28 de julho de 2012

Treinamento bélico, violência sistemática

Ruy Braga e Ana Luiza Figueiredo


No final de maio, o Conselho de Direitos Humanos da ONU sugeriu a extinção da Polícia Militar no Brasil. Com isso, um tema emerge: é possível garantir a segurança da população sem o recurso à violência militar? Entendemos que sim.

No entanto, para que isso aconteça é preciso desnaturalizar o discurso populista de direita a respeito das "classes perigosas" que credita a violência à população pobre das cidades.

Antes de tudo, devemos reconhecer que a violência urbana é uma questão de ordem socioeconômica. Exatamente por isso, para combatermos a criminalidade a contento é necessário uma abordagem que priorize o desenvolvimento de políticas sociais capazes de enfrentar a pobreza e a degradação social.

Mas, como vimos recentemente no Pinheirinho, na cracolândia ou na USP, o Estado brasileiro sustenta há décadas uma política de militarização dos conflitos sociais.

As razões para isso deitam raízes profundas em nossa história recente: o modelo policial brasileiro foi estruturado durante a ditadura militar se apoiando na ideologia da segurança nacional.

O núcleo racional dessa doutrina, vale lembrar, afirmava que o principal inimigo do Estado encontrava-se no interior das fronteiras brasileiras. Rapidamente, o inimigo interno se confundiu com a própria população pobre do país.

O decreto-lei 667, de 2 de julho de 1969, atribuiu ao Ministério do Exército o controle e a coordenação das polícias militares por intermédio do Estado-Maior do Exército. O comando geral das polícias militares passou a ser exercido por oficiais superiores do Exército subordinados, hierárquica e operacionalmente, ao Estado-Maior do Exército.

Os policiais militares se submeteram então a uma Justiça especial, muito rigorosa quando se trata de infrações disciplinares, mas absolutamente condescendente com os crimes contra a população.

A despeito da redemocratização da década de 1980, a estrutura policial continuou a mesma, ou seja, prioritariamente orientada para a defesa daqueles interesses classistas que deram origem à ditadura.

Na verdade, uma polícia criada para o enfrentamento bélico não pode promover senão a violência sistemática contra os setores mais explorados e dominados dos trabalhadores brasileiros: a população pauperizada, os negros, os homossexuais e toda sorte de excluídos.

Enquanto dez cidadãos em cada cem mil habitantes tombam vítimas da violência urbana no Alto dos Pinheiros (bairro nobre da região sudoeste da cidade), 222 são mortos no Jardim Ângela (zona sul da cidade, próxima ao Capão Redondo, considerada a terceira região mais violenta do mundo).

Esse dado serve para derrubar a tese diligentemente construída por setores conservadores da sociedade paulistana: a elite a maior vítima da violência urbana.

O processo de redemocratização da sociedade brasileira trouxe para a ordem do dia a questão da desmilitarização da polícia. Entendemos que, igualmente, o corpo de bombeiros deveria ser parte de um sistema articulado de defesa civil, recebendo um salário digno, uma formação adequada e conquistando o direito à sindicalização.

Em suma, tanto a polícia quanto o Judiciário deveriam estar a serviço da segurança das famílias trabalhadoras. Em vez de se balizarem pelo arbítrio dos dominantes, deveriam prestar contas aos sindicatos, às associações de moradores e às entidades de direitos humanos.

A desmilitarização da polícia é uma exigência democrática sem a qual, 25 anos depois, a sociedade brasileira ainda não terá superado a ditadura.

Sobre os autores

Ruy Braga, 40, doutor em ciências sociais pela Unicamp, é professor de sociologia da USP

Ana Luiza Figueiredo, 43, é diretora da Federação Nacional do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe).

19 de julho de 2012

Golpe em Assad, apesar de duro, está longe de ser fatal

Salem H. Nasser


Um golpe no coração do regime. É assim que imediatamente se apresenta a morte de elementos do círculo mais restrito do aparato de defesa e de inteligência do governo sírio.

Ainda não se sabe ao certo como ele foi desferido e versões contraditórias se sucedem. A verdade talvez não venha à tona, mas essa seria uma informação valiosa que nos ajudaria a entender melhor o cenário sírio.

Caso se trate de um ataque suicida, além de jogar uma sombra sobre a imagem da oposição, por conta do uso de meios ilegítimos de violência, isso apontaria para um papel até agora pouco discutido de grupos extremistas no seio da insurgência.

Se a tese de uma bomba plantada no local da reunião for a verdadeira, será preciso considerar uma combinação de fatores, alguns mais verossímeis do que outros: falhas no aparato de segurança, prováveis; uma grande organização da insurgência, pouco provável; e alguma participação de atores externos, a não ser desprezada.

Como quer que seja, há algumas apostas seguras sobre o que resultará deste evento. A mais importante delas é que a violência vai se intensificar.

Por um lado, assim como o gradual reconhecimento de que uma guerra civil se instalava e de que, portanto, a violência tinha dois lados, permitiu ao regime um uso mais indiscriminado da força, este último golpe tenderá a alimentar esse senso de violência justificada.

Por outro lado, na medida em que esse golpe será percebido pela insurgência como uma vitória importante e um sinal da iminência da queda do regime, ele servirá a alimentar a sua disposição para o combate.

E por trás desse cenário interno, em que dois lados estão dispostos para uma luta sangrenta e duradoura, se estende um pano de fundo em que rivalidades regionais e globais reforçam a dinâmica de conflito aberto.

Já não é segredo que a insurgência é armada e apoiada por atores regionais, com o beneplácito ou a participação ativa de potências ocidentais, assim como está clara a importância que tem para o regime o apoio de alguns países.

Assim, o que se costuma chamar de comunidade internacional está efetivamente alimentando uma guerra civil em que o espírito que de início animava as revoltas árabes, uma vontade de autonomia e liberdade, vai aos poucos se afogando e diluindo.

Esses braços externos, que hoje tem por um campo de batalha o Conselho de Segurança, só deixarão de alimentar o conflito quando o custo político for muito alto ou o forem os riscos percebidos para os próprios interesses.

Quando esse dia chegar, e algum tipo de compromisso for tentado, restará saber se isso bastará para apagar o fogo.

Sobre o autor

Salem H. Nasser é coordenador do Centro de Direito Global da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas.

"... eu poderia ter vendido para a Rússia ou a China... "

Jeremy Harding



Tradução / O que teria empurrado Julian Assange na corrida em busca de espaço extra-territorial amigável? Os detratores dizem que foi movido pelo motor de sempre, a velha história, uma propensão a pôr-se no centro do universo, alvo de uma conspiração improvável para metê-lo numa cadeia nos EUA e jogar fora a chave. Essa derradeira honraria derramou-se sobre Bradley Manning. 

Em matéria de vazamentos, os EUA já tem seu herói: por que se preocupar tanto com o editor-celebridade do herói? À frente da Embaixada do Equador, em Hans Crescent, praticamente nos fundos da loja Harrods, mantém-se, ininterrupta, uma presença rala, mas heróica, de apoiadores. Estive lá, no início do mês passado. Vi uma francesa que andava de um lado para o outro, carregando uma placa, que, depois, ela amarrou numa das barreiras que bloqueiam a passagem. Na placa, em mal traçadas letras, lia-se: “Obrigada, Assange, por nos dar a história dos derrotados”. Pensava em algum Brecht, disse-me ela. Ou, talvez, em Walter Benjamin. Outra figura, mais velha e mais excêntrica, garantiu-me que Assange já se escafedera da embaixada, uma semana antes, por um túnel que passa pelos subterrâneos da Harrods: seguranças da loja lhe contaram tudo. Um terceiro insistia que havia saída pronta, de Hans Crescent, para o homem que já saíra dali pelos esgotos de al-Fayed: primeiro, o governo de Rafael Correa dá asilo a Assange; depois, Assange candidata-se à cidadania equatoriana, que não demora; depois, passa a trabalhar no consulado, em função consular não muito importante, o que lhe garantirá a imunidade diplomática indispensável para percorrer a curta trilha que separa a embaixada e o portão de embarque em Heathrow.

Em recente visita a Queensland – estado onde nasceu Assange – o embaixador dos EUA na Austrália disse que os EUA poderiam extraditá-lo tão facilmente da Grã-Bretanha quanto da Suécia, se tivessem decidido pela extradição. Bob Carr, ministro das Relações Exteriores da Austrália, tampouco dá sinais de pressa: a relutância dos EUA para extraditar Assange da Grã-Bretanha, disse ele, é prova de que os EUA não estão empenhados nessa caçada. Carr é homem conhecido por jamais se afastar do roteiro que o mandem cumprir, mas a ideia de que os EUA possam tirar Assange da GB tão facilmente quanto da Suécia não se confirma. É preciso ouvir, além da opinião dos advogados e auxiliares de Assange, também a opinião, por exemplo, de John Bellinger, ex-acessor para questões jurídicas do Departamento de Estado, quem disse à rede Associated Press de televisão, em 2010, que acusar Assange enquanto permanecesse na GB, poria um aliado leal na difícil situação de ter de assinar uma extradição que lhe criaria problemas graves. O melhor, para os EUA, seria afastar-se do caso:

Devemos esperar que seja processado na Suécia. Depois, pedimos que os suecos os extraditem para cá.

O pessoal de Assange acrescenta que, diferentes dos britânicos, os suecos têm tratado de extradição com os EUA, que lhes permite “entrega temporária” [orig. ‘temporary surrender’] de suspeitos procurados por crimes graves, também no caso de serem acusados na Suécia. Esse arranjo pode ser chamado de ‘modelo Panamá’, depois que um telegrama diplomático de 2008, da embaixada dos EUA no Panamá, para Washington – que lemos por cortesia de WikiLeaks – expõe claramente as vantagens desse procedimento:

Por esse procedimento, o suspeito é “emprestado” aos EUA para ser processado, sob a condição de que será devolvido para ser processado no Panamá depois de cumprida a sentença que os EUA determinem. É procedimento muito mais rápido que a extradição formal e tem-se mostrado tão eficaz, que [a DEA, Drug Enforcement Administration] várias arquiteta operações para trazer suspeitos ao Panamá, para que possam ser presos no Panamá e, nessa condição, sejam rapidamente devolvidos às autoridades norte-americanas.

Pesa a favor de Assange a sugestão de que qualquer acusação que se apresente contra ele aplica-se também a Bill Keller, ex-diretor executivo do New York Times, que participou, como parceiro de WikiLeaks na divulgação dos documentos sobre as guerra do Afeganistão e do Iraque e também na divulgação dos telegramas diplomáticos.

Como Chase Madar explica no livro The Passion of Bradley Manning, nada, no material que se diz que Manning teria vazado, é top secret. Dos cerca de 250 mil telegramas diplomáticos, por exemplo, 15-16 mil telegramas são secretos; e menos ainda são para “leitura restrita”. Quanto a arquivos para “leitura restrita”, os telegramas diplomáticos perdem, de longe, para os documentos que Daniel Ellsberg vazou, no auge da Guerra do Vietnã. E, por fim, é opinião generalizada dentro do governo, de que os vazamentos não criaram qualquer risco de segurança nacional. (Os documentos em que se podem ler exatamente isso – um deles saído da Casa Branca – são, eles sim, para “leitura restrita”; os advogados de Manning já exigiram que alguns deles sejam exibidos, exigência acolhida pelo juiz que preside a corte militar que está julgando Manning.)

Seja como for, há muitas razões para que Assange tome todos os cuidados. Dianne Feinstein, presidente da Comissão do Senado para Assuntos de Inteligência, disse, em declaração ao jornal Sydney Morning Herald, no início do mês, que Assange “causara grave dano à segurança nacional dos EUA e deve ser acusado e processado pelo que fez.” Talvez pouco significasse em ano eleitoral. Mas... E quanto aos “telegramas de Stratfor”, a empresa privada de segurança e “inteligência global” com sede no Texas, obtidos pelos Anonymous, coletivo de hacker-ativistas, e divulgados há seis meses pela página WikiLeaks? 

Naquele pacote, entre 5,5 milhões de mensagens, várias relacionadas a Assange, uma delas, de Fred Burton, vice-presidente para questões de contraterrorismo e segurança empresarial, diz apenas: “Não comentem por aí: Já temos acusação secreta, formal, contra Assange. Favor não divulgar.” Seja verdade, seja mentira, não é o tipo de informação que Assange possa dar-se o luxo de menosprezar.

Outra razão para extrema preocupação é o quadro estatístico, que Madar resume em seu livro, dos processos e processados durante o governo Obama: nos últimos quatro anos, seis pessoas (inclusive Manning) foram acusados de crimes tipificados na chamada “Lei Antiespionagem” [Espionage Act ] de 1917, por divulgação de informação reservada.

Embora, como candidato, Obama falasse como amigo e leal protetor dos sentinelas avançados que tocam o apito para alertar contra riscos e ameaças” – escreve Madar – “é hoje o presidente que mais processou acusados de crimes tipificados naquela lei de 1917; mais que todos os presidentes que o antecederam, somados.

Assange não está na lista de pagamento do governo dos EUA, diferente de tantos outros, e é problema persistente, que os EUA ainda não conseguiram resolver, agora na Embaixada do Equador, à espera, ouvindo zunir à sua volta os rádios e computadores que zunem, com o pessoal do Ministério do Exterior voando para Quito, e a embaixada dedicada a ampliar os cuidados de segurança, para evitar qualquer tipo de mal-entendido com os britânicos.

Simultaneamente, os e-mails sírios que começam a ser divulgados por WikiLeaks são prova de que Assange não está ocioso, em seus dias e noites na Embaixada do Equador. Empresas ocidentais de segurança, especializadas em tecnologia de vigilância e controle, aparecerão com destaque nos 2,4 milhões de documentos a serem divulgados. No primeiro pacote de documentos já divulgados, o foco é a empresa Finmeccanica, italiana, especialista em Defesa, e as muitas vendas que fez de equipamentos para telefonia móvel em Damasco, não antes de eclodir a “questão síria”, mas em fevereiro de 2012.

Bradley Manning, ao contrário, está fora de jogo. É preciso usá-lo como caso exemplar de castigo, porque era soldado a serviço dos órgãos de segurança. Assange pode ser um cruzado, mas não era alistado nas forças armadas dos EUA, e entregou cerca de um milhão de arquivos ligados “a ação significativa” no Afeganistão e no Iraque, e mais um quarto de milhão de telegramas diplomáticos a WikiLeaks. Todos esses documentos foram distribuídos por um soldado atento, no Iraque. Manning, que já está há dois anos sob detenção, primeiro na Base da Marinha em Quântico, Virgínia; agora na prisão de Fort Leavenworth, acusado nos termos da Lei Antiespionagem e, também, por “cooperação com o inimigo”.

Na sua estação de trabalho, num prédio pré-fabricado onde se instalaram unidades da inteligência, no Iraque, Manning rapidamente sentiu que o segredo era como espada a pesar sobre todos os valores que ele prezava. Sentiu, sobretudo, que o sigilo servia de cenário perfeito para todos os tipos de práticas ilegais. E decidiu agir.

Em seu livro, Madar concorda e elogia a “brilhante contribuição de Manning (...) à liberdade e à justiça em todo o mundo”.

Madar conta que, no início dos anos 1990s, o governo dos EUA protegia, sob ordem de sigilo, cerca de 6 milhões de documentos por ano; em 2010, o número já chegava a 80 milhões: o 9/11 explica esse aumento, mas deve-se considerar também a facilidade com que esses documentos podem ser gerados e armazenados. Há também uma nova obsessão com o segredo e o sigilo, em tempos nos quais o estrito controle sobre a informação é o principal aliado de governos que não querem ver o povo organizado e ativo na condução do próprio destino. A escuridão e o sigilo protegem os ditadores. E só a internet lança luz sobre tudo e sobre todos: fonte de energia, para hackers e apóstolos evangelistas da liberdade como Assange; por isso, a internet é hoje o inimigo que todos os poderes autoritários do mundo juraram de morte.

