27 de fevereiro de 2013

Neoimperialismo e a arrogância da ignorância

Muitos norte-americanos não veem o quão profundamente os EUA estão-se envolvendo militarmente no turbilhão de conflitos que varrem a África Saariana e Subsaariana.

Franklin C. Spinney

Time

Um fuzileiro naval da 24ª Unidade Expedicionária de Fuzileiros Navais participa de um jogo de guerra enquanto treina nas montanhas costeiras de Djibuti no outono passado. Africom photo / Staff Sergeant Robert L. Fisher III

Tradução / Embora relatos recentes tendam a concentrar-se na tentativa dos franceses para expulsar para fora do Mali a Al Qaeda no Maghreb Islâmico [Al Qaeda in Islamic Maghreb (AQIM) – esforço que pode já se estar convertendo em complexa guerra de guerrilhas, a operação francesa não passa de versão, em pleno século 21, de disputa, à maneira do século 19, pelos recursos da África. É política que, do ponto de vista dos EUA, relaciona-se, bem provavelmente, ao “pivô em direção à China”, dado o crescimento do mercado e a presença chinesa na África no campo da ajuda humanitária. Juntos, a disputa feroz e o “pivô” bastarão para desencadear no Pentágono um movimento de sequestro, no curto prazo, de todos os conflitos, com a correspondente cascata de dinheiro antevista no longo prazo.

Ano passado, Craig Whitlock do Washington Post ofereceu um mosaico do envolvimento dos EUA na África. Publicou uma série de excelentes reportagens. O mapa aqui apresentado (ver mapa abaixo) é uma espécie de resumo das matérias de Whitlock (e outros), com informes para serem distribuídos às populações muçulmanas na África Central.

Considerem-se as distâncias envolvidas nesse enxame de bases (os pontos vermelhos): só a distância entre as bases distribuídas no eixo noroeste-sudoeste no continente africano é maior que a distância entre New York e Los Angeles. Considerem-se as diferenças étnicas e tribais entre Burkina Faso e Quênia, para nem falar das diferenças internas, dentro desses países. E lembrem que praticamente todo o norte da África, do Marrocos ao Egito, é mais de 90% muçulmano.

Por mais que a correlação entre populações muçulmanas e as atividades de intervenção norte-americana nesse mosaico de diferenças culturais sugira um leque de diferentes mensagens para diferentes públicos, só uma generalização é absolutamente garantida, dada a história recente das intervenções norte-americanas: a presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África, AFRICOM, só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã militante e, talvez, também com número imensamente maior de islamistas moderados.

Mas consideremos outras possibilidades, para que a loucura se generalize. Por exemplo: considerado o resultado da recente aventura líbia, os islamistas de mentalidade conspiracionista do norte da África (e – porque não? –, também muitos moderados), com queda para ler tendências no formato das nuvens, bem poderão interpretar a corrente de bases do AFRICOM na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante, que lá estará para acomodar uma nova geração de neocolonialistas europeus, que atacarão do norte, obedecendo à doutrina do presidente Obama que manda “liderar pela retaguarda”. Claro, dadas as distâncias envolvidas e a porosidade que aquelas distâncias implicam, tais divagações de mentes paranóicas não passam de tolices, de um ponto de vista militar.

Mas, se se considera a trilha de mentiras assassinas que os EUA deixaram no Iraque; de incompetência, no Afeganistão; e de arrogante indiferença à sorte dos palestinos, que os EUA comprovaram, ao construir processos de paz que só facilitaram o crescimento de colônias israelenses ilegais, num roubo continuado de terras, por Israel, que se arrasta já por 40 anos, esse tipo de caracterização será moída no moinho da propaganda, como reles fulminações de mentes paranoicas. E, lembre: você é paranoico, mas, nem por isso, os EUA deixarão de sair, armados até os dentes, para acabar com você.

Outro sentido da natureza metastática do envolvimento dos EUA na África pode ser inferido da carregada, terrorista-cêntrica, embora cuidadosamente construída verborragia das “respostas preparadas” que o general de exército David M. Rodriguez entregou à Comissão dos Serviços Armados do Senado, como material de apoio ao que disse, dia 12/2/2013, ao ser confirmado como novo comandante do Comando dos EUA na África, Africom. Convido os leitores a, pelo menos, passar os olhos naquele documento revelador.

As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do Africom, não existem isoladamente. Todas são intimamente conectadas à insatisfação étnico/tribal na África – tema ao qual Rodriguez alude, mas que absolutamente não analisa; nem o general nem seus ‘sabatinadores’ senatoriais, naquele jogo cuidadosamente coreografado de perguntas e respostas.

Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19. Aqueles intervencionistas deliberadamente traçaram fronteiras para misturar grupos étnicos, tribais e religiosos; assim contavam facilitar as políticas coloniais de “dividir para governar”. Os colonialistas do século 19 seguidamente exacerbaram deliberadamente as animosidades locais, impondo grupos minoritários em posições política e economicamente vantajosas, o que fazia crescer as ondas de descontentamento e revide. Stálin, aliás, usou a mesma estratégia nos anos 1920s e 1930s para controlar as repúblicas soviéticas muçulmanas, na região antes conhecida como Turquestão, na Ásia Central. Na URSS, o posicionamento dessas fronteiras artificiais entre aqueles novos “-stões” era amplamente conhecido como “pílulas de veneno” de Stálin.

