23 de fevereiro de 2012

Um ângulo exclusivo de Hebron

Jonathan Freedland

The New York Review of Books

Dominique Nabokov

Com a exceção de Jerusalém, Hebron possui a maior população dentre todas as cidades palestinas da Cisjordânia. Ela é, assim como Nablus, um centro comercial, e o que é hoje sua tumultuada praça de mercado enche-se de vida e comércio, ruído e vapores. Há lojas vendendo mantimentos e eletrônicos, assim como barracas na calçada, simples mesinhas com frutas e vegetais, brinquedos, bugigangas, e roupas infantis. Essas lojas estão concentradas principalmente perto do terminal de ônibus, com seus ônibus públicos amarelos, e fileiras de taxis e micro-ônibus privados, muitos deles em direção ao norte, a Belém. Policiais palestinos, vestindo uniformes palestinos, orientam o trânsito. Se você não andasse mais, diria que Hebron, que abriga um número estimado de 175 mil palestinos, é uma próspera cidade árabe.

Isso é, até você se aproximar do ponto de travessia que marca a fronteira de fato entre 80% da cidade, controlada por palestinos, conhecida como H1, e o restante da cidade, controlada por israelenses, conhecida como H2. Nem todos podem atravessar. Desde o começo da segunda Intifada, cidadãos israelenses foram proibidos por seu próprio governo de entrar na H1, da mesma forma como foram barrados de entrar na mais ampla Área A da Cisjordânia, controlada pela Palestina. A decisão baseia-se em motivos de segurança, após a conclusão de Israel de que israelenses visíveis, especialmente os colonos assentados, seriam provavelmente atacados, e após as Forças de Defesa de Israel insistirem que podem garantir a segurança dos cidadãos israelenses somente naquelas áreas que controla.

No entanto, para aqueles que têm a permissão de cruzar a linha que separa H1 de H2, é como atravessar a outro domínio completamente diferente. Para H2, que consiste em um pedaço substancial da parte oriental da cidade, combinado com o que parece no mapa como um dedo largo e grosso apontando para o oeste, inclui o centro histórico de Hebron. Essafaixa, o dedo no mapa, talvez não abranja mais do que 3%do total da área geográfica de Hebron, mas é aíque você encontra os lugares que fizeram dele um local reverenciado por muçulmanos e judeus, entendidoe de fato osjudeus consideram-no um dos quatro lugaressagrados do judaísmo,ao lado de Jerusalém, Tiberíades e Safed. É aí também que se encontra uma estranha cidade-fantasma cujos mercados, antes tão movimentados, permanecem fechados e desertos, sua população palestina sujeita a uma política de separação e restrição, o que torna a cidade o lugar em que a ocupação de 44 anos de Israel na Cisjordânia mostra sua face mais dura.

Pode-se ouvir a batalha por supremacia entre os aproximadamente 30 mil árabes e 800 judeus assentados que vivem em H2, controlada por israelenses, antes mesmo de vê-la. Na manhã clara que visitei a área, havia música klezmer de estilo hassídico tocando alto no Centro Gutnick, um espaço de eventos que recebe visitantes judeus de todas as partes do mundo e especialmente dos Estados Unidos, oferecendo bebidas e passeios. Osítio eletrônicodo centro assegura a qualquer cliente nervoso de que “todos os ônibus são blindados”. Minutos depois, às melodias da velha Europa Ashkenazi junta-se o muezzin tradicional, cantando o chamado muçulmano para a oração. As duas músicas continuavam, no volume máximo, enchendo a praça antiga com o ruído discordante, conflitante. Essa é afamosa guerra de alto-falantes de Hebron.

A visita geralmente começa no Túmulo dos Patriarcas, o centro magnético do poder religioso de Hebron. O judaísmo considera o local – registrado na Bíblia como “Caverna de Machpelah”, adquirida por Abraão – como o segundo local mais sagrado,atrás apenas do Monte do Templo, a parte da antiga Jerusalém na qual o Primeiro e o Segundo Templos foram construídos. Dentro, há caixões que dizem conter os restos mortais de Jacó, Isaac e do próprio Abraão, reverenciado como patriarca pelas três antigas religiões monoteístas.

Como os judeus lembram os visitantes, inclusive o ônibus de cristãos africanos que chegava, durante 700 anos os judeus foram barrados, pelos governantes mamelucos, otomanos, britânicos e jordanianos da cidade,de entrar nesse lugar sagrado; era-lhes permitido subir somente os primeiros sete degraus emsua direção. Em 1967, quando Hebron e o restante da Cisjordânia foram conquistados por Israel na Guerra dos Seis Dias, os judeus puderam finalmente pisar o oitavo degrau, e os outros cinquenta e tantos degraus restantes, e entrar.

Hoje, há entradas separadas aos túmulos para judeus e muçulmanos. Mas o que é mais surpreendente é a estrada que leva ao lugar: ela é dividida de acordo com a nacionalidade, com três quartos da via disponível para os israelenses, e o restante, mais estreito, reservado para os palestinos. Blocos de concreto separam as duas partes. Os israelenses têm a maior parte porque são autorizados a dirigir por esse caminho, um direito negado aos palestinos.

Nos mapas militares israelenses, o caminho aparece como uma estrada verde, o que significa que carros palestinos não são permitidos. A cor azul é usada para as ruas em que carros palestinos não podem circular, e as lojas palestinas não são autorizadas a abrir. Depois, há estradas que são ainda mais restritas: nessas, nenhum palestino pode sequer pôr os pés. As Forças de Defesa Israelenses referem-se a essas estradas como tzirsterili, literalmente, uma estrada estéril.

Grande parte dos palestinos de H2 que tem o azar de ter suas casas em um tzirsterili tiveram suas portas dianteiras fechadas. Para sair, eles precisam usar uma porta dos fundos, o que muitas vezes significa subir no telhado e descer através de uma série de escadas: ise é inconveniente para os jovens em forma, isso é difícil, senão impossível, para os velhos e os doentes. Mais tarde, avisto um homem idoso, com um saco de cimento em seu ombro, andando com um menino que considero serseu neto. Quando ele chega à rua a-Shuhada, que já foi a via principal que cruza o centro de Hebron, mas que é uma “estrada estéril” desde 2000, ele pára e começa a descer uma íngreme série de toscos degraus, necessários para andar ao redor da rua, em vez de na própria rua. Tais degraus os levam por uma série de caminhos não asfaltados e empoeirados, rota alternativa indireta à rua a-Shuhada. Isso acontece para que nem seus pés ou os do menino toquem a estrada proibida – garantindo que continue sterili.

Na rua, há o que costumavam ser lojas, agora fechadas permanentemente sob persianas verdes de metal. Elas estão todas cobertas de pichações. Em um curto passeio, eu vejo: “Árabes fora!” e “Morte aos árabes”, assim como o menos familiar “Vocês têm árabes, vocês têm ratos”, que foi pintado, mas ainda é legível. O mesmo acontece com “Árabes para o crematório”, perto do cemitério muçulmano. (Uma mensagem notória, pintada em inglês, mas coberta há alguns anos, dizia: “Árabes para as câmaras de gás.”) O punho cerrado, símbolo do partido Kach do falecido rabino MeirKahane, o fundador da Liga de Defesa Judaica, uma vez condenado ao ostracismo como um fascista, aparece em vários lugares. Mas a imagem mais recorrente é também a mais chocante. É a Estrela de David. Totalmente familiar aos olhos judeus, é um choque ver esse símbolo – associado com o próprio Judaísmo e a longa história do sofrimento judaico – usado como uma declaração grosseira de dominação, usado, de fato, como um insulto.

Andamos até o centro da estrada. Não há necessidade de usar a calçada porque o lugar está vazio, como um set de filmagem abandonado. Meu guia, YehudaShaul, um israelense judeu ortodoxo de barba preta e quipá – que depois murmuraria o tradicional bracha, ou a bênção, antes de dar uma mordida num sanduíche – está intimamente familiarizado com Hebron, tendo servido dois extensos turnos no serviço militar da cidade, durante a Segunda Intifada: primeiro como soldado regular em 2001-2002, e depois novamente como comandante e sargento em 2003. Na verdade, ele estava em patrulha quando engenheiros da FDI (Forças de Defesa de Israel) selaram as portas, fechando-as, em 2001.

Ele também se lembra das instruções que recebiaparanão tocar nos israelenses assentados, que estavam sujeitos à lei de Israel, e, portanto, sob jurisdição da polícia israelense, e não do Exército, embora pudesse ver que eles estavam envolvidos em uma campanha de assédio à população local, atirando pedras, cortando canos de água e cabos elétricos. Um soldado deu um depoimento à organização Quebrando o Silêncio – fundada por reservistas da FDI determinados a alertar seus companheiros israelenses e judeus por todo o mundo sobre a realidade diária da ocupação militar – informando que uma placa pendurada no quadro de informações da sua unidade explicava sua missão: “Interromper a rotina dos habitantes do bairro”, seja através de buscas domiciliares, revistas físicas ou blitz repentinas, em locais aparentemente arbitrários.

