8 de outubro de 2012

Privilégios no campo

João Pedro Stédile

O Globo

Cantam-se loas ao agronegócio brasileiro. Há razões para isso? A que custo, social, econômico e ambiental, é mantido esse modelo agrícola? Será a única alternativa para o desenvolvimento?

As consequências da irracional depredação ambiental, causada pela voracidade de lucros de uma minoria de proprietários rurais, exigirão um posicionamento político que extrapole os interesses do mundo rural.

O agronegócio se vangloria de produzir riqueza para o desenvolvimento. A mídia, tanto pelo alinhamento ideológico com os grandes proprietários quanto por seus interesses econômicos, se encarrega de difundir tal versão.

A truculenta bancada ruralista inibe as possibilidades de debates e adota o discurso de catastrofismo frente as iniciativas que se opõem aos interesses do setor.

O agronegócio é exitoso na estratégia de aparecer como uma atividade moderna. O ex-presidente da Embrapa Eliseu Alves mostrou em estudo que o agronegócio representa apenas 8,2% dos proprietários rurais. São 22,1 mil, de um total de 5,2 milhões.

Esse estrato de proprietários responde pela maior parte da riqueza produzida na agricultura. São dados como este que fazem a fama do agronegócio.

Essa concentração não é mérito da eficiência do agronegócio. Ela se deve a políticas que privilegiaram essa parcela. Modernos e produtivos eram também os engenhos de cana do Nordeste nos séculos XVI- XIX. O que sobrou para a população? Produção de riqueza, por si só, não assegura desenvolvimento.

No outro extremo, há 3,8 milhões de proprietários rurais desassistidos de políticas públicas. Para essa população, o agronegócio tem somente uma preocupação: ganhar tempo para depois empurrá-los às periferias. Esse modelo expulsará 2/3 desses proprietários rurais.

A sociedade está disposta a bancar isso? Por que não logramos impor ao agronegócio restrições para proteger interesses da sociedade? Os grandes proprietários defendem um código florestal contrário à preservação ambiental. É necessária uma legislação que assegure a apropriação social da natureza, para que a qualidade de vida prevaleça sobre os interesses capitalistas.

A reforma agrária representa um ajuste de contas histórico: democratizar as terras agrícolas! Todos os governantes que se subordinaram ao latifúndio alegaram que não seria mais necessária. Essa desculpa esfarrapada escamoteia uma opção de desenvolvimento que menospreza os aspectos culturais, sociais, políticos e ambientais.

Reforma agrária é, também, assegurar vida digna para a população do campo, ter uma política de produção associada à preservação ambiental e se desafiar a promover o desenvolvimento nacional atendendo, prioritariamente, aos interesses do povo brasileiro.

2 de outubro de 2012

Falecimento de um "comunista conservador": Eric Hobsbawm. Uma análise de seu trabalho

Enzo Traverso



Tradução / A BBC confirmou em 1 de outubro de 2012, o falecimento o do historiador Eric John Hobsbawm, com a idade de 95 anos. Nascido em Alexandria, em uma família judaica, em 1917 - ano da revolução russa - E.J. Hobsbawm experimentou o surgimento do nazismo, tendo crescido em Viena e Berlim, onde se juntou ao Partido Comunista aos 15 anos. Uma experiência que ele admite ter deixado um rastro indelével sobre ele; embora não apreciasse suficientemente as características específicas da instalação do poder hitlerista em relação a outros regimes fascistas da época na Europa. As características específicas de seu compromisso político não estão relacionadas a esse tipo de julgamento. Emigrou para a Grã-Bretanha onde se juntou às fileiras do Partido Comunista Britânico de 1936 a 1991 (ano de sua dissolução). Cerca de vinte de suas obras foram traduzidas para o francês, das quais a mais importante é sua tetralogia: A era das revoluções (1789-1848); A era do Capital (1848-1875); A era dos impérios (1875-1914) e A era dos extremos: O breve século 20 (1914-1991). Seu trabalho não pode ser separado da sua participação no PC. Assim, ele justificou a intervenção soviética na Hungria em 1956 ou, em The A era dos extremos, ele tratou a "Revolução Espanhola" de forma a evitar em grande parte o papel do PCE, bem como da URSS e do Comintern.

Abaixo está um artigo de Enzo Traverso, publicado em 2009, que forneceu uma atualização sobre seu trabalho como historiador. Esta é a ocasião da publicação em francês do livro Império, Democracia e Terrorismo. (Redação de A l'Encontre).

Não cabe dúvidas de que Eric John Hobsbawm é atualmente o historiador mais lido do mundo. Esta notoriedade arranca sobretudo do êxito planetário da Era dos Extremos, sua história do "breve" século XX.[1] Anteriormente ocupava já, desde logo, um lugar de primeiro plano na historiografia internacional, mas a publicação desta obra lhe permitiu conquistar um público mais vasto. Nenhuma nova interpretação do mundo contemporâneo poderá se furtar a uma confrontação com a sua, que já se converteu em canônica. Mas esta constatação leva implícito um paradoxo, pois o século XX finalizou numa atmosfera de restauração intelectual e política e foi despedido em meio a um alvoroço midiático que anunciava o triunfo definitivo da sociedade de mercado e do liberalismo. Hobsbawm, em contrapartida, não escondia suas simpatias pelo comunismo, o grande perdedor da Guerra Fria, nem sua adesão a uma concepção da história da inspiração marxista. O êxito de seu livro era uma nota discordante, introduzia uma fissura no consenso liberal em torno de uma visão do capitalismo que o apresenta como uma ordem natural sem alternativa[2]. Isto é particularmente certo no caso da França, país no qual o livro de Hobsbawm só chegou às livrarias, graças a um editor belga, cinco anos depois de usa edição inglesa original e depois de ter sido traduzido a mais de vinte línguas. Em 1997, Pierre Nora explicava em Le Débat que uma obra como esta, anacrônica e inspirada numa ideologia de outra época, não seria rentável para um editor, razão pela qual havia decidido rechaçá-la na coleção que dirigia em Gallimard.3 Poucas vezes um editor e intelectual equivocou-se tanto ao formular um prognóstico, mas como teria podido acertar Nora se partir do postulado segundo o qual a sensibilidade dos leitores corresponde-se perfeitamente com a acolhida entusiasta dispensada pelos meios de comunicação a O passado de uma ilusão de François Furet (1995) e ao Livro negro do comunismo de Stéphane Courtois (1997)?

Uma tetralogia

A Era dos Extremos é o último volume de uma tetralogia. Segue a três obras dedicadas à história do século XX aparecidas entre 1962 e 1987. A primeira analisa as transformações sociais e políticas que acompanharam a transição do Antigo Regime para a Europa burguesa (A era das revoluções, 1789-1848). A segunda se centra na época de esplendor do capitalismo industrial e a consolidação da burguesia como classe dominante (A era do capital, 1848-1875). A terceira estuda o advento do imperialismo e finalização com a aparição dos conflitos entre as grandes potências que fraturaram o ‘concerto europeu’ e sentaram as premissas de sua eclosão (A era dos impérios, 1875-1914). A redação destas obras não havia obedecido a nenhum plano anterior. Surgiram ao fio do tempo, sob o estímulo dos editores e como produto da evolução das investigações do próprio Hobsbawm.

A trajetória historiográfica de Hobsbawm é a de um especialista no século XX. Em 1952 fundou, com Edward P. Thompson e Christopher Hill, a revista Past and Present, uma tentativa de síntese entre o marxismo e a escola dos Annales. Dedicou considerável atenção à história social das classes trabalhadoras e das revoltas camponesas na época da Revolução Industrial. O marxismo e a formação do movimento operário se situaram no centro de seus interesses. Hobsbawm conjugava as grandes sínteses com pesquisas pioneiras. De estrutura mais clássica e escritas numa linguagem acessível ao grande público, essas grandes sínteses não constroem novos objetos de pesquisa nem solapam os enfoques historiográficos tradicionais, mas esboçam um vasto panorama do século XIX que ilumina, desde uma ampla perspectiva, as forças sociais presentes. Existe uma certa distância entre o historiador dos luditas e da resistência campesina aos cercamentos de terras no campo inglês, e das grandes sínteses sobre as ‘revoluções burguesas’ e o advento do capitalismo industrial. Esta distância não será superada pelo último volume da tetralogia, prisioneiro de uma tendência que ele sempre reprovou na historiografia tradicional do movimento operário: observar a história “por cima” sem fixar-se no que pensavam as grandes correntes, os atores situados ‘abaixo’ 4.

Hobsbawm concebeu o projeto de uma história do século XX depois da queda do muro de Berlim. Foi dos primeiros em interpretar aquele acontecimento como o signo de uma mutação que não só punha fim na Guerra Fria mas que, a uma escala mais vasta, encerrava um século. Nasceu então a ideia de um século XX ‘breve’ enquadrado entre as grandes inflexões da história europeia, a Primeira Guerra Mundia e o afundamento do socialismo real, que se opunha a um século XIX ‘longo’ que iria da Revolução francesa às trincheiras de 1914. Se a guerra foi a autêntica matriz do século XX, a revolução bolchevique e o comunismo lhe deram um perfil específico. Hobsbawm situa-o inteiro sob o signo de Outubro de 1917. O esgotamento da trajetória da URSS, ao final de um prolongado declive, sinaliza sua conclusão.

Hobsbawm, nascido em Alexandria em 1917 pai inglês e mãe austríaca, define-se como um rebento de dois pilares da Europa do século XIX: o Império britânico e o Império austro-húngaro. Fez-se comunista em Berlim, em 1932, aos quinze anos. Esta opção não seria abandonada no curso das décadas seguintes, nas quais estudaria primeiro, e depois ensinaria nas melhores universidades britânicas. O século XX foi sua vida e admite, com toda honestidade, sua dificuldade para dissociar história e autobiografia. A contracorrente de uma ilusória neutralidade axiológica, nosso autor declara com claridade, já nas primeira páginas do livro, sua condição de ‘espectador comprometido’: não parece provável que quem tenha vivido durante este século extraordinário possa abster-se de expressar um juízo. A dificuldade baseia-se em compreender” (pág. 15).