Há alguma diferença entre segredos militares e segredos gerados pelos governos, na administração da vida civil, com guerra ou sem guerra? Parece que sim. E os EUA, além do mais, estão sempre ou praticamente sempre em guerra ou em pé de guerra, aberta ou oculta; e a segurança militar acabou por ter repercussões também no universo do que hoje se chama “sociedade civil”. Ao mesmo tempo, os valores da vida civil não deixam de ser muito fortemente propagandeados também na linha de frente das tropas da Coalizão, para que os soldados não esqueçam as liberdades que estão defendendo, ou implantando. Viver cercado de todos os confortos eletrônicos de casa é parte chave da vida na caserna, nas guerras dos EUA.

O setor onde Manning trabalhava, na Base de Operações Avançada em Hammer era, nas palavras de Madar, “um armazém amplo, sem janelas, cheio de computadores e mesas e fios elétricos”, povoada de gente com acesso liberado aos mais variados níveis de sigilo. Como a tripulação da nave Nostromo em “Alien, o oitavo passageiro”, estacionada em algum ponto remoto do universo, todos ali, naquela nave hermética, viviam, até certo grau, mergulhados numa cultura do lazer e do ócio. 

O pessoal, na área de inteligência conhecida como Instalação para Informação Compartimentada de Segurança [orig. Secure Compartmented Information Facility (SCIF)], passava horas sem fim navegando à toa, ouvindo-vendo gravações de vídeos dos cantores preferidos que carregavam na mochila, ou queimando mídia para baixar filmes. Manning descreve o cenário e o contexto, na transcrição de uma das pastas de arquivos de conversa que foram entregues ao FBI e aos órgãos de segurança do exército:

... todos chegavam e sentavam nas estações de trabalho (...) vendo vídeos musicais/corridas de carros/explosões de prédios (...) e escrevendo coisas em CD/DVD (...) oportunidades culturais que se encontravam (...) o mais engraçado (...) é que se gravavam tantos dados em CDs sem qualquer identificação (...) Todos gravavam (...) vídeos (...) filmes (...) música (...) todos ali, à vista de todos, no aberto, todos viam.

E havia tal quantidade, tão gigantesca, de informação tão devastadora, que comprovava tão completamente que a guerra não era o que se dizia que ela seria. Manning deve ter lembrado de “No espaço, ninguém ouve seu grito”, do Dr. Spock. Mas, com a nova tecnologia, isso já não é bem assim. Chega a ser difícil acreditar que geeks  e tecno-revolucionários, tech-libertarians, como Madar os chama, tenham mudado o mundo, tanto e tão completamente como mudaram, de modo tão significativo.

Fato é que sim, podem mudar radicalmente a discussão. E mudar a discussão foi o que fizeram Manning e WikiLeaks em 2010 – confirmação final e exaustiva, de que a guerra do Iraque não passara de erro terrível.

Manning carrega o gene da informação: seu pai foi agente de segurança, com autorização para acesso a documentos e instalações secretas [orig.security clearance], deslocado pela Marinha dos EUA para Cawdor Barracks, Haverfordwest, onde conheceu a mãe de Manning, nos anos 1970s. (Nas mesmas instalações, está instalado hoje o 14th Signal Regiment, de especialistas em guerra eletrônica, capazes de derrubar qualquer discussão – e todas ao mesmo tempo – quando bem entendam). Manning Pai estimulou no filho o interesse por computadores e ensinou-lhe programação C++. Madar nos informa que, “aos dez anos, Manning desenhou e pôs em operação sua primeira página de Internet”. O lar dos Manning começou a ruir no início da adolescência do filho; em 2001, sua mãe mudou-se de Crescent, Oklahoma, e levou com ela o filho, para Wales. Quando voltou sozinho para Oklahoma, em 2005, o pai conseguiu-lhe um emprego numa empresa local de software, mas não deu certo. Depois de algum tempo de andar à toa – por Tulsa, Chicago, Washington DC –, Manning afinal decidiu alistar-se no Exército.

Sua vida na caserna foi tormentosa. No outono de 2007, apresentou-se em Fort Leonard Wood, Missouri, mas foi logo mandado para a “unidade de desalistamento”, para onde eram enviados os recrutas considerados não capacitados para o serviço, antes de voltarem para casa. Não tinha altura, não sabia distinguir o certo e o errado, nem o que tinha sentido e o sem sentido algum, era gay. Foi vítima de abusos durante o treinamento básico, por soldados que permaneceriam no serviço militar, e outra vez, na unidade de desalistamento, por gente que não interessava ao exército. Mas Manning foi enviado para uma unidade de reciclagem. Um de seus companheiros nessa unidade, entrevistado ano passado por Guardian Films, disse que teve a impressão de que o exército estava em situação de desespero.

Em 2007, o número de novos recrutas foi o mais baixo de toda a história. Já não havia mais como baixar o padrão, para conseguir recrutas. Pareciam doidos. Aceitavam qualquer coisa: tatuagem no rosto, baixos demais, altos demais, com ficha policial – qualquer coisa servia. Até aumentaram a idade máxima. Gente com 42 anos, podia alistar-se para treinamento básico. Pegavam qualquer um. O que aparecia por lá, eles pegavam.

Manning foi para o Arizona, para treinamento para unidade de inteligência e, de lá, no verão de 2008, foi mandado para Fort Drum, estado de New York, onde permaneceu até outubro de 2009. Foi quando foi despachado para a Base de Operações Avançadas Hammer, cerca de 35 milhas a leste de Bagdá, como analista de inteligência no Scif. Ali, como Madar explica, tinha acesso à rede SIPRNet – a rede-mãe usada pelos departamentos de Estado e da Defesa, para transferir dados sigilosos. Tinha acesso também ao Sistema Conjunto Mundial de Comunicações de Inteligência [orig. Joint Worldwide Intelligence Communications System], uma rede fechada intragovernamental, usada pelos departamentos chave, dentre os quais os departamentos de Defesa, de Segurança Nacional, de Estado e da Justiça, para intercâmbio de material sigiloso, de baixo até alto sigilo e top secret. Depois de poucas semanas no Iraque, Manning recebeu autorização para acesso a documentos de alto sigilo.

Madar identifica o momento crucial, nas conversas que manteve sobre os arquivos, que explicaria a desilusão de Manning, sobre como a guerra estava sendo conduzida. 

Uma de suas tarefas era investigar um grupo de iraquianos que estavam sob vigilância por terem criticado o governo. Mas, como Manning praticamente afirma, nada haviam feito de errado. Haviam produzido um panfleto intitulado “Para onde vai o dinheiro?”, que um intérprete leu, traduzindo, para Manning; da leitura, Manning concluiu que “o autor do panfleto investigava uma trilha da corrupção no gabinete de al-Maliki”. Manning escreve:

...peguei a informação e *corri* à sala do oficial, para explicar o que estava acontecendo. Ele não quis nem ouvir. Mandou-me calar a boca e explicou que nosso trabalho era conseguir encontrar *MAIS* suspeitos.

Pela interpretação de Madar, o principal problema não era a censura, mas a tortura, a qual “como Manning sabia perfeitamente, continuava a ser prática comum das autoridades iraquianas, mesmo seis anos depois de o país estar ocupado e sob comando dos EUA”.

“Interrogatório estimulado” [orig. enhanced interrogation] era prática pregada por Rumsfeld. Em 2005, Peter Pace, chefe do Comando Conjunto do Estado Maior dos EUA, tentou introduzir uma lei – todos os soldados dos EUA ficariam obrigados a notificar qualquer prática de tortura no Iraque, de que fossem informados – mas Rumsfeld antecipara-se e já implantara uma norma secreta, conhecida como Fragmentary Order 242: soldados e oficiais dos EUA não devem intervir nem mover qualquer tipo de ação em casos de tortura praticada por agentes da segurança iraquiana. Manning havia-se posto em posição extremamente perigosa, e podia começar a esperar pelo pior.

Adiante, já perto do final de 2009, apareceu à frente de Manning o vídeofilme – que WikiLeaks publicaria adiante sob o título de “Collateral Murder” [Assassinato Colateral] – filmado de um helicóptero armado, e que mostrava um grupo de pessoas num subúrbio de Bagdá. Verificou a data nos seus arquivos – 12/7/2007 –, colheu as coordenadas pelo GPS e pôs tudo no Google. A primeira matéria que viu, do New York Times, falava de pelo menos 11 mortos – dois dos quais da equipe de jornalistas da Agência Reuters – e várias crianças gravemente feridas. O que se via no vídeo filmado de dentro do helicóptero Apache e os eventos em terra não eram facilmente conciliáveis.

Manning contou ao seu confidente na página de bate-papo na Internet que “não consegui esquecer aquelas coisas dentro do sistema (...) nem dentro da minha cabeça”. Pensou e repensou “neles durante semanas (...) acho que um mês e meio (...), antes de passar adiante o vídeo”. “Neles”, nessa frase, significa “WikiLeaks” – mas Manning não diz. O vídeo foi afinal exibido ao mundo no National Press Club, em Washington, dia 5/4/2010. E o resto é história conhecida.

Dado que não havia cuidado algum de segurança naquela unidade de SCIF, foi fácil, para Manning, tomar um CD e uma etiqueta rabiscada com caneta de ponta de feltro (“Lady Gaga”) – e baixar os conteúdos para o CD e “escrever um compressed split file (...) ninguém desconfiou de coisa alguma”. Um ex-agente encarregado da segurança na base Hammer em Bagdá explicou que deve, sim, ter sido facílimo:

Havia laptops espalhados por ali, todos com as senhas anotadas em etiquetas coladas nas próprias máquinas. Qualquer pessoa uniformizada que entrasse, sentava num dos computadores ao meu lado e fazia o que quisesse. Por mim... Que faça o que quiser...

Em dezembro de 2009, Manning já dava sinais tão claros de stress máximo, que um psicólogo aconselhou que se retirasse a munição de sua pistola de serviço. Na primavera de 2010, estava sendo devorado vivo pelos demônios da própria alma. Dia 7/5, teve um desentendimento com uma oficial superior, na base Hammer, e deu-lhe uma bofetada. Imediatamente, voltou a ser “cabo (de primeira classe) Manning”, perdeu o acesso à sala principal do serviço SCIF de inteligência, à qual não voltaria. Foi mandado para a faxina do almoxarifado.

Duas semanas depois, angustiado e solitário além do suportável para ele, cometeu o trágico erro de entrar numa sala de bate-papo e de mensagens instantâneas, onde encontrou Adrian Lamo, hacker-celebridade em Sacramento. Àquela altura, já havia distribuído todos os arquivos, não se sabe como nem para quem. Madar nada diz sobre como os arquivos saíram da base Hammer em Bagdá e só reapareceram em WikiLeaks. Manning está preso, em julgamento, e tudo que tenha feito, dito ou transmitido, online ou offline, aparece, na sóbria narrativa de Madar como “suposto”, ou “alegado”, ou “segundo” uma ou outra declaração.

Lamo emerge na narrativa como personagem cinza pálido, ambíguo, igual a muitos outros cavaleiros andantes dos códigos secretos que vivem de explorar territórios proibidos. A bissexualidade no mundo real e as façanhas como hacker – invadiu a rede do New York Times em 2002 – agiram, em Manning, como abismo que atrai além de qualquer possibilidade de resistência. Manning acabava de “exfiltrar” quantidades imensas de informação; é gay; e vivia rebaixado para um almoxarifado no meio do deserto, perto de Bagdá. Como montanhista que quisesse contar a outro montanhista sobre a vez que enveredou por trilha sem volta, Manning só queria falar; e Lamo era montanhista-celebridade. Sempre fez o que os hackers mais bem fazem: passara anos mudando de página para página, em ambientes reais e virtuais, às vezes cauteloso, às vezes sem nenhuma cautela. A aventura de Lamo pelos labirintos do Times deixara-o com vários grandes danos a pagar – ao jornal, à empresa Yahoo!, Microsoft e MCI – e custara-lhe seis meses na casa dos pais, como parte de pena mais longa. Em 2004 uma “ex” disse, em entrevista à revistaWired, que Lamo a atacara com um pistola de brinquedo. Pouco antes de Manning começar a falar, perto do final de maio, Lamo havia tido alta de um hospital psiquiátrico em Sacramento, onde fora forçado a permanecer por nove dias, depois que um policial entendeu que agia de modo não convencional; como depois se confirmou, ele entrou na delegacia de política para apresentar queixa de roubo de uma mochila.

Naquela página de bate-papo, Manning [codinome: bradass87], abre o coração para Lamo. Parece desesperado. Ás vezes, parece exaltado. Sobre a gigantesca reação desencadeada pelos tiros do helicóptero Apache, Manning escreveu":

...vídeo divulgado em 2010, os envolvidos discutem evento, vi os envolvidos discutindo abertamente; adicionei eles como amigos no Facebook (...) e eles nem desconfiam quem sou eu (...) mas tocaram minha vida. Toquei a vida deles (...) o círculo completo.

Companheirismo sem intimidade é parte do poder curativo da TI para soldados em postos remotos. É também a solução autoevidente para seu impasse moral. Manning explica a Lamo que viu

...coisas horríveis” em “redes secretas”, “coisas incríveis que [pertencem] ao domínio público (...) coisas que teriam impacto na vida de 6,7 bilhões de pessoas.

Sobre os telegramas diplomáticos, Manning pergunta:

...e podia ter vendido para Rússia ou China e fazer uma grana?

Lamo responde: “por que não vendeu?”

Manning: porque são dados públicos 
Lamo: falo dos telegramas secretos
Manning: a informação tem de ser livre. pertence ao domínio público

Lamo joga com cartas bem escondidas. Nos excertos que se leem no livro de Madar, das conversas naquela página de bate-papo, Manning fala muito; Lamo fala pouco. Mais uma amostra, em conversa sobre as falhas de segurança na base Hammer em Bagdá:

Manning: era normal. todos levavam CDs para dentro e para fora/era comum
Lamo: foi assim que você conseguiu sair com os telegramas gravados?
Manning: talvez

Dois dias depois de iniciada a conversa, Lamo fez contato com as autoridades federais; manteve Manning falando por ainda algum tempo e em seguida entregou cópia de todos os arquivos de conversas com Manning, ao FBI, em encontro num café Starbucks em Sacramento. A vida, ao ritmo de um cafezinho. Na leitura generosa de Madar, Lamo não teria escolha:

...tudo leva a crer que teve de entregar aquela pessoa, com a qual encontrou sem procurar, porque seria Manning ou Lamo. Entregou-o, para salvar-se, o próprio Lamo, de ser sentenciado e preso. Quantos de nós, no lugar de Lamo, teríamos agido de outro modo?

A lamentar, em todo o caso, Madar insiste, é que ninguém tenha vazado antes: todo o serviço secreto dos EUA, oficiais militares, agentes do governo, dezenas de milhares de homens e mulheres tinham acesso àqueles arquivos e aos telegramas diplomáticos.

Em capítulo de muita coragem moral, “Os vazadores e seu público”, Madar mapeia quantidade imensa de documentos históricos que não conseguiram deter o sinistro cavaleiro da morte e da guerra; que sequer conseguiram fazê-lo avançar mais devagar. “A litania é longa e colossal, de documentos que têm conteúdo suficiente para provocar uma explosão radical no mundo do aparelho da guerra. Mas que, quando chegam a nós, já nada causam nem provocam”, de La Question, de Henri Alleg (1958), sobre sua prisão e tortura pelos Paras em Alger, até os telegramas entre Ellsberg e Karl Eikenberry, vazados de Cabul (2010), onde servia como embaixador.