Shaul não está de uniforme hoje, mas está aqui como parte do seu trabalho no Quebrando o Silêncio. Ele está armado com fotografias “de antes” do centro de Hebron, datadas de 1999, que mostram um mercado de frutas animado com pessoas, com produtos, e com vida. O lugar “de após” encontra-se bem à minha frente: o mesmo exato local, agora deserto e silencioso. O que antes ficava aqui foi transferido para H1, ou pelo menos parte disso. O mercado repleto que vi do outro lado é, na verdade, parte de Bab a-Zawiya, que, uma vez apenas um bairro de Hebron, é hoje seu centro substituto. Alguns desses comerciantes de Bab a-Zawiya costumava morar e trabalhar no que agora é H2. Eles já tiveram lojas. Agora, vendem seus produtos em cima de mesas.

E isso não é mera impressão. Um estudo feito pelo grupo israelense de direitos humanos B’Tselem mostra que 1.014 moradias – apartamentos ou casas – foram abandonadas pelos seus ocupantes, cerca de 42% do total nesta parte central de Hebron. Uma estimativa sugere que isso equivale a 8ou 9mil pessoas que descobriram que a vida sob tais restrições não era mais viável ou suportável. Finalmente, vejo uma das raras pessoas que persistiram, permanecendo dentro de H2. Uma mulher árabe estende roupas na sua varanda na rua a-Shuhada. Por todos os lados,ela está cercada deuma malha de fios de metal, inclusive sobre a sua cabeça. Isso não acontece por causa de alguma lei ou regulamento; ela se colocou no que parece ser um pequeno galinheiro para sua própria proteção, para evitar as pedras que seriam atiradas pelos assentados.

O teto da “jaula” está, de fato, sob o peso de pedras. B’Tselem, que distribuiu câmeras para alguns palestinos de Hebron, tem postado diversos vídeos mostrando assentados, inclusive crianças pequenas, jogando pedras nos árabes que estão entre eles – sem restrições dos soldados israelenses que estão por perto. Um vídeo particularmente perturbador mostra uma assentada silvando repetidamente a palavra sharmuta, ou prostituta, à sua vizinha árabe.

O mercado de frango, agora atrás de altas lajes de concreto, fica próximo. Depois, estáa velha estação de ônibus, que hoje funciona como uma base da FDI, e também serve decasa para seis famílias de assentados que se mudaram. E, depois, virando a esquina, atrás de um portão enferrujado, encontra-seum ferro velho, cheio de lixo, ervas daninhas e bobinas de arame farpado. Shaul tem uma foto que revela que esse lixão costumava ser o mercado de jóias de Hebron. (Alguns joalheiros agora continuam com seu comércio na H1 controlada por palestinos, mas o mercado em si não foi reconstituído.) Do outro lado da rua, há um yeshiva.

É isso – judeus e árabes vivendo próximos uns dos outros – que faz com que o centro de Hebron seja excepcional, pelo menos fora de Jerusalém. Assentados judeus são encontrados por toda a Cisjordânia, mas geralmente estão em topos de morros adjacentes, ou com vista para cidades e aldeias palestinas. Mas, nessa região de Hebron, eles se encontram no interior, em quatro grupos referidos como assentamentos, mas muitas vezes são apenas algumas casas e prédios cercados por palestinos. Três deles estão na rua a-Shuhada ou próximos a ela; o quarto fica a uma curta distância à pé.

E assim você só tem que andar alguns passos desde o mercado de frutas esvaziado para chegar aAvrahamAvinu – literalmente, Abraão, nosso pai – o maior dos enclaves judeus em Hebron, onde vivem cerca de quarenta famílias. Dentro, é um outro país. As paredes são feitas de uma pedra chata escovada, que contrasta com o pó e a idade do lado de fora. Há um parquinho, jovens mães ortodoxas, com suas cabeças cobertas, brincando com as crianças – estas últimas, aparentemente, ignoram a presença de cerca de 600 soldados da FDI na região, principalmente para a sua proteção. Há uma prateleira para bicicletas e um aroma distinto de canja. Poderia ser qualquer um dos bairros mais abastados de Jerusalém Ocidental. Há placaspor todos os lados, uma visão tão incomum em Jerusalém – exceto porestas serem,quase todas, em memória àspessoas mortas por “terroristas árabes”. Os benfeitores a quem agradecem são famílias judaicas de Nova York, Londres, e outros lugares.

Essa divisão de Hebron em H1 e H2 foi o resultado do Protocolo de Hebron, de janeiro de 1997, assinado por Yasser Arafat e Benjamin Netanyahu, então no seu primeiro mandato como primeiro-ministro. Disposições especiais foram consideradas necessárias para o bem das poucas centenas de colonos judeus assentados em Hebron, a quem Israel acreditava ter que proteger com suas próprias forças. Nos anos que se seguiram, a proteção passou a significar uma série de medidas mais rigorosas para manter judeus e árabes separados, restringindo a mobilidade dos palestinos em H2. Toda vez que há um ataque terrorista sobre os judeus assentados – sendo o mais notório deles o assassinato de um bebê de dez meses, ShalhevetPass, por uma bala de um franco-atirador em 2001 – os colonos demandam, e geralmente são atendidos, uma maior restrição dos movimentos palestinos, ou a permissão do Estado israelense para expandir, ou até mesmo ambos. Pouco a pouco, o centro de Hebron foi-se esvaziando e os palestinos foram encurralados cada vez mais claustrofobicamente, para que os colonos pudessemmover-se livremente e sem medo, tendo sua segurança garantida pela FDI.

Tentar definir o início desta situação seria provavelmente em vão. Para a comunidade judaica de Hebron, os últimos cem anos são um mero interlúdio, sendo o evento decisivo a aquisição de Machpela por Abraão, há milhares de anos. Ainda assim, muitos consideram 1929 e o massacre de 67 judeus por árabes em Hebron como a data crucial. Eles acreditam que esse evento traumático revela uma verdade essencial sobre o conflito com os palestinos: que a oposição árabe aos judeus é anterior e, portanto, tem pouco a ver com o estabelecimento do Estado de Israel em 1948 ou a ocupação da Cisjordânia em 1967. Para os assentados, o massacre de 1929 mostra que os árabes têm uma intolerância assassina dos judeus em seu meio. Se uma forte presença militar e medidas de segurança onerosas são necessárias, este é o motivo.

Até 1929, os judeus representavam números significativos na cidade. No momento imediatamente posterior ao massacre, forças britânicas evacuaram os judeus sobreviventes para Jerusalém, mas, um ano depois, líderes árabes da cidade os convidaram de volta. Cerca de trinta famílias aceitaram o convite, e então deixaram a cidade outra vez durante os distúrbios de 1936. Acredita-se que um leiteiro judeu tenha ficado até 1946, mas, depois disso, durante duas décadas, não havia ninguém. Ainda assim, quando Hebron foi capturada por forças israelenses em 1967, dizem os colonos que era natural que os judeus retornassem. Sua presença ali agora é, eles insistem, não um empreendimento colonial estrangeiro, mas um regresso à casa, adiado por muito tempo.

A forma do retorno é certamente suscetível à criação de mitos. No primeiro Pessach, a Páscoa judaica, após a “liberação” de Hebron, um grupo de 88 judeus ortodoxos, liderados pelo carismático rabino MosheLevinger, foram ao Hotel Park, em Hebron, de propriedade de árabes, para realizar o sêder, jantar cerimonial judaico. Eles ficaram e recusaram-se a sair. Finalmente, o governo israelense, liderado pelos trabalhistas, sugeriu um acordo: os ocupantes seriam autorizados a mudarem-se para uma base da FDI próxima, onde casas seriam construídas para eles. Assim nasceu KiryatArba, hoje uma cidade com mais de 7mil pessoas próxima a Hebron, o primeiro passo em todo o projeto de assentamento na Cisjordânia. Levinger ainda viria a ser o fundador do GushEmunim (Bloco dos Fiéis), e mais tarde recebeupena de prisão por atirar e matar um lojista palestino. Mas Hebron foi onde ele assumiu sua posição pela primeira vez.

Seus herdeiros hoje não sentem qualquer necessidade de justificar os efeitos da sua presença nos palestinos que vivem em H2. Ao contrário, a comunidade judaica em Hebron vê-se como vítima. “As pessoas dizem que aqui há um apartheid”, diz David Wilder, o porta-voz nascido em Nova Jérsei. “Eu concordo – mas não é contra eles, é contra nós.” Ele aponta o fato de que Casbah, dentro de H2, é uma zona militar fechada e, portanto, fora dos limites, salvo por algumas horas no Sabbath, para os judeus. Ele argumenta que, efetivamente, os judeus têm acesso a apenas 3% da cidade, onde a presença de segurança de Israel éintensa o bastante, enquanto os árabes têm acesso a todo o resto. Claro, ele admite, há uma rua, talvez um quilômetro, um quilômetro e meio, na qual os árabes não podem caminhar. Nãoestariaele se referindo à rua a-Shuhada? “Não sei como eles a chamam. Nós a chamamos de rua David Ha’Melech [Rei David].” A estrada costumava ser aberta até a Segunda Intifada, diz Wilder – de fato, salvo alguns meses, a rota foi barrada para carros palestinos a partir de 1994 – “mas eles começaram a atirar” das colinas próximas.