O impacto da Era dos Extremos foi tão mais forte na medida que, ao finalizar assim sua tetralogia, Hobsbawm validava ou ratificava uma inflexão em nossa percepção do passado. Procedia a historicizar uma época que se havia considerado até esse momento como presente vivido e que agora se percebia já como cumprida, passada, encerrada, numa palavra: como história. A Guerra Fria saia das crônicas de atualidade e convertia-se em objeto de uma narração histórica que a situava numa sequência mais ampla, que se remontava a 1914. A ideia do século XX ‘breve’ entraria na esfera pública, e posteriormente na percepção comum dos povos.

A visão de um século XIX ‘longo’ não é nova. Em A grande transformação (1944), Karl Polanyi esboçou já o perfil de uma ‘paz dos cem anos’ que se estendia desde o Congresso de Viena, ao final das guerras napoleônicas, até o atentado de Saravejo de 1914 5. O século XIX, que se construiu sobre o equilíbrio internacional entre as grandes potências com Metternich como arquiteto, foi cenário da eclosão das instituições liberais e de um gigantesco crescimento econômico, baseado na estruturação dos mercados nacionais, que se consolidaria com a adoção do padrão ouro (gold standard). Por seu lado, Arno J. Mayer caracterizou o século XIX como uma época de ‘persistência do Antigo Regime’. No plano econômico a burguesia já era a classe dominante, mas sua mentalidade e seu estilo de vida denotavam sua submissão aos modelos aristocráticos que – com a exceção de alguns escassos regimes republicanos, como França depois de 1970 – seguiam sendo claramente pré-modernos. Em 1914, uma segunda Guerra dos Trinta Anos punha fim à agonia secular deste Antigo Regime prorrogado 6. Hobsbawm parece chegar a conclusões análogas. No primeiro volume de sua tetralogia definia à ‘grande burguesia’ da indústria e das finanças como a ‘classe dominante’ da Europa do século XIX 7. Depois no segundo volume, matiza sua análise e sublinha que na maior parte de países a burguesia não exercia o poder político, mas tão só uma ‘hegemonia’ social, se bem o capitalismo era reconhecido como a forma insubstituível do desenvolvimento econômico8. Esta distinção ou separação entre dominação social burguesa e poder político aristocrático – a qual se faz referência, mas sem entrar numa explicação mais profunda – constitui sem dúvida, como sublinharam alguns críticos, a principal limitação dos três primeiros volumes da tetralogia 9. Este hiato inexplorado entre hegemonia social burguesia e ‘persistência do Antigo Regime’, ademais, põe também em questão uma determinada concepção marxista tradicional das ‘revoluções burguesas’, entre 1789 e 1848, cuja crítica mais fecunda ficará em mãos de outros pesquisadores 10.

O ‘longo século XIX” delineado por Hobsbawm é cenário de uma grande transformação do mundo da qual a Europa, no apogeu do imperialismo, foi ao mesmo tempo centro e motor. Todas as correntes políticas aceitavam sua missão civilizadora, encarnada numa raça e numa cultura ‘superiores’. A ideia de progresso – um progresso moral e material ilustrado pelas conquistas da ciência, o aumento incessante da produção e da expansão das ferrovias que uniam à totalidade das grandes metrópoles do continente e que na América iam de costa a costa – passou a ser um artigo de fé imóvel, que não se apoiava já nas potencialidades da razão, mas nas forças objetivas e irresistíveis da sociedade. As páginas mais poderosas de A era dos extremos são as do primeiro capítulo, nas quais Hobsbawm descreve o começo do século XX num clima apocalíptico que literalmente acaba com todas as certezas de uma era anterior de paz e prosperidade. O novo século abre-se como uma ‘era das catástrofes’ (1914-1945) marcada por duas guerras totais devastadoras e aniquiladoras: três décadas nas quais a Europa assistiu à destruição de sua economia e suas instituições políticas. Enfrentado ao desafio da revolução bolchevique, parecia que o tempo do capitalismo se acabara, enquanto as instituições liberais eram como vestígios de uma época pretérita pois se decompunham a olhos vistos, às vezes sem oferecer a mínima resistência, ante o avanço dos fascismos e as ditaduras militares na Itália, Alemanha, Áustria, Portugal, Espanha e em numerosos países da Europa central. O progresso se revelou ilusório. Europa havia deixado de ser o centro do mundo. A Sociedade das Nações, o novo encarregado de manter em pé o esquema, era impotente, estava marcada pela imobilidade. Em comparação com estas décadas catástróficas, os das pós-guerra – “a idade de ouro” (1945-1973) e “o colapso” (1973-1989) – parecem dois momentos distintos de uma só e mesma época que coincide com a história da Guerra Fria. A idade de ouro é a que dos Trinta Gloriosos, com a difusão do fordismo, a expansão do consumo de massas e o advento de uma prosperidade generalizada aparentemente inesgotável. O colapso (landslide)começa com a crise do petróleo em 1973 que põe fim ao boom econômico e prossegue com uma prolongada onda recessiva. No Oriente anuncia-se com a guerra do Afeganistão (1978) que pressagia a crise do sistema soviético e o acompanha até sua decomposição. O colapso vem depois da descolonização – entre a independência da Índia (1947) e a guerra do Vietnã (1960-1975)- durante a qual a maré dos movimentos de libertação nacional e das revoluções antiimperialistas se entremescla com o conflito entre as grandes potências.

Eurocentrismo

A periodização que propõe Hobsbawm é a força de sua tetralogia e ao mesmo tempo revela seus limites. O volume dedicado às ‘revoluções burguesas’ passa muito por cima das guerras de libertação na América Latina durante a década de 1820. O próximo descreve a guerra civil norte-americana, mas dá um tratamento muito superficial à revolta Taiping, o maior movimento social do século XIX que afetou profundamente a China entre 1851 e 1864. Precisamente o último volume, ao restituir o perfil de um século globalizado, mostra o caráter problemático do eurocentrismo em todo caso do ocidentecentrismo que impregna toda a obra. As demarcações históricas selecionadas por Hobsbawm não são generalizáveis. É legítimo considera 1789 ou 1914 como grandes inflexões ou viragens na história da África? O Congresso de Berlim (1884) e os anos de descolonização (1960) seriam, sem sombra de dúvida, balizas mais pertinentes. Vistas desde Ásia, as grandes rupturas do século XX – a independência da Índia (1947), a guerra da Coreia (1950-1953), a guerra do Vietnã (1960-1975) – não coincidem necessariamente com as da história europeia. A Revolução Chinesa de 1949 transformou em profundidade as estruturas sociais e as condições de vida de uma porção da humanidade consideravelmente mais vasta que Europa, mas os décadas compreendidos entre 1945 e 1973 – marcados pela guerra civil, o ‘Grande Salto Adiante’ e a Revolução Cultural – não foram nenhuma ‘idade de ouro’ para os habitantes desse imenso país. No transcurso desde mesmo período, os vietnamitas e os cambojanos sofreram bombardeios mais intensos que devastaram a Europa na Segunda Guerra Mundial, os coreanos conheceram os horrores de uma guerra civil e duas ditaduras militares, enquanto indonésios sofreram um golpe de estado anticomunista de dimensões literalmente exterminadoras (500.000 vítimas). Apenas o Japão vive uma época de liberdade e prosperidade comparável à ‘idade de ouro’ do mundo ocidental. América Latina, por sua parte, se bem acusou o impacto de 1789 -Toussaint Louverture e Simón Bolívar foram filhos da Revolução francesa no continente – ficou, não obstante à margem das guerras mundiais do século XX. Conheceu duas grandes revoluções – a mexicana (1910-1917) e a cubana (1959) – e sua era da catástrofe se situa melhor entre o início da década de 1970 e final dos anos 1980, quando o continente se viu dominado por ditaduras militares sangrentas, já não populistas e desenvolvimentistas, mas neoliberais e terrivelmente repressivas.

Ainda que rechaça toda atitude condescendente e etnocêntrica com relação aos países ‘atrasados e pobres’, Hobsbawm postula sua subalternidade como uma obviedade que evoca por momentos a tese clássica de Engels (de origem hegeliano) sobre os “povos sem história”11.A seus olhos, estes países conheceram uma dinâmica “derivada, não original”. Sua históra se reduziria essencialmente as tentativas de suas elites ‘de imitar o modelo do qual o Ocidente foi pioneiro”, ou seja, o desenvolvimento industrial e tecnocientífico, ‘numa variante capitalista ou socialista’. Com um argumento similar, Hobsbawm parece justificar o culto à personalidade instaurado por Stalin na URSS, considerando isso bem adaptado a uma população campesina cuja mentalidade corresponderia a das plebes ocidentais do século XI. Estas passagens relativizam consideravelmente o alcance das revoluções coloniais, que descreve como rupturas efêmeras e limitadas. No fundo, a A Era dos Extremos não percebe na revolta dos povos colonizados e sua transformação em sujeito político na cena mundial um aspecto capital da história do século XX.

Esta constatação remete à distância sublinhada anteriormente entre dois Hobsbawm: de um lado, o historiador social que se interessa pelos ‘de baixo’ e recupera sua voz; de outro lado, o autor das grandes sínteses históricas nas quais as classes subalternas voltam a ser uma massa anônima. Entretanto, o autor de A Era dos Extremos é o mesmo que escreveu Rebeldes Primitivos (1959) e Bandidos (1969), para quem a aquisição de consciência política pelos camponeses do mundo colonial ‘fez de nosso século o mais revolucionário da história’ 12. Os representantes dos subaltern studies, especialmente Ranahit Guha, reprovaram seu colega britânico que considere as lutas campesinas basicamente como ‘pré-políticas’ por causa de seu caráter ‘improvisado, arcaico e espontâneo’, criticando que seja incapaz de captar a dimensão profundamente política, embora irredutível aos códigos ideológicos do mundo ocidental, desses movimentos. 13. Esta crítica é aplicável, desde logo, mais a sua tetralogia que a seus estudos de história social. Segundo Edward Said, esta representação das sociedades não-ocidentais como lugar de uma história ‘derivada, não-original’ é um ‘ponto cego’ (blindspot) de todo surpreendente num pesquisador que se distinguiu por haver criticado o eurocentrismo da historiografia tradicional e estudado ‘a invenção das tradições’ 14.