A crise dos reféns na usina de gás no leste da Argélia, em janeiro passado, ilustra algumas dessas complexidades de profundas raízes culturais que sempre há nesses conflitos. Akbar Ahmed escreveu sobre isso, em mais um de uma série de ensaios fascinantes publicados por Al-jazeera. Essa série de matérias – que considero muito importantes – baseiam-se nas pesquisas para seu novo livro, no prelo, The Thistle and the Drone: How America’s War on Terror Became a War on Tribal Islam [O cacto/cardo e o drone: como a Guerra ao Terror, dos EUA, converteu-se em guerra contra o Islã tribal], a ser publicado em março, nos EUA, pela Brookings Institution Press.

O embaixador Akbar Ahmed é ex-alto comissário do Paquistão no Reino Unido, e ocupa agora a cátedra, apropriadamente batizada Cátedra Ibn Khaldun de Estudos Islâmicos da American University em Washington, D.C. Considerado um dos pais da moderna historiografia e das ciências sociais, Ibn Khaldum é um dos especialistas mais influentes, no campo da historiografia, na natureza espontânea do tribalismo e de seu papel na construção da coesão social. O núcleo duro do trabalho do professor Ahmed acompanha essa inspiração. Visa a explicar porque a insatisfação espalha-se tão amplamente em todo o antigo mundo colonial, e como, parcialmente, tem raízes numa complexa história da opressão de grupos étnicos e em rivalidades tribais, em toda aquela região. Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam.

Ahmed diz que essas tensões foram exacerbadas pela resposta militar que os EUA deram ao 11/9. Explica por que as intervenções militares pelos EUA e outras potências europeias ex-coloniais só farão crescer a tensão que já existe entre os governos centrais daqueles países e os grupos oprimidos.

Dentre outras coisa, Ahmed, talvez inadvertidamente, constrói uma crítica devastadora ao fracasso dos EUA, que não souberam respeitar os critérios de qualquer grande estratégia sensível, na reação ao 11/9. Ao confundir um crime horrendo, com ato de guerra, e declarar guerra global ao terror, sem final previsto; e ao conduzir aquela guerra nos termos de uma grande estratégica classicamente falhada, que assumia que “quem não está conosco está contra nós”, os EUA não apenas criaram inimigos que se multiplicam mais depressa do que seria possível matá-los; também, ao fazê-lo, os EUA, sem avaliar qualquer consequência, exacerbaram conflitos locais altamente voláteis, incrivelmente complexos, de raízes locais profundíssimas; assim, os EUA contribuíram para desestabilizar porções gigantescas da Ásia e da África.

Sem avaliar consequências? É dizer pouco. Considere, leitor, o seguinte: muitos leitores, aqui, já ouviram falar de AQIM e, provavelmente, também dos tuaregues. Mas quantos algum dia ouviram falar dos berberes cabila e de sua história na Argélia? (Eu, nunca.) Pois, como ensina o professor Ahmed, os berberes cabila são os fundadores da AQIM – fundação que tem raízes profundas nos seus padecimentos históricos. Assim sendo, a AQIM é mais do que simples ‘desdobramento’ da al-Qaeda.

Nada disso aparece nas respostas do general Rodriguez, apesar de fazer repetidas referências à AQIM e à Argélia. Tampouco se aprenderão essas coisas daqueles senadores, ou de suas perguntas.

Pode-se confirmar pessoalmente, em casa.

Faça uma pesquisa de palavras no “pacote de perguntas e respostas” do general Rodriguez: ninguém jamais encontrará ali nem vestígios da complexa história que Ahmed explica em seu ensaio para Aljazeera, “The Kabyle Berbers, AQIM, and the search for peace in Algeria” [Os berberes cabila, AQIM e a busca de paz na Argélia]. (Tente, por exemplo, encontrar as palavras AQIM, Kabyle, Berber, history, Tuareg, tribe, tribal conflict, culture, etc. Ou use a própria imaginação).

Além de perceber o muito que não se discutiu, observe também como o contexto centrado em ameaças que cerca todas as palavras sempre salta à vista. Compare a esterilidade de tudo que Rodriguez diz e a riqueza da análise de Ahmed. E tire suas próprias conclusões. E lembre: “AQIM” é apenas um dos verbetes, no portfólio de ameaças com que o AFRICOM trabalha. E o quanto nós não sabemos, sobre os outros verbetes?

Como Robert Asprey mostrou em seu clássico War in the Shadows [Guerra nas sombras], em que estuda 2000 anos da história das guerras de guerrilha, o erro mais frequente, sempre cometido por quem pretenda intervir, vindo de fora, numa guerra de guerrilha, é sucumbir à tentação de deixar que a “arrogância da ignorância” modele seus esforços militares e políticos.

