tido. Fui para a faculdade com uma bolsa, tendo pago os meus custos de vida através de trabalho em quintas do nordeste californiano. Acabei a licenciatura exatamente no período de começo da recessão, sem quaisquer perspetivas de um salário minimamente decente ou de contactos de empresas.

Após a procura de trabalho na região, consegui um emprego enquanto técnico de veterinária. Apesar de, aparentemente, constituir um trabalho “qualificado”, recebi apenas 8,5 dólares à hora e 25 dólares por semana. Fui despedido menos de seis meses depois. Durante mais de um ano, o único emprego que encontrei foi um temporário, como paisagista, com um salário de 10 dólares à hora, sem horas garantidas, sem equipamento de segurança e com habituais roubos no salário.

Candidatei-me a toda a empresa de comércio e de restauração na região, bem como aos correios e à UPS, onde nem me chamaram para trabalho temporário nas férias. Estava desesperado – e não era o único a estar. Com a inauguração da sua nova loja em Greensboro (Carolina do Norte), a Whole Foods anunciou 100 vagas de empregos disponíveis. Mais de 3000 pessoas submeteram candidaturas – um número constantemente evocado pela administração ao longo da formação. A mensagem era clara: devíamo-nos considerar sortudos por ter emprego.

Os dois anos após a conclusão da licenciatura foram um autêntico murro no estômago. Tornou-se cada vez mais evidente a impossibilidade de vir a arranjar um bom emprego. Não houve gestor responsável pelo recrutamento que não dissesse que era sobrequalificado, uma vez que era licenciado, ou subqualificado, uma vez que tinha apenas uma graduação. Quando acabei a licenciatura, considerei tornar-me carteiro. Ao invés, regressei à universidade e ingressei no doutoramento. Claro que os empregos na academia estão a desaparecer, à semelhança dos empregos na função pública. Mas, ao menos, escrever uma dissertação dar-me-ia algum tempo.

No entanto, mesmo após a inscrição num programa de graduação de uma das mais prestigiadas universidades, fui obrigado a safar-me. Hoje, no meu segundo ano, trabalho na Whole Foods, em mais dois empregos enquanto assistente de investigação e faço uns biscates como trabalhador de mudanças do departamento de ciências sociais. Por mais horas que trabalhe, emprego estável e salários minimamente decentes parecem estar fora do meu alcance.

Per si, a minha situação poderá ser descrita enquanto uma infortuna causalidade. Mas a minha história é comum entre a juventude norte-americana. Alguns designam a minha geração de «mileurista»[1], mas considero que «abandonada» seria um termo mais exato: a mais bem qualificada geração da história global, uma geração sobrecarregada com uma devastadora dívida educativa, com pouco ou nenhum acesso a um salário e emprego dignos e com poucas perspetivas de algo melhor no futuro.

E, como é óbvio, não se trata apenas de pessoas com vintes ou trinta e tais sem filhos, empregados em trabalhos como o meu. Muitos dos meus colegas têm filhos ou pessoas sob sua dependência. Se sobreviver com salários baixos já é extremamente difícil para pessoas sem filhos, é praticamente impossível para os meus colegas que são pais, em particular mães solteiras – muitas das quais confrontadas com cortes em programas sociais, como os das senhas de alimentação, Medicaid [2], segurança social e na educação.

Alguns dos meus camaradas sindicais trabalham na restauração e no comércio desde que sou vivo. Um trabalhador da McDonald´s, membro do sindicato, trabalha na empresa há 27 anos. Após uma geração a trabalhar, ele recebe menos do que 9 dólares à hora. Ele nunca se poderá reformar.

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Salários de pobreza, assédio sexual comum, racismo no local de trabalho e o total desconhecimento de direitos ou ausência de segurança no trabalho fizeram com que valesse a pena correr o risco da organização sindical. Condições de trabalho atrozes e poucas perspetivas de saída da indústria ajudam a explicar a razão pela qual o FF15 cresceu tão rapidamente. Há, no entanto, uma terceira causa importante: o regresso da luta à imaginação popular.

O período de dezembro de 2010 a novembro de 2011 foi repleto de focos de resistência por parte dos «abandonados»: pelo mundo fora ocorreram protestos estudantis contra o aumento de propinas no Reino Unido, revoluções na Tunísia e no Egito; por cá, a reação contra o governador Scott Walker no Wisconsin e o movimento Occupy pouco tempo depois. Milhares de pessoas, na maioria jovens, erguiam-se contra a desigualdade, com sinais de um alastramento gradual da radicalização entre a população norte-americana, em particular nas suas camadas jovens. Contudo, a indignação contra a desigualdade económico-social ainda não havia tido expressão nos locais de trabalho.

