29 de junho de 2013

Socializar a Big Pharma

Manter o setor farmacêutico na esfera privada representa um risco significativo à saúde pública. Uma solução é a nacionalização completa.

Leigh Phillips


Cornell University Catherwood Library, International Ladies Garment Workers Union

Tradução / A indústria farmacêutica, assim como as petroleiras e os fabricantes de armas, não é muito bem vista no imaginário público.

Há boas razões para isso. Há uma crescente conscientização sobre um conflito de interesses inerente ao teste de novos medicamentos pelas empresas que os fabricam - como Pfizer, Merck e Eli Lilly - e um fluxo constante de relatos de jornalistas, pesquisadores e médicos sobre julgamentos deliberadamente desonestos, resultados desfavoráveis sendo escondidos e revistas acadêmicas sendo compradas.

No entanto, o maior crime das principais empresas farmacêuticas privadas do mundo não é aquilo que elas fazem, mas o que elas não fazem. Na atual guerra contra os micróbios e as infecções, essas empresas abandonaram seus postos no momento mais crítico: quando o inimigo está se preparando para seu ataque mais feroz em gerações. Enquanto essas empresas continuam se esquivando de seus deveres – na prática já tendo abandonado a pesquisa de novos antibióticos por cerca de trinta anos -, altos funcionários da área de saúde pública vêm alertando que o mundo poderá em breve retornar à era pré-antibiótica, uma época miserável e terrível, de que poucas pessoas vivas ainda se lembram.

Relatórios do mercado, periódicos de medicina, análises de organizações filantrópicas, estudos governamentais e avaliações do próprio setor farmacêutico preferem uma abordagem mais delicada, atribuindo a ameaça aos “incentivos de mercado insuficientes“. Minha solução é um pouco mais elegante: a socialização de toda a indústria.

Opções de políticas como novas regulações e uma supervisão mais apurada do setor, podem ter sucesso em moderar os malefícios das grandes farmacêuticas em algumas áreas, como em alguns tipos de pesquisas. No entanto, na Guerra contra os Micróbios, essas medidas são radicalmente insuficientes ou de nenhuma utilidade. Existem algumas medidas preventivas de emergência que hospitais e criadores de gado podem adotar para retardar o avanço do inimigo, mas essas tentativas não podem fazer mais do que adiar a desgraça iminente. Socializar o desenvolvimento de medicamentos é a única maneira de resolver esse problema.

Uma ameaça comparável às mudanças climáticas
Alguns anos atrás, o diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, Thomas Frieden, alertou as autoridades sobre a “janela de oportunidade limitada” para lidar com o “pesadelo” representado pelo surgimento de uma família de bactérias altamente resistentes ao que costuma ser nossa última linha de defesa antibiótica: o conjunto de medicamentos conhecidos como carbapenêmicos. Poucos meses antes, a principal responsável pelos serviços médicos no Reino Unido, Sally Davies, usou uma linguagem semelhante para descrever um futuro “cenário apocalíptico” dentro de vinte anos, quando as pessoas morrerão de infecções que são atualmente consideradas triviais, “porque teremos ficado sem antibióticos aos quais recorrer.”

Davies descreveu como o fenômeno “representa uma ameaça catastrófica” para a humanidade, semelhante às mudanças climáticas, e imaginou um cenário nas próximas décadas em que “nos encontraremos em um sistema de saúde não muito diferente daquele do início do século 19”, onde qualquer um nós poderíamos ir ao hospital para uma pequena cirurgia e morrer de uma infecção comum que já não poderia ser tratada. Intervenções essenciais como transplantes de órgãos, quimioterapia, substituição de ossos no quadril e cuidados com bebês prematuros se tornariam impossíveis.

Por gerações, nos acostumamos àquilo que, francamente, são feitos sobre-humanos da medicina, os encarando como algo sem excepcionalidade e vagamente duradouros, quando na verdade eles dependem da premissa de que podemos prevenir as infecções microbianas. Os antibióticos revolucionaram os cuidados de saúde: o tratamento de traumas, ataques cardíacos, derrames e outras doenças que requerem cuidados extensivos com cateteres, alimentação intravenosa e ventilação mecânica não podem prosseguir sem acesso a medicamentos antimicrobianos. À medida que a população envelhece, a demanda por esse tipo de terapia intensiva apenas crescerá.

Então, como era a época pré-antibiótica? Havia 30% de mortalidade por pneumonia para aqueles que não faziam cirurgia. A mortalidade por apendicite ou por um intestino rompido era de 100%. Antes de Alexander Fleming acidentalmente descobrir o primeiro antibiótico, a penicilina, os hospitais estavam repletos de pessoas que contraíam intoxicação no sangue por meio de cortes e arranhões. Esses arranhões frequentemente se transformavam em infecções que colocavam a vida em risco. Recorrer a uma amputação ou a cirurgia como respostas médicas comuns para remover áreas infectadas não é um tratamento agradável ou preferível, mas essas foram as únicas opções para os médicos do adolescente David Ricci, de dezenove anos, de Seattle, após um acidente de trem na Índia há alguns anos. Ricci sofreu infecções por bactérias resistentes a medicamentos que nem mesmo os antibióticos de último recurso, altamente tóxicos, foram capazes de tratar.

Nós nos esquecemos o quanto as doenças infecciosas costumavam ser comuns e mortais. Nós assumimos que os antibióticos sempre estariam por aí, mas dificilmente poderíamos nos culpar por essa complacência. O general cirurgião estadunidense William H. Stewart é famoso por ter declarado que “é hora de fechar o livro sobre as doenças infecciosas e declarar como vencida a guerra contra a pestilência”. Na década de 1980, os casos de tuberculose – a primeira doença infecciosa conhecida pela humanidade e um dos nossos inimigos mais mortais, que matou 1,4 milhão em 2011 – havia caído para taxas tão baixas que os formuladores de políticas freqüentemente falavam na erradicação da doença.

As taxas de novas infecções e de mortalidade estão caindo, mas essa frágil vitória é ofuscada pelo surgimento da tuberculose multirresistente, uma forma que não é suscetível aos quatro antibióticos padrão e a tuberculose extensivamente resistente a drogas, cepas da doença que não são suscetíveis nem aos medicamentos de segunda linha. Para a tuberculose sensível aos aos medicamentos comuns, o tratamento geralmente dura seis meses, mas para a tuberculose multirresistente, os tratamentos levam cerca de vinte meses e envolvem antibióticos de amplo espectro que são muito mais tóxicos e menos eficazes.