Numa resposta a seus críticos, Hobsbawm reconhece o enfoque eurocêntrico de seu livro, afirmando que sua tentativa de ‘representar um século complicado’ não é incompatível com outras interpretações e outras periodizações ou delimitações históricas 15. Não faltam os exemplos neste sentido. Em 1994, Giovani Arrighi publicava O longo século XX, uma obra que se inspira ao mesmo tempo em Marx e Braudel e que propõe uma nova periodização da história do capitalismo. Propõe considerar quatro séculos ‘longos’ que se estenderiam ao longo de 600 anos e que correspondem a diferentes ‘ciclos sistêmicos de acumulação’, ainda que suscetíveis de se supor uns a outros: um século genovês (1340-1630), um século holandês (1560-1780), um século britânico (1740-1930) e, por fim, um século americano (1870-1990). Este último, que se esboça com posterioridade à guerra civil, alcança o apogeu com a industrialização do Novo Mundo e declina nos anos 1980, quando o fordismo se viu substituído por uma economia globalizada e financeirizada. Segundo Arrighi, atualmente entramos num século XXI ‘chinês’, ou seja, num novo ciclo sistêmico de acumulação cujo centro de gravidade se situa tendencialmente no Extremo Oriente.

Michael Hardt e Toni Negri, por sua vez, teorizaram o advento do ‘Império’: um novo sistema de poder sem centro territorial, qualitativamente distinto dos antigos imperialismos baseados no expansionismo dos estados mais além de suas fronteiras. Enquanto que o imperialismo clássico se apoiava numa capitalismo mais do tipo fordista (a produção industrial em série) e promovia formas de dominação de índole disciplinar (a prisão, o campo de concentração, a fábrica), o Império desenvolvia redes de comunicação as quais corresponde uma ‘sociedade de controle’, ou seja, uma forma de ‘biopoder’, em sentido de formas externas da democracia representativa. Falta saber se este ‘Império’ é uma tendência ou um sistema já consolidado que teria convertido que teria convertido aos estados nacionais em peças de museu. Diversos autores parecem duvidar deste último e o debate está longe de ter-se resolvido. 16

Em sua obra, ‘L’Empire, la démocratie et le terrorisme’, Hobsbawm volta-se sobre a história dos impérios para concluir que sua época ficou definitivamente para trás. Estados Unidos dispõe de uma potência militar esmagadora, mas não está em condições de impor sua dominação sobre o resto do planeta. Não representa o núcleo de uma nova ordem mundial comparável à Pax Britannica do século XIX, e pode dizer-se que entramos numa ‘forma profundamente instável de desordem global tanto a escala internacional como no interior dos estados’17.

Adotando uma perspectiva contemporânea, o século XX poderia aparecer também como um ‘século-mundo’. O historiador italiano Marcello Flores data o começo em 1900, ano que marca simbolicamente uma tripla mutação. Em Viena, Freud publica A interpretação dos sonhos, obra inaugural da psicanálise: nos prolegômenos do capitalismo fordista, o mundo burguês opera uma retirada para sua interioridade análoga à ‘ascese intermundana’ que segundo Weber a reforma protestante pôs a serviço do capitalismo nascente. Na África do Sul, a guerra dos bôeres dá lugar às primeiras formas de campos de concentração, com alambrados e barracões para o internamento de civis. Este dispositivo de organização e gestão da vioência projetará sua sombra sobre todo o século XX. Na China, a revolta dos Boxers [1899-1901] foi sufocada pela primeira intervenção das grandes potências coligadas (Alemanha, Grã-Bretanha, França, Itália, Áustria-Hungria, Rússia, EUA e Japão). Depois viriam outras muitas expedições (punitivas, ‘humanitárias’, ‘pacificadoras’, etc.). Segundo Flores, o século XX é a era do ocidentalismo, que comporta a expansão a escala planetária do sistema de valores, os códigos culturais e os modos de vida ocidentais. Desde este ponto de vista, o século XX prossegue, não se esgotou, embora hoje se veja confrontado com novos desafios.

Numa passagem impactante de A era dos Extremos, Hobsbawm escreve que para 80% da humanidade a Idade Média finalizou subitamente nos anos 1950. A partir daquela inflexão vivemos num mundo em que o desenvolvimento dos meios de comunicação suprimiu as distâncias, a agricultura já não é a fonte principal de riqueza e a maioria da população habita em áreas urbanas. Isso constitui uma verdadeira revolução, escreve, que fechou de golpe dez mil anos de história: o ciclo iniciado com a difusão da agricultura sedentária 18.

Traduzida esta observação em termos historiográficos significa que se adotada a história do consumo em vez da história política como linha de demarcação fundamental o século XX poderia tomar uma coloração muito diferente. Entre 1910 e 1950, as condições de vida dos europeus permaneceram substancialmente inalteradas. A grande maioria vivia em casas sem quarto e gastava a maior parte de sua renda em alimentação. Em 1970, em contrapartida, já era normal viver num apartamento provido de calefação central, telefone, frigorífico, lavadora e televisão, sem esquecer um veículo na garagem (o que constituía o lote completo dos operários das fábricas Ford em Detroit, desde a década de 1930). 19. Ou seja, que são possíveis outras delimitações históricas. Isso não condena a perspectiva eleita por Hobsbawm, mas indica que sua periodização não tem nada de normativo.

Comunismo

O fio vermelho que atravessa A Era dos extremos é a trajetória do comunismo, pelo que resulta praticamente inevitável a comparação com O passado de uma ilusão de Furet (1995). Hobsbawm nunca viu em François Furet um grande historiador. Furet aparece a seus olhos, no fundo, como um epígono do conservador Alfred Cobban. Em realidade, o autêntico objetivo da interpretação liberal de 1789 foi sempre 1917. Furet colocou isso claramente de manifesto num panfleto de uma rara violência, a polêmica como Pensar a revolução francesa (1978), e seu último balanço da história do comunismo não era, para Hobsbawm, senão ‘um produto tardio da época da guerra fria’. 20.

Se O passado de uma ilusão não dissimula a altivez do vencedor, nota-se muito que A Era dos Extremos está escrito por um perdedor que não renega sua luta. Ao contrário do parecer de muitos comentaristas, entendo que a melancolia – sedimento de todo um século de batalhas perdidas – está muito presente nas páginas de Hobsbawm, mas não nas de Furet, da mesma maneira que, guardando todas as distâncias, Walter Benjamin pode entrevê-la no velho Blanqui, mas não em Tocqueville. Furet dedica sua obra ao advento, ascensão e queda do comunismo; Hobsbawm estuda também a crise e o renascimento do capitalismo. Depois do colapso da Europa liberal em 1914, o capitalismo teve que se enfrentar ao desafio da revolução de Outubro e a uma crise planetária em 1929. Durante os anos de entreguerras seu porvir parecia bastante incerto. Keyne, o mais brilhante e original de seus terapeutas, considerava-o historicamente condenado e, entretanto, o capitalismo conheceu um relançamento espetacular depois de 1945, até sua vitória em 1991.

A comédia e a tragédia, duas estruturas narrativas clássicas, serão segundo o cientista político Torbjorn L. Knutsen, o pano de fundo dos livros de Furet e Hobsbawm, que este estudioso submeteu a uma análise comparada 21. Ambos explicam a mesma história, com os mesmos atores, mas a distribuição dos papéis e o tom do relato são consideravelmente distintos. O passado de uma ilusão se atém às regras da comédia. Põe em cena as desventuras de uma família liberal que vive em perfeita harmonia, mas cuja existência se vê subitamente perturbada por uma enjoante série de imprevistos, equívocos e catástrofes. Por um instante tudo parece em questão. Aparecem personagens malvados, com os traços do fascista e do comunista, que exercem uma influência corruptora sobre jovens almas inocentes. Mas os malvados são finalmente desmascarados e sua sedução totalitária deixa de funcionar. Uma vez dissipado o equívoco, tudo volta a estar em ordem e a comédia acaba com um happy end tranquilizador. Longe de ser ‘um destino providencial da humanidade’, escreve Furet, o fascismo e o comunismo não foram mais que ‘episódios breves, encapsulados entre aquilo que pretenderam destruir’: a democracia liberal 22. Como conclusão de seu livro, nos quer ‘condenados a viver no mundo em que vivemos’, o mundo do capitalismo liberal, cujas fronteiras estão definidas pelos ‘direitos humanos e o mercado’ 23. Mas esta ‘condenação’ lhe parece um destino providencial que dá a sua obra uma coloração apologética e teleológica ao mesmo tempo.