Mesmo assim, ele insiste, “nunca dissemos que, para que vivêssemos aqui, ninguém mais podia”, enquanto ele acredita queos palestinos não permitirão a presença de judeus em Hebron em um futuro Estado Palestino. São os judeus que são os tolerantes. Quanto às pichações, ele diz, “Nós não gostamos particularmente disso”, mas ele recusa a condená-las, dizendo que são um “escape” para os jovens colonos “frustrados pelos ataques terroristas e as atividades do governo israelense contra eles.”

A mensagem de Wilder – de que se os palestinos parassem de ameaçar os assentados com violência, as restrições seriam abrandadas – é contrária à experiência. Quando, por exemplo, Baruch Goldstein, nascido nos Estados Unidos, matou 29 muçulmanos palestinos no Túmulo dos Patriarcas em 1994, Israel impôs novas restrições – não aos assentados, mas aos árabes em Hebron. Os mercados de carne e vegetais foram fechados, e a proibição aos carros palestinos na rua a-Shuhada foi introduzida. (É chocante que, longe de ser insultado como terrorista e assassino em Hebron, Goldstein está enterrado no Memorial MeirKahane, que se encontra sob os auspícios da autoridade municipal de KiryatArba.)

Ainda assim, e apesar da proteção armada 24 horas-Shaul testemunha que, como soldado, suas ordens eram muito claras: “Estamos aqui para protegeros colonos” –, os judeus de Hebron parecem considerar as Forças de Defesa de Israel e o Estado de Israel como seus adversários. Um pôster no bairro de Bab AL-Khan em H2, vazio com a exceção de alguns poucos antigos residentes árabes, e com seus portões para a Cidade Antiga agora fechados e parafusados, declara em hebreu: “Aqui começa o gueto. Proibida a entrada para judeus.” Em outro lugar, um slogan pintado de spray denuncia o que considera o Estado ateu de Israel: “Nós não temos fé no regime dos infiéis, nós seguimos o caminho da Torá.” Outro slogan procura um regime governado pela lei religiosa: “Queremos um Estado halacha da Judéia agora”. Ainda um outro incita, “Morte aos traidores do Rei”, o Rei sendo Deus.

Nessa disputa, com os colonos hostis a um governo israelense que lhes nega a administração de Hebron em sua totalidade, os palestinos ficam em meio ao fogo cruzado. Eles rejeitam a sugestão dos assentados de que os palestinos são barrados em apenas uma pequena fração da cidade, uma restrição relativamente modesta em suas vidas. Issa Amro, 31 anos, ativo na organização de protestos não violentos em Hebron, diz, “H2 é o centro desta cidade... Todos os mercados estavam aqui: de vegetais, frutas, camelos, carne, ferreiro, todos os mercados estavam em H2. É o coração da cidade. E se seu coração está doente, seu corpo inteiro será afetado.”

Ele explica que as restrições, mesmo aplicadas a áreas superficialmente estreitas, têm um efeito de longo alcance. Famílias são divididas entre H1 e H2, fazendo com que seja difícil que parentes se encontrem, especialmente aqueles que vivem em ruas de H2 barradas para carros ou pedestres palestinos. E existeum impacto maior: se você quiser dirigir de norte a sul por Hebron, deve tomar um caminho longo e complicado por estradas congestionadas. Shaul imagina uma ação equivalente em Jerusalém, fechando a rua Jaffa e a Cidade Antiga. Pode ser que represente apenas 1% do território municipal, ele diz, mas incluiria a rua principal e os monumentos históricos. “Qual o impacto que isso tem em uma cidade?”

Alguns admitem que o que se vê no centro de Hebron é feio, mas se consolam com a ideia de que seja um caso extremo, típico apenas de si mesmo. Para outros, no entanto, Hebron é uma versão intensa e destilada de toda a ocupação israelense. YehudaShaul coloca-se, relutantemente, no último grupo. “Isto é um microcosmo”, ele me diz. “Ande aqui e você entenderá como a Cisjordânia funciona: a separação, a apropriação das terras, as estradas estéreis, a violência”.Nem ele se reanima em dizer que Hebron é a obra de uns poucos colonos inarredáveis. A presença da FDI desmancha essa ilusão, assim como a placa do Ministério de Habitação no prédio de colonos de BeitHaShisha, um selo de aprovação do governo, que data de 2000, quando o suposto líder de centro-esquerda Ehud Barak era primeiro-ministro. Vinte e um ônibus partem todos os dias, mais de um por hora, dos assentamentos judeus dentro de H2 para Jerusalém, oferecendo passagens baratas e subsidiadas pelo governo. A queixa de Shaul não é apenas com os colonos, mas com o Estado.

Para pessoas como Shaul, patriotas israelenses orgulhosos e judeus conscienciosos, Hebron representa um desafio mais profundo do que pode ser capturado pelo brando diplomatês dos “obstáculos para a paz” e afins. Para eles, é mais do que uma falha geológica em uma amarga disputa territorial. “O que está sendo feito aqui é em nome de Deus e em nome do meu Estado”, diz ele, com uma voz muito mais velha do que seus 28 anos.

Shaulé bem conhecido em Hebron. Nos degraus do Túmulo dos Patriarcas, um colono o vê e grita, várias vezes, que ele é um traidor do seu povo. Mas há um rosto mais conhecido que o seu, que eu vejo logo nos dois minutos seguintes à chegada em Hebron. Em uma cadeira de rodas, em consequência de um derrame sofrido em 2007, encontra-se um senhor de cabelos brancos e chapéu panamá, empurrado por um jovem, devoto cuidador. Trata-se deMosheLevinger, o homem que deu início atudo isso, fora de casa, para a sua dose diária de ar fresco. Conversamos, e eu lhe pergunto se, depois de tantos anos enfiado no Hotel Park, ele havia imaginado que aquilo teria esse resultado, o centro de Hebron esvaziado pelo bem de seus colegas assentados. “Não”, diz o rabino, ele não havia previsto nada disso. E aponta um dedo para o céu: “É uma bênção de Deus”.

18 de fevereiro de 2012

A destruição do setor produtivo pela banca

Carlos Eduardo Martins

Folha de S.Paulo

Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia que foi economista-chefe do Banco Mundial, afirmou, com razão, em seu livro "Globalization and its discontents" (de 2001, publicado no Brasil como "A Globalização e seus Malefícios" pela editora Futura), que as políticas do FMI, em vez de solucionarem as crises econômicas, contribuem para gerá-las ou aprofundá-las.

Ele estava se referindo, sobretudo, às experiências de gestão macroeconômica do FMI na América Latina e na África (desarticulando a engrenagem de crescimento a partir dos anos 1980) e à sua atuação desastrada na Rússia e no leste asiático durante os anos 1990.

Tais políticas sacrificavam o desenvolvimento e aprofundavam as assimetrias tanto internacionais quanto nacionais.

A crise europeia e as políticas que a "troica" (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) quer impor para resolvê-la evidenciam, mais uma vez, o compromisso com a "financeirização", em detrimento do bem-estar das grandes maiorias e do desenvolvimento, que permeiam as políticas do capitalismo de Estado europeu e anglo-saxão contemporâneo.

Tal "financeirização" teve a sua origem na onda neoliberal que varreu essas regiões a partir do anos 1980, mudando o paradigma de políticas públicas. Nela, o Estado impulsiona políticas que criam altos níveis de desequilíbrio macroeconômico e destroem o setor produtivo. Ele também intervém, através da dívida pública, para transferir riqueza ao setor financeiro.

Isso resulta na drástica diminuição das taxas de investimento, do crescimento econômico e na elevação do desemprego.

No Europa, podemos observar que o gasto público se elevou de 38,2% para 51% do PIB entre 1974 e 2010 -contrariando a crença difundida de que o neoliberalismo reduziu a intervenção do Estado na economia.

As taxas de investimento caíram, na área do euro, de 25,8% para 21,5% do PIB entre 1970 e 2000. O crescimento econômico per capita nos 30 países europeus alcançou modestos 1,8% ao ano entre 1999 e 2008, bem abaixo dos 3,0% ao ano obtidos pela economia mundial no período ou da performance europeia entre 1939 e 1973 (2,7% ao ano).

A recente crise europeia começou com a imposição do euro como moeda única, sem o desenvolvimento de fundos compensatórios para gerar equilíbrios macroeconômicos que substituíssem o desaparecimento das políticas cambiais nacionais.