Os antibióticos carbapenêmicos são drogas de último recurso usadas quando tudo mais falha. Enterobacteriaceae resistentes aos carbapenêmicos foram identificados pela primeira vez nos EUA em 1996 e, desde então, se espalharam pelo mundo. Até 2013, 42 dos 50 estados nos EUA haviam confirmado casos de infecções por essas bactérias. Elas são assustadoras por três razões, como apontou Frieden: “Primeiro, elas são resistentes a todos ou a quase todos os antibióticos. Segundo, elas têm altas taxas de mortalidade: matam até metade das pessoas que sofrem de infecções graves. E terceiro, elas podem espalhar sua resistência a outras bactérias. Assim, uma forma de bactéria resistente ao carbapenem, por exemplo, uma Klebsiella, pode espalhar os genes que destroem nossos últimos antibióticos para outras bactérias, como a E. coli, e tornar a E. coli resistente a esses antibióticos também. ”

Atualmente, 80% dos casos de gonorreia são resistentes à tetraciclina – um antibiótico de linha de frente – e vários países, incluindo Austrália, França, Japão, Noruega, Suécia e Reino Unido, estão relatando casos de resistência aos antibióticos cefalosporinos, que é a última opção de tratamento disponível para essa DST.

A resistência aos medicamentos está sendo relatada em todos os tipos de doenças infecciosas. Uma pesquisa recente constatou que 60% dos especialistas em doenças infecciosas haviam encontrado infecções resistentes a todos os antibióticos.

Como chegamos nesse ponto? A Organização Mundial da Saúde classifica a resistência antimicrobiana como uma das três maiores ameaças à saúde humana. Um artigo do Washington Post de Brian Valstag, de 2012, sobre a escassez de novos antibióticos, coloca a questão de maneira mais concisa: “É um caso em que a evolução que está superando a velocidade do capitalismo“.

Eterna corrida armamentista
Quando alguém precisa tomar um antibióticos, isso vai ajudar a matar as bactérias, mas inevitavelmente haverá um pequeno número de bactérias com mutações aleatórias que as tornam resistentes aos medicamentos. Isso é chamado de pressão de seleção. Essas linhagens mais resistentes dos micróbios sobrevivem e se multiplicam, produzindo novas gerações com as mesmas mutações. De fato, é apenas a evolução, só que acontecendo em um ritmo vertiginoso. Criamos uma categoria de antibióticos, os micróbios desenvolvem resistência, desenvolvemos novos antibióticos, esses desenvolvem resistência e assim por diante. É uma corrida armamentista. Nós nunca derrotamos de verdade a resistência microbiana; só podemos acompanhá-la por meio de um incessante e perpétuo desenvolvimento de novas classes de antibióticos.

Porém, se pararmos de desenvolver esses antibióticos, haverá enormes consequências para a saúde pública.

As empresas farmacêuticas produziram treze famílias diferentes de antibióticos entre 1945 e 1968. Esses eram os frutos nos galhos mais baixos – os mais fáceis de desenvolver. Desde então, apenas duas novas famílias de antibióticos foram colocadas em operação. Na década de 1980, as empresas farmacêuticas haviam praticamente parado de desenvolvê-las.

A razão pela qual as grandes farmacêuticas abandonaram esse jogo é que leva anos para desenvolver qualquer novo medicamento e custa entre US $ 500 milhões e US $ 1 bilhão por agente aprovado pelos órgãos regulatórios, sem mencionar que os antibióticos proporcionam um retorno de investimento muito menor do que outros tipos de medicamentos. Ao contrário dos medicamentos que milhões de pessoas precisam tomar pelo resto da vida para combater males crônicos, como doenças cardíacas – medicamentos que suprimem os sintomas, mas que não curam – os antibióticos geralmente são tomados por algumas semanas ou meses, no máximo. Isso torna os antibióticos desfavoráveis para o capitalismo. Como colocou um artigo de ‘chamado às armas’ pela Sociedade de Doenças Infecciosas da América, em 2008: “[Antibióticos] são menos desejáveis para empresas farmacêuticas e capitalistas de risco porque são mais bem-sucedidos do que outros medicamentos”. É a terapia de longo prazo – e não as curas – aquilo que direciona os interesses no desenvolvimento de medicamentos, concluiu o artigo.

Muitas das grandes farmacêuticas fecharam seus centros de pesquisa. Apenas 4 das 12 maiores companhias globais continuam envolvidas em pesquisas com antibióticos. [2] Essas demissões dificultam a solução da situação. Mesmo que houvesse vontade política, levaria tempo para reconstruir a força de trabalho científica altamente qualificada, perdida nas últimas duas décadas, enquanto as empresas abandonavam continuamente o desenvolvimento de medicamentos antibacterianos. “[Pedimos] ações imediatas em nível de base pela comunidade médica para tentar abordar o aprofundamento da crise de resistência antimicrobiana e, em particular, a necessidade de revitalizar significativamente a pesquisa e desenvolvimento de antibióticos”. A resistência aos medicamentos se acelera quando os pacientes não completam o tratamento com um antibiótico. O desmantelamento da infraestrutura de saúde pública e dos sistemas de apoio social nos países mais ricos (e a ausência e fragilidade nos mesmos nos mais pobres) aumentam a possibilidade de os pacientes abandonarem seus medicamentos no meio do regime prescrito, pois há menos métodos para monitorar a adesão.

A luta antibiótica está intimamente ligada à posição geográfica, ao status de classe e à riqueza de cada um. Microrganismos resistentes podem emergir e se espalhar em um ambiente onde antimicrobianos de baixa qualidade são usados. Não é preciso muito para imaginar situações em que pessoas com renda limitada ou hospitais e clínicas sem dinheiro, acossadas por planos de austeridade podem acabar recorrendo a opções mais baratas. A situação é agravada pelo descarte fácil e inadequado de antibióticos vendidos nas farmácias, principalmente nos países em desenvolvimento, mas também no Leste Europeu e na antiga União Soviética.

Assim, o que é que poderia funcionar?

Implorando e subornando as grandes farmacêuticas
No prazo imediato, os especialistas estão exigindo que as autoridades mudem para uma política de guerra, com o racionamento do uso dos antibióticos existentes; uma maior vigilância, redes de rastreamento e coordenação internacional de esforços são imperativos. Um escritório federal dedicado à coordenação de esforços para combater a resistência antimicrobiana e um plano estratégico nacional de pesquisa são vitais. Hospitais, clínicas e casas de repouso podem aumentar adesão a precauções de controle de infecções, como limpeza e lavagem das mãos de maneira mais intensa, maior uso de roupas e luvas, agrupamento de pacientes resistentes a medicamentos e reserva de determinados equipamentos somente para esses pacientes.