Eikenberry, tenente-general da reserva, aconselhou, nos termos mais fortes possíveis, que não houvesse qualquer escalada na guerra do Afeganistão. E pediu revisão completa de todo o programa de antiguerrilha dos EUA. “Apesar das credenciais impecáveis de Eikenberry e apesar da queda vertiginosa do apoio popular à guerra, os telegramas de Cabul não impediram a “avançada” de Obama no Afeganistão, nem a intensificação dos ataques com drones”.

Manning sempre teve alguma noção sobre a sujeira geral da política, da guerra, da vida e da morte em tempo real. “A apatia” – confidenciou ele a Lamo, seu amigo dos bons tempos na sala de bate papo – “tem sua própria 3ª dimensão".

17 de julho de 2012

As mentiras paraguaias das elites brasileiras

O maior conflito do Paraguai é reaver a terra usurpada por fazendeiros brasileiros. O país vizinho "cedeu" a estrangeiros 25% do seu território cultivável

João Pedro Stédile

Folha de S.Paulo

Mal havia terminado o golpe de Estado contra o presidente Fernando Lugo e flamantes porta-vozes da burguesia brasileira saíram em coro a defender os golpistas.

Seus argumentos eram os mesmos da corrupta oligarquia paraguaia, repetidos também de forma articulada por outros direitistas em todo continente. O impeachment, apesar de tão rápido, teria sido legal. Não importa se os motivos alegados eram verdadeiros ou justos.

Foram repetidos surrados argumentos paranoicos da Guerra Fria: "O Paraguai foi salvo de uma guerra civil" ou "o Paraguai foi salvo do terrorismo dos sem-terra".

Se a sociedade paraguaia estivesse dividida e armada, certamente os defensores do presidente Lugo não aceitariam pacificamente o golpe.

Curuguaty, que resultou em sete policiais e 11 sem-terra assassinados, não foi um conflito de terra tradicional. Sem que ninguém dos dois lados estivesse disposto, houve uma matança indiscriminada, claramente planejada para criar uma comoção nacional. Há indícios de que foi uma emboscada armada pela direita paraguaia para culpar o governo.

Foi o conflito o principal argumento utilizado para depor o presidente. Se esse critério fosse utilizado em todos os países latino-americanos, FHC seria deposto pelo massacre de Carajás. Ou o governador Alckmin pelo caso Pinheirinho.

O Paraguai é o país do mundo de maior concentração da terra. De seus 40 milhões de hectares, 31.086.893 ha são de propriedade privada. Os outros 9 milhões são ainda terras públicas no Chaco, região de baixa fertilidade e incidência de água.

Apenas 2% dos proprietários são donos de 85% de todas as terras. Entre os grandes proprietários de terras no Paraguai, os fazendeiros estrangeiros são donos de 7.889.128 hectares, 25% das fazendas.

Não há paralelo no mundo: um país que tenha "cedido" pacificamente para estrangeiros 25% de seu território cultivável. Dessa área total dos estrangeiros, 4,8 milhões de hectares pertencem brasileiros.

Na base da estrutura fundiária, há 350 mil famílias, em sua maioria pequenos camponeses e médios proprietários. Cerca de cem mil famílias são sem-terra.

O governo reconhece que desde a ditadura Stroessner (1954-1989) foram entregues a fazendeiros locais e estrangeiros ao redor de 10 milhões de hectares de terras públicas, de forma ilegal e corrupta. E é sobre essas terras que os movimentos camponeses do Paraguai exigem a revisão.

Segundo o censo paraguaio, em 2002 existiam 120 mil brasileiros no país sem cidadania. Desses, 2.000 grandes fazendeiros controlam áreas superiores a mil ha e se dedicam a produzir soja e algodão para empresas transnacionais como Monsanto, Syngenta, Dupont, Cargill, Bungue...

Há ainda um setor importante de médios proprietários, e um grande número de sem-terra brasileiros vivem como trabalhadores por lá. São esses brasileiros pobres que a imprensa e a sociologia rural apelidaram de "brasiguaios".

O conflito maior é da sociedade paraguaia e dos camponeses paraguaios: reaver os 4,8 milhões de hectares usurpados pelos fazendeiros brasileiros. Daí a solidariedade de classe que os demais ruralistas brasileiros manifestaram imediatamente contra o governo Lugo e a favor de seus colegas usurpadores.

O mais engraçado é que as elites brasileiras nunca reclamaram de, em função de o Senado paraguaio sempre barrar todas as indicações de nomes durante os quatro anos do governo Lugo, a embaixada no Brasil ter ficado sem mandatário durante todo esse período.

Sobre o autor

João Pedro Stédile, 58, economista, é integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e da Via Campesina Brasil

12 de julho de 2012

Fugindo com algo

How did Wall Street come to dominate Obama’s economic policy so completely?

Paul Krugman e Robin Wells


President Barack Obama and Treasury Secretary Timothy Geithner during the G20 summit in Cannes, France, November 2011. Pete Souza/White House

The Escape Artists: How Obama’s Team Fumbled the Recovery
by Noam Scheiber
Simon and Schuster, 351 pp., $28.00 
Pity the Billionaire: The Hard-Times Swindle and the Unlikely Comeback of the Right
by Thomas Frank
Metropolitan, 225 pp., $25.00 
The Age of Austerity: How Scarcity Will Remake American Politics
by Thomas Byrne Edsall
Doubleday, 256 pp., $24.95

Tradução / Na primavera de 2012, a campanha de Obama decidiu ir atrás da história de seu oponente, Mitt Romney, na Bain Capital, uma firma de administração de fundos privados [private equity] que se especializou em assumir o controle de empresas e multiplicar o capital de seus investidores – às vezes, promovendo seu crescimento, mas frequentemente às custas dos seus trabalhadores. Na verdade, houve vários casos em que a Bain conseguiu lucrar mesmo quando as empresas adquiridas foram à falência.

Havia razões política claras para tal atitude. O próprio senador Ted Keneddy havia suscitado, com sucesso, a história dos trabalhadores arruinados pela Bain, em sua campanha contra Ronney em Massachussetes, em 1994. Além disso, o único discurso possível para Romney, na atual disputa pela presidência, é sua afirmação de que pode, como um homem de negócios bem- sucedido, consertar a economia. Fazia todo o sentido apontar as muitas sombras que pairam sobre a história de negócios de Romney – e fisar que o que é bom para a Bain, definitivamente não serve aos Estados Unidos.

No entanto, enquanto escrevíamos este artigo, dois políticos destacados do Partido Democrata minaram a estratégia. Primeiro, Cory Booker, o prefeito de Newark, descreveu os ataques ao private equitycomo “repugnantes”. Depois, ninguém menos do que Bill Clinton apressou-se a descrever a história de Romney como “legítima”, acrescentando: “Não acho que devemos ficar na posição em que dizer: ‘este é um trabalho ruim’, ou ‘este é um bom trabalho’”. (Mais tarde, ele apareceu ao lado de Obama e disse que uma presidência de Romney seria “calamitosa”).

O está acontecendo? A resposta atinge o centro das decepções — políticas e econômicas – com o governo Obama.

Quando o presidente foi eleito, em 2008, muitos progressistas esperavam uma repetição do New Deal. A situação econômica era, afinal, muito semelhante. Como em 1930, um sistema financeiro descontrolado levou primeiro a excesso de endividamento privado; e, em seguida, a uma crise financeira. A contração econômica que se seguiu (e persiste até hoje), embora não tão severa quanto a Grande Depressão, mantém uma semelhança óbvia com a do século passado. Por que as políticas deveriam seguir um script semelhante?

Mas, embora a economia de hoje mantenha forte semelhança com a dos anos 1930, o cenário político não a acompanha — pois nem os democratas, nem os republicanos são o que eram outrora. Ao chegar à presidência com Obama, boa parte do Partido Democrata foi quase capturada pelos interesses financeiros que levaram à crise. Como mostraram os incidentes com Booker e Clinton, parte do partido permanece nesta condição. Enquanto isso, os republicanos tornaram-se extremistas a um ponto que nunca se imaginou, três gerações atrás. A oposição radical que Obama tem enfrentado em questões econômicas contrasta com o fato de que a maioria dos republicanos no Congresso votou a favor, e não contra, a principal conquista de Roosevelt: a lei instituiu a Seguridade Social nos EUA, em 1935.


Essas mudanças nos partidos políticos dos EUA explicam o motivo de não ter havido um segundo New Deal; e por que a resposta política à crise econômica prolongada tem sido tão inadequada. A captura parcial do Partido Democrata por Wall Street e o efeito de distorção que ela produziu na política são os temas centrais do livro de Noam Scheiber, The Escape Artists: How Obama’s Team Fumbled the Recovery, uma visão, a partir de dentro, das ações da equipe econômica de Obama, desde os primeiros dias transição presidencial até o final de 2011.

Scheiber começa tratando da influência que Wall Street exerceu sobre o conjunto da equipe econômica. Em suas primeiras páginas, ele conta como a campanha de Obama apoiava-se nos conselhos políticos de “acadêmicos obscuros, radicais sem muitos vínculos e burocratas ultrapassados” – a exemplo de Austan Goolsbee, um jovem professor de economia da Universidade de Chicago, e Paul Volcker, o octogenário embora ainda vigoroso ex-presidente do Federal Reserve[o equivalente americano do Banco Central – Nota da tradução]. Porém, em setembro de 2008, um outro grupo havia se formado e começou a disputar influência. Era composto por endinheirados de dentro do mercado. A maioria deles tinha trabalhado para o ex-secretário do Tesouro de Clinton, Robert Rubin — que foi sócio da Goldman Sachs antes de integrar o governo de Bill Clinton e, após sair, tornou-se diretor, conselheiro e depois presidente do Citigroup. Eram os rubinistas.

Em pouco tempo, este grupo substituiu inteiramente a equipe anterior. Por exemplo, a pessoa encarregada de estudar possíveis contratações era Jason Furmam, economista de Washington que dirigiu o Projeto Hamilton, um think tank de tendência neoliberal fundado por Rubin e mantido por financistas simpatizantes do Partido Democrata. Mike Froman – um auxiliar de Rubin durante seu mandato como secretário do Tesouro (e que o acompanhara no Citigroup) — foi o chefe pessoal da equipe de transição formada por Obama. Foi Froman quem indicou e apoiou, posteriormente, Larry Summers e Tim Geithner como principais candidatos para o departamento do Tesouro.

Summers, economista de Harvard e ex-subsecretário do Tesouro de Robert Rubin, (mais tarde, seu substituto como secretário do Tesouro e também consultor de um fundo de hedge de Wall Street), seria o principal assessor econômico de Obama, na condição de diretor do Conselho Econômico Nacional. Geithner – que havia sido o braço direito de Summers na secretaria do Tesouro de Clinton e, mais tarde, presidente do Federal Reserve de Nova York – fora uma das três pessoas que agiram, no outono de 2008, para salvar os maiores bancos do país, em termos muito favoráveis a estes. Como Scheiber escreve: “Ao escalar Mike Froman como encarregado da contratação, Obama escolheu para seu governo um staff composto por infiltrados (do mercado financeiro) e gente do establishment.”


O domínio dos rubinistas no novo governo chocou muitos progressistas. Para muitos a revogação da Lei Glass-Steagall, promovida por Bill Clinton e defendida por Robert Rubin (mas contestada por Paul Volcker, presidente do FED), simbolizava as relações muito amigáveis entre o governo Clinton e Wall Street, e ajudara a disparar a crise financeira de 2008. A lei Glass-Steagall, datada da época da Grande Depressão, proibia as instituições financeiras de manter contas bancárias garantidas pelo Estado e, ao mesmo tempo, atuar nos mercados de derivativos. Ela não teria impedido a implosão de 2008 em Wall Street. O incêndio teve como combustíveis os níveis extraordinariamente elevados de alavancagem de bancos de investimento como o Lehman e Merrill Lynch e a construção de imensos portfólios de hipotecas de segunda linha, por instituições como o Bank of America. Mas os progressistas estavam certos, ao lembrar que Wall Street fora perigosamente desregulada por muito tempo, e que todo o país agora estava pagando por isso.

No entanto, o novo governo se fez de surdo a estas preocupações. Como relata Scheiber, quando um senador democrata protestou que a equipe liderada por Geithner e Summers tinha sido muito simpática com Wall Street durante a década de 1990, Obama rejeitou as preocupações, afirmando que “precisava de pessoas com quem pudesse contar em uma crise. Além disso… eles tinham mudado”.

Foi algo como uma conspiração? Não – como Scheiber explica, tudo foi menos intencional e mais complicados do que parece. Por um lado, Obama tinha necessidade de ter mãos experientes e credibilidade imediata, em meio à pior crise financeira desde a Grande Depressão. Por outro, pesou a inapetência do presidente por decisões politicas fortes. Mas também é claro que a personalidade de Obama e seu temperamento foram fundamentais para alinhar a sorte do presidente com a dos pupilos de Rubin. Como Scheiber observa com correção, Obama e Tim Geithner têm, em comum, infâncias similares como expatriados e um discreto estilo auto-depreciativo, que os leva a evitar o conflito direto. Sem dúvida, a equipe econômica dos sonhos de Obama deu-lhe a “afirmação intelectual” pela qual, observa Scheiber, “ele suplicava.”

Mas essa equipe, que pode ter dado a Obama afirmação intelectual, não lhe ofereceu conselhos muito bons. No fim das contas, a resposta de Obama à crise financeira foi desequilibrada e inadequada. Wall Street recebeu um resgate generoso, com poucas exigências de contrapartidas; os trabalhadores e proprietários de imóveis hipotecados foram abandonados por planos impotentes de estímulo e redução das dívidas.

É verdade, nem todos os membros da equipe agiram errado. Sabemos hoje que especialmente Christina Romer, uma professora de Berkeley nomeada para chefiar o Conselho de Assessores Econômicos de Obama, reivindicou, desde o início, um estímulo econômico muito maior que proposto pelo governo. Mas Romer foi escanteada. Quem falava ao ouvido de Obama era Larry Summers — uma pessoa que não tem vergonha em mostrar seu brilhantismo. A princípio, isso poderia não fazer muita diferença. Enquanto acadêmico, Summers defende perspectivas econômicas keynesianas não muito diferentes das de Romer (ou das nossas). Mas, em vez de transmitir uma análise econômica sóbria, ele tentou mostrar sua astúcia política antevendo o que o Congresso estaria disposto a aceitar. Como resultado, deixou de defender a causa de um estímulo econômico maior.


Mas é Tim Geithner, o secretário do Tesouro de Obama, que aparece – ainda mais que o presidente – como o elemento decisivo desta saga. Em contraste com Summers – retratado por Scheiber como um rubinista flexível, disposto a alterar seus pontos de vista diante de provas e convencido, em especial, de que os acionistas de bancos socorridos podiam e devia pagar mais para os contribuintes – Geithner é descrito como um rubinista doutrinário, que enxerga, como sua principal tarefa, restaurar a confiança do mercado financeiro. Em sua cabeça, isso significa não fazer nada que possa perturbar Wall Street.

Um pacote de socorro financeiro era, sem dúvida, necessário. Mas Geithner atropelou Summers – e até mesmo Obama – desenhando um resgate no qual: (I) os contribuintes assumiram todo o risco, sem ganhar nada em troca; (II) as investidas especulativas do Goldman Sachs contra a AIG foram honradas na íntegra e validadas graças ao resgate da empresa pelo governo; e (III) o plano de regulação dos mercados de derivativos foi, como disse um lobista, “o que o próprio mercado gostaria de ter formulado”. Não houve, é claro, debate algum sobre responsabilidade ou dolo, sequer uma insinuação de que os banqueiros tinham feito algo errado, ao colocando a economia em tal situação. Isso, afinal, poderia “minar a confiança”...