Apesar de a arrogância da ignorância já afirmada e reafirmada no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia... já começa a parecer que a conclusão intemporal de Asprey será mais uma vez reafirmada na África.

Sobre o autor

Franklin “Chuck” Spinney é ex-analista militar do Pentágono, autor incluído na coletânea Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion [Sem esperança: Barack Obama e a política da ilusão], publicada por AK Press.

26 de fevereiro de 2013

Prêmio Nobel de Literatura, Mo Yan, responde aos seus críticos

Pela primeira vez desde que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o polêmico autor chinês Mo Yan consentiu em uma entrevista. Muitos o acusaram de estar perto demais do regime. Mas ele rejeita a acusação e encontra palavras afiadas para seus detratores.

Mo Ya

Entrevista conduzida por Bernhard Zand


Bernhard Zand/ Der Spiegel

Mo Yan trajava um terno à la Mao em cuja lapela grudava um distintivo vermelho. Parecia um emblema do Partido Comunista, mas tratava-se apenas de seu nome. Em Estocolmo, ele proferiu uma conferência, a conferência Nobel que todos os laureados com o Nobel da Literatura, o mais importante prêmio literário do mundo, são obrigados a proferir.

Isso foi em 7 de dezembro de 2012 e o chinês — que com voz maviosa, quase cantante, proferia o seu discurso — era visto como uma decepção. Ele havia escrito livros maravilhosos, isso sim. “A Re­volução do Alho” (“Die Kno­blauchrevolution”), “Tédio” (“Ü­berdruss”), voluminosos romances de família, narrados em colorida exuberância, os quais bem poderiam ser livros de história que tratam do desenvolvimento da China nas últimas décadas, da pobreza de épocas passadas, das durezas da Revolução Cultural e da arrancada do crescimento econômico. Apesar de toda a crítica ao Partido Comunista e a seus quadros, que fica claro em seus livros, o autor é visto como um homem leal ao regime.

Mo Yan, com 58 anos, é membro do Partido Comunista (PC) desde 1979. Fez carreira no exército e é hoje vice-presidente da As­sociação dos Escritores do Partido Comunista.

Seus leitores há muito se admiram sobre essa discrepância: a inequívoca crítica em sua obra contra o Estado chinês e a adaptabilidade de suas aparições públicas. De acordo, divididas foram também as reações por oportunidade do anúncio do Prêmio Nobel. Dissidentes chineses, como o escritor Liao Yiwu, reagiram “perplexos” e escritores alemães, como Martin Walser, acentuavam que Mo, “sem qualquer dúvida, estaria acima de qualquer afetação”.

Mo Yan pessoalmente contribui pouco a fim de se esclarecer. Nega solicitações para entrevistas de todo o mundo. Na conferência de imprensa em Estocolmo, pouco antes da entrega do Prêmio, Mo Yan provocou mais um escândalo: O autor disse que a censura na China é “um mal necessário”, ao que comentaristas de todo mundo reagiram indignados.

Mo Yan nasceu em 1955, em Gaomi, no leste da China. Mo Yan é pseudônimo, seu verdadeiro nome é Guan Moye. Seus pais eram agricultores. Entre 1959 a 1961, Mo Yan passou pelo período da “Grande Fome”, resultado de uma política agrícola fracassada em virtude da qual milhões de chineses morreram de fome. Com a idade de 12 anos, Mo teve de abandonar a escola, pois sua família era vista como politicamente não confiável. Em seguida foi guardador de rebanhos e trabalhador na produção agrícola de algodão.

O narrador de seu novo romance, “As Rãs”, tem fortes traços autobiográficos. Também ele, o narrador, vem de uma família de agricultores de Gaomi; também ele entra nas fileiras do exército e vacila entre adaptação e remorsos. O narrador tem uma tia que é médica ginecologista, outro detalhe autobiográfico. É ela a figura principal do romance, que implementa brutalmente a “política de um filho só”. No enredo nunca fica claro porque ela, apesar de todas as humilhações, permanece tão leal ao Partido. Quem vive em estruturas autoritárias arrisca-se muito quando procura se defender. Eis aí a mensagem dos livros de Mo Yan e esta tem muito a ver com a atual realidade chinesa.

No entanto, um laureado com o Nobel goza de certa proteção. Um laureado com o Nobel pode manifestar-se, arriscar algo. Afinal, chega até ser um dever seu.

"Sou culpado"

Der Spiegel: Sr. Mo, seu pseudônimo literalmente significa “Não Fale”. Aparentemente o sr. leva isso muito a sério. Por que o sr. receia o contato com o público, especialmente com jornalistas?

Porque sinto enormes dificuldades em dar depoimentos políticos. Sou um escritor que escreve com pressa, mas sou um pensador que pensa de forma profunda. Sempre quando falo em público pergunto-me, logo a seguir, se tenho me expressado bem mesmo sabendo que minhas opiniões políticas são precisas, bem claras. Podem ser lidas em meus livros.