Hobsbawm, por seu lado, escreveu uma tragédia. A esperança libertadora do comunismo atravessou o século como um meteorito. Seu objetivo não era a destruição da democracia, mas a instauração da igualdade, a inversão da pirâmide social, que os oprimidos e explorados tomaram o destino em suas mãos. A revolução de Outubro – um sonho que ‘vive ainda em mim’, afirma em sua autobiografia24 – transformou esta esperança de libertação de uma ‘utopia concreta’. A esperança, encarnada no Estado soviético, conheceu numa primeira fase um ascenso espetacular, ao que seguiu um prolongado declive, quando sua força propulsora se esgotou, até chegar à queda final. O socialismo soviético foi espantoso. Hobsbawm o reconhece sem vacilação, mas pensa que não havia alternativa. “A tragédia da revolução de Outubro – escreve – é precisamente não ter podido produzir senão um socialismo autoritário, implacável e brutal’. Seu fracasso estava inscrito em suas premissas, é verdade, mas esta constatação não o converte numa aberração histórica. Hobsbawm não compartiha a opinião de Furet, para quem a revolução de Outubro, à semelhança da Revolução francesa, não foi senão um despropósito que poderia ter sido evitado. O comunismo não podia senão fracassar, mas ainda assim cumpriu uma função necessária. Sua vocação era sacrificial. “O resultado mais perdurável da revolução de Outubro, cujo objetivo era abater a escala mundial o capitalismo”, escreve Hobsbawm na História do século XX, ‘foi salvar seu adversário, tanto na guerra como na paz, incitando-o, depois da Segunda Guerra Mundial, a reformar-se”. Salvou-o Stalingrado, pagando o preço mais alto na resistência contra o nazismo. E ademais forçou-o a transformar-se, pois não é em absoluto seguro que em ausência do desafio que representava a URSS o capitalismo tivesse passado pelo New Deal e pelo Estado de Bem-Estar, nem que o liberalismo tivesse aceito finalmente o sufrágio universal e a democracia (esta última de modo algum é ‘idêntica’ ao liberalismo, nem filosófica nem historicamente, contrariamente ao que indica o axioma de Furet). Mas a vitória do capital não incita desde logo o otimismo. Melhor parece evocar o Anjo da História de Walter Benjamin, citado de passagem por Hobsbawm, que via o passado como uma montanha de escombros.

Furet escreve uma apologia auto-satisfeita do capitalismo liberal; Hobsbawm, uma apologia melancólica do comunismo. Desde este ponto de vista, ambos são discutíveis. O balanço do socialismo real que estabelece Hobsbawm é, em muitos aspectos, implacável. Considera um grave erro a fundação da Internacional Comunista em 1919, que dividiu para sempre o movimento operário internacional. Reconhece também, a posteriori, a lucidez do filósofo menchevique Plekhanov, para o qual uma revolução comunista na Rússia dos Czares só podia produzir ‘um império chinês tingido de vermelho’. Traça um retrato severo de Stalin: ‘um autocrata de uma ferocidade, uma crueldade e uma ausência de escrúpulos extraordinárias, para não dizer únicas’. Mas se apressa a acrescentar que nas condições da URSS das décadas de 1920 e 1930, não se teria podido levar a cabo nenhuma política de industrialização e de modernização sem violência nem coerção. O stalinismo era, portanto, inevitável. O povo soviético pagou um alto custo, mas aceitou Stalin como guia legítimo, à semelhança de Churcill, que em 1940 obteve o apoio dos britânicos prometendo-lhes ‘sangue, suor e lágrimas’.

O stalinismo foi o produto de uma volta sobre si mesma da Revolução russa, isolada depois da derrota das tentativas revolucionárias na Europa central, rodeada por um entorno capitalista hostil e, sobretudo, enfrenta a partir de 1933 à ameaça nazi. Hobsbawm compara o universalismo da revolução de Outubro com o da Revolução Francesa. Descreve sua influência e sua difusão como a força magnética de uma ‘religião secular’ que faz recordar o Islã das origens, dos séculos VII e VIII 25. Desta ‘religião secular’, Hobsbawm nunca foi um crente ingênuo ou cego, mas sim, certamente, um discípulo fiel, incluindo aqueles casos nos quais seus dogmas revelaram-se enganosos. Foi um dos pouquíssimos representantes da historiografia marxista britânica que não abandonou o Partido Comunista em 26. Seu olhar complacente em relação ao stalinismo recorda outro grande historiador, Isaac Deutscher, que via em Stalin uma espécie de combinação de Lenin e Ivan, o Terrível, do mesmo modo que Napoleão sintetizara em sua personalidade a Revolução Francesa e o absolutismo do Rei Sol. 27. Deutscher alimentava a ilusão de uma possível autorreforma do sistema soviético, enquanto que Hobsbawm justifica isso depois de sua queda. Não podia senão fracassar, mas tinha que crer nele. Em novembro de 2006, Hobsbawm lançava-se ainda a uma justificação da repressão soviética na Hungria em 1956, e inclusive a uma apologia de János Kádár 28. Mais que a vantagem epistemológica inerente à visão do vencido, segundo a fórmula de Reinhar Koselleck, este balanço revela, como indica Perry Anderson, uma dimensão consolatória. 29.
Barbárie

O século XX que retrata Hobsbawm é em realidade um díptico no qual a Segunda Guerra Mundial marca o divisor de águas. Apresenta-a como uma ‘guerra civil ideológica internacional’ na qual, para além dos estados e dos exércitos, enfrentavam-se ideologias, visões de mundo, modelos de civilização. Num estudo paralelo a A Era dos Extremos situa o núcleo profundo desta contenda no enfrentamento entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo, uma encarnada pela coalizão das democracias ocidentais e o comunismo soviético, a outra pelo nazismo e seus aliados. Foi o conjunto dos ‘valores herdados do século XVIII’ o que impediu o mundo de ‘sumir nas trevas’. 30. Ao contrário dos filósofos da Escola de Frankfurt, Hobsbawm não chega ao ponto de identificar as raízes da barbárie na própria civilização, uma civilização que teria transmutado o racionalismo emancipador das Luzes na racionalidade instrumental cega e dominadora do totalitarismo. A antinomia absoluta entre civilização e barbárie pela qual aposta – e não é casual que cite O assalto da razão de Georg Lukács (1953)- leva-o a rechaçar o conceito de totalitarismo. O pacto de não-agressão germano-soviético do verão de 1939, longe de revelar a identidade do nazismo e do comunismo, não foi senão um parênteses efêmero, oportunista e contra-natural. “Se as similitudes entre os sistemas de Hitler e Stalin são inegáveis’, escreve Hobsbawm criticando Furet, sua aproximação ‘se fez a partir de raízes ideológicas profundamente díspares e muito distanciadas’. 31 Sua convergência foi superficial, de tal maneira que somente permitiria estabelecer analogias formais, mas não definir uma natureza comum. O século XX opôs a liberdade à igualdade, duas ideologias procedentes da tradição do Iluminismo, enquanto que o nazismo era uma variante moderna do Contra-Iluminismo, que tomava como fundamento o racismo biológico. 32.

O recurso ao conceito de ‘guerra civil’ suscita outra comparação, esta vez com o historiador conservador Ernst Nolte. Um certo ar de nolteismo impregna, com efeito, A Era dos Extremos, ainda que, bem entendido, trata-se de um nolteismo pelo avesso. Não há nenhuma convergência ideológica, nenhuma cumplicidade entre Nolte e Hobsbawm, mas ambos partem da mesma constatação – o duelo de titãs entre o nazismo e o comunismo como ponto álgido do século XX – para deduzir daqui leituras simétricas e substancialmente apologéticas de um ou de outro. Nolte reconhece os crimes nazistas, mas os interpreta como excessos lamentáveis derivados de uma reação legítima de autodefesa da Alemanha ameaçada pelo comunismo. As câmaras de gás – assim reza sua bem conhecida tese – não foram mais do que uma imitação da violência bolchevique, o autêntico “prius lógico e fatual” dos horrores totalitários do século XX 33. Hobsbawm não nega os crimes do stalinismo, mas os toma por inevitáveis, ainda que lamentáveis, ao inscrevê-los num contexto objetivo que não deixava alternativas. Duas sombras enormes gravitam sobre estas interpretações. Atrás de Nolte está a sombra de Heidegger, de que ele mesmo foi discípulo, que havia visto em Hitler uma expressão ‘autêntica’ do Dasein alemão. Atrás de Hobsbawm, a sombra de Hegel, que justificou o Terror jacobino na Fenomenologia do espírito. Ou melhor, para ganhar precisão, a sombra de Alexandre Kojeve, quem, igual a Hegel contemplando Napoleão em Jena, acreditou perceber em Stalin o “Espírito do mundo” 34.

É verdade que Hobsbawm reconhece a grande importância do antifascismo para uma geração – a sua – que viveu a guerra civil espanhola e depois a Resistência, mas de maneira um tanto estranha não dá tanto relevo ao impulso extraordinário que significou a URSS, por sua simples existência, para o levante dos povos colonizados contra o imperialismo. É assim mesmo discreto em relação ao papel desempenhado por alguns partidos comunistas no mundo ocidental onde, apesar de seu caráter de ‘contra-sociedade’, igreja e quartel ao mesmo tempo, foram capazes de dar representação política e um sentimento de dignidade social às classes trabalhadoras. Entre os muitos rostos do comunismo ao longo do século XX, Hobsbawm escolhe legitimar o pior, o mais opressor e coercitivo, o do stalinismo. Nascido no coração da guerra civil europeia, seu comunismo jamais foi libertário. No fundo, sempre foi um homem ordeiro, uma sorte de "comunista tory" 35.

Um enfoque braudeliano

Em sua autobiografia Hobsbawm reconhece a influência que exerceu sobre ele a escola dos Annales. Recorda o impacto que causou O Mediterrâneo de Braudel nos jovens historiadores dos anos 50 e depois, valendo-se de uma fórmula de Carlo Ginzburg, constata a passagem da historiografia, depois de 1968, do telescópico ao microscópico: um deslocamento da análise das estruturas socioeconômicas ao estudo das mentalidades e das culturas 36. Em A Era dos Extremos o século é observado com o telescópio. Hobsbawm adota um enfoque braudeliano no qual a longue durée predomina sobre o acontecimiento. Passa-se em revista os grandes momentos de um século dramático como se fossem peças de um conjunto, que raramente são apreendidas em sua singularidade. Entretanto, trata-se de uma época marcada por rupturas súbitas e imprevistas, por inflexões de grande entidade que resulta difícil reconduzir a suas ‘causas’, por bifurcações que não se inscrevem logicamente nas tendências da longue durée. Podemos achar um lugar para elas numa sequência reconstruída a posteriori, mas não apresentá-las como as etapas necessárias de um processo. Diversos críticos sublinharam o silêncio de Hobsbawm sobre Auschwitz e Kolyma, dois nomes que não figuram no índice de seu livro. Os campos de concentração e de extermínio desaparecem de seu relato. No século da violência, as vítimas ficam reduzidas a quantidades abstratas. A observação de Hobsbawm a propósito da Shoah – “Não creio que possa haver uma expressão verbal adequada para estes horrores”- 37 é sem dúvida certa, apesar do que foi escrito por Paul Celan ou Primo Levi, e desde logo é psicologicamente compreensível, mas não pode fazer as vezes de uma explicação. Mais ainda quando é compartilhada por historiadores que, como Saul Friedlander, dedicaram sua vida ao estudo do extermínio dos judeus da Europa tratando de por em palavras um ‘acontecimento’ que quebrou o século, que introduziu o genocídio em nosso léxico e que modificou nossa consideração sobre a violência. Se esta observação se erigisse em premissa metodológica, daria lugar a uma certa forma de misticismo obscurantista, o Holocausto passaria a ser uma entidade metafísica por definição indizível e inexplicável, e isso seria de todo surpreendente na pena de um grande historiador.

