21 de agosto de 2013

Uma nota de suicídio para Trotsky que exibia paixões políticas que não devemos esquecer

Homens como Adolf Joffe não poderiam permanecer em silêncio e se submeter a políticas e práticas stalinistas - e criticou Trotsky para fazê-lo

Tariq Ali


Joffe censurou Trotsky: “Muitas vezes você renunciou à sua posição correta em favor de um acordo, um compromisso, cujo valor você superestimou.” Fotografia: Corbis

Há pouco tempo atrás Lucio Magri, um dos mais respeitados intelectuais de esquerda em toda a Itália, voou para a Suíça, entrou em uma clínica e bebeu de sua cicuta fatal. No seu caso isso significou engolir uma pílula mortal. Por mais de alguns dias a Itália esteve em choque. De repente, Magri estava por toda parte. O parlamento italiano observou um minuto de silêncio, o comentário jornalístico foi amplamente simpático, mas, dentre os seus amigos mais próximos, houve genuíno mal-estar.

Sua esposa, que morrera após uma longa doença, dois anos antes, desencorajara Magri de vestir o terno de madeira, insistindo em que ele terminasse seu livro sobre o destino do comunismo italiano. Com O Alfaiate de Ulm concluído e publicado, ele decidiu dizer adeus à vida. A perda de sua esposa foi o gatilho, mas havia outras razões por detrás. Ele não sentia-se mais contemporâneo de seu próprio tempo.

O comunismo italiano e aqueles à sua esquerda, eles sim, haviam cometido suicídio político. Uma camarilha financeira governava o país, com o apoio incondicional de um octogenário presidente ex-comunista, a intelligentsia de esquerda entrara em colapso – então, qual era o sentido em seguir vivo?

A maioria de seus amigos não ficaram convencidos – até mesmo sentiram raiva. Eles tentaram falar com ele sobre isso, mas Magri não se abalou. “Ser verdadeiro, simplesmente verdadeiro”, Stendhal escreveu uma vez, “é a única coisa que importa.” Para Magri, a verdade significava dar cabo da própria vida. Ele não foi nem o primeiro nem o último a sair de cena desta forma.

Isto me lembrou um pequeno panfleto que eu tinha lido quatro décadas atrás, As Últimas Palavras de Adolf Abramovich Joffe (editado pelo Lanka Sama Samaja, no Ceilão, em 1950). Era um bilhete suicida de 16 de novembro de 1927, endereçado a Leon Trotsky. Depois de concluir o bilhete, Joffe, um dos mais confiáveis ​​dos diplomatas soviéticos, pressionou a pistola à própria têmpora e apertou o gatilho. O que me impressionara à época não foi tanto o suicídio em si, mas as qualidades humanas demonstradas, visíveis logo nos primeiros parágrafos: “Caro Liev Davidovich: Por toda a minha vida eu acreditei que o homem político deve saber quando sair de cena no momento certo, como um ator deixa o palco, e que é melhor ir mais cedo do que tarde.”

“Por mais de 30 anos eu segui a filosofia de que a vida humana só tem sentido na medida em que, e enquanto, for vivida a serviço de algo infinito. E, para nós, a humanidade é o infinito.”

“O resto é finito, e trabalhar para o resto é, portanto, sem sentido. Mesmo que a humanidade mesma possa vir a conhecer o seu próprio fim, o mesmo advirá em um tão remoto futuro que, para nós, a humanidade pode ser considerada enquanto um infinito absoluto. É é nisto, e tão-somente nisto, em que eu sempre encontrei o sentido maior de minha vida.”

“E agora, debruçando o olhar para trás, sobre o meu passado, dos quais 27 anos foram vividos nas fileiras do nosso partido, parece-me que tenho o direito de dizer que durante toda a minha existência consciente eu tenho sido fiel a esta filosofia de vida. Eu vivi de acordo com este sentido vital: trabalhar e lutar para o Bem da humanidade. Eu creio que tenho o direito de dizer que não há um dia de minha vida que tenha sido sem sentido. Mas agora, ao que parece, chegou o momento em que a minha vida perdeu todo significado e, em consequência, sinto-me obrigado a abandoná-la, e levá-la a seu próprio fim.”

Uma razão pela qual Joffe – um médico por formação – tinha deixado o palco era sua doença. Seguindo as instruções de Stalin, os médicos do Kremlin recusaram-se a tratá-lo e o Politburo se recusou a sancionar a verba necessária para que fosse ao estrangeiro. Por quê? Porque naqueles tempos caóticos e desconcertantes Joffe foi um dissidente, um dos principais membros da Oposição de Esquerda, um grupo da velha guarda bolchevique-leninista – liderado por Trotsky, Zinoviev e Kamenev – que se uniu depois da morte de Lenin para combater as políticas e práticas stalinistas. Eles foram manipulados, derrotados e expulsos da direção e, em seguida, do próprio partido. Repelidos pela fúria de facção desencadeada contra eles, Joffe, ao contrário de muitos outros, recusou-se a olhar para o lado e seguir em frente. Para homens como ele o silêncio nunca foi uma opção. Era sinônimo de submissão, e a integridade da vida interior de alguém como ele não poderia permanecer imune às violentas tempestades lá de fora.

Joffe tinha visto como a Oposição de Esquerda fez negociar, aceitar concessões e capitular à decisão majoritária do partido, certa ou errada. Trotsky não tinha, até aquele momento, acatado à ideia avançada por alguns de seus partidários: uma ruptura total com a facção de Stalin e o anúncio de um novo partido. O oposicionista Karl Radek escreveu em uma carta a seus camaradas que na realidade o que tinham feito era ter se limitado a escolher “entre duas formas de suicídio político”: ou ser politicamente isolado do partido ou capitular e voltar a entrar nos termos de Stalin. Esta última seria, mais tarde, a própria escolha de Radek, e outros.

A carta de Joffe reprovava Trotsky, sobretudo, por seu conciliacionismo:

“Mas você muitas vezes renunciou a sua posição correta em favor de um acordo, uma concessão, cujo valor fora superestimado. Isso foi errado [...] não tenha medo hoje se certas pessoas te abandonarem, e especialmente se muitos não vierem a assumir as posições corretas a seu lado tão rapidamente quanto desejaríamos. Você está do lado certo da história, mas a certeza da vitória de sua verdade reside precisamente em uma estrita intransigência, na rigidez mais austera, no repúdio a qualquer concessão, exatamente como sempre foi o segredo mais íntimo das vitórias de Ilich [Lenin] ... Eu sempre quis dizer isso a você, mas só fui impelido a isso agora, no momento preciso de dizer adeus ao mundo...”.

No mundo de hoje as paixões políticas – e as generosas pulsões – reveladas na Carta de Joffe lêem-se como se fossem escritas desde uma submersa Atlântida. Mas é parte de uma história que dominou o século anterior, e, quando nos aproximamos do Centenário da Revolução Russa (1917-2017), esta merece ser lembrada. Sua viúva – Maria Joffe – sobreviveu aos campos, e depois da morte de Stalin, deixou a União Soviética. Mudou-se para Israel. Seu livro, Uma Longa Noite [A Tale of Truth], continua a ser uma das muitas memórias afetivas desta era.

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