Der Spiegel: Seu novo livro, com o título “Rãs”, descreve as consequências da política de “um filho só” da China. Qual é a sua opinião sobre esse tema, que todavia afeta pessoalmente mais de 1 bilhão de pessoas?

Como pai penso que qualquer indivíduo deveria ter tantos filhos quantos quiser. No entanto, como oficial, eu tinha de me submeter as prescrições que eram válidas a todos os servidores do Estado: um filho e nada mais. Não é fácil resolver o problema populacional da China. No entanto, estou totalmente convencido de uma coisa: ninguém deverá ser impedido à força de querer um filho.

Der Spiegel: Mas é exatamente isso que se repete inúmeras vezes em seu romance. O que existia no início desse livro: seu posicionamento pessoal ante a política de “um filho só” ou uma cena isolada, um personagem, uma figura ou um diálogo?

O que existia era a biografia épica de uma de minhas tias com uma vida mais do que realizada, que por algumas décadas trabalhou como médica para senhoras e presenciou coisas incríveis. Eu sentia uma pressão interior em pôr em papel essas vivências.

Der Spiegel: Em seu romance, essa médica para senhoras é uma figura monstruosa, que se sente perseguida por seus atos. Como a sua tia reagiu ante ao livro?

Ela não o leu. Recomendei estritamente a ela que não o lesse. “Você vai se irritar comigo quando o leres.” Obviamente, nem tudo em “Rãs” se refere à história de minha tia. No mais, ela mesmo tem quatro filhos. Além disso, o enredo também inclui experiências de outros médicos, experiências que eu pessoalmente presenciei.

Der Spiegel: Também em seus outros livros aparecem coisas exorbitantes. Em seu romance “A Revolução do Alho”, uma mulher grávida enforca-se quando as dores do parto já se manifestavam. Mas “Rãs” é provavelmente o seu livro mais emocional, mais pesado. O sr. trabalhou dez anos nesse texto. Por quê?

Andei com esse enredo na cabeça por muitos anos e é correto que me senti oprimido, com um peso enorme, enquanto o redigia. Penso que “Rãs” é um livro autocrítico.

Der Spiegel: Não entendi. O sr. poderia explicar melhor isso? Afinal, o sr. não tem nenhuma culpa pela violência empregada nos abortos que o sr. relata.

A China, nesses últimos anos, passou por processos de transformação tão grandes que isso faz com que quase todos nós nos sintamos como vítimas. Ninguém, no entanto, se pergunta a si próprio se não se comportou como autor do crime, se não transgrediu ou violou algo ou alguém. Essa questão, essa possibilidade de pensamento, é abordada em “Rãs”. Eu, por exemplo, talvez tenha tido apenas 11 anos — mas no tempo da Revolução Cultural eu era soldado do Exército Vermelho e participei da crítica pública de meus professores. Eu sentia inveja da eficiência dos outros, de seus talentos e da sorte que tinham. E em consideração ao meu futuro eu coagi a minha mulher a um aborto. Eu sou culpado.

Der Spiegel: Suas obras descrevem um retrato amargo da China moderna. No entanto, em seus romances, nem os seus personagens, nem a sociedade e nem o próprio país parecem desenvolver-se.

No que diz respeito a esse particular, sou quase antichinês. Dramas e histórias chinesas costumam ter um final positivo. A maioria de meus livros tem um fim trágico. Mesmo assim eles falam de esperança, dignidade e força de vontade.

Der Spiegel: Seus romances podem ser lidos como filmes nos quais o sr. evita o contato visual com a psique de seus personagens. Por que, por exemplo, a médica de senhoras aferra-se acirradamente aos princípios do Partido mesmo ela sabendo das ambiguidades da credibilidade dele?

Isso faz parte da experiência espiritual de minha geração. Muitos reconheceram a Revolução Cultural como erro do Partido, mas eles reconheceram também que o Partido corrigiu esse erro.

Der Spiegel: E o sr., o que pensa acerca disso? Também o sr. teve de interromper sua educação durante a Revolução Cultural — e, mesmo assim, continua a ser membro do Partido?

O Partido tem 80 milhões de membros, um desses 80 milhões sou eu. Filiei-me ao Partido em 1978, quando prestava meu serviço militar na Armada de Libertação do Povo, e só posteriormente compreendi que a Revolução Cultural era obra de apenas alguns poucos líderes do Partido. A Revolução Cultural não tinha nada a ver diretamente com o Partido.

Der Spiegel: Em seus livros, o sr. critica radicalmente funcionários do Partido Comunista e seus trabalhos, mas em seus depoimentos políticos, também com as suas declarações aqui, o sr. está sendo bastante benigno em relação àqueles funcionários. Como é que o sr. explica essa discrepância?

Não há discrepâncias em relação à minha postura política quando critico arduamente funcionários do Partido. Nunca cansei de repetir que me sinto como escritor das pessoas e não como escritor do Partido. Detesto funcionários públicos corruptos.