Como Geithner conseguiu dominar tão completamente as políticas econômicas? Em parte, graças sua habilidade como articulador. Mesmo quando não podia ganhar uma disputa pelo argumento, ele o fazia por outros meios. Muitas vezes, ele simplesmente esperava as pessoas desistirem – foi sua tática com Rahm Emanuel, sabendo que a atenção maníaca deste acabaria desviando-o para outro assunto. E, crucialmente, Geithner foi autorizado pela falta de vontade de Obama em resolver impasses entre seus assessores. Quando a opinião pública manifestou seu ódio diante do socorro aos bancos, David Axelrod, Robert Gibbs, e Rahm Emanuel voltaram-se para Geithner e insistiram com ele para que acionistas de bancos pagassem algum preço pelo resgate oferecido pelo governo ao setor bancário. Geithner simplesmente recusou-se a ceder, argumentando de modo capcioso que os bancos já haviam pago um preço por serem forçados a levantar capital no mercado. Como Scheiber aponta com precisão, esta fala ignorava o fato de que, ao respaldar os bancos durante sua implosão autoinfligida, o governo norte-americano fornecera-lhes uma apólice de seguro de bilhões de dólares. No final, Geithner ganhou.

Se Geithner foi o designer ativo do plano de resgate de Wall Street, Obama foi o facilitador passivo da intransigência do Partido Republicano. Scheiber descreve como, por inúmeras vezes, a busca de soluções bipartidárias, por parte do presidente, deixou o partido mais conservador em vantagem. Scheiber observa que “na mente de Obama, ‘partidário’ está igualado a ‘paroquial’, ou mesmo a ‘corrupto'”, o que o levou a “fazer enormes concessões, antes mesmo que a negociação tivesse começado”. Também ressalta que o apetite do presidente para ser aceito pelos dois partidos sempre foi “profundamente confuso” e que, ao contrário da abordagem de Obama, “as pressões dos partidos podem muito bem servir ao interesse público, quando não há outro caminho para passar a legislação”.

O centrismo inato de Obama levou-o a adotar a preocupação com o déficit orçamentário de Geithner e de Peter Orszag (o chefe do Escritório de Orçamento e Gestão, outro protegido de Rubin), desprezando os protestos verbais de Summers e Romer, para quem não era o momento de se preocupar com déficits. Como resultado, Obama nunca compreendeu que o estímulo econômico original foi suficiente. Esta posição deixou-o emparedado quando se tornou claro – já no verão de 2010, ou mesmo antes — que as medidas eram, na verdade, quase insignificantes.

O ponto mais baixo, no balanço de Scheiber, foi a participação inepta de Obama nas negociações de 2010 sobre o destino dos cortes de tributos para os ricos, que haviam sido decretados no governo Bush. A própria equipe econômica, profundamente preocupada porque “o presidente estava ausente” do embate, passou a agir por conta própria. Foram Geithner e o antigo braço direito político de Clinton, Gene Sperling, que arrancaram concessões dos republicanos no acordo final, enquanto Obama ainda procurava um consenso. Outra vítima desse período foi a busca real de qualquer alívio da dívida para os proprietários de imóveis hipotecados. Por volta do final de 2010, tanto Summers quanto Romer deixaram Washington frustrados.


O livro de Scheiber é, portanto, uma história deprimente a respeito de quanto a influência de Wall Street sobre os democratas livrou o sistema financeiro de pagar pelo caos que provocou e evitar, de quebra, uma regulamentação eficaz de sua atividade. Também conta como Obama foi incapaz de confrontar os republicanos mais intransigentes. Mas o que tornou este partido tão extremista? Este é, de diferentes maneiras, o tema de dois outros livros recentes: Pity the Billionaire de Thomas Frank e The Age of Austerity de Thomas Edsall.

Frank concentra-se no que chama de “algo único na história de movimentos sociais dos Estados Unidos: uma conversão em massa para a teoria do livre mercado como resposta aos tempos difíceis”. Trata-se de algo realmente notável. Afinal, por três décadas, antes da crise financeira norte-americana, as políticas públicas e a política institucional foram crescentemente dominadas pela ideologia do laissez-faire – a crença de que os mercados (e os mercados financeiros, em particular) devem ser autorizados a correr soltos. Depois, veio a queda inevitável. Mas, longe de exigir um retorno a uma maior regulamentação, grande parte do eleitorado norte-americano voltou-se para a visão de que a crise foi causada, em muito, pela intervenção do Estado. Em consequência, este setor agrupou-se em torno de políticos dispostos a mergulhar ainda mais fundo nas políticas que levaram à crise.

Como isso aconteceu? A resposta de Frank é que a causa foram os próprios resgates. Ao agir à la Geithner, socorrendo os banqueiros sem rédeas e sem culpa, o governo Obama deixou grande parte público norte-americano irritado e com a sensação – correta – de que alguém estava fugindo com algo. A direita foi hábil em explorar essa sensação. O famoso discurso de Rick Santelli da CNBC, em fevereiro de 2009 – que iniciou o movimento Tea Party – foi uma denúncia do TARP, o resgate aos grandes bancos aprovado nos últimos dias da administração Bush (embora uma enormidade de eleitores acreditem que foi aprovado no governo Obama). É verdade que Santelli dirigiu toda a sua ira para uma parte ínfima do TARP – a ajuda prevista aos proprietários de imóveis em dificuldades, que, em grande parte, nunca se materializou – evitando mencionar o socorro muito maior oferecido aos bancos. Mas pelo menos ele estava culpando alguém, coisa que o governo Obama recusou-se a fazer.

E na hora em que Obama começou, timidamente, a sugerir que alguns banqueiros poderiam ter se comportado relativamente mal, já era tarde demais. Todo o Partido Republicano (e grande parte do eleitorado) já tinha aderido a uma narrativa na qual a crise financeira de 2008 – que se seguiu a 14 anos de domínio da extrema-direita republicana no Congresso e a oito anos nos quais os conservadores linha-dura controlaram todos os três ramos do governo – foi causada... por excesso de intervenção do governo, para ajudar os pobres e, especialmente, os não-brancos. Nas palavras de Frank:

“O culpado, para variar, é o governo.... Os funcionários forçaram os bancos a oferecer empréstimos especiais para uma minoria de tomadores (...) e toda a crise financeira foi resultado da interferência do governo.”

Desse modo, a direita consegue reposicionar-se como suposta inimiga do odiado “Big Business” – não porque ele maneja negócios, mas porque seria “insuficientemente capitalista”. Não há melhor prova da circulação deste ponto de vista, pontua Frank, que um artigo de Paul Ryan [o vice-presidente na chapa de Mitt Rommey], na Forbes de 2009. Intitulado “Abaixo o Big Business”, o texto exorta: “cabe ao povo americano – inovadores e empreendedores, pequenos empresários... tomar uma atitude”.

Mas por que a direita foi tão mais capaz de aproveitar o momento que Obama e companhia? Já vimos uma parte da resposta: os democratas em geral, e o presidente em particular, estavam próximos demais de Wall Street, para lidar com uma crise que os mercados financeiros haviam criado. Frank também destaca um ponto importante: no clima político recente, a ignorância tem sido realmente uma força... É preciso lembrar que o universo intelectual hermético que a direita criou para si mesma – uma espécie de realidade alternativa, murada contra qualquer evidência que possa contradizer a fé nas maravilhas do livre mercado e os males da intervenção do governo – seria um peso para o Partido Republicano. E ele, de fato, destrói a capacidade de formular políticas reais. Em termos políticos, no entanto, a atitude tem dado aos republicanos unidade e certeza, onde os democratas apresentam-se fracos e divididos.


E de onde a unidade republicana realmente vem? Frank não explica isso, mas há uma teoria nova e boa em A Era da Austeridade de Thomas Edsall. Curiosamente, não se trata da teoria que o próprio Edsall expõe.

A tese ostensiva de Edsall, desenvolvida já no início do livro, é de há escassez, na raiz de nossas novas batalhas políticas. Teríamos penetrado numa nova era de jogo pesado na política institucional, porque o encolhimento da economia e um déficit orçamentário considerável tornaram impossível satisfazer as necessidades dos dois partidos políticos ao mesmo tempo

“Os dois principais partidos políticos estão presos em uma luta de morte para proteger os benefícios e bens que fluem para suas respectivas bases, cada um tentando expropriar os recursos do outro. Estamos diante de um futuro brutal.”

No entanto, o máximo de evidência que Edsall arrola em favor desta é apontar para as consequências da crise econômica — que não, de modo algum, uma crise de escassez, mas sim de políticas financeira e macroeconômica ruins. Por que, exatamente, deveria haver uma “luta de morte” por recursos, quando a economia norte-americana poderia produzir, segundo estimativas do Gabinete do Orçamento do Congresso, 900 bilhões de dólares a mais, em bens e serviços – bastando recolocar em movimento os trabalhadores desempregados, e outros recursos não-utilizados? Por que deve haver uma luta amarga em torno do orçamento, quando o governo dos EUA, embora reconhecidamente tenha grandes déficits, continua capaz de obter empréstimos às taxas de juros mais baixas da história?

A verdade é que a austeridade que Edsall enfatiza é mais o resultadodo que a causa da nossa política amargurada. Temos uma economia deprimida, em grande parte, porque os republicanos bloquearam quase todas as iniciativas propostas por Obama para criar empregos, recusando-se até mesmo a confirmar as indicações do presidente para o conselho do Federal Reserve (Peter Diamond, economista do MIT laureado com o Nobel, foi rejeitado por falta de qualificações suficientes…). Vivemos uma batalha enorme em torno dos déficits não porque eles realmente representem um problema imediato, mas porque os conservadores encontraram na histeria em torno deles uma maneira útil para atacar programas sociais.

Então de onde vem a amargura da política vem? Edsall fornece grande parte da resposta. Nomeadamente, o que ele retrata é um Partido Republicano radicalizado não pela luta por recursos – a carga tributária sobre os ricos é a menor em várias gerações –, mas por medo de perder o controle político, numa nação em processo de mudanças. A parte mais marcante de A Era da Austeridade, pelo menos segundo nossa leitura, é o capítulo enganosamente intitulado “A Economia da imigração”. Ele não diz muito seu título; o que faz, em vez disso, é documentar em que medida os imigrantes e os seus filhos estão, literalmente, mudando a cara do eleitorado americano.

Como Edsall admite, a face em mutação do eleitorado tem tido o efeito de radicalizar o Partido Republicano.

“Para os brancos de inclinação conservadora”, ele escreve – e não é esta a própria definição da base republicana? – a mudança para uma nação de minoria-maioria [isto é, uma nação na qual as minorias compõem a maioria quantitativa] irá reforçar a visão já amplamente difundida, de que programas que beneficiam os pobres estão transferindo os dólares do contribuinte para minorias – dos brancos para negros, primeiro; e agora, além de tudo, para os “pardos”.

É a retórica de Rick Santelli bem aqui, diante de nós.

O Partido Republicano poderia, em princípio, ter respondido a essas mudanças, tentando redefinir-se como uma agremiação para além das pessoas brancas. Em vez disso, escreve Edsall, a resposta tem sido “apostar que podem continuar a ganhar como um partido branco, apesar da crescente força do voto minoritário.” E isso significa uma estratégia de tratoragem radical, que vai desde política de imigração até os tributos – passando, é claro, pela questão do estímulo econômico, que beneficiaria em alguma medida também as minorias.


O efeito imediato desse confronto amargo tem sido paralisar a política econômica na crise. Obama poderia ter se aproveitado de uma janela de oportunidade, em seus primeiros meses na presidência. Mas, como mostra Scheiber, essa janela se perdeu e houve pouca possibilidade de ação efetiva desde então. Por isso, a contração se arrasta. Mas, como Thomas Mann e Norman Ornstein dizem no título de seu novo livro, It’s Even Worse Than It Looks. Eles argumentam que o Congresso – e, na verdade, o sistema político norte-americano – está perto de chegar ao colapso institucional. Entramos em uma nova política de “tomada de reféns”, eles nos dizem, sintetizada pela batalha de 2011 sobre o teto da dívida. E eles sugerem que o fiasco da política macroeconômica em curso pode ser apenas o começo.

É um livro notável, embora deprimente, especialmente impressionante dada sua origem. Mann e Ornstein são estudiosos do Congresso profundamente respeitados, e seu livro parece, na aparência, sintetizar o tipo de esforço bipartidário que os insiders de Washington dizem amar. Mann está na Brookings Institution, liberal; Ornstein, no American Enterprise Institute, conservador. No entanto, eles rejeitam a tentação de nublar suas conclusões em nome de “equilíbrio”. O que o país enfrenta, escrevem, não é um problema com o partidarismo em abstrato, e sim um problema com um partido:

"Embora a imprensa tradicional e analistas não-partidários tenham dificuldade em compreender, um dos dois principais partidos, o Republicano, rumou para um extremo ideológico; desdenhoso da herança social e política da ordem política americana; incapaz de assumir compromissos; não persuasível pelo entendimento convencional de fatos, provas, e ciência; pouco respeitoso com a legitimidade de sua oposição política. Quando um partido se move dessa forma, para tão longe do centro da política norte-americana, é extremamente difícil implementar políticas que respondam aos desafios mais prementes ao país."

E onde, em tudo isso, está a esperança, que foi tão difundida em 2008? Francamente, é difícil encontrá-la agora. O presidente Obama tem parte da culpa por isso; ele escolheu ouvir as pessoas erradas, e, possivelmente, perdeu sua melhor chance de transformar a economia (Só para ficar claro, isso não é uma sugestão que Mitt Romney faria melhor. Pelo contrário, Romney está profundamente comprometido com a falsa narrativa republicana sobre o que aflige a nossa economia, e todas as indicações são de que, se ganhar, irá agravar dramaticamente uma má situação). Mas, no final das contas, o problema de fundo não tem a ver com personalidades ou lideranças individuais. Diz respeito à nação como um todo. Algo deu muito errado com os Estados Unidos. Não envolve apenas sua economia, mas sua capacidade de funcionar como nação democrática. E é difícil prever quando e como o dano poderá ser sanado.

Sobre os autores

Paul Krugman is a columnist for The New York Times and Distinguished Professor of Economics at the Graduate Center of the City University of New York. He was awarded the Nobel Prize in Economics in 2008.
 (July 2016)

Robin Wells is the coauthor, along with Paul Krugman, of Economics and has taught economics at Princeton, Stanford Business School, and MIT.
 (July 2012)

As visões violentas de Slavoj Žižek

John Gray

New York Review of Books

Slavoj Žižek at his apartment in Ljubljana, Slovenia, 2010.Reiner Riedler/Anzenberger/Redux
 
Slavoj Žižek. Less than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism. Londres: Verso, 2012.

Slavoj Žižek, Living in the End Times, Londres: Verso, 2011.

Tradução / Poucos pensadores ilustram melhor as contradições do capitalismo contemporâneo do que o filósofo e teórico cultural esloveno Slavoj Žižek. A crise econômica e financeira demonstrou a fragilidade do sistema de livre mercado, cujos defensores acreditavam ter triunfado na Guerra Fria. No entanto, não há sinal de nada parecido com o projeto socialista que foi visto por muitos no passado como o sucessor do capitalismo. A obra de Žižek, que reflete essa situação paradoxal de várias maneiras, fez dele um dos intelectuais públicos mais conhecidos no mundo.