Esta indiferença com o acontecimento não afeta somente aos campos nazistas e ao Gulag, mas também a outros momentos-chave do século XX. Por exemplo, a tomada do poder por Hitler na Alemanha, em janeiro de 1933, inscreve-se numa tendência geral de auge do fascismo na Europa, mas não é analisada como uma crise específica cujo desenlace não era inelutável. (Ian Kershaw, um dos melhores especialistas em história do nazismo considera aquele episódio um ‘erro de cálculo’ das elites alemãs). O mesmo caberia se dizer de Maio de 68, cuja apreciação por Hobsbawm aparece fortemente condicionada por elementos de ordem autobiográfico (diz em suas memórias que prefere o jazz ao rock e que nunca vestiu calças jeans) 38. Dá credibilidade, de maneira farto expeditiva, à opinião do ‘conservador inteligente’ Raymond Aron de que Maio de 68 não foi, ao fim e ao cabo, senão um ‘psicodrama’. As barricadas do Barrio Latino, a grege geral mais importante desde 1936 e a fuga a Baden Baden do general De Gaulle convertem-se numa peça de “teatro de rua” 39.

A adoção deste enfoque de “longue durée” que suprime a singularidade dos acontecimentos não é uma inovação do último Hobsbawm, pois já estava presente nos volumes anteriores de sua tetralogia. Agora, em A Era dos Extremos, a longa duração não se escreve numa visão teleológica da história. Hobsbawm estabelece com Marx uma relação crítica e aberta, não dogmática. Sempre rechaçou a visão de uma sucessão hierárquica e inelutável de estágios históricos da civilização, típica de um marxismo que considera ‘vulgar’. Mas há algumas décadas pensava que a história tinha uma direção e que marchava para o socialismo. 40. Em a A Era dos Extremos, esta certeza desapareceu: o porvir não o conhecemos. As últimas palavras do livro – um futuro de ‘obscuridade’ – parecem fazer eco ao diagnóstico de Max Weber, que em 1919 anunciava ‘uma noite polar de uma obscuridade e uma dureza glaciais’41. Hobsbawm fez a ata do fracasso do socialismo real: ‘Se a humanidade há de ter um futuro, não será prolongando o passado ou o presente’. Uma nova catástrofe se esboça no horizonte, mas as tentativas de mudar o mundo que se fizeram no passado fracassaram. É preciso mudar a rota e não temos bússola. A inquietude de Hobsbawm é a de nosso tempo.

Notas

1 Eric Hobsbawm, Historia del Siglo XX, 194-1991, Barcelona, Crítica, 19915

2 A recepção do livro, por outro lado, coincidiu com o êxito do blairismo na Inglaterra, em relação ao qual tomou distâncias depois de ter sido um de seus inspiradores desde as páginas das revista Marxism Today. Sobre as contradições políticas de Hobsbawm que prestou apoio ao novo trabalhismo sem se dar conta de que Tony Blair se situava numa linha de continuidade com o thathcerismo, ver Perry AndersonLa izquierda en el mundo de las ideas, Madrid, Akal, 2008, pp. 297-340.

3 Ver Pierre Nora Traduire nécéssité et dificultés, Le Débat 93, 1997, pág. 94

4 Ver por exemplo Eric Hobsbawn, Historia de la clase obrera e ideología en E. J. Hobsbawn, Estudios sobre la formación y la evolución de la clase obrera, Barcelona, Crítica, 1987

5 Karl Polany, La gran transformación, Madrid, La Piqueta, 1989

6 Arno Mayer, La persistencia del Antiguo Régimen. Europa hasta la Gran Gurerra, Madrid, Alianza, 1984

7 Eric Hobsbawm, Las revoluciones burguesas, Madrid, Guadarrama, 1974

8 Eric Hobsbawm, La era del capitalismo, Madrid, Guadarrama, 1977

9 Perry Anderson, La izquierda en el mundo de las ideas,Madrid, Akal, 2008, pp. 296-297.

10 Não aludo aqui à apresentação caricaturesca que faz deste conceito Furet em seu famoso panfleto Penser la Révolution française (Paris, Gallimard, 1978), mas melhor a Ellen Meikins-Wood. The origins of Capitalism. A lonf Review. Londres, Verso, 2002, pgs. 118-121.

11 Algo um tanto paradoxal quando se trata do autor de um ensaio intitulado Todos pueblos tienen historia en Sobre historia,Crítica 1998, págs.. 176-182.

12 Eric Hobsbawm, Rebeldes primitivos. Estudios sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en los siglos XIXy XX, Barcelona, Ariel, 1968.

13 Ranajrt Guha, Elementary aspects of Peasant Insurgency in Colonial India, Cambridge, Harvard U.P. 1983, págs. 5-13.

14 Edward Said Contra mundum en Reflection on exile, Londre, Granta, 2001, pág. 28. E. Said alude a Eric Hobsbawm y Terence Ranger (dirs.) L’invention de la tradition, Paris, Éditions Amsterdam, 2006.

15 Eric Hobsbawm, Conclusion en Silvio Pons L’Età degli estremi. Discutendo con Hobsbawn sul Seculo breve, Roma, Carocci, 1998, pág. 33.

16 Ver, por exemplo, Ellen Meikins Wood, Empire of Capital,Londres, Verso, 2003, pag. 6 e Daniel Bensaid, Elogio de la política profana, Madrid, Península, 2009.

17 Eric Hobsbawm, On Empire America, War and Global Supremacy, Nueva York, Pantheon Books, 2998, pág. .

18 Ibid pág. 35 y Age of extremes, pág. 382.

19 Ver sobre esta questão Victoria de Grazia, Irresistible Empire America’s Advance Through Twentieth Century Europe, Cambridge, Belknap press, 2005

20 Eric Hobsbawm, Historie et illusion, Le Débat 89, 1996, pág. 138. Para a crítica de Furet como historiador da revolução francesa, ver Eric Hobsbawm, Aux armes historians. Deux siécles d’histoire de la révolution française. La Découverte, 2007.

21 Torbjorn Knutsen, Twuentieth Century Stories, Journal ofPeace Research, 1, 2002, pág. 120

22 François Furet, El posado de uno ilusión. Ensayo sobre lo Idea comunista en el siglo XX, Madrid, FCE, 1995.

23 lbid., pág. 572.

24 Eric Hobsbawm, Años interesantes. Uno vida en el siglo XX,Barcelona, Crítica, 2003].

25 Ibid. Pág. 128 y Age of extremes, pág. 502.

26 Ibid. Págs. 141, 211 y 218.

27 Isaac Deutscher, Two revolutions, en Marxism, Wars and Revolutions, Londres, Verso, 184. Hobsbawm escreve que Deutscher o aconselhou em 1957 que não abandonasse o Partido Comunista (Años interesantes)

28 Eric Hobsbawm, Could it hace been different?, London Review of Books, 16 noviembre 2006.

29 Perry Anderson, La izquierda vencida

30 Eric Hobsbawm, La barbarie: guía del usuario, en Sobre la historio, cit.. págs.. 253-265].

31 Eric Hobsbawm, Histoire et illusion.

32 Sobre este punto Hobsbawm coincide con Dan Dineé Dos johrhundert verstehen. Eine universo/historische Deutung.Munich, Luchterhand, 1999, págs. 54 y 68.

33 Ernst Nolte, Vergangenheit die nicht vergehen wilb, en Histonkerstreit, Munich, Piper, 1987, pág. 45.

34 Esta leitura de Hegel é explícita num historiador do pensamento político cuja interpretação do stalinismo apresenta muitos pontos em comum com a de Hobsbawm: me refiro a Domenico Losurdo, Stalin Storia e critica de una legenda nera, Carocci, 2008, págs.. 12 y 113-123. Sobre Hegel y Stalin, véase Alexandre Kojéve, Tyrannie et sagesse ( 1954), en Leo Strauss,De la tyronnte, trad. H. Keré París, Gallimard, 1983, págs. 217-280.

35 Depois de tudo, Hobsbawm sempre foi uma “pessoa da ordem” como sublinha Tony Judt, Eric Hobsbawm y el romance del comunismo en Tony Judt Sobre el olvidado siglo XX, Madrid, Taurus, 2008, pág.s 121-132.

36 Eric Hobsbawm, Interesting Times, pág. 294.

37 Eric Hobsbawm, Commentaires, Le Débat 93, 1997, pág. 88. O silêncio de Hobsbawm sobre Auschwitz e Kolyma é destacado por Krzystof Pomian, Quel XXe Siécle?, no mesmo númedro de Le Débat, págs. 47 y 74. Ver assim mesmo a intervençaõ de Arno Mayer na recompilação de ensaios anteriormente citada L’Età degli estremi, pág. 33.

38 Eric Hobsbawm, lnteresting Times, op. cit., págs. 252 y 262.

39 Ibíd., pág. 249 y Age o Extremes, op. cit., pág. 580.

40 Eric Hobsbawm, What do Historians owe to Karl Marx? ( 1969), en On History, op. cit., págs. 152-153.

41 Max Weber, Le Savant et le Politique, París, La Découverte, 2003, pág. 205.

Enzo Traverso é professor de ciência política na Universidade de Picardie Júlio Verne. Este artigo foi publicado na versão antiga do RILI. Entre as muitas obras de Enzo Traverso, podemos citar: La violence nazie. Une généalogie européenne. Ed. La Fabrique (2002); Le passé, modes d’emploi. Histoire, mémoire, politique, La Fabrique (2005); L'histoire comme champ de bataille. Interpréter les violences du XXe siècle, Ed. La Découverte (2011).