"Eu não gosto de falar na frente de muitas pessoas"

Der Spiegel: O escritor chinês Liao Yiwu, que no outono passado foi agraciado com o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro da Alemanha, em entrevista concedida ao “Der Spiegel”, critica o sr. como sendo um poeta do Estado e que o sr. não estaria mantendo distância com o Partido.

Confesso que li essas declarações bem como o seu discurso por oportunidade do Prêmio da Paz do Comércio Livreiro. Nesse discurso, ele proclama a divisão do Estado chinês. Não posso, absolutamente, apoiar tal ideia, pois não consigo acreditar que os moradores de Sichuan [lugar de procedência de Liao – Red] queiram separar sua província do Estado chinês. Tam­bém estou convencido de que nem os pais de Liao Yiwu querem isso. Não posso nem mesmo imaginar que ele próprio, lá do fundo de seu coração, concorda com aquilo que ele disse. Eu sei que Liao tem inveja do prêmio que recebi. Eu entendo isso. Mesmo assim sua crítica à minha pessoa é injusta.

Der Spiegel: A qual crítica em particular o sr. se refere?

Ele, por exemplo, me acusa de ter louvado Bo Xilai...

Der Spiegel: Quais de suas críticas você quer dizer exatamente?

Aquele ex-chefe do Partido de Chongqing que está na prisão aparentemente por corrupção... 

Der Spiegel: ... o desonrado ex-chefe do partido de Chongqing...

... em uma de minhas poesias. O contrário é verdade, fui sarcástico, escrevi uma poesia satírica. Permita-me escrevê-la mais uma vez.

(Mo Yan pega um bloco e começa a escrever):

Canções vermelhas entoam,
surras contra os negros magoam
O país todo olha para Chongqing. 
Enquanto a aranha branca realmente tece uma teia
o cavalo preto com diarreia não é um jovem revoltoso. 
Como poeta não se é nem da direita nem da esquerda.

No outono de 2011, um amigo meu de Chongqing pediu-me uma caligrafia assim como nós, entre os poetas, frequentemente as trocamos. Enviei-lhe essa poesia e ele respondeu: “Não sei se devo rir ou chorar”. Muitos nesse país, na época, louvavam o chefe do partido Bo por sua luta contra os negros, isto é, a Máfia, e pelo fato de ele permitir cantar “canções vermelhas”. Muitos autores foram solicitados a fazer o mesmo. Com “aranha branca”, eu me referi à juventude chinesa que, durante todo o dia, está na rede, isto é, na internet e realmente desmascara criminosos, os funcionários corruptos. O cavalo preto com diarreia refere-se àqueles que só louvam intelectuais. Em seguida segue uma solicitação minha a meus amigos escritores, de não se ligarem aos da direita nem aos da esquerda, mas escrever em nome do indivíduo / do homem em si.

Der Spiegel: O sr. diz que os seus críticos interpretaram essa poesia conscientemente de forma errada, a fim de colocar o sr. como amigo de Bo Xilai?

Meus adversários são, na maioria, escritores, isto é, indivíduos que também fazem poesias. Eles sabem perfeitamente que essa minha poesia é uma sátira. Mas desde que recebi o Prêmio Nobel todos olham com uma lupa sobre meus erros e invertem o sentido de minhas poesias.

Der Spiegel: Uma das principais críticas de dissidentes chineses é a de que o sr. tem contribuído para um livro no qual é glorificado o ominoso discurso de Mao Tsé-tung em Yan’an, um discurso de 1942, com o qual Mao marcava os limites dentro dos quais deveria se escrever no futuro.

Esse discurso hoje é um documento histórico que contém alguns elementos razoáveis, mas também alguns erros. Quando eu e a minha geração começamos a escrever, ampliamos e ultrapassamos gradativamente os estreitos limites que nos tinham sido impostos. Quem tem consciência e ler os meus textos daquela época não poderá afirmar que eu não tenha feito uso da crítica.

Der Spiegel: Mas por quê, afinal, o sr. contribuiu nesse livro?

Falando francamente, isso foi ideia de um editor, amigo meu de longo tempo. Ele já tinha convencido mais de cem autores e, durante uma conferência, ele andou pela sala, com um livro e uma caneta à mão, e pediu também a mim que copiasse um parágrafo do discurso de Mao. Eu perguntei: “O que devo escrever?” Ele respondeu: “Aqui, escolhi esta passagem”. Fui vaidoso demais ao fazer isso. Quis impressionar com a minha caligrafia.

Der Spiegel: Em seu romance “Tédio” (“Überdruss”) um de seus protagonistas deixa cair um emblema de Mao Tsé-tung numa latrina e em sua obra autobiográfica “Change” o sr. relata como usava estatuetas de Mao para afugentar os ratos de seu dormitório. Por que o sr. ousa tal quebra de tabu em seus livros, mas teme abordá-los em público?

O sr. acha que sou cauteloso em lugares públicos? Nesse caso, eu não deveria ter concordado com esta entrevista. Sou um escritor e não um ator. Quando redigi essas cenas jamais pensei em quebrar um tabu. Caso tenha conseguido mostrar com isso que Mao foi apenas um homem, então estou satisfeito. Quando eu era jovem, pensei que ele era Deus.