Porém, novamente, essas táticas podem apenas retardar o avanço galopante do inimigo. Elas afetam a taxa de propagação da resistência aos medicamentos, mas não enfrentam o próprio fenômeno da resistência aos medicamentos. Esses esforços são importantes, mas apenas porque nos dão tempo.

Fundamentalmente, o que precisamos para combater os micróbios – para passarmos da defesa para o ataque – é desenvolver novas classes de antibióticos de maneira consistente: uma meta que a maioria dos formuladores de políticas hoje já reconhece. Mas tirar essa tarefa das mãos do setor privado não está sendo considerado por ninguém. Em vez disso, as propostas de políticas vindo de instituições como a IDSA, a OMS e a União Européia significam no máximo implorar e subornar as empresas farmacêuticas para ver se assim elas movem um dedo.

Nos EUA, as opções sendo consideradas incluem o fornecimento de créditos fiscais para medicamentos criticamente necessários e subsídios para o desenvolvimento prioritário de antibióticos; compromissos de compra antecipada financiados nacionalmente ou outras “promessas de mercado”; ‘vouchers transferíveis de revisão prioritária’, que dão a outro produto da empresa (à sua escolha), o direito de ter acelerada a sua revisão pelo FDA em troca da obtenção da aprovação do FDA para um antibiótico prioritário; e a oferta de prolongamento de patente ou da exclusividade de mercado para 25 ou 30 anos para novos medicamentos considerados verdadeiramente inovadores. A última opção tem provocado uma controvérsia compreensível por sua ameaça à produção de medicamentos genéricos e à acessibilidade de antibióticos baratos no mundo em desenvolvimento. As “extensões de patentes curinga” concedem às empresas extensões de patentes de outro medicamento de seis meses para dois anos. Esse é o incentivo que as empresas farmacêuticas afirmam ser mais provável de tirá-las de sua letargia, e também aquele que tem provocado a maior controvérsia.

Ainda estamos permitindo que essas empresas escolham os produtos que gerem mais dinheiro para seus acionistas, como Viagra ou Lipitor, enquanto que, através de incentivos fiscais, subsídios ou parcerias público-privadas, pagamos a elas para que pesquisem e desenvolvam produtos que vão lhes render milhões, ao invés de bilhões. O público fica com o risco, e as empresas com o lucro. Se essas empresas fossem trazidas para o setor público sob a rubrica de Institutos Nacionais de Saúde ou de algum órgão autônomo semelhante, o dinheiro ganho com os medicamentos rentáveis poderia subsidiar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos menos rentáveis, por sua vez, permitindo a liberação de mais dinheiro para ser gasto em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas. Colocadas no setor público, as barreiras à pesquisa farmacêutica aberta poderiam ser dissolvidas, o que aceleraria os resultados e limitaria a duplicação de esforços.

Descobrir futuras gerações de antibióticos – supondo que eles estejam por aí para serem descobertos – será uma tarefa diabolicamente difícil. Mas esse é mais um motivo para trazer o setor para a esfera pública: maiores dificuldades significam custos maiores, mesmo que em troca das mesmas oportunidades de lucro risíveis. Existem estratégias completamente novas que evitam por completo a corrida armamentista por antibióticos, mas elas são altamente incertas, arriscadas e exigem anos de pesquisa básica cara, o que exige uma intensa intervenção pública.

Houve um tempo, antes da doença infecciosa especialmente virulenta conhecida como neoliberalismo, quando Washington estava muito mais aberta à intervenção direta do governo nesse setor. Em tempos de guerra, os líderes não confiavam que o setor privado estivesse à altura para essa tarefa; porém, hoje estamos em guerra contra um inimigo invisível mais cruel do que qualquer nazista, e ao setor privado não falta apenas disposição – ele simplesmente abandonou seu posto. Há evidências esmagadoras de que as grandes farmacêuticas são um deserto de inovação. Enquanto isso, a suspeita popular em relação a essas empresas tem jogado milhões de pessoas nos braços de charlatanismos de medicina alternativa. Se todo o tempo e energia focados em remédios “naturais” fossem gastos coletivamente tentando colocar as grandes empresas farmacêuticas sob o jugo do controle democrático, já estaríamos com meio caminho andado.

Por muito tempo, as críticas mais comuns dos setores progressistas a essas empresas têm sido sobre como sua busca por lucros prejudica os pobres dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, que não podem comprar seus medicamentos. Isso é verdade até, até onde essa crítica alcança, mas ela não aborda a escala do problema. O setor farmacêutico privado é uma ameaça à saúde pública e precisa ser eliminado por completo.

Sobre o autor
Leigh Phillips é articulista científico e jornalista especializado em questões sobre a União Europeia. É autor de "Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts" ("Ecologia da austeridade e os viciados em pornô do colapso") e co-autor de República Democrática do Walmart (Autonomia Literária 2020).

24 de junho de 2013

O que há de novo nas ruas

Wolfgang Leo Maar

Folha de S.Paulo

O que importa não são as velhas coisas boas de sempre, mas as coisas novas e ruins, dizia Bertolt Brecht conforme nos lembra Walter Benjamin. Pois bem: há uma coisa nova na realidade brasileira; mas é uma coisa nova e ruim, perigosa.

A novidade não é a mobilização popular --essa é uma dessas coisas "boas de sempre", não é uma novidade, e, embora equivocadamente fora da prioridade política de quem deveria priorizá-la (o PT, por exemplo) continuou ocorrendo, ainda que reduzida, por meio de movimentos sociais e sindicatos.

A novidade é a visão conservadora despertada para a mobilização popular. Os interesses populares permanecem bastante distantes das ruas. É ingênuo afirmar que "a direita é contrária à mobilização popular", quem vai à rua é a esquerda.
Como questionamento, basta, é claro, lembrarmos do fascismo e do nazismo, mobilizações populares que começaram exatamente assim, como lembrava meu pai, que saiu da Alemanha de Weimar.

Mas não precisamos recuar tanto: com os atentados do 11 de setembro de 2001, os EUA foram mobilizados para um ambiente de autoritarismo e violência que gerou a segunda eleição de Bush e as guerras do Iraque e do Afeganistão. Hoje basta haver um pequeníssimo acento popular em uma medida governamental para que se erga a mobilização autoritária --vide atentados de Boston--, que só favorece as soluções não políticas, sustentadas na violência e repressão. Sempre colhem algo os pescadores de águas turvas...