Nascido e educado em Liubliana, capital da República Popular da Eslovênia – parte da antiga federação iugoslava até que esta se desfez e a Eslovênia declarou independência, em 1990 –, Žižek ocupou vários cargos acadêmicos na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, assim como em seu país. Sua produção é prodigiosa, com mais de sessenta obras desde a publicação em 1989 de seu primeiro livro em inglês, Eles Não Sabem o que Fazem: o Sublime Objeto da Ideologia. Os livros, somados aos incontáveis artigos e entrevistas, além de filmes como Žižek! (2005) e O Guia Pervertido do Cinema (2006), lhe deram uma projeção que vai muito além da academia. Sintonizado com a cultura popular, em especial com o cinema, ele tem entre seus fãs jovens de muitos países, inclusive na Europa pós-comunista. Tem também uma publicação dedicada à sua obra – o International Journal of Žižek Studies, fundado em 2007, cujos leitores se registram via Facebook. Em outubro de 2011, fez um pronunciamento aos integrantes do movimento Occupy Wall Street, no Zuccotti Park, em Nova York, que foi amplamente divulgado e pode ser visto no YouTube.

A enorme influência de Žižek não significa que seu ponto de vista filosófico e político possa ser facilmente definido. Membro do Partido Comunista da Eslovênia até 1988, Žižek teve relações difíceis com as autoridades partidárias durante anos, em decorrência de seu interesse por ideias consideradas heterodoxas. Em 1990, candidatou-se à Presidência pelo Partido Liberal Democrata da Eslovênia, legenda de centro-esquerda que foi a principal força política do país na última década do século passado. Mas as ideias liberais, exceto por servirem como ponto de referência para posições que ele rejeita, nunca moldaram o seu pensamento.

Zižek foi demitido do seu primeiro emprego como professor universitário no início dos anos 70. Autoridades eslovenas julgaram que a tese escrita por ele sobre o estruturalismo francês – na época um movimento influente na antropologia, linguística, psicanálise e filosofia – era “não marxista”. O episódio demonstrou como era limitada a liberalização intelectual promovida no país na época, mas os trabalhos posteriores de Žižek sugerem que as autoridades tinham razão ao julgar que sua orientação não era marxista.

Na vasta obra que ele construiu desde então, Marx é criticado por ser insuficientemente radical na rejeição dos modos existentes de pensamento, enquanto Hegel – uma influência muito maior sobre Žižek – é louvado por sua disposição para deixar de lado a lógica clássica a fim de desenvolver uma maneira de pensar mais dialética. Mas Hegel também é criticado por ter apego demasiado aos modos tradicionais de raciocínio. Um tema central dos escritos de Žižek é a necessidade de descartar o compromisso com a objetividade intelectual que orientou pensadores radicais no passado.

A obra de Žižek se coloca em oposição a Marx em muitos pontos. Apesar de tudo o que devia à metafísica hegeliana, Marx também foi um pensador empírico, que procurou elaborar teorias que dessem conta do curso real dos acontecimentos históricos. Sua preocupação central não era a ideia abstrata da revolução, mas sim um projeto revolucionário envolvendo alterações concretas e radicais nas instituições econômicas e nas relações de poder.

Žižek mostra pouco interesse por esses aspectos do pensamento de Marx. Visando “repetir a ‘crítica marxista da economia política’ sem a noção utópico-ideológica do comunismo como seu quadro de referência obrigatório”, ele acredita que “o projeto comunista do século XX era utópico precisamente na medida em que não era suficientemente radical”. Segundo Žižek, a maneira como Marx compreendia o comunismo foi parcialmente responsável por esse fracasso: “A noção de Marx da sociedade comunista é, em si, uma fantasia do próprio capitalismo, isto é, uma projeção fantasmagórica para resolver as contradições capitalistas que ele descreveu tão bem.”


Embora rejeite a concepção de Marx do comunismo, Žižek não dedica nenhuma única página das mais de mil de seu livro Less Than Nothing, para especificar qual sistema econômico ou quais instituições de governo deveriam figurar numa sociedade comunista do tipo que ele defende. Em vez disso, Less Than Nothing na verdade um compêndio da obra de Žižek até agora, se dedica a reinterpretar Marx por meio de Hegel – uma das partes do livro se chama “Marx como leitor de Hegel, Hegel como leitor de Marx” – e a reformular a filosofia hegeliana fazendo referência ao pensamento do psicanalista francês Jacques Lacan.

Lacan, um “pós-estruturalista” que rejeitou a noção de que a realidade pode ser capturada pela linguagem, também rejeitou a interpretação mais aceita da ideia hegeliana da “astúcia da razão”, segundo a qual a história mundial é a concretização, por meios oblíquos e indiretos, da razão humana. Para Lacan, tal como Žižek o resume: A Astúcia da Razão [...] não implica, de modo algum, a fé numa mão invisível que, de alguma forma, conduziria todas as contingências aparentemente irracionais à harmonia da Totalidade da Razão: de fato, a Astúcia da Razão implica confiar na irracionalidade. Nessa leitura lacaniana, a mensagem da filosofia de Hegel não é o desdobramento progressivo da racionalidade na história, mas sim a impotência da razão.

Assim, o Hegel que surge nos escritos de Žižek tem pouca semelhança com o filósofo idealista que figura nas histórias convencionais do pensamento. Hegel é comumente associado à noção de que a história tem uma lógica intrínseca, na qual as ideias são concretizadas na prática e depois deixadas para trás, em um processo dialético no qual são superadas por outras ideias que representam o seu oposto. Inspirando-se no filósofo francês contemporâneo Alain Badiou, Žižek radicaliza a noção da dialética, propondo que ela signifique a rejeição do princípio lógico da não contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.

Desse modo, em vez de enxergar a racionalidade em ação na história, Hegel rejeita a própria razão, tal como ela foi entendida no passado. Segundo Žižek, está implícito em Hegel um novo tipo de “lógica paraconsistente”, na qual uma proposição “não é realmente suprimida pela sua negação”. Essa nova lógica, sugere Žižek, é bem adequada para se compreender o capitalismo hoje. “Pois não é o capitalismo ‘pós-moderno’ um sistema cada vez mais paraconsistente”, pergunta ele retoricamente, “no qual, de várias maneiras, P é não P: a ordem é a sua própria transgressão, de tal forma que o capitalismo pode prosperar sob um governo comunista, e assim por diante?”

Living in the End Times é apresentado por Žižek como uma obra preocupada com essa situação. Resumindo o tema central do livro, ele escreve:

O ponto de partida do presente livro é simples: o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus “quatro cavaleiros do Apocalipse” são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.

Com suas generalizações e sua grandiloquência retórica, a passagem é típica do trabalho de Žižek. O que ele chama de premissa do livro é simples só porque passa por cima de fatos históricos. Ao lê-la, ninguém iria suspeitar que, além da massacre de milhões por motivos ideológicos, alguns dos piores desastres ecológicos do século passado – tais como a destruição da natureza na antiga União Soviética ou a devastação do campo durante a Revolução Cultural de Mao – ocorreram em economias planificadas. A devastação ecológica não resulta apenas do sistema econômico vigente hoje em grande parte do mundo. Embora possa ser verdade que a versão predominante do capitalismo é insustentável em termos ambientais, nada na história do século passado sugere que o meio ambiente estará mais protegido se for implantado um sistema socialista.

Mas criticar Žižek por ignorar esses fatos é não compreender sua intenção. Ao contrário de Marx, ele não pretende fundamentar suas teorias em uma leitura da história baseada em fatos. “A conjuntura histórica atual não nos obriga a abandonar a noção de proletariado, ou da posição proletária – ao contrário, ela nos obriga a radicalizá-la até um nível existencial, para além até mesmo da imaginação de Marx”, escreve ele. “Precisamos de uma noção mais radical do sujeito proletário [ou seja, o ser humano que pensa e age], um sujeito reduzido ao ponto evanescente do ‘Penso, logo existo’ cartesiano, esvaziado do seu conteúdo substancial.” Nas mãos de Žižek, as ideias marxistas – as quais, na visão materialista de Marx, se destinavam a designar fatos sociais objetivos – se tornam expressões subjetivas de compromisso revolucionário. Saber se essas ideias correspondem a alguma coisa que existe no mundo é irrelevante.


Há um problema neste ponto: por que alguém haveria de adotar as ideias de Žižek, e não quaisquer outras? A resposta não pode ser “porque as ideias do filósofo são verdadeiras”, em qualquer sentido tradicional da palavra. “A verdade de que estamos tratando aqui não é a verdade ‘objetiva’”, escreve Žižek, “mas sim a verdade autorreferente a partir da posição subjetiva de alguém; como tal, é uma verdade engajada, medida não pela sua precisão factual, mas sim pela forma como ela afeta a posição subjetiva da enunciação.”

Se isso significar alguma coisa, quer dizer que a verdade é determinada pela forma como se encaixa nos projetos com que o orador está comprometido – no caso de Žižek, o projeto da revolução. Mas isso só nos leva a colocar o problema em outro nível: por que alguém deveria adotar o projeto de Žižek? A pergunta não pode ter uma resposta simples, uma vez que está longe de ser claro no que consiste o seu projeto revolucionário.

Ele não dá sinais de duvidar que uma sociedade em que o comunismo fosse posto em prática seria melhor do que qualquer outra que já existiu. Por outro lado, ele é incapaz de imaginar quaisquer circunstâncias em que o comunismo pudesse ser concretizado: “O capitalismo não é apenas uma época histórica entre outras. [...] Francis Fukuyama tinha razão: o capitalismo global é o fim da história.”(1) O comunismo não é para Žižek – como era para Marx – uma condição realizável, mas sim o que o filósofo Alain Badiou descreve como uma “hipótese”, um conceito com pouco conteúdo, mas que permite a resistência radical contra as instituições vigentes. Žižek insiste que essa resistência deve incluir o uso do terror:

A ideia provocante de Badiou de que se deve reinventar hoje o terror emancipatório é um dos seus insights mais profundos. [...] Lembrem-se da defesa exaltada do Terror na Revolução Francesa feita por Badiou, na qual ele cita a justificativa da guilhotina para Lavoisier: “A República não precisa de cientistas.”(2)

Junto com Badiou, Žižek celebra a Revolução Cultural de Mao como “a última grande explosão realmente revolucionária do século XX”. Mas ele também a considera um fracasso, citando a conclusão de Badiou de que “a Revolução Cultural comprova, em seu próprio impasse, a impossibilidade de libertar, verdadeira e globalmente, a política do arcabouço do Estado de partido único”.(3) Mao, ao incentivar a Revolução Cultural, evidentemente deveria ter encontrado uma maneira de quebrar o poder do partido-Estado. Mais uma vez, Žižek elogia o Khmer Vermelho por ter tentado romper totalmente com o passado. Essa tentativa incluiu massacres em massa e tortura numa escala colossal. Mas, na visão de Žižek, não é por isso que fracassou: “De certa forma, o Khmer Vermelho não foi suficientemente radical: embora levasse a negação abstrata do passado até o limite, não inventou qualquer forma nova de coletividade.” Uma verdadeira revolução pode ser impossível nas atuais circunstâncias, ou em quaisquer outras que possam ser imaginadas atualmente. Mesmo assim, a violência revolucionária deve ser comemorada como “redentora”, até mesmo “divina”.

Embora Žižek se defina como leninista(4), não há dúvida de que essa posição seria um anátema para o líder bolchevique. Lênin não tinha escrúpulos em usar o terror para promover a causa do comunismo (para ele, um objetivo plenamente alcançável). Sempre utilizada como parte de uma estratégia política, a violência era de natureza instrumental. Em contraste, embora Žižek aceite que a violência não conseguiu atingir os objetivos comunistas e que não há perspectiva de que venha a fazê-lo, ele insiste em que a violência revolucionária tem um valor intrínseco como uma expressão simbólica de rebelião – uma posição que não tem paralelos em Marx ou Lênin. Pode-se encontrar um precedente no trabalho do psiquiatra francês Frantz Fanon, que defendia o uso da violência contra o colonialismo como uma afirmação da identidade das populações submetidas ao poder colonial; mas Fanon via essa violência como parte de uma luta pela independência nacional, um objetivo que foi, de fato, alcançado.

Um precedente mais claro pode ser encontrado na obra de Georges Sorel, teórico francês do sindicalismo do início do século XX. Sorel argumentou que o comunismo era um mito utópico – mas um mito que tinha valor, ao inspirar uma revolta moral regeneradora contra a corrupção da sociedade burguesa. Os paralelos entre essa visão e a ideia de Žižek sobre a “violência redentora” inspirada pela “hipótese comunista” são reveladores.


A celebração da violência é uma das principais vertentes na obra de Žižek. Ele critica Marx por pensar que a violência pode ser justificada como parte do conflito entre classes sociais definidas objetivamente. A luta de classes não deve ser entendida como “um conflito entre agentes particulares dentro da realidade social: não é uma diferença entre agentes (que pode ser descrita por meio de uma análise social detalhada), mas sim um antagonismo (‘luta’) que constitui esses agentes”. Aplicando essa visão ao discutir os massacres de Stálin ao campesinato, Žižek descreve como a distinção entre os kulaks (camponeses ricos) e os demais se tornou “turva e inviável: numa situação de pobreza generalizada, os critérios claros não se aplicam mais, e as outras duas classes de camponeses muitas vezes se uniam aos kulaks em sua resistência à coletivização forçada”. Em resposta a essa situação, as autoridades soviéticas introduziram uma nova categoria, o sub-kulak, o camponês pobre demais para ser classificado como kulak, mas que partilha os valores dos kulaks:

Assim, a arte de identificar um kulak deixou de ser uma questão de análise social objetiva; tornou-se uma espécie de complexa “hermenêutica da suspeita”, de identificar “as verdadeiras atitudes políticas” de um indivíduo escondidas debaixo das suas enganosas afirmações públicas.

Descrever o assassinato em massa dessa maneira, como um exercício de hermenêutica, é repugnante e grotesco; é também característico da obra de Žižek. Ele critica a política de coletivização de Stálin, mas não por conta dos milhões de vidas que foram violentamente interrompidas ou destruídas em seu curso. O que Žižek critica é o apego persistente de Stálin (mesmo que incoerente ou hipócrita) aos “termos marxistas ‘científicos’”. Confiar na “análise social objetiva” como orientação em situações revolucionárias é um erro: “Em algum ponto, o processo tem que ser interrompido com uma intervenção maciça e brutal de subjetividade: o pertencimento de classe nunca é um fato social puramente objetivo, mas também é sempre o resultado da luta e do envolvimento social.” O que Žižek condena em Stálin não é o uso implacável da tortura e do assassinato, mas sim o fato de ter tentado justificar o recurso sistemático à violência mediante referências à teoria marxista.

A rejeição de Žižek a qualquer coisa que possa ser descrita como um fato social vem junto com a sua admiração pela violência na interpretação que faz do nazismo. Comentando o envolvimento muito discutido do filósofo alemão Martin Heidegger com o regime nazista, Žižek escreve: “Seu envolvimento com os nazistas não foi um simples erro, mas sim ‘um passo certo na direção errada’.” Contrariamente a muitas interpretações, Heidegger não era um reacionário radical. “Lendo Heidegger contra a corrente, descobre-se um pensador que era, em alguns pontos, estranhamente próximo ao comunismo” – de fato, em meados da década de 1930, Heidegger poderia ser considerado “um futuro comunista”.

Se Heidegger optou, equivocadamente, por apoiar Hitler, seu erro não foi subestimar a violência que Hitler iria desencadear:

O problema de Hitler era que ele “não foi suficientemente violento”, sua violência não foi suficientemente “essencial”. Hitler realmente não agia; todas as suas ações eram, fundamentalmente, reações, pois ele agia de modo que nada fosse mudar realmente, encenando um gigantesco espetáculo de pseudo-revolução para que a ordem capitalista sobrevivesse. [...] O verdadeiro problema do nazismo não é ter ido “longe demais” na sua arrogância subjetivista-niilista de exercer o poder total, mas sim não ter ido longe o suficiente; sua violência foi uma encenação impotente que, em última análise, continuou a serviço da própria ordem que o nazismo desprezava.