Der Spiegel: Hoje o sr. é vice-presidente da Associação Chinesa de Escritores. É possível ser isso na China sem estar próximo do Partido?

Este é um título honorífico que nunca incomodou ninguém antes de eu receber o Prêmio Nobel. Mas tem gente por aí que acha que um detentor do Prêmio Nobel fundamentalmente tem de ser oposicionista. É isso mesmo? Essa gente não se interessa sobre aquilo que afinal escrevo. Não deveria o Nobel da Literatura ser para a Literatura, sobre aquilo que alguém escreve?

Der Spiegel: Mas na China pessoas estão sendo perseguidas e encarceradas por aquilo que escrevem. O sr. não sente obrigação de usar sua distinção, seu renome, para empenhar-se a favor desses autores?

Já disse publicamente que espero que Liu Xiaobo possa recuperar a sua liberdade o quanto antes possível. Mesmo assim, imediatamente fui atacado e coagido a repetir e repetir sempre de novo as mesmas coisas sobre o mesmo assunto.

Der Spiegel: Em 2010, Liu recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Empenhar-se sempre de novo a seu favor causaria maior impressão do que uma única menção.

Esses rituais repetitivos lembram-me da Revolução Cultural. Eu falo quando quero. E quando não quero nem mesmo uma faca em minha garganta iria conseguir que eu fale.

Der Spiegel: Entre os seus críticos, encontra-se também na Alemanha o bastante conhecido artista plástico Ai Weiwei.

O que ele andou falando so­bre mim?

Der Spiegel: Também ele acusa o sr. de ser um poeta do Estado. Ele disse que o sr. “decolou” e estaria fora da realidade desse país e que, como intelectual, não apto para representar a China.

A maioria dos artistas na China não são eles artistas do Estado? Muitos detêm cargos de professores, outros escrevem para jornais do Estado. E qual o intelectual que pode afirmar de si que representa a China? Eu não posso afirmar isso! E Ai Weiwei, pode? Eu penso que a China só pode ser representada lá fora por aqueles que chafurdam com as mãos na lama e fazem o asfaltamento de nossas estradas.

Der Spiegel: O sr. não só é membro do Partido. O sr. repete, sempre de novo, que segue acreditando na utopia do comunismo. Seus livros não comprovam, peça por peça, que o comunismo não funciona? Não seria razoável despedir-se dessa utopia?

O que Marx escreveu no “Manifesto Comunista” é de grande beleza. No entanto, parece-me bastante difícil, transformar esse sonho em realidade. Por outro lado, vejo por exemplo, os países da Europa, especialmente os do Norte da Europa, Estados sociais de abastança, e pergunto-me: esses Estados, essas sociedades, são elas imagináveis sem Marx? De alguma forma, o Marxismo salvou o capitalismo, pois quem realmente tirou proveito dos benefícios dessa ideologia são essas sociedades do Ocidente. Nós, chineses, russos e demais europeus do Leste, interpretamos Marx de forma errada.

Der Spiegel: Um de seus grandes admiradores é o escritor alemão Martin Walser. Ele diz que seus livros são “orgias em exatidão, brutalidade e beleza”.

Também eu tenho grande respeito por Martin Walzer. Li todos os seus livros que foram traduzidos para o chinês. Ele é um autor que reflete muito e que nos explicou, de forma bem compreensível, a mentalidade dos alemães após a II Guerra Mundial. Sinto-me honrado em saber que ele aprecia meus trabalhos. Sou de opinião de que ele é um dos autores alemães especialmente predestinados para receber o Prêmio Nobel. Günter Grass, cujos livros também aprecio, já foi laureado com o Nobel. Li também os textos de Herta Müller que foram traduzidos para o chinês e acho alguns deles excelentes.

Der Spiegel: Diferentemente do sr., Günter Grass de forma alguma tem problemas em brigar publicamente com seu governo.

Acho isso muito bom e admiro-o bem como a outros autores que têm o poder da palavra para lançar-se publicamente em tais discussões. Eu não tenho esse poder da palavra. Francamente: eu tenho medo de falar em público.

Der Spiegel: Para o sr., os procedimentos em Estocolmo devem ter sido uma tortura.

Assim foi. Durante todo o tem­po carreguei um pau de madeira em minhas mãos.

25 de fevereiro de 2013

O princípio do fim da pobreza

Ainda há muito a ser feito, mas o Brasil avança bastante rápido no combate à miséria. O Cadastro Único tem sido importante nesse caminho 

Tereza Campello e Marcelo Neri 


Ilustração: Visca

A última década testemunhou queda inédita na desigualdade de renda brasileira, que atingiu o menor nível da série histórica, iniciada em 1960. 

Neste ínterim, houve conquistas em várias dimensões do desenvolvimento humano, como queda de 47% da mortalidade infantil, três anos mais de expectativa de vida, aceleração da escolaridade com ganhos de qualidade a partir de 2005, geração de duas vezes mais empregos formais a partir de 2004. 