A mobilização popular mudou de um dia para outro: após ser "produzida" por comentaristas antes contrários, passou a ser acompanhada por ativistas de direita, que reforçaram a apresentação de vandalismos --que foram reais-- para que assim se possam gerar condições para desenvolver um ambiente favorável à repressão e à violência, contrário a partidos, sindicatos e instituições e às suas incipientes mas existentes práticas democráticas. É assim que a direita cria condições para que sua "política" se torne "inevitável"...

Obviamente, não se trata de criticar as mobilizações populares. Ao contrário, elas são uma inflexão a ser apreendida como parte de uma construção de forças em direção a transformações necessárias. Nesse sentido, os eventos despertaram aqueles que, no governo, deixaram de lado a via da mobilização para privilegiar a elaboração de maiorias a partir de negociações de cúpula.

Afinal, essa política calculista não deu certo. Porém, a questão não reside simplesmente em lembrar, como faz um comentarista, que a tarifa zero foi outrora uma bandeira partidária. O que importa é o contrário disso: por que essa reivindicação foi abandonada? Porque não se conseguiram condições para implementá-la! Esse é o principal problema do esquerdismo: pensar a política abstraindo de suas condições.

Marx já ensinara que "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco", e não vice-versa. Ou seja: é preciso atentar às condições em que se gera a realidade, em vez de meramente enunciar políticas, que não são utópicas "" essas são bem-vindas, pois embora seu lugar não exista agora, o é potencialmente-- mas atópicas. Não se referem a ideias fora do lugar, mas a ideias sem lugar na história passada, presente ou futura.

Sobre o autor

Wolfgang Leo Maar, 68, é professor titular de ética e filosofia política da Universidade Federal de São Carlos

21 de junho de 2013

Capitalismo, democracia e eleições

Richard D. Wolff

Monthly Review

Capitalismo e democracia real nunca tiveram muito a ver um com o outro. Em contrapartida, a votação formal em eleições tem funcionado lindamente para o capitalismo. Afinal de contas, eleições raramente puseram em causa, muito menos decidiram, a questão do capitalismo: se os eleitores preferem isto ou um sistema econômico alternativo. Os capitalistas têm mantido com êxito as eleições centradas noutro lugar, sobre questões e opções não sistêmicas. Este êxito lhes permitiu em primeiro lugar igualar democracia a eleições e, a depois, celebrar eleições em países capitalistas como prova da sua democracia. Naturalmente, eleições imparciais foram e são permitidas apenas fora das empresas capitalistas. Eleições democráticas dentro delas - onde os empregados são maioria - nunca acontecem.

Democracia real significa que importantes decisões que afetam as vidas das pessoas são tomadas genuinamente e igualmente pelas pessoas afetadas. A organização capitalista das empresas portanto contradiz a democracia real. No interior das corporações que dominam o capitalismo moderno, uma minúscula minoria - os acionistas principais e os conselhos de administração que eles elegem - tomam decisões chave que afetam os que estão abaixo deles na hierarquia corporativa, os empregados. Aquela pequena minoria decide que produtos a corporação produzirá, que tecnologias serão utilizadas, onde ocorrerá a produção e como serão distribuídas as receitas líquidas da corporação. A maioria é afetada, muitas vezes profundamente, por todas essas decisões, mas não participa na elaboração delas.

Dentro das modernas corporações capitalistas típicas, a democracia real (assim como a eleitoral) está excluída. Sociedades que celebram o compromisso com a democracia e justificam políticas do governo (incluindo guerras) como promotoras da democracia também excluem a democracia dos seus lugares de trabalho. Esta contradição absoluta provoca graves problemas. Conscientemente ou inconscientemente, os trabalhadores percebem, sentem e exprimem insatisfações que refletem essa contradição.

Exemplo: os trabalhadores percebem o desrespeito que baixa das alturas do comando das corporações. Frequentemente sentem que suas capacidades e criatividades não são reconhecidas, não são utilizadas e/ou são desvalorizadas. Expressões de tais sentimentos incluem absenteísmo, tensões inter-pessoais e disfunções relacionadas com o trabalho (alcoolismo, insubordinação, furto, etc). A exclusão da democracia dos lugares de trabalho muitas vezes provoca ressentimentos dos trabalhadores e resistências que reduzem a produtividade e os lucros. As corporações desde há muito respondem com a contratação de múltiplas camadas de supervisores custosos no lugar de trabalho e proporcionando grandes orçamentos para eles. Aquelas despesas corporativas estão entre os custos que o capitalismo desperdiça: somas desviadas do investimento, do crescimento econômico, do progresso técnico e de outras utilizações sociais preferíveis.

As eleições fora do lugar de trabalho mantêm-se numa relação ambivalente com a exclusão de democracia real interna do capitalismo. Por um lado, eleições distraem o povo das suas inquietações conscientes e inconscientes com as condições de trabalho. As eleições centram-se, ao invés, em candidatos políticos, partidos e políticas alternativas em torno de questões diferentes do que capitalismo versus sistemas econômicos alternativas e diferentes também das suas respectivas condições de trabalho. Eis porque os apoiantes do capitalismo apreciam eleições. Eleições bem controladas não questionam, e muito menos ameaçam, o capitalismo. Por outro lado, elas sempre contém um risco, o potencial causar grandes problemas ao capitalismo.

Os trabalhadores a quem é negada democracia no emprego podem concluir que problemas tão cruciais como salários inadequados, segurança de emprego e benefícios e estão conscientes desta negação. Dada a enaltecida equivalência do capitalismo entre democracia e eleições, os trabalhadores podem voltar-se para eleições como um meio de responder à ausência de democracia no lugar de trabalho. Sabendo que eles incluem a maioria eleitoral, os trabalhadores podem encarar eleições como o meio para mudar as suas condições econômicas. A política eleitoral poderá tornar-se o seu caminho para desfazer as consequências de um sistema econômico capitalista. A maioria podia por em causa, numa decisão eleitoral, a escolha entre a organização capitalista e a democrática no local de trabalho. Os trabalhadores poderiam utilizar eleições fora das empresas para finalmente trazer eleições e democracia real para dentro delas. A política convencional deixa aquela possibilidade em aberto, um risco perpétuo para capitalistas ansiosos.