Enormes déficits comerciais foram gerados a favor da Alemanha na década de 2000, em função de vantagens obtidas nos custos trabalhistas, sobretudo mediante contenção salarial, e não através de diferenciais de produtividade.

Tais déficits se tornaram uma grande oportunidade de negócio para banca estatal e privada europeia através da dívida pública na periferia europeia (Grécia, Espanha, Portugal, Itália e Irlanda).

Tal cenário levou à explosão da dívida e ao colapso da capacidade de pagamento desses países.

Refinanciar essas dívidas através de juros altos, de cortes orçamentários que penalizam os gastos sociais e os investimentos públicos, de redução salarial, de elevação da jornada de trabalho e de uma taxa de desemprego que chega a atingir mais de 40% da população jovem em países como a Grécia significa levar ao colapso os fundamentos sociais da União Europeia.

Sua consolidação exige o aprofundamento da trajetória de convergência do PIB per capita dos países da região, não a sua liquidação. Isso só pode ser alcançado com a socialização democrática do Estado e de seus altíssimos níveis de intervenção na economia.

Sobre o autor

CARLOS EDUARDO MARTINS, 46, doutor em sociologia pela USP, é professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de "Globalização, Dependência e Neoliberalismo na América Latina" (Boitempo, 2011)

15 de fevereiro de 2012

A dialética da tecnologia

Peter Frase



Tradução / Fiquei surpreso e satisfeito ao ver que Bhaskar decidiu postar A Dialética do Sexo, de Shulamith Firestone, já que é uma das minhas peças favoritas de escrita marxista-feminista. Apesar de sua estranheza ocasional, ele faz duas coisas excepcionalmente bem. A primeira é estender a análise marxista ao domínio do sexo e do gênero simplesmente levando a própria estrutura de Marx e Engels à sua conclusão lógica, que eles próprios estavam cegos demais pelos pressupostos patriarcais de seu tempo para reconhecer. A segunda é ver a tecnologia moderna como um elemento indispensável para a libertação das mulheres, chegando ao ponto de argumentar que “Até um certo nível de evolução ter sido alcançado e a tecnologia ter alcançado sua atual sofisticação, questionar as condições biológicas fundamentais era uma loucura”.

Acho que meus textos recentes criaram a impressão na mente de algumas pessoas de que sou reflexivamente pró-tecnologia. Eu até me refiro a mim mesmo de brincadeira às vezes. É verdade que às vezes tratarei um certo tipo de mudança técnica como uma premissa não examinada e tendo a ser cético em relação a argumentos centrados na crítica da tecnologia e seu efeito sobre o trabalho. Mas não é tanto que eu ache que mais tecnologia é sempre bom; Só acho que os argumentos a favor ou contra certas tecnologias muitas vezes começam com a pergunta errada.

Por meio da indispensável leitura de domingo de Aaron Bady, encontrei este post de Richard no blog “The Existence Machine”, que eu não conhecia anteriormente. Richard cita e se opõe a uma passagem do jornalista Paul Mason afirmando — e atribuindo a Marx — a noção de que uma sociedade sem classes “deve ser baseada nas tecnologias e formas organizacionais mais avançadas criadas pelo próprio capitalismo”. Sua objeção é que isso naturaliza a tecnologia e nos impede de criticar seus efeitos e sua sustentabilidade. Mas essa não é a única maneira de interpretar essa formulação, e acho que ela interpreta mal o assunto do argumento. A questão não é se a tecnologia e os métodos capitalistas de produção são bons ou ruins. A tecnologia medeia as relações sociais, e são essas relações sociais que devem ser objeto de crítica.

É possível, no entanto, interpretar Mason como dizendo que “tecnologias avançadas e formas organizacionais” têm uma existência independente das relações de classe. Para entrar no assunto técnico por um momento, esse modo de pensar reflete um dualismo entre o que os marxistas chamam de “forças de produção” e as “relações de produção”. As forças de produção são as máquinas, fábricas e técnicas que permitem a sociedade industrial em grande escala, enquanto as relações de produção são as desigualdades humanas entre a massa de trabalhadores que não têm nada para vender a não ser sua força de trabalho e o punhado de patrões que controlar os meios de produção. Levado ao extremo, o dualismo forças-relações implica que podemos manter a economia praticamente do jeito que está agora, mas apenas mude quem está no comando por meio de alguma combinação de propriedade dos trabalhadores e planejamento do governo. Acho isso inadequado — mesmo que seja possível, não aborda realmente alguns dos piores aspectos da vida em uma sociedade capitalista. E no passado, critiquei ambos o socialismo de mercado e socialismo de fundos de pensão nesta base.

O dualismo forças-relações também pode levar a um tipo grosseiro de determinismo tecnológico, no qual as mudanças tecnológicas de alguma forma levam automaticamente à transformação social quando se tornam incompatíveis com as relações sociais capitalistas. É assim que às vezes se lê esta passagem do Prefácio de Marx de 1859:

Na produção social de sua existência, os homens inevitavelmente entram em relações definidas, que são independentes de sua vontade, ou seja, relações de produção adequadas a um determinado estágio no desenvolvimento de suas forças materiais de produção. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real, sobre o qual surge uma superestrutura legal e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas sua existência social que determina sua consciência.Em um determinado estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou — isto apenas expressa a mesma coisa em termos jurídicos — com as relações de propriedade no âmbito das quais elas operaram até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformam em seus grilhões. Então começa uma era de revolução social. As mudanças na base econômica levam, mais cedo ou mais tarde, à transformação de toda a imensa superestrutura.

A versão moderna mais famosa do marxismo determinista tecnológico é provavelmente Karl Marx’s Theory of History: A Defense, de GA Cohen . Mas, embora eu ache que há um fundo de verdade nessa leitura, o determinismo tecnológico puro é insustentável como teoria social e, politicamente, leva à quiescência ou a algo como o aceleracionismo . De fato, parte do meu propósito ao escrever “Quatro Futuros” foi demonstrar como as mesmas condições técnicas poderiam ser compatíveis com relações sociais muito diferentes.

Mesmo assim, simpatizo com a formulação de Mason: o socialismo “deve ser baseado nas tecnologias mais avançadas e nas formas organizacionais criadas pelo próprio capitalismo”. Não porque eu pense que é possível construir um futuro sem classes, mantendo as forças de produção capitalistas exatamente como estão. É porque, ao contrário, penso que alterar as relações de produção leva inevitavelmente a transformações nas tecnologias de produção. Portanto, minha afirmação corrigida seria que o sucessor do capitalismo deve começar de as forças produtivas capitalistas, mas não as deixará inalteradas. Há uma crítica a ser feita à tecnologia, mas é aquela que parte dos próprios trabalhadores, e se faz no local de trabalho e no mercado de trabalho. A resposta às qualidades desumanas da tecnologia sob o capitalismo é atacar as desigualdades de poder de classe que as tornam possíveis.

Um exemplo concreto do que isso significa pode ser encontrado em um relatório recente sobre trabalho de varejo na cidade de Nova York, sobre o qual ouvi Nick Serpe. Nick me alertou para a seguinte passagem:

Os trabalhadores entrevistados relataram agendamentos erráticos que podem mudar de hora em hora, especialmente com o uso de sistemas de agendamento computadorizados ou on-line que podem acompanhar as vendas projetadas e ajustar os custos de mão-de-obra diariamente. Um funcionário da JC Penney declarou: ‘Eles mudam muito a programação e esperam que você olhe no computador a cada meia hora para saber sua programação. Eles mudam meu horário e se você não imprimiu seu horário naquela semana como prova da mudança, eles vão desconsiderar sua reclamação.’ A prática de ajustes de horário de hora em hora significa que os trabalhadores esperam estar quase sempre de plantão.

Este é um exemplo claro de que a tecnologia está sendo usada para intensificar a exploração do trabalhador, de uma forma que a faz parecer tanto uma força quanto uma relação de produção. É aqui que eu distinguiria minha perspectiva do utopismo tecnológico, que o Sr. Teacup interpreta como “coisas boas são determinadas tecnologicamente e coisas ruins são determinadas socialmente”. Rejeito essa posição porque rejeito a ideia de que a tecnologia pode ser separada da sociedade dessa maneira, que é apenas outra versão do dualismo forças-relações. Parto da premissa de que as tecnologias refletem, incorporam e surgem no contexto das relações sociais, e nunca podem ser social ou politicamente neutras; as forças e as relações de produção se determinam dialeticamente.