A pobreza caiu 58% de 2003 a 2011, velocidade três vezes superior àquela prevista no primeiro e principal objetivo do desenvolvimento do milênio da ONU. 

A queda da pobreza foi propulsionada pela criação do Bolsa Família, em 2003. Mesmo sendo um dos mais bem focalizados no mundo, o programa teve de se reinventar para fazer frente aos desafios do Brasil Sem Miséria. A superação da extrema pobreza até 2014 constitui o lema e a principal meta do governo federal.

O primeiro passo nessa direção foi a definição de uma linha de extrema pobreza. O parâmetro usado foi a linha da ONU, de US$ 1,25, correspondendo a renda mensal de R$ 70 por pessoa em junho de 2011, quando o Brasil Sem Miséria foi lançado. O desafio brasileiro é, em quatro anos, superar a miséria em termos de renda, enquanto a ONU propõe a cada país percorrer a metade desse trajeto em 25 anos.

Desde 2011, aperfeiçoamentos no Bolsa Família reforçaram as transferências, especialmente com o novo benefício cujo valor varia de acordo com o déficit de renda de cada família. Quem tem menos renda recebe mais, possibilitando superar a extrema pobreza ao menor custo fiscal possível. Não há caminho mais curto para o fim da miséria no que diz respeito à renda. 

Estudos do Ipea mostram que, a despeito das características que diferenciam censo, PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e Cadastro Único, todos eles mostrarão uma diminuição vigorosa da pobreza extrema a partir da instituição do Brasil Sem Miséria.

A estruturação do Cadastro Único para Programas Sociais, ocorrida entre 2003 e 2011, com a inclusão de 70 milhões de pessoas, permitiu ao poder público não só implementar o Bolsa Família mas saber quem são, como vivem e onde moram os mais pobres dentre os brasileiros. 

Além de abrir caminho para que recebessem transferências de renda, o cadastro permitiu priorizá-los no acesso a serviços públicos como creches, cursos profissionalizantes, serviços de assistência técnica e extensão rural, cobertura de água e tarifas reduzidas de energia elétrica, entre outros. Mais do que contar pobres, os pobres passaram a contar mais no desenho das políticas públicas brasileiras. 

Além de usar o Cadastro Único como via expressa para levar políticas públicas aos mais pobres, houve empenho redobrado em incluir as famílias que, tendo o perfil requerido, ainda não faziam parte dele. Desde junho de 2011, a busca ativa possibilitou a entrada de 791 mil famílias extremamente pobres no Bolsa Família. Estima-se ser necessário encontrar mais 700 mil para atingir plena cobertura. 

No próximo mês, alcançaremos um objetivo que já pareceu impossível. O Bolsa Família vai garantir a todos os seus beneficiários renda de pelo menos R$ 70. Com mais essa medida, 22 milhões de pessoas terão saído da extrema pobreza desde o lançamento do Plano Brasil Sem Miséria. Do ponto de vista da renda, não haverá mais pobreza extrema no universo do Bolsa Família. 

Mas ainda há muito por fazer nos campos da própria renda, do trabalho, da saúde, da educação, da infraestrutura e da moradia, entre outros desafios. O que está acontecendo agora é apenas um começo. 

Sobre os autores

Tereza Campello, 50, é ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome 

Marcelo Neri, 49, é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

8 de fevereiro de 2013

Comunismo

Um gigantesco processo de emancipação ainda longe de concluído

Domenico Losurdo


Continuo a julgar correta a visão da ideologia alemã, segundo a qual o comunismo é sobretudo "o movimento real que abole o atual estado de coisas". Observemos as mutações que se verificaram no mundo a partir da primeira revolução que se reclamou de Marx e Engels. Antes de outubro de 1917 não havia democracia, mesmo no Ocidente: era o reino das três grandes discriminações para com as mulheres, as classes subalternas, os povos coloniais e de origem colonial.

Com fevereiro e outubro de 1917, a Rússia revolucionária reconheceu às mulheres direitos políticos ativos e passivos. A República de Weimar (nascida da revolução que explodiu na Alemanha um ano após a revolução de Outubro) tomou o mesmo caminho, seguido pelos Estados Unidos. É certo que na Itália, Alemanha, Áustria e Inglaterra o sufrágio universal (masculino) estava mais ou menos afirmado, mas ficava neutralizado por uma Câmara alta que permanecia o apanágio da nobreza e da grande burguesia.

A discriminação racial apresentava-se sob uma forma dupla: considerados como indignos de se constituírem como Estado nacional independente, os povos coloniais eram submetidos à dominação absoluta das grandes potências. Num país como os EUA, os afro-americanos eram excluídos dos direitos políticos (e por vezes mesmo dos direitos cívicos). A ultrapassagem da discriminação racial sob estes dois aspectos não pode ser pensada sem o capítulo da história aberto por outubro de 1917. O papel desempenhado pelos Partidos Comunistas nas revoluções anti-coloniais é notável. E no que se refere aos Estados Unidos? Em dezembro de 1952, o ministro da Justiça enviava ao Tribunal Supremo, ocupada a discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: "A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista". O desafio comunista desempenhou um papel essencial igualmente na ultrapassagem do regime da supremacia branca.