Dentre as soluções encontradas para este problema, capitalistas financiam candidatos e partidos nas campanhas eleitorais e entre elas. Em contrapartida, responsáveis eleitos apoiam desejos dos seus financiadores, especialmente quanto ao que é o que não é apresentado aos eleitores para decidir. Empresas capitalistas também financiam think tanks, programas acadêmicos, mass media e campanhas de relações públicas que moldam a opinião pública em favor do capitalismo. No último meio século emergiu ainda outra solução: manter o estado na defensiva não só ideologicamente como também financeiramente por meio de déficits orçamentais e dívidas.

Exemplo (obrigado a Doug Korty por este apontamento): os déficits totais do governo federal [dos EUA] de 1950 a 2009 foram de US$6,6 milhões de milhões (trillion). Durante aqueles anos, três presidentes republicanos (Bush1, Reagan e Bush 2) foram responsáveis por mais de 92% daqueles déficits. Todos os outros presidentes (Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon/Ford, Carter e Clinton) somados foram responsáveis por 12%. Os três presidentes republicanos felizes com défices foram os mais conservadores e subservientes aos principais interesses capitalistas. Todos eles aumentaram os gastos (principalmente para atividade militar e objectivos de contenção de crise) enquanto cortavam impostos (especialmente para corporações e os indivíduos mais ricos). Tais políticas obrigaram a enormes défices federais e a subidas rápidas da dívida nacional. Pelo seu enorme estímulo ao gasto e às guerras custosas não compensadas por aumentos de impostos, a administração Obama também incide em défices muito grandes e ascende a dívida nacional.

Seguem-se as previsíveis tempestades ideológicas: (1) déficits e dívidas federais foram definidos como os problemas urgentes; e (2) programas de austeridade para cortar despesas do governo eram a solução apropriada. Republicanos e democratas desempenharam os seus papéis previsíveis argumentando sobre o ritmo, dimensão e objetivos da austeridade. Todos os seus argumentos mantêm a questão do capitalismo fora da agenda para o debate popular e político apesar da crise do sistema.

Quando soluções convencionais fracassam e cada vez mais pessoas começam a questionar, desafiar e opor-se ao capitalismo, os capitalistas geralmente apoiam a polícia e a repressão militar. Em situações extrema, eles acabam com a democracia eleitoral por meio de um golpe militar, ditadura ou qualquer outro. Contudo, acabar com a democracia eleitoral habitualmente provoca ansiedade mesmo entre os capitalistas que a apoiam. A sua preocupação é de que o fim da democracia eleitoral provoque crítica social e oposição sistêmica que possa se expandir de modo a incluir um sistema de produção não democrático. Eles não desejam perder o benefício chave de eleições adequadamente controladas: distrair os trabalhadores afastando-os da questão do capitalismo em si. Tais eleições são o modo mais barato e menos perigoso para assegurar a distância que o capitalismo mantém entre ele próprio e a democracia real.

Sobre o autor
Richard D. Wolff é professor emérito da Universidade de Massachusetts-Amherst e professor visitante no Programa de Graduação em Assuntos Internacionais da New School University, Nova Yok. Autor de New Departures in Marxian Theory (Routledge, 2006) e do filme documentário Capitalism Hits the Fan.

13 de junho de 2013

Por que estamos nas ruas

Nina Cappello, Erica de Oliveira, Daniel Guimarães, Rafael Siqueira

Folha de S. Paulo

O modelo de transporte coletivo baseado em concessões para exploração privada e cobrança de tarifa está esgotado. E continuará em crise enquanto o deslocamento urbano seguir a lógica da mercadoria, oposta à noção de direito fundamental para todas e todos.

Essa lógica, cujo norte é o lucro, leva as empresas, com a conivência do poder público, a aumentar repetidamente as tarifas. O aumento faz com que mais usuários do sistema deixem de usá-lo, e, com menos passageiros, as empresas aplicam novos reajustes.

Isso é uma violência contra a maior parte da população, que como evidencia a matéria publicada ontem pelo portal UOL, chega a deixar de se alimentar para pagar a passagem. Calcula-se que são 37 milhões de brasileiros excluídos do sistema de transporte por não ter como pagar. Esse número, já defasado, não surgiu do nada: de 20 em 20 centavos, o transporte se tornou, de acordo com o IBGE, o terceiro maior gasto da família brasileira, retirando da população o direito de se locomover.

População que se desloca na maioria das vezes para trabalhar e que, no entanto, paga quase sozinha essa conta, sem a contribuição dos setores que verdadeiramente se beneficiam dos deslocamentos. Por isso defendemos a tarifa zero, que nada mais é do que uma forma indireta de bancar os custos do sistema, dividindo a conta entre todos, já que todos são beneficiados por ele.

Esse é o contexto que fez surgir o Movimento Passe Livre em diversas cidades do Brasil. Por isso há anos estamos empenhando lutas por melhorias e por outro paradigma de transporte coletivo. Neste momento, em que nos manifestamos em São Paulo pela revogação do aumento nas passagens, milhares protestam no Rio de Janeiro, além de Goiânia, onde a luta obteve vitória, assim como venceram os manifestantes de Porto Alegre há dois meses.

O impacto violento do aumento no bolso da população faz as manifestações extrapolarem os limites do próprio movimento. E as ações violentas da Polícia Militar, acirrando os ânimos e provocando os manifestantes, levaram os protestos a se transformar em uma revolta popular.


O prefeito Fernando Haddad, direto de Paris, ao lado do governador Geraldo Alckmin, exige que o movimento assuma uma responsabilidade que não nos cabe. Não somos nós os que assinam os contratos e determinamos os custos do transporte repassados aos mais pobres. Não somos nós que afirmamos que o aumento está abaixo da inflação sem considerar que, de 1994 para cá, com uma inflação acumulada em 332%, a tarifa deveria custar R$ 2,16 e o metrô, R$ 2,59.

Além disso, perguntamos: e os salários da maior parte da população, acompanharam a inflação?

A discrepância entre o custo do sistema e o quanto, como e quando se cobra por ele evidenciam que as decisões devem estar no campo político, não técnico. É uma questão de escolha: se nossa sociedade decidir que sim, o transporte é um direito e deve estar disponível a todos, sem distinção ou tarifa, então ela achará meios para tal. Isso parcialmente foi feito com a saúde e a educação. Mas sem transporte público, o cidadão vê seu acesso a essas áreas fundamentais limitado. Alguém acharia certo um aluno pagar uma tarifa qualquer antes de entrar em sala de aula? Ou para ser atendido em um posto de saúde?