Portanto, reconheço que a tecnologia pode ter efeitos negativos no trabalho, e a passagem mencionada acima é um bom exemplo disso. No entanto, é importante destacar que o trabalho também influencia a tecnologia, ou seja, a forma como a mudança tecnológica ocorre é moldada pela força e organização dos trabalhadores. Normalmente, evito escrever críticas diretas à tecnologia, não porque sou um tecno-utópico, mas porque estou mais interessado em explorar a relação dialética entre o trabalhador e a máquina de outra perspectiva. O problema de escrever críticas à tecnologia é que isso pode levar a uma rejeição completa da mesma (ludismo absoluto) ou a um pessimismo cultural no estilo da Escola de Frankfurt, que não está claramente vinculado a nenhum agente coletivo ou projeto político específico. A resposta mais plausível diante das consequências negativas da tecnologia para os trabalhadores, na minha opinião, não é condenar as máquinas, mas fortalecer o trabalho para que ele possa desafiar o curso do desenvolvimento tecnológico em condições mais favoráveis.

Estar sujeito aos caprichos de um computador de agendamento que pode mudar seus horários a qualquer momento não é, com certeza, uma situação agradável. E se for abordado do ponto de vista da crítica à tecnologia, é tentador ver isso como uma prova da natureza oca do “progresso”, prova de que o desenvolvimento de máquinas melhores só permite que os trabalhadores se tornem mais miseráveis, precários e explorados. 

Considere que a maioria das pesquisas mostra que os trabalhadores preferem trabalhar em horários regulares e padrão, em vez de horários rotativos ou fora do horário. No entanto, a maioria não ganha mais dinheiro do que ganharia fazendo o mesmo trabalho em um horário padrão das 9 às 5, pelo menos nos Estados Unidos. Isso implica fortemente que os trabalhadores são incapazes de resistir aos empregadores que impõem horários de trabalho irregulares ou exigem salários mais baixos como condição para aceitá-los. A tecnologia mencionada na passagem acima intensifica essa dinâmica, mas não é a causa principal dela. Os efeitos negativos da tecnologia não seriam tão graves se os trabalhadores tivessem uma posição de negociação mais forte. Em termos da economia predominante, a questão é se a mudança tecnológica tende a substituir ou complementar o trabalho.

O que aconteceria se os trabalhadores estivessem em uma posição melhor para resistir a esses tipos de políticas de agendamento prejudiciais? Suponhamos, por exemplo, que os empregadores fossem obrigados a pagar salários significativamente mais altos por trabalho fora do horário padrão, horários irregulares e mudanças de última hora. A curto prazo, isso aumentaria a renda de alguns trabalhadores, o que seria positivo, também fazendo com que os empregadores hesitassem em usar os funcionários dessa maneira, a menos que pudessem arcar com os salários mais altos. No entanto, a longo prazo, isso criaria incentivos mais fortes para os empregadores simplesmente utilizarem menos trabalhadores, possivelmente substituindo seu trabalho por máquinas. Isso pode parecer um cenário distópico por si só — ganharíamos salários mais altos e, no final, seríamos substituídos por robôs! Mas, na minha opinião, as alternativas são ainda piores.

Existem dois mecanismos principais pelos quais as empresas capitalistas se tornam mais lucrativas. A primeira é explorar mais seus trabalhadores, estendendo suas horas ou pagando-lhes salários mais baixos. A segunda é produzir a mesma quantidade de coisas com menos trabalhadores, adotando novas técnicas de produção e novas tecnologias. Como as duas formas de aumentar os lucros são até certo ponto substitutas, fechar uma avenida tende a empurrar o capitalista na direção da outra. Se a exploração absoluta da mão-de-obra não for uma opção — porque os trabalhadores, por quaisquer razões, são capazes de exigir altos salários — então o incentivo para inovar para economizar mão-de-obra aumentará. De fato, algumas tecnologias que não são econômicas em um ambiente de baixos salários se tornarão quando os salários forem altos. Este é o principal argumento do meu post sobre a conexão entre baixos salários e estagnação tecnológica, por outro lado, se a inovação tecnológica que economiza mão-de-obra não for uma opção — seja porque ela está diretamente barrada ou porque há uma grande estagnação — então os empregadores se concentrarão em explorar sua força de trabalho cada vez mais intensamente.

A possibilidade final é que ambas as estratégias estejam fechadas: os trabalhadores são poderosos o suficiente para manter altos salários e a inovação que economiza trabalho é proibida ou impossível. O resultado será apenas uma economia estagnada e de baixo crescimento. Alguns podem ver isso como o melhor cenário possível, uma vez que aumentaria as contradições e tornaria os apelos por uma alternativa ao capitalismo mais convincentes.

No entanto, a evidência sugere que a estagnação econômica não é propícia à construção de uma esquerda poderosa e bem-sucedida — muitas vezes é exatamente o oposto, como Doug Henwood e Duncan Foley argumentaram.

Então, até que seja possível fazer uma ruptura radical com o capitalismo, mesmo os socialistas precisam fazer as pazes com o crescimento econômico — a questão é se esse crescimento acontece principalmente com base na hiperexploração do trabalho ou, em vez disso, se baseia em usá-lo com mais eficiência

É essa maneira de pensar, talvez, que me leva a ser ocasionalmente simpático ao conjunto de ideias que alguns de nos chamam de neoliberalismo de esquerda. Para mim, o cerne do neoliberalismo de esquerda (ou progressismo globalizar-crescer-dar) é a desregulamentação que maximiza o crescimento e a redistribuição, como uma alternativa à intervenção direta no mercado de trabalho para garantir altos salários de base ampla. O ponto em que discordo dessa escola de pensamento, no entanto, é em minha ênfase na necessidade de fortalecer o poder de barganha geral do trabalho. Isso não precisa ser feito inteiramente por meio de sindicatos trabalhistas do tipo tradicional; como Chris Maisano observa, seu prognóstico permanece bastante sombrio e eles têm grandes desvantagens como atualmente constituídos. Mas implica a necessidade de alguma combinação de sindicatos, regulamentações estaduais, pleno emprego e renda básica. Em última análise, é claro, uma classe trabalhadora poderosa e confiante tenderá a provocar uma crise por razões kaleckianas, mas esse é um desenvolvimento que eu gostaria muito de receber.

Ressalto a importância de fortalecer o trabalho justamente porque não sou um tecno-utópico. A mudança tecnológica pode ser quase inevitável – e, de qualquer forma, acho que é muito desejável - mas a forma que essa mudança assume é uma questão de relações sociais. Como dizia o jovem Mario Tronti , "é a situação política específica e atual da classe trabalhadora que tanto necessita quanto dirige as formas dadas de desenvolvimento do capital".

Falei apenas sobre a relação entre tecnologia e trabalho. Igualmente importantes são as formas como a tecnologia interage com o meio ambiente e com a vida cotidiana fora do local de trabalho. Mas uma consideração mais completa dessas questões terá que esperar por um post futuro.

Colaborador

Peter Frase está no conselho editorial de Jacobin e é autor do livro "Quatro futuro: a vida após o capitalismo", publicado pela Autonomia Literária em 2020.

13 de fevereiro de 2012

A Dialética do Sexo

A Dialética do Sexo, capítulo um. Publicado por The Women's Press, 1979. Transcrito pelo MIA.

Shulamith Firestone



As classes sexuais são tão enraizadas, que se tornam invisíveis. A existência dessas classes pode parecer uma desigualdade superficial, facilmente solucionável com algumas reformas, ou talvez com a integração plena das mulheres na força de trabalho. Mas a reação do homem, da mulher e da criança comum — "O quê? Ora, não se pode mudar isto! Você deve estar louco!" — está mais próxima da verdade. Falamos de algumas coisas tão profundas quanto esta. Essa reação instintiva é honesta, pois mesmo quando o ignoram, as feministas falam de uma mudança na condição biológica básica. O fato de que uma mudança tão profunda não possa se ajustar em categorias tradicionais de pensamento, p.e., o "político", ocorre não porque essas categorias não se usem, mas porque não são suficientemente amplas: um feminismo radical as perpassa. Se houvesse um outro termo mais abrangente, do que revolução, nós o usaríamos.

Até que fosse atingido um certo nível de evolução e que a tecnologia chegasse à sofisticação atual, questionar condições biológicas básicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma luta sangrenta e sem esperança? Entretanto, pela primeira vez em alguns países, as pré-condições para a revolução feminista existem — na verdade, a situação começa a exigir essa revolução.

As primeiras mulheres estão conseguindo escapar ao massacre, e, inseguras e vacilantes, começam a descobrir-se umas às outras. Seu primeiro passo é uma observação cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma consciência partida. Isto penoso. Não importa quantos níveis de consciência sejam atingidos, o problema sempre se aprofunda. Ele se acha em todo lugar. A divisão Yin e Yang penetra toda a cultura, a história, a economia, e a própria natureza; as versões ocidentais modernas da discriminação sexual integram apenas o substrato mais superficial e recente. Intensificar assim nossa sensibilidade em relação ao sexísmo traz problemas muito piores do que os que a nova consciência do racismo trouxe para os militares negros. As feministas têm que questionar não só toda a cultura ocidental, como a própria organização da cultura; e, mais, até a própria organização da natureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se é necessário ir tão longe, elas preferem desconhecer o assunto. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensibilidade em relação à opressão da mulher existe com um único propósito: eliminá-la finalmente.