Os direitos sociais e econômicos fazem parte da democracia tal como a esquerda a entende. E foi este patriarca do neoliberalismo, Hayek, que denunciou o fato de que a teorização e a presença no Ocidente destes direitos remetiam à influência, por ele considerada nefasta, da "revolução marxista russa".

Compreende-se portanto que, à atenuação do desafio comunista, corresponda no Ocidente uma restauração. Não se trata só do desmantelamento do Estado social. O peso da riqueza é tão forte que, mesmo nas colunas do New York Times, podem-se ler denúncias considerando que o regime em vigor nos Estados Unidos assemelha-se mais a uma "plutocracia" do que à democracia. A contra-revolução é evidente igualmente nos caso do colonialismo, reavaliada pelo teórico da "sociedade aberta", Karl Popper: "Nós libertamos estes Estados (as antigas colónias) muito apressadamente e de modo demasiado simplista".

Vejamos, em sentido contrário, o que se passa num país continente que ficou sob a direção do Partido Comunista. Pondo fim à catástrofe provocada pelas guerras do ópio e a agressão colonialista, a China devolveu a centenas de milhões de pessoas o primeiro dos direitos do homem, a saber, o direito à vida. O Estado social começa aqui a dar os seus primeiros passos, ao passo que doravante ele é renegado no Ocidente, inclusive no plano teórico.

Mas isto não é tudo: ao reduzir rapidamente seu atraso tecnológico em relação aos países capitalistas mais avançados, a China põe fim à "era de Colombo", que havia começado com a descoberta-conquista da América e que viu o Ocidente sujeitar o planeta inteiro. Vêem-se criar as condições para frustrar as tentações colonialistas e democratizar as relações internacionais. O declínio da doutrina Monroe, à qual a revolução cubana infligiu pela primeira vez um golpe severo, está lá para confirmar.

Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.

Domenico Losurdo é filósofo e professor da Universidade de Urbino, Itália.

3 de fevereiro de 2013

Boa conta, sem truques, inclui mais parâmetros além da renda

Lena Lavinas


Para 69,4% dos brasileiros, a linha de indigência fixada em R$ 70 mensais para identificar quem é a população miserável é de valor muito baixo. Proporção semelhante, 73,1%, julga que, se quiser, o governo tem meios de erradicar a miséria no Brasil.

Somos 64% a concordar que o benefício médio de R$ 130 mensais aos beneficiários do Bolsa Família é baixo, o que explica que só um terço da população com mais de 16 anos acredite que o Bolsa Família é eficaz em retirar muita gente da pobreza.

Tais números, retirados de levantamento nacional conduzido pelo Instituto de Economia da UFRJ e pelo Departamento de Economia da UFF em fins de 2012, revelam uma percepção sensível e precisa de como são tratados pobres e indigentes no Brasil.

Não é preciso muita conta para concluir que o Bolsa Família deveria ser mais efetivo na definição dos parâmetros para estimar a magnitude real e incômoda da miséria.

A sensibilidade do governo, talvez parcialmente amputada pelos cortes que ceifam o Orçamento da seguridade social e condenam o sistema de saúde pública, se mostra indiferente àquilo que salta aos olhos de quem mira a realidade brasileira mesmo sem grande expertise técnica. Com bom-senso apenas.

Os cortes fazem com que 50% dos domicílios brasileiros não disponham de água tratada e 35% não tenham saneamento adequado.

Segundo o IBGE, enquanto 7% da população pode ser considerada vulnerável exclusivamente por falta de renda, o percentual pula para 58,4% se forem adicionados outros déficits que não rendimentos monetários.

Sem atualização


Desde 2009 o governo não atualiza a linha de indigência, que permanece em R$ 70 per capita mensais. Intocável também permanece a linha da pobreza.

Salários são atualizados, o salário mínimo igualmente, numa progressão que fomenta a redistribuição e reduz as desigualdades.

Os benefícios do INSS não escapam à regra da correção do poder de compra.

Mas, sem dúvida, manter o valor nominal da linha de indigência quando aumenta a renda média, e quando o IPCA acumulado entre janeiro de 2009 e dezembro de 2012 bate 24,53%, já é uma boa contribuição para reduzir o número e o percentual de indigentes do país. No automático.

Atualizada, a linha de indigência valeria hoje R$ 87,17, aumentando o contingente de miseráveis. Ainda assim, seria um valor muito baixo.

O Brasil é hoje um país de renda média alta, na rota das grandes mudanças estruturais. É tempo de voltar à discussão pendente sobre como definir com rigor qual o patamar mínimo de bem-estar que a nação solidariamente vai estabelecer.

Sobre a autora


Lena Lavinas, doutora em economia, é professora associada do Instituto de Economia da UFRJ.

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