Haddad não pode fugir de sua responsabilidade e se esconder atrás do bilhete mensal, proposta que beneficiará poucos usuários e aumentará em mais de 50% o subsídio que poderia ser revertido para reduzir a tarifa.

A demanda popular imediata é a revogação do aumento, e é nesses termos que qualquer diálogo deve ser estabelecido. A população já conquistou a revogação do aumento da tarifa em Natal, Porto Alegre e Goiânia. Falta São Paulo.

Sobre os autores

NINA CAPPELLO, 23, estudante de direito da USP, ERICA DE OLIVEIRA, 22, estudante de história da USP, DANIEL GUIMARÃES, 29, jornalista, e RAFAEL SIQUEIRA, 38, professor de música, são militantes do Movimento Passe Livre.

8 de junho de 2013

Demarcação já

A demarcação de terras indígenas deve mudar?

NÃO

Dalmo de Abreu Dallari

Folha de S.Paulo

A demarcação das áreas indígenas está expressamente prevista na Constituição e já foram há muito tempo estabelecidas as regras legais que devem ser observadas para esse fim.

A demarcação é extremamente importante para a efetivação da garantia dos direitos decorrentes da ocupação tradicional das terras pelos índios. Ela foi determinada pela Constituição de 1988, no artigo 67, no qual se diz que "a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição". E pelo artigo 20, inciso XI, ficou estabelecido que são bens da União "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios".

Assim, pois, considerando que a demarcação das áreas federais é função de caráter administrativo, inerente, portanto, às atribuições do Poder Executivo, é este que tem o poder e o dever de proceder à demarcação das áreas indígenas.

O procedimento para demarcação das áreas indígenas foi expressamente regulado pelo decreto nº 1.775 de 1996, não havendo necessidade de modificação dos critérios ali estabelecidos. Talvez sejam convenientes algumas mudanças sugeridas pela experiência, mas as atribuições fundamentais das demarcações devem ser mantidas, concentrando-se na Fundação Nacional do Índio (Funai) o comando dos processos demarcatórios.

São absurdas e contrárias à Constituição algumas tentativas de entregar a demarcação a órgãos constitucionalmente incompetentes e a outros absolutamente despreparados para a demarcação honesta.

Assim, por exemplo, está em curso no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional, a PEC 215, que, contrariando a Constituição e com evidente má-fé, pretende transferir para o Legislativo a função de demarcar as áreas indígenas.

É evidente o absurdo dessa proposição: um órgão do Poder Legislativo teria a incumbência de executar uma tarefa que é, obviamente, de natureza administrativa e que, evidentemente, está incluída nos encargos que a Constituição atribuiu ao Poder Executivo.

A par disso, assinale-se que a demarcação é um procedimento técnico, que no tocante às áreas indígenas exige conhecimentos especializados e, em alguns casos, equipamento tecnológico sofisticado.

Com efeito, a par das dificuldades que muitas vezes são encontradas por causa das peculiaridades dos locais a serem percorridos pelos demarcadores, existe a necessidade de conhecimentos especializados sobre os índios.

Diz a Constituição, no artigo 231, parágrafo 1º, que os índios ocuparão as terras para vários fins, incluindo as atividades produtivas e as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários à reprodução física e cultural da comunidade indígena, "segundo seus usos, costumes e tradições".

Com base nessas diretrizes, é feito, primeiro, o reconhecimento da ocupação da área pelos índios, o que implica, entre outros aspectos, a constatação dos limites da ocupação. Em seguida, com fundamento nesses dados, é feita a demarcação.

Assim, pois, é inaceitável a pretensão de entregar a demarcação ao Poder Legislativo ou a órgãos do Executivo absolutamente despreparados, que não têm familiaridade com as peculiaridades e tradições das comunidades indígenas e suas formas de ocupação das terras para satisfação de suas necessidades.

Não existe qualquer motivo sério e respeitável para tirar da Funai um encargo que é inerente às razões de sua existência, sob o pretexto de melhorar a regulamentação. O que falta é dar à Funai os recursos necessários para que ela possa cumprir sua tarefa. E nada impede que os legítimos interessados participem do processo de demarcação, que é público e aberto a colaborações de boa-fé e bem fundamentadas.

DALMO DE ABREU DALLARI, 81, é professor emérito da Faculdade de Direito da USP

4 de junho de 2013

Como destruir o futuro

Da crise dos mísseis cubanos ao frenesi dos combustíveis fósseis, os EUA pretendem vencer a corrida para o desastre

Noam Chomsky

The Guardian

Fotografia: Ralph Crane/Time & Life Pictures/Getty Image

O que o futuro trará? Uma postura razoável seria tentar olhar para a espécie humana de fora. Então imagine que você é um extraterrestre observador que está tentando desvendar o que acontece aqui ou, imagine que és um historiador daqui a 100 anos - assumindo que existam historiadores em 100 anos, o que não é óbvio - e você está olhando para o que acontece. Você veria algo impressionante.

Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade de nos destruirmos. Isso é verdade desde 1945. Agora está finalmente sendo reconhecido que existem mais processos de longo-prazo como a destruição ambiental liderando na mesma direção, talvez não à destruição total, mas ao menos à destruição da capacidade de uma existência decente.

E existem outros perigos como pandemias, as quais estão relacionadas à globalização e interação. Então, existem processos em curso e instituições em vigor, como sistemas de armas nucleares, os quais podem levar à explosão ou talvez, extermínio, da existência organizada.

A pergunta é: O que as pessoas estão fazendo a respeito? Nada disso é segredo. Está tudo perfeitamente aberto. De fato, você tem que fazer um esforço para não enxergar.

Houveram uma gama de reações. Têm aqueles que estão tentando ao máximo fazer algo em relação à essas ameaças, e outros que estão agindo para aumentá-las. Se olhar para quem são, esse historiador futurista ou extraterrestre observador veriam algo estranho. As sociedades menos desenvolvidas, incluindo povos indígenas, ou seus remanescentes, sociedades tribais e as primeiras nações do Canadá, que estão tentando mitigar ou superar essas ameaças. Não estão falando sobre guerra nuclear, mas sim desastre ambiental, e estão realmente tentando fazer algo a respeito.

De fato, ao redor do mundo - Austrália, Índia, América do Sul - existem batalhas acontecendo, às vezes guerras. Na Índia, é uma guerra enorme sobre a destruição ambiental direta, com sociedades tribais tentando resistir às operações de extração de recursos que são extremamente prejudiciais localmente, mas também em suas consequências gerais. Em sociedades onde as populações indígenas têm influência, muitos tomam uma posição forte. O mais forte dos países em relação ao aquecimento global é a Bolívia, cuja maioria é indígena e requisitos constitucionais protegem os “direitos da natureza”.