O que havia de errado com o nazismo, ao que parece, é que – tal como a experiência posterior na revolução total do Khmer Vermelho – ele não conseguiu criar qualquer novo tipo de vida coletiva. Žižek diz pouco sobre a natureza da forma de vida que poderia ter surgido caso a Alemanha tivesse sido governada por um regime menos reativo e impotente do que ele julga ter sido o de Hitler. Mas ele deixa claro que não haveria espaço nessa nova vida para uma determinada forma da identidade humana:

O status fantasmático do antissemitismo é claramente revelado por uma declaração atribuída a Hitler: “Temos que matar o judeu dentro de nós.” [...] Essa afirmação de Hitler diz mais do que ela quer dizer: contra as suas intenções, ela confirma que os gentios precisam da figura antissemita do “judeu” para sua identidade. A questão, portanto, não é apenas que “o judeu está dentro de nós” – o que Hitler esqueceu de acrescentar é que ele, o antissemita, também está no judeu. O que esse entrelaçamento paradoxal significa para o destino do antissemitismo?

Žižek é explícito ao censurar “certos elementos da esquerda radical” pelo “seu desconforto quando se trata de condenar o antissemitismo inequivocamente”. Mas é difícil entender a afirmação de que a identidade dos antissemitas e a dos judeus se reforçam mutuamente, de alguma forma – ideia que se repete, palavra por palavra, em Less than Nothing –, exceto como uma sugestão de que o único mundo em que o antissemitismo pode deixar de existir é um mundo em que não existam mais judeus.


Interpretar Žižek nesta questão ou em qualquer outra tem suas dificuldades. Primeiro existe a sua prolixidade excessiva, a torrente de textos que ninguém poderia ler na sua totalidade, mesmo porque ela nunca para de jorrar. Depois, há o uso de um tipo de jargão acadêmico com alusões a outros pensadores, o que lhe permite usar a linguagem de uma forma ardilosa, hermética. Como ele próprio reconhece, Žižek toma emprestado o termo “violência divina” de “Para uma crítica da violência”, ensaio de Walter Benjamin (1921). É duvidoso que Benjamin, um pensador com afinidades importantes com o marxismo humanista da Escola de Frankfurt, tivesse qualificado como “divino” o Khmer Vermelho ou o frenesi destrutivo da Revolução Cultural maoista.

Mas isso não vem ao caso, pois, ao utilizar a construção de Benjamin, Žižek consegue louvar a violência e, ao mesmo tempo, alegar que está falando da violência em um sentido especial, recôndito – um sentido em que se pode descrever Gandhi como mais violento do que Hitler.(5) E há, ainda, o constante recurso de Žižek a um jogo de palavras laborioso e extravagante:

A [...] virtualização do capitalismo é, em última análise, a mesma do elétron na física das partículas. A massa de cada partícula elementar é composta pela sua massa em repouso mais o excedente fornecido pela aceleração do seu movimento; no entanto, a massa de um elétron em repouso é zero, pois a sua massa consiste apenas no excedente gerado pela aceleração, como se estivéssemos lidando com um nada que adquire uma substância enganosa apenas por girar magicamente até tornar-se um excesso de si mesmo.

É impossível ler o trecho acima sem lembrar o caso Sokal, em que Alan Sokal, um professor de física, apresentou um artigo-paródia – “Transgredindo as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica” – a uma revista de estudos culturais pós-modernos. Também é difícil ler isso, e muitas passagens semelhantes de Žižek, sem desconfiar que ele esteja envolvido – seja intencionalmente ou não – em uma espécie de autoparódia.

Pode existir quem se sinta tentado a condenar Žižek como um filósofo do irracionalismo, cujo louvor à violência é uma reminiscência da extrema-direita, mais do que da esquerda radical. Seus escritos com frequência são ofensivos e, por vezes (como ao escrever que Hitler está presente “no judeu”), obscenos. Há uma frivolidade zombeteira nos louvores de Žižek ao terror que faz lembrar Gabriele D’Annunzio, futurista italiano e ultranacionalista, e seu companheiro de viagem, o fascista (e depois maoista) Curzio Malaparte, mais do que qualquer pensador na tradição marxista. Mas há outra leitura de Žižek, que pode ser mais plausível, em que ele não é um epígono da direita, assim como não é discípulo de Marx ou Lênin.

Seja ou não a visão marxista do comunismo “uma fantasia do próprio capitalismo”, o fato é que a visão de Žižek – que, além de rejeitar concepções anteriores, carece de qualquer conteúdo definido – é bem adaptada a uma economia baseada na produção contínua de novas experiências e novos produtos, cada um supostamente diferente de qualquer outro que já tenha existido antes. Com a ordem capitalista vigente consciente de que está em apuros, mas incapaz de conceber alternativas viáveis, o radicalismo sem forma de Žižek se adapta muito bem a uma cultura paralisada pelo espetáculo da sua própria fragilidade. Não surpreende que haja esse isomorfismo entre o pensamento de Žižek e o capitalismo contemporâneo. Afinal, apenas uma economia do tipo que existe hoje poderia produzir um pensador como Žižek. O papel de intelectual público mundial que Žižek desempenha surgiu juntamente com um aparato de mídia e uma cultura da celebridade que são parte integrante do atual modelo de expansão capitalista.

Em uma façanha estupenda de superprodução intelectual, Žižek criou uma crítica fantasmagórica da ordem atual, uma crítica que afirma repudiar praticamente tudo o que existe atualmente, e em certo sentido realmente o faz; mas que, ao mesmo tempo, reproduz o dinamismo compulsivo, sem propósito, que ele vê nas atividades do capitalismo. Ao alcançar um conteúdo enganoso com a reiteração interminável de uma visão essencialmente vazia, a obra de Žižek – que ilustra muito bem os princípios da lógica paraconsistente – consiste, no final, em menos que nada.

Notas:

(1) Slavoj Žižek, “Have Michael Hardt and Antonio Negri Rewritten the Communist Manifesto for the Twenty-First Century?”, Rethinking Marxism: a Journal of Economics, Culture and Society, Vol. 13, No. 3–4 (2001), p. 190.

(2) Slavoj Žižek, The Parallax View (MIT Press, 2006), p. 326.

(3) Žižek, The Parallax View, p. 328.

(4) “Eu sou um leninista. Lênin não tinha medo de sujar as mãos. Se você pode obter poder, obtenha-o.” Citado por Jonathan Derbyshire, New Statesman, October 29, 2009.

(5) “É crucial enxergar a violência que é cometida repetidamente para manter as coisas como são. Nesse sentido, Gandhi foi mais violento do que Hitler.” Ver a entrevista de Shobhan Saxena com Žižek, “First they called me a joker, now I am a dangerous thinker”, The Times of India, January 10, 2010.

2 de julho de 2012

A solução mosquito

Modificação genética pode eliminar uma doença tropical mortal?

Michael Specter

The New Yorker

Designed and folded by Robert J. Lang. Photograph by Bartholomew Cooke

Poucas pessoas, a menos que viajem com um microscópio eletrônico, notariam algum dia o ovo de um mosquito . No entanto, esses insetos nos seguem por todo canto. Eles podem se reproduzir em uma colher de chá de água, e seus ovos já foram encontrados em latas, garrafas de cerveja, barris, jarros, vasos de flores, xícaras, tanques, banheiras, bueiros, cisternas, fossas, bocas de lobo e tanques de criação de peixes. Eles acasalam no orvalho de lírios-aranha, orelhas-de-elefante, goiabeiras, folhas de palmeiras, nos buracos de rochas e em recifes de corais. Mais do que em qualquer outro lugar, talvez, o Aedes aegypti se desenvolve nos sulcos úmidos e escondidos de pneus de carros usados.

Quando adultos, os mosquitos são estranhamente bonitos: negros, com manchas brancas no tórax e anéis brancos nas pernas. OsAedes, porém, estão entre as criaturas mais mortíferas da Terra. Antes do descobrimento da vacina nos anos 30, o mosquito transmitiu o vírus da febre amarela a milhões de pessoas com uma eficiência devastadora. Na Guerra Hispano-Americana, no final do século XIX, os soldados dos Estados Unidos sofreram mais mortes causadas pela febre amarela do que pelo fogo inimigo.

O mosquito também transmite dengue, uma das doenças virais que se disseminam mais rapidamente no mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a dengue infecta pelo menos 50 milhões de pessoas por ano. Para os que têm sorte, um episódio de dengue parece uma forma leve de gripe. Mais de meio milhão de pessoas, entretanto, ficam gravemente enfermas por causa da doença. Muitas desenvolvem a febre hemorrágica, que causa vômito e, com frequência, sangramento nasal, na boca ou na pele. A dor pode ser tão lancinante que a virose tem o apelido de febre quebra-ossos.

Não há vacina, cura ou tratamento eficaz para a dengue. O único modo de combater a doença tem sido envenenar os insetos que a transportam. Isso significa envolver jardins, ruas e parques públicos em uma nuvem de inseticida. Agora há outra abordagem, promissora, mas experimental: uma empresa de biotecnologia britânica chamada Oxitec desenvolveu um método de modificação da estrutura genética do macho do mosquito Aedes que consiste basicamente em transformá-lo em um mutante capaz de destruir sua própria espécie.

Alguns meses atrás, estive em um laboratório úmido e fétido da Moscamed, uma instituição de pesquisa com insetos na cidade brasileira de Juazeiro (BA), que possui uma das maiores taxas de incidência da dengue do mundo. Um recipiente plástico do tamanho de uma xícara de café expresso estava sobre o banco à minha frente, repleto de algo parecido com tapioca preta: uma massa granular e glutinosa contendo milhões de ovos do mosquito modificado da Oxitec. Juntos, os ovos pesavam 10 gramas, o equivalente ao peso de três moedas de 5 centavos.

A Oxitec, abreviação de Oxford Insect Technologies, basicamente transformou a Moscamed em uma linha de montagem entomológica. Em um espaço estritamente controlado e excessivamente úmido, os mosquitos são chocados, criados e alimentados com uma combinação de sangue de cabra e ração para peixe, e então se reproduzem. Depois disso, os técnicos do laboratório destroem as fêmeas que eles criaram e libertam os machos para irem atrás do verdadeiro e único propósito da vida: encontrar fêmeas na natureza para se acasalar. Os ovos fertilizados por esses machos modificados geneticamente serão chocados normalmente, mas logo depois, e bem antes que os novos mosquitos possam voar, os genes fatais irão prevalecer, matando todos os insetos. O objetivo é ao mesmo tempo simples e audacioso: controlar a população nativa do Aedes aegypti e exterminá-la juntamente com as doenças que carrega.

Os mosquitos modificados, conhecidos oficialmente como OX513A, levam uma vida breve mas privilegiada. O processo inteiro, da criação à destruição, demora menos de duas semanas. Os ovos, de menos de 1 milímetro de comprimento, têm coloração branca leitosa após serem postos. Depois de algumas horas eles ficam endurecidos, adquirem uma cutícula protetora e se tornam brilhantes e pretos. Olhando ao redor do laboratório, notei prateleiras forradas com lençóis brancos compridos; cada lençol estava coberto por dezenas de milhares de pontos do tamanho de um alfinete que pareciam algum tipo de código de computador. Os ovos podem sobreviver desse modo por um ano; depois de quatro dias, entretanto, eles são mergulhados em potes cheios de água a 27°C – temperatura que permite aos ovos chocarem em menos de uma hora.

“Esses mosquitos são relativamente fáceis de criar e transportá-los não custa quase nada”, disse Andrew McKemey, gerente de desenvolvimento técnico da Oxitec, enquanto me conduzia pelo laboratório. McKemey, um homem magricela que vestia camisa verde de algodão fino e calça cargo cáqui, passa boa parte do tempo no Brasil, ensinando os cientistas locais a manufaturar o principal produto da empresa. O laboratório produz cerca de 4 milhões de ovos mutantes por semana, e logo irá aumentar a produção para 10 milhões. “Isso é só o começo”, disse McKemey. “Em teoria, podemos fazer centenas de milhões de mosquitos neste lugar.”

O estudo de campo, que começou um ano atrás, é fruto de uma colaboração entre a Moscamed, a Oxitec e a Universidade de São Paulo. Os resultados preliminares são impressionantes: o grupo coletou recentemente uma amostra de ovos em dois bairros onde os mosquitos de laboratório foram soltos, e descobriu que 85% deles eram geneticamente modificados. Com um número grande o suficiente desses ovos, a população de Aedes diminuiria, assim como a incidência da dengue. “Isso não é uma panaceia”, disse-me Giovanini Coelho, coordenador do Programa Nacional de Controle da Dengue do Ministério da Saúde. “Não estou afirmando que essa medida sozinha irá solucionar o problema ou que não haja riscos. Sempre há riscos – por isso começamos com estudos pequenos em bairros isolados geograficamente. Mas as pessoas estão morrendo aqui, e esse mosquito é resistente a muitos inseticidas. Precisamos de fato de algo melhor do que temos.”

Em Juazeiro, onde poucas famílias não foram afetadas pela dengue, a equipe da Moscamed e seus mosquitos são tratados com reverência. Os pesquisadores dirigem vans brancas com fotos dos mosquitos pela região e a palavra “transgênico” pintada na lateral. Tentam visitar todas as casas das áreas onde soltam os mosquitos, para explicar que os OX513A “são insetos amigáveis que protegem você contra a dengue” e que, como os cientistas estão atacando os Aedes aegypti onde eles vivem, debaixo de sofás e nos quintais, os mosquitos modificados podem matar seus pares sem fazer mal a outra planta ou animal.

É uma abordagem elegante para uma crise na saúde que ameaça boa parte do mundo, mas será necessário mais que sucesso biológico para fazê-la funcionar. Isso porque o OX513A não é como os outros mosquitos. Na verdade, é diferente de todos os demais seres da Terra – uma criatura alada, feita pelo homem e depois solta na natureza. Apesar da promessa científica do experimento, muitas pessoas consideram o minúsculo inseto o arauto de um mundo onde animais são feitos por cientistas sem nome, criados em béqueres e então liberados na natureza – com consequências impossíveis de predizer ou controlar, não importa quão nobre seja a intenção.

“Esse mosquito é o monstro do doutor Frankenstein puro e simples”, disse Helen Wallace, diretora-executiva da organização ambientalista britânica GeneWatch. “Abrir a caixa e deixar essas criaturas feitas pelo homem voarem livremente traz riscos que nem começamos a contemplar.”

Há mais de 3 mil espécies de mosquito, mas a ampla maioria não se interessa por nós, alimentando-se de frutas podres e outras fontes de açúcar. Apenas algumas centenas de espécies, incluindo o Aedes aegypti, precisam de sangue para sobreviver. (Os machos nunca picam, mas sem uma refeição constituída de sangue as fêmeas ficariam impossibilitadas de nutrir os ovos.) Os hábitos de acasalamento dos mosquitos podem ser brutais. “Na maioria dos encontros bem-sucedidos, o casal fica tão firmemente atado que o macho tem dificuldade de escapar no final”, escreveu Andrew Spielman, falecido entomologista da Universidade Harvard, em seu livro Mosquito: The Story of Man’s Deadliest Foe, publicado em 2001. “Alguns machos menos afortunados só conseguem se libertar deixando os órgãos sexuais para trás.” Ainda assim, Spielman também notou que as trocas breves podem ser altamente produtivas: “Um único minuto de paixão permite à fêmea produzir todos os ovos férteis que ela irá colocar na vida.”