Contudo, antes que possamos agir para mudar a situação, precisamos saber como ela surgiu e evoluiu. e através de que instituições ela opera hoje. Citando Engels: "[Devemos] examinar a sucessão dos fatos, a partir dos quais o antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condições assim criadas, os meios de pôr fim ao conflito.". Para a revolução feminista, precisamos de uma análise da dinâmica da guerra dos sexos tão completa — quanto para a revolução — econômica foi a análise de, Marx e Engels sobre o antagonismo das classes. Mais completa ainda. 'Porque lidamos com um problema mais amplo, com uma opressão que remonta além da história — escrita, até o próprio reino-animal.

"Ao criar esta análise, podemos recorrer ao método analítico de Marx e Engels, mas não a suas opiniões sobre as mulheres — eles não sabiam quase nada sobre a condição das mulheres' enquanto classe oprimida, reconhecendo-a somente quando isso coincidia com a economia.

Marx e Engels superaram seus precursores socialistas, porque desenvolveram um método de análise ao mesmo tempo dialética e materialista. Os primeiros a compreender a História dialeticamente, viram o mundo como um processo, como um fluxo natural de ação e reação, de elementos opostos, porém inseparáveis e interpenetrantes. Por terem sido capazes de perceber a História mais como um filme do que como fotos instantâneas, tentaram evitar cair na visão "metafísica" estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de análise pode ser um produto da divisão sexual, como discutiremos no Capítulo 9. Combinaram esta visão da interação dinâmica das forças históricas com uma visão materialista, i.e., tentaram pela primeira vez dar uma base real à mudança histórica e cultural, traçar o desenvolvimento das classes econômicas, a partir de causas orgânicas. Compreendendo integralmente os mecanismos da História, esperavam mostrar ao homem como dominá-la.

Os pensadores socialistas anteriores a Marx e Engels, como Fourier, Owen e Bebel, não foram capazes de fazer mais do que interpretar moralmente as desigualdades sociais existentes, postulando um mundo ideal, onde os privilégios de classe e a exploração não deveriam existir, simplesmente graças à boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo onde o privilégio do homem e a exploração não deveriam existir, simplesmente graças à boa vontade. Em ambos os casos — por não terem os pensadores primitivos compreendido realmente como a injustiça social tinha evoluído, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada suas idéias caíram num vazio cultural, utópico. Marx e Engels, por outro lado, tentaram um enfoque científico da História. Trouxeram o conflito das classes as suas origens econômicas reais, projetando uma solução econômica, baseada em pré-condições econômicas já existentes: a tomada dos meios de produção pelo proletariado levaria a um comunismo, onde o governo se retrairia, não precisando mais reprimir a classe baixa em benefício da classe mais alta. Na sociedade sem classe, os interesses de todos os indivíduos seriam sinônimos dos da sociedade.

Mas a doutrina do materialismo histórico, por mais que tenha representado um avanço significativo em relação à análise histórica anterior, não foi a resposta completa, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definição estritamente econômica do materialismo histórico, tirada de Socialismo: Utópico ou Científico, de Engels:

O materialismo histórico é aquela visão do curso da História que busca a causa última e a grande energia móvel de todos os fatos históricos no desenvolvimento econômico da sociedade, nas mudanças dos modos de produção e troca, na conseqüente divisão da sociedade em classes distintas, e nas lutas entre essas classes. (Grifos da autora)

Mais adiante, ele afirma:

... que toda a história do passado, com exceção dos estágios primitivos, foi a história de lutas de classes; que essas classes conflitantes da sociedade são sempre os resultados dos modos de produção e troca — numa palavra, das condições econômicas de sua época; que a estrutura econômica da sociedade sempre fornece a base real, exclusivamente a partir da qual podemos formular tanto a explicação última de toda a superestrutura das instituições políticas e jurídicas, quanto a das idéias religiosas, filosóficas e demais idéias de um período histórico dado. (Grifos da autora).

Seria um erro tentar explicar a opressão das mulheres, a partir desta interpretação estritamente econômica. A análise de classes é um belo instrumento de trabalho, mas é limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela não se aprofunda o suficiente. Há todo um substrato sexual da dialética histórica que Engels algumas vezes percebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente através de um filtro econômico, reduzindo tudo a isto, não é capaz de avaliá-la por si mesma.

Engels observou que a divisão original do trabalho entre o homem e a mulher estabeleceu-se para fins de reprodução; que dentro da família o homem era o proprietário, a mulher os meios de produção, o filho o trabalhador, e que a reprodução da espécie humana era um sistema econômico importante, distinto dos meios de produção.

Mas Engels deu crédito demais a esses reconhecimentos dispersos da opressão das mulheres como uma classe. Na verdade, só admitiu o sistema sexual de classes quanto ele se sobrepunha ou iluminava sua estrutura econômica. Engels não foi bem sucedido nesse aspecto. Contudo, Marx foi pior. Há um reconhecimento crescente dos preconceitos de Marx com relação às mulheres (um preconceito cultural partilhado por Freud, bem como por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forçar o feminismo a entrar numa estrutura marxista ortodoxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx e Engels sobre as classes sexuais. Em vez disso, precisamos ampliar o materialismo histórico para incluir o que é estritamente marxista, do mesmo modo como a física da relatividade não invalidou a física newtoniana, apenas traçou um círculo a sua volta, limitando sua aplicação — por comparação apenas — a uma esfera menor. Pois um diagnóstico econômico que remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos meios de reprodução, não explica tudo. Existe um nível da realidade que não deriva diretamente da economia.

A suposição de que, antes de ser econômica, a realidade é psicossexual, é geralmente acusada de aistórica pelos que aceitam uma visão materialista dialética da História, porque ela parece nos situar antes do ponto em que Marx começou: tateando através de um nevoeiro de hipóteses utópicas, de sistemas filosóficos que podem ser certos ou errados (não há como dizer), sistemas que explicam desenvolvimentos históricos concretos por categorias a priori de pensamento. O materialismo histórico, ao contrário, tentou explicar o "conhecer" pelo "ser", e não vice-versa.

Mas existe uma terceira alternativa ainda não tentada; podemos desenvolver uma visão materialista da História, baseada no próprio sexo.

As primeiras teóricas feministas foram, para uma visão materialista do sexo, o que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visão materialista das classes. De modo geral, a teoria feminista tem sido tão inadequada quanto as primeiras tentativas feministas de corrigir o sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é tão vasto que, na primeira tentativa, só a superfície poderia ser examinada, descrevendo-se apenas as desigualdades mais gritantes. Simone de Beauvoir foi a única que chegou perto de uma análise definitiva — que talvez a tenha realizado. Sua penetrante obra O Segundo Sexo — que apareceu recentemente, no início da década de cinqüenta, para um mundo convencido de que o feminismo estava morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo em bases históricas. De todas as teóricas feministas, Simone de Beauvoir é a mais completa e abrangente, ao relacionar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura.

Pode ser que esta virtude também seja seu único defeito. Ela é quase que sofisticada demais, culta demais. Onde isto se torna uma deficiência — o que certamente é ainda discutível — é na sua interpretação rigidamente existencialista do feminismo (perguntamo-nos o quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, inclusive o existencialismo, são eles próprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela:

O homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no Outro; ele vê o mundo sob o signo da dualidade, que não é, em primeira instância, de caráter sexual. Mas, sendo diferente do homem, que se constrói como Mesmo, é certamente à categoria do Outro que a mulher pertence; o Outro inclui a mulher. (Grifos da autora.)

Talvez ela tenha ido longe demais. Por que postular como explicação final o conceito básico hegeliano da alteridade, e então cuidadosamente documentar as circunstâncias biológicas e históricas que empurraram a classe das "mulheres" em tal categoria, sem levar em conta uma possibilidade muito mais simples e mais provável, ou seja, que o dualismo básico brotava do próprio sexo? Não é necessário postular categorias a priori do pensamento e da existência — como alteridade, transcendência, imanência — nas quais a História passa então a ser moldada. Marx e Engels descobriram que essas próprias categorias filosóficas originavam-se da História.

Antes de admitir essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma análise, na qual a própria biologia — a procriação — se encontra na base do dualismo. A suposição imediata do leigo, de que a divisão desigual dos sexos é "natural", pode ser bem fundada. Nós não precisamos, de imediato, enxergar além disso. Ao contrário das classes econômicas, as classes sexuais brotaram diretamente de uma realidade biológica: os homens e as mulheres foram criados diferentes, e não igualmente privilegiados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferença propriamente dita não necessitou do mesmo desenvolvimento de um sistema de classes — a dominação de um grupo por outro — e que necessitaram as funções reprodutoras dessas diferenças. A família biológica e um poder de distribuição inerentemente desigual. A necessidade do poder que leva ao desenvolvimento de classes origina-se da formação psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilíbrio básico, e não, como Freud, Norman O. Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutível da Vida contra a Morte, de Eros versus Tanatos.