O Equador, o qual também tem uma população indígena ampla, é o único exportador de petróleo que conheço onde o governo está procurando auxílio para ajudar a manter o petróleo no solo, ao invés de produzi-lo e exportá-lo - e no solo é onde deveria estar.

O presidente Venezuelano Hugo Chávez, que morreu recentemente e foi objeto de gozação, insulto e ódio ao redor do mundo ocidental, atendeu a uma sessão da Assembléia Geral da ONU a poucos anos atrás onde ele suscitou todo tipo de ridículo ao chamar George W. Bush de demônio. Ele também concedeu um discurso que foi interessante. Claro, Venezuela é uma grande produtora de petróleo. O petróleo é praticamente todo seu PIB. Naquele discurso, ele alertou dos perigos do sobreuso dos combustíveis fóssil e sugeriu aos países produtores e consumidores que se juntassem para tentar manejar formas de diminuir o uso desses combustíveis. Isso foi bem impressionante da parte de um produtor de petróleo. Você sabe, ele era parte índio, com passado indígena. Esse aspecto de suas ações na ONU nunca foi reportado, diferentemente das coisas engraçadas que fez.

Então, em um extremo têm-se os indígenas, sociedades tribais tentando amenizar a corrida ao desastre. No outro extremo, as sociedades mais ricas, poderosas na história da humanidade, como os EUA e o Canadá, que estão correndo em velocidade máxima para destruir o meio ambiente o mais rápido possível. Diferentemente do Equador e das sociedades indígenas ao redor do mundo, eles querem extrair cada gota de hidrocarbonetos do solo com toda velocidade possível.

Ambos partidos políticos, o presidente Obama, a mídia, e a imprensa internacional parecem estar olhando adiante com grande entusiasmo para o que eles chamam de “um século de independência energética” para os EUA. Independência energética é quase um conceito sem significado, mas botamos isso de lado. O que eles querem dizer é: teremos um século no qual maximizaremos o uso de combustíveis fóssil e contribuiremos para a destruição do planeta.

E esse é basicamente o caso em todo lugar. Admitidamente, quando se trata de desenvolvimento de energia alternativa, a Europa está fazendo alguma coisa. Enquanto isso, os EUA, o mais rico e poderoso país de toda a história do mundo, é a única nação dentre talvez 100 relevantes que não possui uma política nacional para a restrição do uso de combustíveis fóssil, e que nem ao menos mira na energia renovável. Não é por que a população não quer. Os americanos estão bem próximos da norma internacional com sua preocupação com o aquecimento global. Suas estruturas institucionais que bloqueiam a mudança. Os interesses comerciais não aceitam e são poderosos em determinar políticas, então temos um grande vão entre opinião e política em muitas questões, incluindo esta. Então, é isso que o historiador do futuro veria. Ele também pode ler os jornais científicos de hoje. Cada um que você abre tem uma predição mais horrível que a outra.

A outra questão é a guerra nuclear. É sabido por um bom tempo, que se tivesse que haver uma primeira tacada por uma super potência, mesmo sem retaliação, provavelmente destruiria a civilização somente por causa das consequências de um inverno-nuclear que se seguiria. Você pode ler sobre isso no Boletim de Cientistas Atômicos. É bem compreendido. Então o perigo sempre foi muito pior do que achávamos que fosse.

Acabamos de passar pelo 50o aniversário da Crise dos Mísseis Cubanos, a qual foi chamada de “o momento mais perigoso na história” pelo historiador Arthur Schlesinger, o conselheiro do presidente John F. Kennedy. E foi. Foi uma chamada bem próxima do fim, e não foi a única vez tampouco. De algumas formas, no entanto, o pior aspecto desses eventos é que a lições não foram aprendidas.

O que aconteceu na crise dos mísseis em outubro de 1962 foi petrificado para parecer que atos de coragem e reflexão eram abundantes. A verdade é que todo o episódio foi quase insano. Houve um ponto, enquanto a crise chegava em seu pico, que o Premier Soviético Nikita Khrushchev escreveu para Kennedy oferecendo resolver a questão com um anuncio publico de retirada dos mísseis russos de Cuba e dos mísseis americanos da Turquia. Na realidade, Kennedy nem sabia que os EUA possuíam mísseis na Turquia na época. Estavam sendo retirados de todo modo, porque estavam sendo substituídos por submarinos nucleares mais letais, e que eram invulneráveis.

Então essa era a proposta. Kennedy e seus conselheiros consideraram-na - e a rejeitaram. Na época, o próprio Kennedy estimava a possibilidade de uma guerra nuclear em um terço da metade. Então Kennedy estava disposto a aceitar um risco muito alto de destruição em massa afim de estabelecer o princípio de que nós - e somente nós - temos o direito de deter mísseis ofensivos além de nossas fronteiras, na realidade em qualquer lugar que quisermos, sem importar o risco aos outros - e a nós mesmos, se tudo sair do controle. Temos esse direito, mas ninguém mais o detém.

No entanto, Kennedy aceitou um acordo secreto para a retirada dos mísseis que os EUA já estavam retirando, somente se nunca fosse à publico. Khrushchev, em outras palavras, teve que retirar abertamente os mísseis russos enquanto os EUA secretamente retiraram seus obsoletos; isto é, Khrushchev teve que ser humilhado e Kennedy manteve sua pose de macho. Ele é altamente elogiado por isso: coragem e popularidade sob ameaça, e por aí vai. O horror de suas decisões não é nem mencionado - tente achar nos arquivos.

E para somar um pouco mais, poucos meses antes da crise estourar os EUA haviam mandado mísseis com ogivas nucleares para Okinawa. Eram mirados na China durante um período de grande tensão regional.

Bom, quem liga? Temos o direito de fazer o que quisermos em qualquer lugar do mundo. Essa foi uma lição daquela época, mas haviam outras por vir.

Dez anos depois disso, em 1973, o secretário de estado Henry Kissinger chamou um alerta vermelho nuclear. Era seu modo de avisar à Rússia para não interferir na constante guerra Israel-Árabes e, em particular, não interferir depois de terem informado aos israelenses que poderiam violar o cessar fogo que os EUA e a Rússia haviam concordado. Felizmente, nada aconteceu.