Em setembro de 2012, o sindicato dos professores de Chicago deu um exemplo relevante. Os trabalhadores de Chicago pela FF15, que seis meses mais tarde abandonariam às centenas os seus postos de trabalho, estavam atentos aos professores. Vimo-los reivindicar não só melhores salários mas igualmente melhores condições de trabalho. Vimo-los confrontar o perverso racismo de Chicago, incorporado no sistema de apartheid educativo. E vimo-los fazer tudo isso por si mesmos: pela organização nos seus locais de trabalho, pelo debate democrático em torno dos ditames do seu contrato e das táticas grevistas. Vimos o poder de solidariedade nos pais que recusavam mandar os seus filhos atravessar os piquetes de greve dos professores. À medida que o centro da cidade, no primeiro dia de greve, era invadido por professores, vimos que o faziam em nome de todos os trabalhadores. Meses mais tarde, quando o Sindicato dos Professores de Chicago (CTU) foi mencionado numa das nossas reuniões organizativas, os trabalhadores presentes levantaram-se em aplausos.

Após a greve do CTU, as pessoas estavam prontas a organizar-se. Mas, principalmente no período inicial da campanha, não nos podíamos organizar sozinhos. Para grande parte de nós, a ideia de optar pela ação coletiva era aterrorizadora. Não tínhamos uma grande tradição de militância sindical no nosso local de trabalho ou entre as nossas famílias na qual nos basear.

E, como é óbvio, existia a real possibilidade de sermos todos despedidos, à semelhança de milhares de trabalhadores norte-americanos que todos os anos ensaiam a organização de sindicatos. Os sindicatos e seus observadores tinham consciência da potencialidade da nossa indústria em termos de novos participantes. Mas, mesmo perante o declínio da sindicalização nas últimas décadas – correspondendo atualmente ao nível mais baixo dos últimos 100 anos – as organizações sindicais revelaram-se incapazes de organizar iniciativas de sindicalização direcionadas à restauração e ao comércio a uma escala nacional.

O SEIU indicou o caminho. Em Chicago, a FF15 foi apoiada pelas secções locais da SEIU e por outros grupos comunitários defensores dos direitos dos trabalhadores. Ao invés de se focar numa única loja ou numa cadeia particular, a FF15 adotou uma posição mais metropolitana, organizando todos os trabalhadores da restauração e do comércio num só sindicato. Caso a campanha tivesse sido desenvolvida loja por loja, ter-se-ia permitido aos patrões isolarem-nos.

A organização metropolitana produziu resultados tangíveis. Depois da greve de dia 24 de abril, os organizadores da campanha em Chicago perguntaram aos trabalhadores se estariam interessados em entrar num autocarro e passar 5 horas em viagem até St. Louis ou Milwaukee, com o objetivo de prestar solidariedade aos trabalhadores, com greve marcada para a semana seguinte. As mãos ergueram-se. Algumas pessoas lamentaram ter turnos marcados para aquele dia. Na frente da sala, um trabalhador afroamericano de meia-idade, empregado na McDonald´s, levantou-se e afirmou: “Vamos entrar de novo em greve. Assim, podemos todos ir”.

Na reunião seguinte, uma mulher levantou-se e relatou como o seu patrão a havia sujeitado a insultos xenófobos, ameaçando despedi-la por ter faltado ao trabalho durante a sua hospitalização. Um dos organizadores perguntou se havia algum interessado em participar num comité que a acompanhasse ao trabalho, de modo a garantir que o seu patrão não a despedisse. “Apenas necessitamos de um par de pessoas”, acrescentou. Porém, quase quinze mãos surgiram no ar. Toda a gente queria juntar-se à sua camarada sindical.

Na minha loja, quando enfrentei uma ação disciplinar por ter violado a política de atendimento contra o qual nos estávamos a organizar, exigi representação sindical na reunião disciplinar, encontrando-se os meus colegas preparados a agir caso me tentassem despedir. A administração recuou e a reunião nunca chegou a ter lugar. Quando o trabalhador da Whole Foods de uma outra loja foi suspenso após ter feito greve (devido a um incidente que ocorreu duas semanas antes da greve sem qualquer ação disciplinar à altura), começamos a organizar-nos em defesa do seu emprego, tendo ela sido reintegrada e o seu salário restituído.

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O ligeiro sabor das vitórias conseguidas através da luta transformou o modo como as pessoas se encaram a si próprias e ao seu poder no trabalho. Isto alterou as nossas relações com os colegas e fortaleceu a crença de que muito mais é possível. No entanto, alguns ativistas sindicais e de esquerda demonstram preocupações crescentes com o potencial dos movimentos e as limitações da sua estratégia – em particular, talvez, em relação à história da SEIU, feita da assinatura de contratos capitulares, de acordos com o patronato que diminuem os empregos disponíveis e, mais recentemente, nos conflitos em torno da questão da saúde na Califórnia. Outros estão preocupados com o facto dos trabalhadores não deterem o controlo da situação. Outros ainda expressam alguma apreensão relativamente ao facto de a FF15 constituir mais uma campanha de relações públicas do que uma verdadeira dinâmica organizativa.