A família biológica — a unidade básica de reprodução homem/mulher/criança, em qualquer forma e organização social — se caracteriza por estes atos, não imutáveis, pelo menos fundamentais:

  1. que as mulheres, através de toda a Historia, antes do advento do controle da natalidade, estavam à mercê constante de sua biologia — menstruação, menopausa e "males femininos", de contínuos partos dolorosos, amamentação e cuidado com as crianças, todos os quais fizeram-nas dependentes dos homens (seja irmão, pai, marido, amante, ou clã, governo, comunidade em geral) para a sobrevivência física.
  2. que os filhos do homem exigem um tempo ainda maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto indefesos e, pelo menos por um pequeno período, dependentes dos adultos para a sobrevivência física.
  3. que a interdependência básica mãe/filho existiu de alguma forma em todas as sociedades passadas ou presentes, e consequentemente moldou a psicologia de toda mulher madura e de toda criança.
  4. que a diferença natural da reprodução entre os sexos levou diretamente a primeira divisão do trabalho baseada no sexo, que esta nas origens de toda divisão posterior em classes econômicas e culturais e possivelmente se encontra ainda na raiz de todas as castas (discriminação baseada no sexo e outras características biologicamente determinadas, como a raça, a idade, etc.).

Estas contingências biológicas da família humana não podem ser entendidas como sofismas antropológicos. Qualquer um que observe os animais cruzando, reproduzindo-se e cuidando de seus filhotes terá dificuldade em aceitar a linha da "relatividade cultural". Porque, não importa quantas tribos se possam encontrar na Oceania nas quais a conexão do pai com a fertilidade seja desconhecida, não importa quantos matrilineariados, quantos casos de inversão do papel sexual, de homens assumindo afazeres domésticos, ou de dores do parto empáticas, fatos que provam somente uma coisa: a surpreendente flexibilidade na natureza humana. Mas a natureza humana é adaptável a alguma coisa, i.e., determinada, sim, por suas condições ambientais. E a família biológica que nós descrevemos existiu em todos os lugares através dos tempos. Mesmo nos matriarcados onde a fertilidade da mulher é cultuada e o papel do pai é desconhecido ou sem importância, embora talvez não o pai genético, existe ainda alguma dependência da mulher e da criança com relação ao homem. E, apesar de ser verdade que o núcleo familiar é apenas um desenvolvimento recente, o qual, como tentarei mostrar, apenas intensifica os castigos psicológicos da família biológica, apesar de ser verdade que através da História houve muitas variações nesta família biológica, as contingências que descrevi existiram em todas elas, gerando distorções psicossexuais específicas na personalidade humana.

Mas, admitir que o desequilíbrio sexual do poder está baseado biologicamente, não significa perder nossa causa. Nós não somos mais animais há muito tempo. E o Reino da Natureza não reina absolutamente. Como a própria Simone de Beauvoir diz:

A teoria do materialismo histórico revelou algumas verdades importantes. A humanidade não é uma espécie animal; é uma realidade histórica. A sociedade humana é uma antiphysis — no sentido de que ela é contra a natureza; ela não se submete passivamente à presença da natureza, mas antes assume o controle da natureza em seu próprio benefício. Essa usurpação não é uma operação interna, subjetiva; ela é realizada objetivamente na prática.

Assim, o "natural" não é necessariamente um valor "humano". À humanidade começou a superar a natureza. Não podemos mais justificar a conservação do sistema discriminatório de classes sexuais, sob o pretexto de que se originou na natureza. Parece que, exclusivamente por causas pragmáticas, nós precisamos, na verdade, nos desfazer dele (ver o Capítulo 10).

O problema se torna político, exigindo mais do que uma análise histórica abrangente, pois nos damos conta de que, apesar do homem ser cada vez mais capaz de libertar-se das condições biológicas que criaram a tirania dele sobre as mulheres e crianças, ele tem poucas razões para renunciar a essa tirania. Como Engels diz, no contexto da revolução econômica:

O que se encontra na base da divisão de classes é a lei da divisão do trabalho." [Note-se que esta própria divisão originou-se de uma divisão biológica básica.] "Mas isto não impede a classe dominante, uma vez predominando, de consolidar o poder, à custa da classe trabalhadora, de transformar sua liderança social numa intensificada exploração das massas.

Apesar de o sistema de classes sexuais ter-se originado em condições biológicas básicas, isto não garante que, uma vez tendo sido varridas as bases biológicas de sua opressão, as mulheres serão livres. Ao contrário, a nova tecnologia, especialmente o controle da fertilidade, pode ser usada contra elas, para reforçar o sistema de exploração estabelecido.

De modo que, assim como para assegurar a eliminação das classes econômicas, é preciso a revolta da classe baixa (o proletariado) e, numa ditadura temporária, a tomada dos meios de produção, assim também, para assegurar a eliminação das classes sexuais, é preciso a revolta da classe baixa (as mulheres) e a tomada do controle da reprodução: a restituição às mulheres da propriedade de seus próprios corpos, bem como do controle feminino da fertilidade humana, incluindo tanto a nova tecnologia quanto todas as instituições sociais da nutrição e da educação das crianças. E, assim como a meta final da revolução socialista não era apenas a eliminação do privilégio da classe econômica, mas também da própria distinção da classe econômica, assim também a meta final da revolução feminista deve ser, ao contrário da meta do primeiro movimento feminista, não apenas a eliminação do privilégio do homem. mas também da própria distinção sexual: as diferenças genitais não mais significariam culturalmente. (Uma volta a uma pansexualidade livre — a "perversão polimorfa" de Freud — provavelmente substituiria a hétero, a homo e a bissexualidade.) A reprodução da espécie por um sexo em benefício dos dois seria substituída pela reprodução artificial (ou pelo menos por uma opção entre as espécies): a forma do nascimento das crianças seria idêntica para o homem e a mulher, ou então, encarando-se de um outro ponto de vista, ambos se sentiriam independentes em relação ao nascimento; a dependência que a criança tem da mãe (e vice-versa) daria lugar a uma dependência muito reduzida de um pequeno grupo mais genérico, e qualquer vestígio de inferioridade com relação aos adultos referente às força física seria compensado culturalmente. A divisão do trabalho acabaria junto com a eliminação total do trabalho (cibernética). A tirania da família biológica seria quebrada. 

E, com isto, a psicologia do poder. Como Engels reivindicou para a revolução rigorosamente socialista: "A existência não simplesmente dessa ou daquela classe dominante, mas de qualquer classe dominante, terá se tomado um anacronismo obsoleto." O fato de o socialismo nunca ter chegado ao ponto de realizar esse objetivo declarado não é conseqüência de pré-condições econômicas não realizadas ou falhas, mas também de que a própria analise marxista foi insuficiente: Ela não pesquisou suficientemente fundo as raízes psicossexuais das classes. Marx estava ciente de alguma coisa mais profunda do que ele conhecia quando observou que a família continha dentro de si mesma em miniatura todos os antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga escala dentro da sociedade e do estado. Porque, a não ser que a revolução transtorne a organização social básica e a família biológica — o germe da exploração nunca será aniquilado. Precisamos de uma revolução sexual mais ampla do que revolução socialista — que a inclua 'para verdadeiramente erradicar todos os sistemas de classes.

*

Tentamos conduzir a análise de classe um passo à frente, na direção de suas raízes na divisão biológica dos sexos. Não dispensamos os insights dos socialistas; ao contrário, o feminismo radical amplia suas análises, dando a elas uma base ainda mais profunda em condições objetivas, explicando com isso muitas das suas questões insolúveis. Como fundamento de nossa própria analise, devemos expandir a definição do materialismo histórico de Engels. A seguir a definição já citada anteriormente, reescrita de modo a incluir a divisão biológica dos sexos, em função da reprodução, que se encontra na ordem das classes:

O materialismo histórico é aquela visão do curso da História que busca a causa última e a grande energia móvel de todos os fatos históricos na dialética do sexo: a divisão da sociedade em duas classes biológicas distintas, em função da procriação, e as lutas dessas classes entre si; nas mudanças dos modos de casamento, reprodução e educação das crianças; no desenvolvimento análogo de outras classes [castas] fisicamente diferenciadas; e na primeira divisão do trabalho baseada no sexo, que se desenvolveu no sistema econômico de classes.

A seguir, a superestrutura cultural, bem como a econômica, que não se reportam apenas às classes (econômicas), mas sim a toda a problemática do sexo:

Toda a história do passado [observe-se que agora podemos eliminar "com exceção dos estágios primitivos"] foi a história de lutas de classes. Essas classes conflitantes da sociedade são sempre o produto de modos de organização da unidade da família biológica, em função da reprodução da espécie, bem como dos modos de produção e troca de bens e serviços estritamente econômicos. A organização sexual reprodutora da sociedade sempre fornece a base real, exclusivamente a partir da qual podemos formular a explicação última de toda a superestrutura das instituições econômicas, jurídicas e demais idéias de um período histórico dado.