Nunca houve uma máquina de matar tão eficiente. Pesquisadores estimam que mosquitos tenham sido responsáveis por metade das mortes na história humana. A malária responde pela maioria dos casos, mas mosquitos também transmitem muitas outras infecções potencialmente fatais, incluindo febre amarela, dengue, chikungunya, filariose, febre do vale do Rift, febre do Nilo Ocidental e vários tipos de encefalite. Apesar de nossa sofisticação técnica, os mosquitos representam hoje um risco maior para um número mais alto de pessoas. Como a maioria dos outros patógenos, os vírus e parasitas carregados por mosquitos evoluem rapidamente para resistir aos pesticidas e medicamentos. Muitos inseticidas já usados contra o Aedes aegypti são agora considerados inócuos.

O Aedes aegypti é uma espécie invasora nas Américas. Ele provavelmente chegou em navios que traficavam escravos a partir da África no século XVII, trazendo junto a febre amarela. Os mosquitos procriaram com facilidade nos barris de água potável dos barcos. Durante o século XVIII, uma grave epidemia de febre amarela varreu a Nova Inglaterra e a Filadélfia, assim como outras cidades portuárias americanas; foi necessário mais um século para se descobrir que os mosquitos eram os portadores da doença.


O controle tradicional dos mosquitos quase erradicou o Aedes aegypti (e as doenças que ele carregava) dos Estados Unidos cinquenta anos atrás. Mas a globalização tem sido boa para os mosquitos, especialmente para espécies como o Aedes aegypti, que viaja com facilidade e pode ficar inativo por meses em recipientes. Nos últimos anos, o mosquito e a dengue retornaram ao Texas, ao Havaí e à Flórida. A doença também foi transmitida pela primeira vez na França e na Croácia.

“Transportamos o mosquito pelo mundo em bilhões de pneus usados”, disse-me Paul Reiter, professor de entomologia médica no Instituto Pasteur, em Paris. Reiter é um dos maiores especialistas mundiais em história natural de doenças transmitidas por mosquitos. Antes de se mudar para a França, passou mais de duas décadas no Departamento de Dengue dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, devotando uma surpreendente parte do seu tempo ao estudo de pneus. Ele descobriu que estes eram incubadores ideais de mosquitos: os pneus absorvem calor, retêm água da chuva e nutrem bactérias nas poças que criam. O crescimento exponencial da dengue – o número de casos comunicados à Organização Mundial da Saúde cresceu trinta vezes desde 1965 – pode, pelo menos em parte, ser atribuído ao enorme crescimento das exportações de pneus.


O Aedes aegypti não voa para longe nem vive muito tempo; um viajante hábil se moveria poucas centenas de metros e, em média, sobreviveria como adulto por dez dias. Mas o Aedes é um inseto particularmente astuto. A maioria dos mosquitos faz barulho o bastante para acordar um homem adormecido, e é lenta a ponto de não conseguir dar mais de uma picada antes de ter que escapar ou ser esmagado por um golpe raivoso. O Aedes aegypti se alimenta de dia e ataca à noite; em geral fica rente ao chão e prefere picar as pessoas nos tornozelos e pernas.

O mosquito é extremamente sensível ao movimento – quando alguém se move, ele também o faz, em geral atacando a vítima várias vezes durante cada refeição e depositando patógenos em cada picada, o que, por sua vez, aumenta o risco de que contraia a dengue de pessoas infectadas e depois transmita a doença para outras pessoas. (Diferentemente da maioria dos mosquitos, que podem depositar centenas de ovos em uma superfície flutuante do tamanho de um grão de arroz, o Aedes aegypti em geral deposita seus ovos em vários locais, aumentando, desse modo, a chance de que alguns sobrevivam.)

A dengue sempre foi considerada uma doença tropical. Mas seu meio de transporte, o mosquito, raramente vive a mais de 100 metros da principal fonte de sustento do vetor – nós –, e como nosso perfil demográfico mudou, pode-se dizer a mesma coisa do mosquito. O Aedes aegypti se adaptou à cidade com grande destreza. Mesmo os pesticidas modernos mais eficientes com frequência não chegam aos locais de reprodução urbanos tão bem escondidos. “A dengue é uma doença terrível, simplesmente terrível”, afirmou Reiter. “E nenhum dos métodos utilizados até agora para controlá-la está funcionando. Nenhum.”

Não é fácil para um ovo se tornar um OX513A. A maioria foi geneticamente modificada nos laboratórios da Oxitec, no interior da Inglaterra, próximo a Oxford, onde cientistas, trabalhando com agulhas de vidro tão pequenas que só são visíveis sob um poderoso microscópio, inserem dois genes em ovos não maiores que um grão de sal. Um dos genes carrega instruções para manufaturar uma quantidade muito maior de uma proteína do que seria necessário para manter novas células saudáveis; os resultados são letais. Os cientistas mantêm esse gene sob controle e os mosquitos, vivos, por meio da inserção do antibiótico tetraciclina na comida dos insetos. A droga se liga à proteína e age como um interruptor que pode ligá-la e desligá-la. Enquanto a tetraciclina está presente, os mosquitos vivem e se reproduzem normalmente. Uma vez liberados do laboratório, entretanto, o antídoto se vai; o gene letal fica descontrolado. Dentro de dias os machos, juntamente com quaisquer ovos que eles ajudem a criar, irão morrer. Na verdade, a Oxitec já modificou todos os ovos de Aedes aegypti de que o mundo pode precisar.


O outro gene é um marcador fluorescente – a versão molecular de um ferro em brasa – que ajuda a diferenciar os mosquitos normais dos modificados. Não é possível ver nada a olho nu, mas sob o microscópio as larvas emitem um brilho vermelho intenso, como um tênue letreiro de neon. A maioria dos ovos alterados irá morrer. Outros não conseguirão incorporar os novos genes em seu DNA; esses são inúteis, pois o processo funciona apenas quando os genes alcançam as células germinativas necessárias para os ovos se reproduzirem. A tarefa é difícil e tediosa: os técnicos podem passar por milhares de ovos para atingir apenas um que irá passar os novos genes à próxima geração de mosquitos. Mas, uma vez que um número suficiente de ovos seja corretamente modificado, eles podem, depois de muitas gerações, produzir milhões de mosquitos mutantes.

Os OX513A são criados na relativa suntuosidade do laboratório. Depois de incubados, eles são movidos das placas de Petri para tanques do tamanho de um aquário caseiro. Os machos são alimentados com açúcar; as fêmeas, primeiramente atraídas pelo odor do suor humano, recebem sangue de cabra obtido semanalmente de um abatedouro próximo. “Graças a Deus existe esse lugar”, falou rindo McKemey. “Não dá para fazer mosquitos sem sangue.” No espaço exíguo da sala dos fundos onde ele estava, todos os ovos ao redor se metamorfoseavam em larvas, eclodindo em bandejas compridas usadas por padeiros para armazenar os pães. Do outro lado da sala, em baldes transparentes e cheios de água, cobertos com gaze, milhares de larvas tentavam freneticamente sair dos casulos, o último estágio antes de se tornarem mosquitos adultos.

Os mosquitos adolescentes têm cabeça enorme e olhos proeminentes; sob o microscópio parecem cavalos-marinhos ou versões de ETs em miniatura. Enquanto ainda estão contidos no casulo, suas asas transparentes ficam pregadas atrás do corpo. Nesse ponto, o mosquito já começou a respirar pelo sifão, um tubo espiralado e segmentado que é introduzido na superfície da água como um snorkel. No momento certo, a pupa inspira, expande o abdômen, rompe o casulo e emerge como adulto. “É emocionante”, disse McKemey, enquanto observávamos os mosquitos jovens fazerem a primeira tentativa de voar. “Nunca me canso disso.”

A inspiração para o mosquito da Oxitec surgiu de um método de controle de pragas chamado técnica de esterilização de mosquitos, que foi usado durante décadas. Bilhões de insetos, todos esterilizados por ondas de radiação, foram criados em laboratórios como o da Moscamed e soltos para acasalar na natureza. Em 1982, o uso do método erradicou com sucesso a larva da mosca-varejeira – um parasita que ataca a carne de animais de sangue quente – da América do Norte. Mas é difícil usar a radiação adequadamente em insetos tão pequenos como os mosquitos. Se se administrar muito pouco, eles permanecerão viris; uma carga muito poderosa pode deixar os insetos tão frágeis que eles não estarão aptos a competir pelas fêmeas.

No início dos anos 90, Luke Alphey, cientista chefe da Oxitec, investigava a genética do desenvolvimento da Drosophila, a mosca-das-frutas comum. Um dia, Alphey, hoje professor visitante de zoologia em Oxford, cruzou com um colega que conversava sobre a técnica de esterilizar insetos. Ele, que conhecia pouco sobre esse campo, começou a pensar sobre como substituir a radiação pelas técnicas da biologia molecular moderna. Alphey é reservado, com uma mecha de cabelo castanho e olhos pensativos; é quase possível ver seu cérebro trabalhando enquanto ele decifra um problema científico. Seu objetivo não era exatamente esterilizar os machos, mas alterar seus genes de modo que qualquer descendente morresse. Se ele pudesse realizar isso sem usar radiação, argumentou, os insetos estariam aptos para a competição sexual pelas fêmeas da natureza.

Alphey enfrentou vários obstáculos científicos. Ele teria de separar apenas os machos. (Como as fêmeas dos mosquitos picam, as fêmeas modificadas geneticamente poderiam, em teoria, passar novas proteínas para os seres humanos, com consequências desconhecidas.) “Eu estava começando a pensar numa solução que tivesse a ver com a radiação”, revelou. “Pensei: ‘E se o sistema de engenharia letal pudesse ser voltado especificamente para determinado sexo?’ Acontece que as fêmeas do Aedes aegypti são consideravelmente maiores que os machos. Isso foi um golpe de sorte, pois significa que é possível separá-los com facilidade com base no seu tamanho.”

Uma vez soltos, os machos teriam de viver tempo suficiente para inseminar as fêmeas, e eles precisariam ser saudáveis o bastante para competir com os machos da natureza. “Você quer que o inseto procrie com sucesso no laboratório, mas dependa de um antídoto que não estará mais disponível na natureza”, explicou Alphey. “Era difícil saber como fazer isso.” Mas o acaso interveio novamente: ele precisou ir a um seminário em que pesquisadores descreveram o uso de tetraciclina como um interruptor capaz de desligar um gene. “A molécula impede que o gene mortal funcione”, disse Alphey. “Era uma solução perfeita.”

Em 2002, a Oxitec se tornou uma empresa independente da universidade. Alphey começou a falar em encontros sobre doenças tropicais e em países infestados pela dengue; ele também reuniu apoio de investidores privados e de instituições filantrópicas ligadas à saúde pública, incluindo a Gates Foundation e a Wellcome Trust. Em 2010, a empresa coordenou uma série de estudos de campo nas ilhas Cayman, soltando 3,3 milhões de mosquitos alterados geneticamente em 16 hectares de terra. O OX513A se tornou o primeiro mosquito modificado posto em liberdade no planeta. O número de mosquitos Aedes aegyptiselvagens na área caiu 80% em cinco meses. Foi apenas um teste de viabilidade; ninguém sabia como o método poderia atingir a ecologia da região ou se reduziria de fato a incidência de dengue. Os ativistas ambientais temiam que a liberação de mosquitos modificados pudesse desencadear uma série de eventos que ninguém fosse capaz de controlar.

“Eles não sabem como isso vai funcionar no ambiente real”, afirmou Silvia Ribeiro, diretora na América Latina de uma organização ambientalista chamada ETC Group. “E uma vez que os mosquitos são liberados, não há como apanhá-los de volta.” Em 2010, a Oxitec começou um estudo de campo menor na Malásia. Mas o experimento brasileiro foi o maior teste até o momento, e lançou as bases para a batalha da Oxitec para entrar no mercado mais importante do mundo: os Estados Unidos.

Em 2009, Key West, na Flórida, sofreu seu primeiro surto de dengue em 65 anos. Houve menos de trinta casos confirmados – um número insignificante se comparado aos milhões de infectados anualmente na América do Sul, na África e na Ásia. Há apenas 25 mil residentes permanentes em Key West, mas, com mais de 2 milhões de visitantes por ano, a cidade depende dos turistas. Estive lá durante as férias da primavera, que não é o melhor momento para visitar o local a menos que se tenha algum interesse particular em festas regadas a cerveja, tequila ou covers da banda Eagles.

“Eles sustentam esta cidade”, disse a dona de uma banca de cigarros enquanto observávamos montes de estudantes bronzeados descerem a avenida Truman em direção ao bar Jimmy Buffett’s em Margaritaville, o marco zero do estilo de vida relaxado de Key West. “Às vezes a coisa fica feia por lá”, continuou. “Mas afaste os turistas e somos apenas um monte de quiosques de comida mexicana, bares e barracas de praia.”

Mesmo um surto leve de dengue em Key West acionou o alarme. Depois de 2009, o Distrito de Controle de Mosquitos de Florida Keys acrescentou dez inspetores à batalha contra o Aedes aegypti. Em 2010, o número de casos na região dobrou. “Temos um potencial evidente para surtos graves de dengue”, disse-me Michael S. Doyle, entomologista e diretor-executivo do distrito. Ele se mudou para Key West em 2011, depois de passar cinco anos nos Centros para Controle de Doenças dos Estados Unidos. “Parte do nosso problema é a imagem da dengue”, explicou. “Algumas centenas de casos aqui poderiam devastar o turismo.”

“Imagine”, continuou. “Alguém em Milwaukee está navegando por sites da internet e pergunta à mulher: ‘Aonde devemos ir nas férias, querida, a Key West ou a algum lugar no Caribe?’ E a mulher responde: ‘Ei, me lembro de ter ouvido alguma coisa sobre dengue em Key West.’”


Estávamos em um café não muito longe da casa de Ernest Hemingway, o local mais visitado por turistas na cidade. Como muitos prédios públicos, o café tem janelas abertas e sem telas de proteção; os mosquitos dançam no ar ao nosso lado. “Vivemos com janelas e portas abertas”, ressaltou Doyle. “E eles convivem conosco. Somos um hospedeiro ideal.”

Doyle é um homem de voz suave, que usa óculos sem aros e um bigode aparado com esmero. Ele assinalou que, quando se trata de contrair dengue, o modo como as pessoas vivem é tão importante quanto o local onde moram: de 1980 a 1999, o Texas comunicou 64 casos de dengue ao longo do rio Grande, enquanto havia mais de 60 mil casos nos estados mexicanos do outro lado do rio. “Na verdade, a população de era maior no Texas”, explicou. Mas os texanos tinham tela nas janelas (e as mantinham fechadas), dirigiam carros com ar-condicionado e passavam pouco tempo nas ruas.

Doyle desejava baixar o risco de um surto de dengue em Key West, mas o distrito já gastava mais de 1 milhão de dólares por ano com inseticida, e ele relutava em jogar mais produtos químicos nos jardins dos moradores. Então um colega assistiu a um encontro da Sociedade Americana de Medicina e Higiene Tropical e contou a ele sobre o OX513A. “Lembro-me de pensar que, se isso realmente funcionasse, seria uma imensa vantagem sob vários pontos de vista”, disse. “Outras técnicas são mais dispendiosas e têm maior custo ambiental. Os dados pareciam confiáveis, e com certeza precisamos mudar o modo de pensar sobre o controle de mosquitos.”