O comprometimento e envolvimento da SEIU nesta campanha revelaram-se indispensáveis em termos dos recursos organizacionais oferecidos, da proteção legal e dos serviços aos quais não teríamos acesso de outra forma, e da relação direta com o movimento sindical mais lato e com os grupos comunitários. Por mais que o SEIU tenha cometido erros no passado – bem reais e que devem ser considerados – ele merece algum crédito por ter conduzido campanhas ousadas. Isto, enquanto muitos outros sindicatos estão em retirada ou a fingir de mortos perante leis de trabalho e outro tipo de legislação e campanha antissindicais.

A direção do SEIU está a apelar ao contínuo e escalado recurso a greves, ocupações e ação direta enquanto meios de resolução dos problemas dos trabalhadores. Eles encorajam os trabalhadores a organizarem-se nos locais de trabalhos. Eles confrontam as questões do racismo e do assédio sexual. Tal representa, sem sombra de dúvidas, algo de positivo, capaz de ajudar na revitalização e transformação do movimento dos trabalhadores.

Existe, certamente, um aspeto do movimento mais diretamente voltado para as relações públicas. No entanto, a secundarização de uma campanha com base neste momento é demasiado cínica. A agressiva campanha mediática desenvolvida pelo sindicato levou a luta a locais onde os organizadores nunca haviam estado, inclusivamente ao Sul e a áreas rurais. Ela tornou a nossa luta, e muitas outras lutas em todo o país, bem conhecidas entre o público mais mainstream. A «campanha de relações públicas» não funciona de forma isolada, mas ligada a um projeto real de construção do movimento.

Estaremos perante uma campanha gerida pelos próprios trabalhadores, os quais a conceberam e a conduziram por si sós? Ainda não. Mas é graças à participação neste movimento que, pela primeira vez na vida, os trabalhadores estão a tornar-se dirigentes sindicais.

No contexto de uma crise económica que dura há cinco anos, o SEIU abriu um espaço. Este poderá ter potencialidades bem para lá do imaginado pelos organizadores e pelos próprios trabalhadores. A campanha pode ir para lá da contenção ou do modelo com que o sindicato a iniciou. A FF15 é um movimento social sindical ainda em embrião, contendo em si o potencial de clarificar as questões sobre luta de classes levantadas pelo Occupy. Poderá voltar a ligar as lutas nos locais de trabalho às conduzidas nas comunidades. Poderá impulsionar um maior poder dos trabalhadores nas empresas, mas igualmente revindicar uma maior proteção de sindicatos e trabalhadores por parte das instituições de governo.

Os mais radicais estão numa posição que lhes permite construir este movimento através da recriação daquela que é tradição do sindicalismo revolucionário. Podemos, e já o fizemos, desempenhar um papel importante na formação desta campanha a partir da base – em Chicago, por exemplo, ajudámos a iniciar uma convenção de mulheres e concebemos e realizámos cursos de trabalhadores em torno da organização e da defesa face à retaliação dos patrões.

A Esquerda necessita de ir para lá da mera conceptualização de sindicatos como o SEIU como monólitos incapazes de mudança. Mudá-los é difícil, mas não impossível. A raiva contra as traições e a burocracia de um sindicalismo mais empresarial não nos deve levar a encarar os sindicatos como organizações completamente e inevitavelmente divorciadas dos seus membros. Ao invés, deverá tornar evidente a necessidade de organizar os novos trabalhadores e reconstruir os sindicatos desde baixo.

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Não obstante a atenção que ganhou, este movimento ainda se encontra na sua infância. Deve ser construído com base em fortes redes sociais no trabalho e nas comunidades. Quanto mais revolucionários envolvidos no projeto, mais forte ele será. Este verão entrámos em greve por medidas bastante concretas; mas também em defesa de dignidade, respeito e poder. O nosso movimento tem de se constituir de forma concreta, exigindo o tangível e preparando o terreno para uma nova geração de militantes sindicais. Porque a militância funciona. Os meus patrões não me assustam mais caso resolva entrar em greve de novo. Após a greve consegui um aumento – e mais de uma dúzia de colegas a perguntarem-me como aderir ao sindicato.

Sobre o autor

Trish Kahle é um estudante de graduação em história na Universidade de Chicago e membro do Comitê Organizador dos Trabalhadores de Chicago.

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