1 de outubro de 2012

Obituário de Eric Hobsbawm

Historiador na tradição marxista com alcance global

Martin Kettle e Dorothy Wedderburn


Eric Hobsbawm tornou-se o historiador mais respeitado da Grã-Bretanha. Fotografia: Karen Robinson

Tradução / Se Eric Hobsbawm tivesse morrido há 25 anos atrás, os obituários o descreveriam como o historiador marxista britânico mais notável e acabariam mais ou menos aí. Mas ao morrer agora, aos 95 anos, ele atingiu uma posição única na vida intelectual de seu país. Nos últimos anos, tornou-se o historiador britânico mais respeitado de qualquer tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela esquerda quanto pela direita, e um dos poucos historiadores de qualquer era a desfrutar reconhecimento nacional e internacional genuíno.

Diferente de outros, Hobsbawm atingiu tal status sem voltar-se contra o marxismo ou Marx. Em seu 94º ano, ele publicou How to change the world [leia resenha em Outras Palavras], uma forte defesa da relevância contínua de Marx na sequência do colapso dos bancos de 2008-2010. Além disso, atingiu o auge de sua reputação em um momento em que as ideias e projetos socialistas, que tanto estimularam sua escrita por mais de meio século, estavam em desarranjo histórico – algo de que ele esteve muito consciente.

Em uma profissão conhecida por preocupações microscópicas, poucos historiadores envolveram-se num campo tão vasto, com tantos detalhes ou com tanta autoridade. Até o fim, Hobsbawm considerava-se essencialmente um historiador do século 19, mas seu entendimento desse e de outros séculos era amplo e cosmopolita.

O alcance de seu interesse pelo passado, e seu excepcional domínio dos temas pelos quais se embrenhava sempre espantaram a muitos, principalmente na série de quatro volumes A era das… na qual se destila a história do mundo capitalista de 1789 a 1991. “A capacidade de Hobsbawm de armazenar e recuperar detalhes atingiu agora a escala normalmente alcançada apenas por grandes arquivos com grandes equipes”, escreveu Neal Ascherson. Tanto por seu conhecimento de detalhes históricos quanto por seu extraordinário poder de síntese, tão bem colocados no projeto dos quatro volumes, ele foi incomparável.

Hobsbawm nasceu em Alexandria, um bom lugar para um historiador do império, em 1917, um bom ano para um comunista. Ele faz parte da segunda geração britânica de sua família, neto de um judeu polonês e marceneiro que foi para Londres nos anos 1870. Oito filhos, incluindo Leopold, pai de Eric, nasceram na Inglaterra e todos ganharam cidadania britânica quando nasceram (o tio de Hobsbawm, Harry, tornou-se o primeiro prefeito eleito pelo Partido Trabalhista em Paddington).


Mas Eric era um britânico com um background pouco comum. Outro tio, Sidney, foi para o Egito antes da Primeira Guerra Mundial e encontrou um emprego para Leopold numa agência de despachos marítimos. Lá, em 1914, Leopold Hobsbawm conheceu Nelly Gruen, uma jovem vienense de uma família de classe média, que tinha ganho uma viagem ao Egito como prêmio por ter terminado seus estudos. Os dois ficaram noivos, mas a eclosão da I Guerra Mundial os separou. O casal acabaria se casando na Suíça em 1916, voltando ao Egito para o nascimento de seu primeiro filho, Eric.

“Todo historiador tem sua história de vida, um ponto de vista privado para examinar o mundo”, ele disse em 1993, em uma palestra em Creighton, numa das várias ocasiões nos seus últimos anos em que tentou relacionar sua história de vida com sua escrita. “Meu ponto de vista foi construído a partir de uma infância em Viena nos anos de 1920, os anos em que Hitler ganhou força em Berlim, que determinaram minha visão política e meu interesse pela história; e na Inglaterra, especialmente em Cambridge nos anos 1930, quando confirmei as duas escolhas”.

Em 1919, a jovem família assentou-se em Viena, onde Eric frequentou a escola primária, período que ele mais tarde relembrou em 1995, em um documentário na televisão que mostrava fotos de um jovem Hobsbawm magro, usando shorts e meias até os joelhos. A política teve seu impacto mais ou menos nessa época. A primeira memória política de Eric é de Viena, em 1927, quando trabalhadores queimaram o Palácio da Justiça. A primeira conversa política de que ele se lembrava aconteceu em um sanatório, por volta desse ano. Duas mulheres judias estavam discutindo Leon Trotsky. “Diga o que você quiser”, uma disse a outra, “mas ele é um jovem judeu chamado Bronstein”.

Em 1929, seu pai morreu de um ataque cardíaco. Dois anos depois, sua mãe morreu de tuberculose. Eric tinha 14 anos, e seu tio Sidney assumiu a responsabilidade, e levou Eric e sua irmã Nancy para Berlim. Como um adolescente em Berlim na República Weimar, Eric inevitavelmente se politizou. Ele leu Marx pela primeira vez, e se tornou um comunista.

Ele sempre se lembrou do dia, em janeiro de 1933, quando, ao sair da estação Halensee S-Bahn voltando da escola para casa, viu uma manchete em um jornal anunciando que Hitler havia sido eleito chanceler. Por volta dessa época, juntou-se ao Socialist Schoolboys, que descreveu como “de fato parte do movimento comunista” e vendeu a publicação Schulkampf (“Luta Estudantil”). Ele manteve o mimeógrafo da organização sob sua cama e, dada sua facilidade posterior em escrever, provavelmente também redigiu também a maioria dos artigos. A família permaneceu em Berlim até 1933, quando Sidney Hobsbawm foi enviado para a Inglaterra por seus empregadores.

O garoto adolescente que foi morar com sua irmã em Edgware, em 1934, descreveu a si mesmo posteriormente como “completamente europeu e germanófono”. A escola, porém, “não era um problema” pois o sistema educacional inglês estava “muito atrás” do alemão. Um primo em Balham apresentou-o ao jazz pela primeira vez – o “som irrespondível”, ele chamava. O grande momento da conversa, ele escreveria uns 60 anos depois, foi quando ouviu pela primeira vez a banda Duque Ellington “em sua forma mais imperialista”. Atuou durante uma parte dos anos 1950 como crítico de jazz do New Statesman, e publicou uma edição especial, The Jazz Scene, sobre o assunto, em 1959, sob o pseudônimo de Francis Newton (muitos anos mais tarde, a obra foi relançada com Hobsbawm identificado como o autor).

Ao aprender a falar inglês corretamente, Eric tornou-se aluno na escola de gramática Marybone e ganhou, em 1936, uma bolsa de estudos para a King’s College, em Cambridge. Foi nessa época que uma frase ficou comum, entre seus amigos comunistas de Cambridge: “tem alguma coisa que o Hobsbawm não sabe?”. Ele tornou-se membro da legendária Cambridge Apostles. “Todos nós pensamos que a crise de 1930 era a crise final do capitalismo”, ele escreveu 40 anos depois. Mas, acrescentou, “não era”.

Quando a II Guerra Mundial teve início, Hobsbawm voluntariou-se, como muitos comunistas, para trabalho de inteligência. Mas suas ideias políticas, que nunca foram segredo, levaram à rejeição. Então ele tornou-se um escavador improvável na 560ª Companhia de Campo, que posteriormente descreveu como “uma unidade muito operária, tentando construir defesas notoriamente inadequadas contra invasões no litoral de East Anglia”. Essa também foi uma experiência formativa para o jovem prodígio intelectual, muitas vezes ausente. “Havia algo sublime sobre eles e a Inglaterra naquele tempo”, escreveu. “Aquela experiência na guerra converteu-me em um operário inglês. Eles não eram muito inteligentes, exceto os escoceses e galeses, mas eles eram pessoas muito, muito boas”.

Hobsbawm casou-se com sua primeira esposa, Muriel Seaman, em 1943. Depois da guerra, de volta a Cambridge, tomou outra decisão: abandonou um doutorado planejado sobre a reforma agrária no norte da África para fazer uma pesquisa sobre os socialistas fabianos. Foi uma escolha que abriu a porta tanto para uma vida de estudos sobre o século 19 quanto para uma preocupação igualmente duradora sobre os problemas da esquerda. Em 1947, ele conseguiu seu primeiro trabalho permanente, como professor conferencista de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu grande parte da sua vida como professor.

Com o início da Guerra Fria, um macartismo acadêmico muito britânico fez com que a cátedra de Cambridge, que Hobsbawm sempre cobiçou, nunca se materializasse. Ele viajava de Cambridge para Londres, como um dos principais organizadores e animadores do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, uma academia brilhante e radical que reuniu alguns dos mais proeminentes historiadores do pós-guerra. Entre seus membros, estavam Christopher Hill, Rodney Hilton, AL Morton, EP Thompson, John Saville e, mais tarde, Raphael Samuel. O que quer que o grupo tenha alcançado (e Hobsbawm escreveu uma dissertação sobre ele em 1978), a experiência certamente estabeleceu um núcleo para seus primeiros passos como grande escritor de História.

O primeiro livro de Hobsbawm, “Labour’s Turning Point” (1948) – uma coleção editada de documentos da era do socialismo Fabiano – pertence claramente à época de militância no Partido Comunista, assim como o seu engajamento no debate famoso sobre as consequências econômicas do início da Revolução Industrial, um tema sobre o qual ele e RM Hartwell teceram argumentos em sucessivos números da Economic History Review. A fundação do jornal Past and Present também pertence ao mesmo período. É até hoje o mais duradouro periódico do grupo de historiadores do PC britânico.