Dez anos depois, o presidente em vigor era Ronald Reagan. Assim que entrou na Casa Branca, ele e seus conselheiros fizeram com que a Força Aérea começasse a entrar no espaço aéreo Russo para tentar levantar informações sobre os sistemas de alerta russos, Operação Able Archer. Essencialmente, eram ataques falsos. Os Russos estavam incertos, alguns oficiais de alta patente acreditavam que seria o primeiro passo para um ataque real. Felizmente, eles não reagiram, mesmo sendo uma chamada estreita. E continua assim.

No momento, a questão nuclear está regularmente nas capas nos casos do Irã e da Coréia do Norte. Existem jeitos de lidar com esse crise contínua. Talvez não funcionasse, mas ao menos tentaria. No entanto, não estão nem sendo consideradas, nem reportadas.

Tome o caso do Irã, que é considerado no ocidente - não no mundo árabe, não na Ásia - a maior ameaça à paz mundial. É uma obsessão ocidental, e é interessante investigar as razões disso, mas deixarei isso de lado. Há um jeito de lidar com a suposta maior ameaça à paz mundial? Na realidade existem várias. Uma forma, bastante sensível, foi proposta alguns meses atrás em uma reunião dos países não alinhados em Teerã. De fato, estavam apenas reiterando uma proposta que esteve circulando por décadas, pressionada particularmente pelo Egito, e que foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU.

A proposta é mover em direção ao estabelecimento de uma zona sem armas nucleares na região. Essa não seria a resposta para tudo, mas seria um grande passo à frente. E haviam modos de proceder. Sob o patrocínio da ONU, houve uma conferência internacional na Finlândia dezembro passado para tentar implementar planos nesta trajetória. O que aconteceu? Você não lerá sobre isso nos jornais pois não foi divulgado - somente em jornais especialistas.

No início de novembro, o Irã concordou em comparecer à reunião. Alguns dias depois Obama cancelou a reunião, dizendo que a hora não estava correta. O Parlamento Europeu divulgou uma declaração pedindo que continuasse, assim como os estados árabes. Nada resultou. Então moveremos em direção a sanções mais rígidas contra a população Iraniana - não prejudica o regime - e talvez guerra. Quem sabe o que irá acontecer?

No nordeste da Ásia, é a mesma coisa. A Coréia do Norte pode ser o país mais louco do mundo. É certamente um bom competidor para o título. Mas faz sentido tentar adivinhar o que se passa pela cabeça alheia quando estão agindo feito loucos. Por que se comportariam assim? Nos imagine na situação deles. Imagine o que significou na Guerra da Coréia anos dos 1950’s o seu país ser totalmente nivelado, tudo destruído por uma enorme super potência, a qual estava regozijando sobre o que estava fazendo. Imagine a marca que deixaria para trás.

Tenha em mente que a liderança Norte Coreana possivelmente leu os jornais públicos militares desta super potência na época explicando que, uma vez que todo o resto da Coréia do Norte foi destruído, a força aérea foi enviada para a Coréia do Norte para destruir suas represas, enormes represas que controlavam o fornecimento de água - um crime de guerra, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberg. E esses jornais oficiais falavam excitadamente sobre como foi maravilhoso ver a água se esvaindo, e os asiáticos correndo e tentando sobreviver. Os jornais exaltavam com algo que para os asiáticos fora horrores para além da imaginação. Significou a destruição de sua colheita de arroz, o que resultou em fome e morte. Quão maravilhoso! Não está na nossa memória, mas está na deles.

Voltemos ao presente. Há uma história recente interessante. Em 1993, Israel e Coréia do Norte se moviam em direção a um acordo no qual a Coréia do Norte pararia de enviar quaisquer mísseis ou tecnologia militar para o Oriente Médio e Israel reconheceria seu país. O presidente Clinton interveio e bloqueou. Pouco depois disso, em retaliação, a Coréia do Norte promoveu um teste de mísseis pequeno. Os EUA e a Coréia do Norte chegaram então a um acordo em 1994 que interrompeu seu trabalho nuclear e foi mais ou menos honrado pelos dois lados. Quando George W. Bush tomou posse, a Coréia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e verificadamente não produzia mais.

Bush imediatamente lançou seu militarismo agressivo, ameaçando a Coréia do Norte - “machado do mal” e tudo isso - então a Coréia do Norte voltou a trabalhar com seu programa nuclear. Na época que Bush deixou a Casa Branca, tinham de 8 a 10 armas nucleares e um sistema de mísseis, outra grande conquista neoconservadora. No meio, outras coisas aconteceram. Em 2005, os EUA e a Coréia do Norte realmente chegaram a um acordo no qual a Coréia do Norte teria que terminar com todo seu desenvolvimento nuclear e de mísseis. Em troca, o ocidente, mas principalmente os EUA, forneceria um reator de água natural para suas necessidades medicinais e pararia com declarações agressivas. Eles então formariam um pacto de não agressão e caminhariam em direção ao conforto.

Era muito promissor, mas quase imediatamente Bush menosprezou. Retirou a oferta do reator de água natural e iniciou programas para compelir bancos a pararem de manejar qualquer transação Norte Coreana, até mesmo as legais. Os Norte Coreanos reagiram revivendo seu programa de armas nuclear. E esse é o modo que se segue.

É bem sabido. Pode-se ler na cultura americana principal. O que dizem é: é um regime bem louco, mas também segue uma política do olho por olho, dente por dente. Você faz um gesto hostil e responderemos com um gesto louco nosso. Você faz um gesto confortável e responderemos da mesma forma.

Ultimamente, por exemplo, existem exercícios militares Sul Coreanos-Americanos na península Coreana a qual, do ponto de vista do Norte, tem que parecer ameaçador. Pensaríamos que estão nos ameaçando se estivessem indo ao Canadá e mirando em nós. No curso disso, os mais avançados bombardeiros na história, Stealth B-2 e B-52, estão travando ataques de bombardeio nuclear simulados nas fronteiras da Coréia do Norte.

Isso, com certeza, reacende a chama do passado. Eles lembram daquele passado, então estão reagindo de uma forma agressiva e extrema. Bom, o que chega no ocidente derivado disso tudo é o quão loucos e horríveis os líderes Norte Coreanos são. Sim, eles são. Mas essa não é toda a história, e esse é o jeito que o mundo está indo.

Não é que não haja alternativas. As alternativas somente não estão sendo levadas em conta. Isso é perigoso. Então, se me perguntar como o mundo estará no futuro, saiba que não é uma boa imagem. A menos que as pessoas façam algo a respeito. Sempre podemos.

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