Em março, Doyle convidou Luke Alphey, fundador da Oxitec, e Hadyn Parry, seu chefe executivo, para explicar sua técnica em um encontro na cidade. Seria a primeira de uma série de audiências destinadas a explorar a possibilidade de testar os mosquitos em um bairro relativamente isolado de Key West. “Eu realmente não sei o que esperar”, disse-me Alphey no início do dia da reunião. “Mas espero que o pessoal de Key West compreenda que até agora contou com a sorte. Porque está vivendo em um mar de dengue.”

Opositores se mobilizaram horas depois de saberem do encontro. Panfletos com cores chamativas, que afirmavam que a comissão de controle de mosquitos “planejava soltar e testar mosquitos geneticamente modificados (feitos pelo homem) em você, sua família e no meio ambiente”, foram colados em metade dos muros da cidade. Antes da reunião, encontrei Chris O’Brien, uma mulher cuidadosamente despenteada, com cabelo na altura dos ombros e olhos azuis escrutinadores. Estava vestida com as cores pêssego e rosa, associadas ao sul da Flórida, e também usava coturnos. Chris é uma “concha”, gíria que descreve as pessoas nascidas, criadas e que passaram a vida em Key West. Seus filhos e netos são conchas também.

“As pessoas convivem com os mosquitos aqui”, disse ela. “Sempre convivemos. Passamos dois anos sem ter casos de dengue e talvez, no máximo, teremos alguns casos. Não é um problema grave. Certamente não justifica trazer para cá um inseto artificial do qual sabemos tão pouco. Corremos mais risco de sermos atropelados do que de pegar a doença.”

impossível prever a probabilidade de um surto de dengue com base no número de infecções passadas. Para haver o surto só é preciso a presença do mosquito e do vírus. Key West tem muito do primeiro; o resto é questão de um controle epidemiológico agressivo – e do acaso. Uma vez que os mosquitos infectados comecem a picar seres humanos, uma epidemia pode surgir em semanas, já que o vírus se movimenta do vetor para o hospedeiro e vice-versa.

Chris O’Brien, como muitos de seus colegas que protestavam, havia recebido informações da organização não governamental Amigos da Terra sobre o conceito de introduzir criaturas feitas pelo homem no meio ambiente local. “Como vamos saber se as fêmeas não vão procriar e morder as pessoas?”, indagou O’Brien. “Elas teriam enzimas no corpo que não existem na vida real. O que aconteceria se nos picassem? Livrar-se da dengue seria maravilhoso, é claro, mas o que aconteceria se tivéssemos sucesso e esses mosquitos fossem simplesmente banidos da Terra? Eles não fazem parte de uma cadeia alimentar?”

Essas são preocupações sensatas. Mas ambientalistas são rápidos em ressaltar que os estiveram nos Estados Unidos por 200 anos mais ou menos, tempo insuficiente para uma espécie causar impacto evolutivo. Muitos biólogos argumentam que, se o ou mesmo todos os mosquitos desaparecessem, o mundo não sentiria sua falta, e outros insetos logo preencheriam seu nicho ecológico – se eles tiverem um. “Mais que a maioria dos outros seres vivos, o mosquito é uma criatura interesseira”, escreveu Andrew Spielman. “Ela não areja o solo, como as formigas e minhocas. Não é uma polinizadora de plantas importante, como as abelhas. Nem sequer serve como alimento essencial para outros animais. Não tem outro ‘propósito’ que não seja perpetuar sua espécie. O fato de os mosquitos atormentarem os seres humanos é realmente secundário para eles, que estão apenas sobrevivendo e se reproduzindo.”

Nem todo mundo concorda com a afirmação de Spielman. “A modificação genética leva a efeitos intencionais e não intencionais”, afirma Ricarda Steinbrecher, da EcoNexus, uma organização de pesquisa sem fins lucrativos e de interesse público, sediada na Inglaterra. Em uma extensa carta aos reguladores do governo da Malásia, ela enfatiza que poderia haver impactos adicionais “se todos os mosquitos forem eliminados juntos”. Por exemplo, o que aconteceria aos peixes, sapos, outros insetos e aos artrópodes que se alimentam de larvas e de mosquitos adultos? “E se as interações entre eles e outros organismos no meio ambiente mudassem?”, escreveu. “Também é o caso de se perguntar o que vai preencher seu espaço ou ocupar seu nicho se os mosquitos-alvo forem eli-minados. Será que outras pragas irão aumentar? Será que as doenças que eles transmitem hoje terão capacidade de trocar de vetores? Será mais fácil ou mais difícil controlar esses novos vetores?”

Seria irresponsabilidade utilizar amplamente insetos transgênicos sem respostas adequadas a essas questões, mas a maioria delas foi abordada em avaliações de impacto ambiental e em pesquisas independentes. Se os resultados fossem submetidos ao escrutínio dos biólogos, a resposta esmagadora seria: os benefícios potenciais superam de longe os riscos. Não há pássaros, peixes ou outros insetos que dependam exclusivamente do . Ele não poliniza flores nem regula o crescimento de plantas. Não é, nos Estados Unidos, o que os entomologistas chamam de “espécies-chave”.

“É francamente difícil ver o lado negativo”, disse-me Daniel Strickman, diretor do programa nacional em entomologia veterinária e médica do Serviço de Pesquisa Agrícola dos Estados Unidos. “Meu trabalho é tentar prevenir doenças humanas modificando o comportamento de mosquitos e matando-os. Sou parcial, contra os mosquitos. E o causa danos imensos. Epidemias de dengue assoladoras afetariam muito nossa economia. Se voltássemos aos dias da febre amarela neste país, veríamos que tivemos verdadeiras consequências demográficas. Cidades inteiras morreram. A expectativa de vida em algumas re-giões foi reduzida.” Strickman acrescentou: “Olho para essa nova abordagem e não há nada mais ecológico. É direcionado a apenas uma espécie. Se a única questão é o que vai acontecer se acabarmos só com essa espécie de mosquito, não me parece uma decisão difícil.”

Mark Q. Benedict, entomologista na Universidade de Perugia que pesquisou insetos modificados geneticamente durante anos e escreveu sobre eles, concorda. “Há perguntas não respondidas e sempre haverá”, definiu. “Mas também há perguntas não respondidas sobre o efeito de inseticidas nas crianças, e os usamos todos os dias para matar os mesmíssimos mosquitos. É importante lembrar: já estamos tentando matar essa espécie, e por um bom motivo. O risco envolvido em eliminá-la é muito, muito pequeno. O risco em deixá-la se multiplicar é enorme.”

s ambientalistas expressaram preocupação sobre o que poderia acontecer se algumas fêmeas modificadas sobrevivessem e, quando picassem pessoas, injetassem nelas uma proteína alterada. A Oxitec separa machos das fêmeas, mas, com tantos mosquitos, algumas fêmeas geneticamente modificadas inevitavelmente escapam – a Oxitec considera que o número dessas fêmeas é de uma em 3 mil. “Esse é um cenário terrível, e não temos nenhum dado publicado que responda a essa pergunta”, disse-me Eric Hoffman, especialista em política para alimentos e tecnologia da Amigos da Terra.

Hoffman acompanhou os experimentos da Oxitec. Reiter, o entomologista do Instituto Pasteur, diz que nenhuma proteína introduzida nos mosquitos transgênicos penetra em suas glândulas salivares – o que significa que ela não pode ser espalhada para os seres humanos por meio da picada dos mosquitos. Além disso, ele não reconheceu nada na estrutura genética dos mosquitos modificados que pudesse causar danos aos seres humanos. Todavia, ele e outros estão ansiosos para ver publicados trabalhos que tenham sido feitos por grupos não ligados à Oxitec e que confirmem essas conclusões.

A questão mais importante levantada pela criação do ox513A é quem irá regulá-lo e de que modo isso será feito. No Brasil, um único órgão do governo – a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – supervisiona a aprovação de todos os organismos geneticamente modificados. Nos Estados Unidos, entretanto, a estrutura regulatória é muito mais complexa. Não está claro se os mosquitos modificados serão considerados animais, e, portanto, submetidos à jurisdição do Departamento de Agricultura, ou uma droga, que deverá ser controlada pela FDA, a Food and Drug Administration [Agência de Alimentos e Medicamentos].

“Estou ansioso por uma situação regulatória clara nos Estados Unidos”, disse-me Alphey, que quase não consegue controlar sua frustração com o processo. “Só queremos ir adiante quando tudo estiver em seu devido lugar.” Para a consternação de muitos, a Oxitec recentemente solicitou a aprovação de seu mosquito à FDA. “Estamos preocupados com o fato de a Oxitec ter sido muito vaga em seus comunicados públicos”, disse Hoffman. “Eles dizem que esses mosquitos são estéreis, mas eles não são, já que inseminam as fêmeas. São geneticamente modificados, e o público precisa saber disso.”

A Oxitec de fato chama os mosquitos OX513A de estéreis, mas não nega que eles sejam geneticamente modificados; quase todas as suas publicações dizem praticamente isso. “Não há nenhum termo leigo para ‘transmite um gene autocida que mata a prole’”, disse Alphey. “‘Estéril’ é o termo comum mais próximo. O Ox513A é estéril praticamente da mesma forma que insetos esterilizados por radiação são estéreis.” Hoffman não chega a chamar a afirmação de Alphey de enganosa, mas certamente não concorda com ela. “Este país simplesmente não tem as leis ou as regulamentações necessárias para que esse projeto avance agora”, resumiu.

Em Key West, os cientistas da Oxitec, juntamente com Doyle e sua equipe do Distrito de Controle de Mosquitos, enfrentaram uma sala lotada no Harvey Government Center. Era um dia quente e ensolarado, e muitos dos presentes tinham saído do trabalho mais cedo para estar ali. Doyle explicou como seria um experimento de pequena escala, a Oxitec defendeu sua técnica; e então a palavra foi aberta ao público.

A reunião degringolou numa discussão emocional e algumas vezes rancorosa. A Oxitec – uma pequena empresa que surgiu de um departamento universitário de zoologia – foi retratada como um conglomerado internacional que deseja “brincar de Deus” e colocar o paraíso americano em perigo. Os insetos foram descritos como “mosquitos Frankenstein”. Mais de uma dúzia de pessoas se levantou para falar; nenhuma defendeu o projeto ou reconheceu que, se ele tivesse sucesso, reduziria uma ameaça à saúde e aliviaria a grande dependência de inseticidas que os Estados Unidos têm. Quase unanimemente, as pessoas com quem conversei disseram que presumiam que a decisão já tinha sido tomada. Mas nada havia sido decidido. Cada pergunta feita na reunião ou escrita mais tarde foi encaminhada aos reguladores estaduais para sua consideração.

“Parte meu coração pensar que vocês têm coragem de virem aqui e fazerem isso com nossa comunidade”, afirmou uma mulher. “Qualquer coisa geneticamente modificada não deve ser tocada. Sinto que…”, ela apontou para Doyle e seus colegas no palco, “a cabeça de vocês já está feita. Sei disso. Eu consigo sentir isso. Sinto a vibração.” Ela recebeu aplausos estrondosos. Outro participante do encontro, Rick Worth, foi até mais direto. “Eu estou me lixando para sua porcaria científica”, falou. “Vocês não vão enfiar pela minha garganta uma coisa que eu não quero. Não sou uma cobaia.”

ma tarde antes de ir embora do Brasil, me vi passando devagar pelas ruas de terra esburacadas de um bairro chamado Itaberaba, em companhia de Aldo Malavasi, o diretor bastante animado da Moscamed. Itaberaba fica a poucos quilômetros do Centro de Juazeiro e, enquanto dirigíamos, alto-falantes nafrente do carro anunciavam nossa chegada. “Estamos aqui para falar sobre o projeto do mosquito transgênico”, diziam os alto-falantes. “Estamos aqui para explicar esse programa para vocês e responder às suas perguntas.” Malavasi, um homem grande e carismático, disse: “Só há um modo de conseguir que as pessoas fiquem do seu lado: conversando com elas. Essa é uma tecnologia nova e isso é assustador. Mas também traz possibilidades tremendas. As pessoas não são idiotas. Explique a elas, assim elas poderão decidir.” A Moscamed falou com quase todo mundo que morava nas áreas afetadas. Quando uma equipe deixava uma casa, entalhava os contornos de um mosquito no batente da porta, assim os colegas saberiam quais casas ainda precisavam ser visitadas.

A Bahia é uma das regiões de produção frutífera mais importantes do Brasil. Passamos por depósitos repletos de goiabas, mangas, limões, abacaxis e mamões. O cheiro de fruta podre enchia o ar úmido. Nessas cidades, as pessoas moram em casebres pequenos, pintados de cores vivas, e parece que pelo menos um membro de cada família já teve dengue. É mais fácil explicar a elas a utilidade de um mosquito modificado do que, por exemplo, a de um milho modificado. “Vocêdiz às pessoas que está mexendo com soja ou milho e elas desconfiam”, explicou Malavasi. “Isso é diferente. Elas sofreram na pele.”

A aceitação da engenharia genética depende claramente do produto. Seus oponentes evocam com frequência uma interpretação unilateral do “princípio da precaução”, que argumenta contra a introdução de atividades no meio ambiente que, em teoria, poderiam causar danos à saúde dos seres humanos. É difícil rebater essa visão, mas também o é o fato de que a dengue atinge dezenas de milhares de pessoas por ano, que a ameaça vem aumentando e que não há tratamento ou cura. A preocupação com os riscos teóricos tende a inibir qualquer discussão sobre os possíveis benefícios da engenharia genética.

Muitas pessoas, especialmente no mundo ocidental rico, se opõem a modificar os alimentos, mas nunca há reclamações quando o mesmo processo científico é usado para fazer insulina ou remédios para o coração. “Às vezes eu perco a paciência com esses debates”, disse Paul Reiter, que assessorou a Oxitec. “As objeções muito raramente têm a ver com a ciência ou a segurança da pesquisa. É uma oposição provocada pelo medo. Entendo isso, mas essa tecnologia foi usada de diferentes maneiras durante anos.” Ele estava se referindo à técnica de esterilização de insetos. “A abordagem da Oxitec é mais segura e mais benigna do ponto de vista ambiental”, reiterou Reiter. “Se a expressão ‘geneticamente modificado’ não estivesse ligada a ela, não creio que as pessoas se importassem.”

Malavasi dá de ombros quando levanto a oposição. “Sei que isso soa como ficção científica”, assumiu. “E não sou ingênuo. Mas, para nos livrarmos do vírus, temos de nos livrar dos mosquitos. E, pelo menos em um experimento pequeno, está funcionando.” Ele observou que o nome do programa – Projeto Aedes Transgênico – não foi acidental. “Colocamos a palavra ‘transgênico’ no nome para todo mundo ver”, revelou. “Não escondemos nada.”

Paramos em um local qualquer em uma rua sem placa. Estava um calor opressivo quando saímos do carro; um pequeno córrego borbulhava no acostamento. “Estamos no céu dos mosquitos”, atestou Malavasi. Enquanto falávamos, uma equipe da Moscamed começou a descarregar de trás da van vários tupperwares do tamanho de travessas. Os recipientes tinham tampas de plástico, que foram abertas uma por uma, libertando milhares de mosquitos machos. Cada vez que uma tampa era aberta, montes de insetos minúsculos pousavam, rapidamente, nos pesquisadores – não para picar, mas para se orientar. Era a primeira vez que eles experimentavam a liberdade. Por um momento, pareciam relutantes em voar. Então, quase como um só corpo, depois de pairarem por alguns segundos no ar úmido da tarde, formaram um tipo de tapete voador, e decolaram para cumprir seu destino.

Michael Specter has been a staff writer at The New Yorker since 1998, and has written frequently about AIDS, T.B., and malaria in the developing world, as well as about agricultural biotechnology, avian influenza, the world’s diminishing freshwater resources, and synthetic biology.

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