Hobsbawm nunca deixou o Partido Comunista e sempre pensou em si mesmo como parte de um movimento internacional comunista. Para muitos, este continua a ser o obstáculo insuperável para abraçar sua obra. Contudo, ele sempre manteve-se muito mais como um livre-pensador autorizado a permanecer dentro das fileiras do partido. Sobre a invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, um evento que dividiu o PC e provocou a saída de muitos intelectuais do partido, ele foi uma voz de protesto que, no entanto, permaneceu.

Todavia, a exemplo de seu contemporâneo Christopher Hill, que deixou o PC naquele momento, a combinação, de alguma forma, do trauma político de 1956 e o início de um longo e feliz segundo casamento, provocou um período sustentado e frutífero de produção no campo da História, o que veio a estabelecer sua fama e reputação. Em 1959, ele publicou sua primeira grande obra, “Primitive Rebels”, um relato notavelmente original, especialmente para aqueles tempos, das sociedades secretas e das culturas milenares do Sul da Europa (ele ainda estava escrevendo sobre o assunto recentemente, em 2011). Voltou a esses temas uma década depois, em Captain Swing, um estudo detalhado do protesto rural do início do século 19 na Inglaterra, em co-autoria com George Rudé, e Bandidos, um esforço mais abrangente de síntese. Essas obras servem de lembretes de como Hobsbawm foi tanto uma ponte entre a historiografia europeia e a britânica e, também, um precursor do aumento notável do estudo da história social no pós-1968 britânico.

À essa altura, porém, Hobsbawm já havia publicado o primeiro dos trabalhos sobre os quais suas reputações popular e acadêmica iriam se assentar. Uma coleção de alguns dos seus ensaios mais importantes, Labouring Men, apareceu em 1964 (uma segunda coleção, Worlds of Labour, iria surgir 20 anos mais tarde). Mas foi Industry and Empire (1968), uma compilação convincente de muito do seu trabalho sobre a revolução industrial da Grã-Bretanha, que alcançou o mais alto reconhecimento – e, não à toa, raramente a obra encontra-se fora de catálogo.

Foi ainda mais influente, no longo prazo, a série a Era de..., que começou em 1962 com a A Era das Revoluções: 1789-1848. Ela foi sucedida por A Era do Capital: 1848-1875 (1975) e, depois, por A Era do Império: 1875-1914 (1987). Um quarto volume, A Era dos Extremos: 1914-1991, mais peculiar e especulativo, ainda que, sob alguns aspectos, mais notável e admirável do que as obras anteriores, ampliou a sequência em 1994.

Os quatro volumes incorporam todas as melhores qualidades de Hobsbawm – a varredura do tema e a compreensão estatística combinadas pelo ar de anedota, a atenção pelas nuances e o significado das palavras além de, sobretudo, um incomparável poder de síntese (não há lugar onde o capitalismo dos meados do século 19 esteja mais bem disposto do que o clássico sumário presente na primeira página do segundo volume). Os livros não foram concebidos como tetralogia, mas adquiriram, assim que surgiram, status individual e, ao mesmo tempo, cumulativo, de claśsico. Eles foram um exemplo, como diria o próprio Hobsbawm, “daquilo que os franceses chamam de ‘haute vulgarisation‘ [alta vulgarização]” (e ele não disse isso no sentido autodepreciativo). Os livros ornaram-se, nas palavras de um revisor, “parte da mobília dos ingleses bem-formados”.

O primeiro casamento de Hobsbawm tinha terminado em 1951. Durante os anos 1950, ele teve outro relacionamento, que resultou no nascimento de seu primeiro filho, Joss Bennathan; mas a mãe do garonto não quis casar-se. Em 1962, ele casou-se de novo, agora com Marlene Schwartz, de ascendência austríaca. Mudaram-se para Hampstead e compraram uma segunda casa pequena em Gales. Tiveram dois filhos, Andrew e Julia.

Nos anos 1970, a fama crescente de Hobsbawm como historiador viu-se acompanhada pelo crescimento da sua fama como narrador de seu próprio tempo. Embora ele respeitasse, como historiador, a disciplina centralista do Partido Comunista, sua eminência intelectual deu-lhe uma independência que lhe permitiu conquistar o respeito de pensadores críticos ao comunismo, a exemplo de Isaiah Berlin. Isso também garantiu-lhe o considerável elogio de não ter nenhum de seus livros publicados na União Soviética. Armado e protegido, ele navegou sem medo por todo o campo da esquerda, das páginas mensais do Partido Comunista ao Marxism Today, uma publicação consideravelmente heterodoxa na qual tornou-se sumidade da casa.

Suas conversas com o comunista – e, agora, presidente – italiano Giorgio Napolitano datam daqueles anos e foram publicadas em A Estrada Italiana para o Socialismo. Mas sua mais influente contribuição política foi a crescente certeza de que o movimento proletário europeu perdera a capacidade de realizar a função transformadora que os marxistas primordiais lhe creditavam. Esses artigos revisionistas descompromissados foram organizados sob o título “The Forward March of Labour Halted” [A Marcha do Trabalho Interrompida].

Em 1983, quando Neil Kinnock tornou-se líder do Partido Trabalhista britânico, por conta de sua sorte eleitoral, a influência de Hobsbawm começou a se estender para além do Partido Comunista e para dentro do Trabalhista. Kinnock reconheceu publicamente sua dívida para com Hobsbawm e permitiu-se ser entrevistado pelo homem que descreveu como “meu marxista favorito”. Embora Hobsbawm tenha desaprovado firmemente muito daquilo que seria conhecido depois como “Novo Trabalhismo” – algo que via, entre coisas, como covardia histórica – ele foi, sem dúvida, o precursor intelectual mais influente do revisionismo iconoclasta do trabalhismo dos anos 1990.

Seu status foi sublinhado em 1998, quando o então primeiro-ministro Tony Blair concedeu-lhe a distinção de Companion of Honour, poucos meses depois de ter completado 80 anos. Na sua justificativa, o premiê disse que Hobsbawm continuava a publicar trabalhos que “localizam na História e na política problemas que reemergem, para perturbar a complacência da Europa”.

Nos últimos anos, Hobsbawm viu sua reputação crescer. Suas comemorações de aniversário de 80 e 90 anos foram premiadas com a presença da intelectualidade liberal e de esquerda da Grã-Bretanha. Ao longo dos últimos anos, ele continuou a publicar volumes de ensaios, incluindo On the History (1997) e Uncommon People (1998), trabalhos nos quais Dizzy Gillespie e Salvatore Giuliano colocaram-se lado a lado no índice de testemunhas das crescente curiosidade de Hobsbwm. Também são dessa época uma autobiografia muito bem-sucedida, Tempos Interessantes, publicada em 2002, e Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007.

Mais famoso no fim de sua vida do que provavelmente em qualquer outro período, ele manteve com regularidade suas palestras, comunicações e o papel como performer no Festival de Literatura de Hay, do qual tornou-se presidente aos 93 anos, após a morte de Lord Bingham de Cornhill. Um tombo, em 2010 reduziu severamente sua mobilidade, mas seu intelecto permaneceu intocado, assim como sua vida social e cultura, graças aos esforços, ao amor e à culinária de Marlene.

Que seus escritos tenham continuado a sensibilizar tantos públicos, no momento em que sua política foi, de certa forma, eclipsada, era o tipo de disjunção que exasperava os direitistas. Mas foi também o paradoxo em que seu intelecto sutiu e jamais complacente refestelou-se. Em seus últimos anos, ele gostava de citar EM Forster, segundo o qual o próprio Hobsbawm sabia “permanecer sempre num ângulo suave do universo”. Se o comentário diz mais sobre Hobsbawm ou sobre o universo era algo que ele gostava de debater, confiante na noção de que se tratava, em muitos sentidos de um aprendizado para ambos. Ele deixa Marlene e seus três filhos, sete netos e um bisneto.

Hobsbawm, a última entrevista

O grande historiador recentemente falecido em Londres concedia poucas entrevistas. Esta é a entrevista que L'Expresso conseguiu fazer-lhe no passado mês de maio. Nela aborda os temas atuais da crise, o novo capitalismo e as doenças da democracia.

Wlodek Goldkorn


Créditos: Anne Katrin Purkiss/Rex Features

Tradução / A notícia da morte do capitalismo é pelo menos prematura, o sistema econômico social que desde faz em alguns séculos governa o mundo não está nem sequer doente, e basta olhar a China para se convencer disso e para ler o futuro. Em Oriente, massas de camponeses estão entrando ao universo do trabalho assalariado, abandonam o mundo rural e convertem-se em proletários. Nasceu um fenômeno novo, inédito na história: o capitalismo de Estado, onde a velha burguesia intelectual, criativa e, se calhar, rapaz -como a descrevia Marx no Manifesto Comunista-, é substituída pelas instituições públicas. Em soma, isto não é o fim do mundo, e nenhuma revolução está à volta do canto, simplesmente o capitalismo está mudando a pele.

Eric Hobsbawm desce com uma espécie de montacargas pela íngreme escada de sua casa de Highgate, em Londres, não bem longe, precisamente, do local onde descansa seu grande maestro e inspirador, Karl Marx. foi submetido a uma operação, e por isso caminha com dificuldade. Tem 95 anos, mas se o corpo mostra as marcas da idade, a cabeça deste senhor, considerado o máximo historiador contemporâneo, é a de um jovem. Está escrevendo um ensaio sobre Tony Judt, um intelectual britânico falecido prematuramente, faz dois anos. Fala na BBC, está mais ativo que nunca. E nunca deixou de ser marxista. E, se para esta entrevista com L'Expresso , uma das poquísimas que oferece, pediu que lhe mandassem as perguntas por e-mail, e embora começasse segundo o esquema lembrado, após poucos minutos passa a um acelerado e espontâneo diálogo com o interlocutor.

"Pergunta-me se é possível o capitalismo sem crise", começa. "Não. A partir de Marx sabemos que o capitalismo funciona precisamente através de crise, e restructuraciones. O problema é que não podemos conhecer a gravidade da crise atual porque ainda estamos dentro dela".

A crise atual é diferente das anteriores?

Sim. Porque está unida a uma deslocação do centro de gravidade do planeta: desde os velhos países capitalistas para as nações emergentes. Do Atlântico para o Oceano Índico e o Pacífico. Se nos anos trinta todo mundo estava em crises, a exceção da URSS, hoje a situação é diferente. O impacto na Europa é diferente em relação aos países BRIC: Brasil, Rússia, Índia, China. Outra diferença com o passado é que, apesar da gravidade da crise, a economia mundial segue crescendo. Embora seja só nas zonas que estão fora do que chamamos Ocidente.

Mudarão os relacionamentos de força, também as militares e políticas?

Pelo momento, estão mudando as econômicas. Os grandes agregados de capital de investimento são hoje em dia as que pertencem ao Estado e às empresas públicas na China. E, deste modo, enquanto nos países do velho capitalismo o desafio é manter os níveis de bem-estar existentes -embora eu ache que estas nações se encontram em um rápido declínio-, para os novos países, os emergentes, o problema é como manter o ritmo de crescimento sem criar problemas sociais gigantescos. Está claro, por exemplo, que Chinesa se deu a uma espécie de capitalismo no que a pressão da marca ocidental do Welfare , o Bem-estar, é completamente inexistente. foi substituída em seu local pela velocíssima incorporação das massas de camponeses ao mundo do trabalho assalariado. É um fenômeno que teve efeitos positivos. Fica a questão de se este mecanismo que pode funcionar no longo prazo.

O que está dizendo nos leva à questão do capitalismo de Estado. O capitalismo como o conhecemos significava uma aposta pessoal, criatividade individualismo, capacidade de invenção por parte da burguesia. Pode o Estado ser tão criativo?

Faz em umas semanas, The Economist versava sobre o capitalismo de Estado. Nele se propunha a tese de que este sistema poderia ser ótimo para a criação das infraestrutura e relativo aos investimentos em massa, mas não tão conveniente no referente à esfera da criatividade. Mas há mais: não é seguro que o capitalismo possa funcionar sem instituições como o Bem-estar. O Bem-estar por norma é gerenciado pelo Estado. Portanto, acho que o capitalismo de Estado tem um grande futuro.

E quanto à inovação?

A inovação está orientada para o consumidor. Mas o capitalismo do século XXI não deve pensar necessariamente no consumidor. E por outro lado, o Estado funciona bem quando se trata da inovação no âmbito militar. Além disso, o capitalismo de Estado não tem a obrigação de garantir um crescimento ilimitado, o qual é uma vantagem. Ao dizer isto, deduzimos que o capitalismo de Estado significa o fim da economia liberal como a conhecemos nos últimos quarenta anos. Mas é a consequência da derrota histórica daquilo que eu chamo "a teologia do livre mercado", a crença, realmente religiosa, segundo a qual o mercado se regula por si mesmo e não precisa de nenhuma intervenção externa.

Durante gerações a palavra capitalismo rimava com liberdade, democracia, com a ideia de que os indivíduos forjam seu próprio destino.

Estamos seguros disso? Em minha opinião, não é em modo algum evidente a associação dos valores que acaba você de mencionar com determinadas políticas. O capitalismo de mercado puro não está obrigatoriamente vinculado à democracia. O mercado não funciona como teorizavam os pensadores liberais: desde Hayek a Friedmann. Simplificámo-lo demasiado.

A que se refere?

Faz algum tempo escrevi que vivemos com a ideia de duas vias alternativas: o capitalismo de aqui e o socialismo de lá. Mas essa é uma ideia estrambótica. Marx nunca a teve. Pelo contrário, ele explicava que este sistema, o capitalismo, um dia ficaria superado. Se observamos a realidade, Estados Unidos, Holanda, Reino Unido, Suíça, Japão, podemos chegar à conclusão de que não se trata de um sistema único e coerente. Há muitas variantes do capitalismo.

No entanto, os financeiros prevalecem. Há quem diga que o capitalismo poderia existir sem a burguesia. Acha que é acertado?

Emergiu com força uma elite global composta por pessoas que o decidem tudo no campo da economia e que se conhecem entre eles e trabalham juntos. Mas a burguesia não desapareceu: existe na Alemanha, quiçá na Itália, menos nos Estados Unidos e Reino Unido. Não obstante, mudou o modo em que se acede a fazer parte dela.

E daí?

A informação é hoje em dia um fator de produção.

Isso não é nada novo. Os Rothschild fizeram-se ricos porque foram os primeiros a saber da derrota de Napoleão em Waterloo, o que lhes permitiu desbancar a Bolsa?

Eu vejo isso doutro modo. Hoje você faz dinheiro porque controla a informação. E este é um argumento forte em mãos dos reacionários que propõem combater as elites educadas. As pessoas que leem e que têm uma avançada formação universitária são as que conseguem os empregos mais lucrativos. A gente bem formada é identificada com os ricos, com os exploradores, e isso é um verdadeiro problema político.

Hoje faz-se dinheiro sem produzir bens materiais, com derivados, especulando em Bolsa.

Mas segue-se fazendo dinheiro também, e sobretudo, produzindo bens materiais. Só mudou o modo em que se produz aquilo que Marx chamava o valor acrescentado (a parte do trabalho do operário da qual se apropria o proprietário [ Nota do redator] ). Hoje este valor acrescentado já não o produzem os trabalhadores, mas os consumidores. Quando compra um bilhete de avião on-line, você com seu trabalho gratuito, está pagando pela automatização do serviço. Portanto, é você que cria a maisvalía que gera o lucro dos proprietários. Isto é uma consequência caraterística da sociedade digitalizada.

Quem é hoje o proprietário? Em certo tempo existiu a luta de classes.

O velho proletariado seguiu um processo de externalização; dos antigos países para os novos. É ali onde deveria ser dado a luta de classes. Mas os chineses não sabem o que é isso. Falando a sério, quiçá tenham luta de classes, mas ainda não a vimos. E acrescento: as finanças são uma condição necessária para que o capitalismo caminhe para adiante, mas não indispensável. Não pode ser dito que o motor que move a China seja só o afã de lucro.

É uma tese surpreendente, pode explicá-la?

O mecanismo que está por trás da economia chinesa é o desejo de restaurar a grandeza de uma cultura e de uma civilização. É o contrário ao que acontece na França. O maior sucesso francês das últimas décadas foi Astérix. E não é por acaso. Astérix é a volta ao remoto povoado celta que resiste o assalto do resto do mundo, um povoado que perde mas que sobrevive. Os franceses estão perdendo, e sabem-no.

Entretanto, em Ocidente temos os bancos centrais que nos dizem que temos que fazer. Fala-se em contas, em números, mas não em desejos dos humanos, nem do seu futuro. Pode se avançar assim?

Em longo prazo não. Mas estou convencido de que o verdadeiro problema é outro: a assimetria da globalização. Algumas coisas estão globalizadas, outras súper globalizadas, e outras não foram globalizadas. E uma das coisas que não o foi é a política. As instituições que decidem sobre política são os Estados territoriais. Portanto, fica aberta a questão de como tratar problemas globais sem um Estado global, sem uma unidade global. E isso afeta não só a economia, mas também o maior desafio atual, o ambiente. Um das feições de nossa vida que Marx não soube ver é o esgotamento dos recursos naturais. E não me refiro ao ouro ou ao petróleo. Ponhamos como exemplo a água. Se os chineses tivessem que usar metade da água per capita utilizada pelos estadunidenses, não teria água suficiente no mundo. Trata-se de desafios nos que as soluções locais são inúteis, salvo do ponto de vista simbólico.

Há alguma solução?

Sim, sempre que se compreenda que a economia não é um fim em si mesma, mas que faz parte da vida dos seres humanos. Isto se percebe observando a trajetória da crise atual. Segundo as crenças antiquadas da esquerda, a crise deveria gerar revoluções. Mas estas não se veem (excetuando os protestos dos indignados). E, já que não sabemos também não quais são os problemas que vão surgir, não podemos sequer saber quais serão as soluções.

Pode fazer ao menos algumas previsões?

É extremamente pouco provável que a China chegue a ser uma democracia parlamentar. É pouco provável que os militares percam todo o poder na maioria dos Estados islâmicos.

Você defendeu a necessidade de chegar a uma espécie de economia mista, entre o público e o privado.

Volte a vista atrás à história. A URSS tentou eliminar o setor privado. E resultou um sonoro falhanço. Por outro lado, a tentativa ultraliberal também falhou miseravelmente. Portanto, a questão não é como será a combinação do público com o privado, mas qual é o objeto desta combinação. Ou melhor, qual seu objetivo. E o objetivo não pode ser simplesmente o crescimento da economia. Não é verdadeiro que o bem-estar esteja unido ao aumento do produto total mundial.

O objetivo da economia é a felicidade?

Certamente.

No entanto, as desigualdades seguem crescendo.

E estão destinadas a aumentar ainda mais; com segurança aumentarão dentro dos Estados, e provavelmente entre uns países e outros. Não temos nenhuma obrigação moral de tentar construir uma sociedade mais igualitária. Um país onde há mais equidade é provavelmente um país melhor, mas não está em absoluto claro o grau de igualdade que uma nação é capaz de manter.

Que fica de Marx? Você, ao longo de toda esta conversa, não falou nem de socialismo, nem de comunismo...

O fato é que nem sequer Marx falou muito de socialismo nem de comunismo, mas também não de capitalismo. Escrevia sobre a sociedade burguesa. Permanece sua visão, sua análise da sociedade. Fica o entendimento do fato de que o capitalismo funciona gerando crise. E por outro lado, Marx fez algumas previsões acertadas em médio prazo. A principal: que os trabalhadores devem se organizar como partido de classe.

Em Ocidente fala-se a cada vez menos de política e a cada vez mais de técnica. Por quê?

Porque a esquerda já não tem nada mais que dizer, não tem um programa para propor. O que fica dela representa os interesses da classe média formada, e claramente não estão no centro da sociedade.

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