E agora a visão de Engels dos resultados da aplicação de um enfoque materialista à História fica mais realista:

A esfera total das condições de vida que rodeiam o homem e que até agora o regeram passa para o domínio e o controle do homem, que pela primeira vez se torna o verdadeiro e consciente Senhor da Natureza, dono de sua própria organização social.

*

Nos capítulos seguintes analisaremos esta definição do materialismo histórico, examinando as instituições culturais que mantêm e reforçam a família biológica (especialmente sua manifestação atual, a família nuclear) e seu resultado, a psicologia do poder, um chauvinismo agressivo, hoje desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto com uma análise feminista do freudismo: porque o preconceito cultural de Freud, tanto quanto o de Marx e Engels, não invalida inteiramente sua percepção. Na verdade, Freud teve insights de valor até maior do que os dos teóricos socialistas, pela construção de um novo materialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, então, correlacionar o melhor de Engels a Marx (o enfoque materialista histórico) com o melhor de Freud (a compreensão do interior do homem e da mulher e do que os forma) para chegar a uma solução ao mesmo tempo política e pessoal, baseada contudo em condições reais. Veremos que Freud observou corretamente a dinâmica da psicologia, no seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura fundamental desse contexto social ser básica para toda a humanidade — em diferentes graus — ela aparentava ser nada menos do que uma condição existencial absoluta, que seria insensato questionar. Ela forçou Freud e muitos de seus seguidores a postular construtos a priori, como O Desejo de Morte, para explicar as origens desses impulsos psicológicos universais. Isto, por sua vez, tomou as doenças da humanidade irredutíveis e incuráveis — motivo pelo qual a solução por ele proposta (a terapia psicanalítica), uma contradição em termos, foi tão pobre, comparada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tão retumbante na prática — levando os que tinham alguma sensibilidade social e política a rejeitar não só sua solução terapêutica, como também suas descobertas mais profundas.

Colaborador

Shulamith Firestone, que morreu em 2012, foi a autora de The Dialectics of Sex: The Case for Feminist Revolution.

9 de fevereiro de 2012

Na Europa, a estagnação como um modo de vida

O acordo da dívida grega abre as portas para novas incertezas na Europa, que podem reavivar o clima de crise.

Por Liz Alderman e Landon Thomas Jr.

The New York Times

Apesar de todas os combates pelas quais a Grécia passou para satisfazer seus exigentes credores, os problemas da Europa não vão desaparecer.

Por causa das várias medidas, muitas vezes incrementais, que as autoridades europeias tomaram durante os quase três anos de dificuldades da dívida que começaram na Grécia, a febre da crise esfriou consideravelmente nos últimos meses - incluindo temores de que a união monetária do euro possa desmoronar repentinamente.

Mas a crise deu lugar a uma dura realidade para a Europa: estagnação econômica e até mesmo, para grande parte do continente, o espectro de outra recessão menos de três anos após o fim da última recessão.

Os líderes gregos concordaram na quinta-feira com um novo conjunto de duras medidas de austeridade, na esperança de receber um novo pacote de resgate de 130 bilhões de euros da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, com o objetivo de evitar um calote da dívida em março. Esse acordo, porém, é de certa forma um microcosmo do dilema mais amplo da Europa, já que medidas semelhantes estão sendo adotadas por outros países sobrecarregados de dívidas na união monetária do euro, incluindo Portugal e Irlanda.

Um imóvel pichado à venda em Dublin, à esquerda, e um corretor, Luís Gouveia, desesperado em Lisboa, falam da nuvem econômica que paira sobre a Europa. Medidas de austeridade e movimentos bancários ajudaram a aliviar um pouco a crise econômica. Crédito... Esquerda, Aidan Crawley/Bloomberg News; Francisco Seco/Associated Press

Muitos analistas dizem que o aperto de cinto só pode empurrar essas e outras nações ainda mais para a recessão, minar as economias de seus parceiros comerciais europeus e fazer pouco para resolver as fraquezas sistêmicas que assolam os bancos europeus.

“Retiramos um problema da mesa no momento”, disse Carl B. Weinberg, economista-chefe da High Frequency Economics em Valhalla, NY. “Isso ainda nos deixa tendo que lidar com a dramática destruição de riqueza que ocorreu.”

Os mercados recentemente adotaram uma visão mais otimista da Itália e da Espanha - as nações onde há muito se temia que o “contágio” grego atacasse a seguir, com consequências regionais ainda mais terríveis. Ultimamente, os custos dos empréstimos de ambos os governos caíram para níveis mais sustentáveis. Sob nova liderança política, Roma e Madri estão prosseguindo com planos de reestruturação destinados não apenas a reduzir dívidas e déficits elevados, mas também a estabelecer as bases para uma eventual restauração do crescimento econômico.

Os investidores também foram tranquilizados pelos movimentos do Banco Central Europeu para reduzir as taxas de juros e abrir as torneiras de dinheiro para proteger os bancos de serem empurrados contra a parede.

“Não vejo o que está no horizonte que poderia atrapalhar isso”, disse Stefan Schneider, economista-chefe internacional do Deutsche Bank em Frankfurt. “Não estamos mais em um ambiente em que os mercados querem pegar a Grécia e passar para o próximo país.”

Uma manifestação de trabalhadores em Atenas. Crédito... Alkis Konstantinidis/European Pressphoto Agency

Para Nicolas Véron, pesquisador sênior do Breugel Economic Research Institute, em Bruxelas, isso significa que a Europa pode respirar com mais facilidade, pelo menos por um tempo. “Isso não significa que os problemas estão resolvidos”, disse ele. “Mas remove parte da pressão de curto prazo e, com sorte, pode criar um círculo virtuoso.”

Tudo depende, porém, de como a economia da zona do euro se sairá nos próximos meses e anos. Investidores que antes criticavam os países por não adotarem austeridade suficiente para consertar balanços patrimoniais esfarrapados começaram recentemente a reconhecer que excesso de austeridade está comprimindo o crescimento - tornando mais difícil, em vez de fácil, o pagamento de dívidas.

E a divisão de crescimento que já existia entre os países ricos do norte e os do sul aumentou ainda mais no ano passado, enquanto aqueles que enfrentam o que provavelmente será uma recessão prolongada - Grécia e Portugal especialmente - parecem estar criando uma terceira zona ultralenta na zona do euro.

Essas economias fracas pesarão sobre a Europa nos próximos anos. Elas já estão ajudando a enfraquecer o crescimento na Alemanha e em países outrora robustos como a França, os quais estão vendo suas exportações para outros países europeus sofrerem.

E se a Grécia eventualmente não visse saída de sua espiral descendente e decidisse que não tinha escolha a não ser sair da zona do euro - algo que os analistas ainda não descartam, mesmo que Atenas consiga esse resgate de curto prazo - todas as apostas serão canceladas.

Móveis abandonados em frente a uma loja fechada no centro de Setúbal, Portugal. A prolongada recessão do país o colocou na parte menos robusta da zona do euro. Crédito... José Manuel Ribeiro/Reuters

"Haveria contágio novamente se houvesse conversas renovadas sobre uma saída da Grécia", disse Véron. "Este será um grande tema a ser observado nos próximos meses."

Dúvidas sérias permanecem sobre a capacidade da Grécia de reviver sua economia e gerar crescimento suficiente até mesmo para atingir a meta de reduzir sua carga de dívida para 120% de sua produção econômica anual em 2020 - uma meta estipulada pela União Europeia e o fundo monetário.

A dívida da Grécia era superior a 159 por cento do produto interno bruto no terceiro trimestre do ano passado, de acordo com os dados mais recentes da Eurostat, a agência de estatísticas da União Europeia. E o desemprego grego atingiu 21% em novembro, enquanto a produção industrial despencou 11% em dezembro.

E embora a Grécia se beneficie de uma reestruturação da dívida que reduz sua carga de juros nos próximos anos, não está claro como um país que sempre dependeu de um setor estatal para ajudar a estimular a demanda será capaz de crescer com seu principal motor econômico efetivamente acorrentado pelos cortes orçamentários que Atenas está promentendo neste momento.

A Grécia tem um histórico ruim de cumprir suas promessas até agora, aumentando o risco de que também não consiga cumprir as condições mais recentes.

Enda Kenny, primeiro-ministro da Irlanda, falou na quarta-feira em Nova York. Crédito... Allison Joyce/Reuters

"No fundo de tudo isso, a Grécia ainda tem que entregar", disse Weinberg. “Como vimos com o primeiro pacote, entregar a legislação não significa necessariamente entregar o desempenho. A Grécia pode estar fora de conformidade muito rapidamente”.

Além do mais, os eventuais termos do acordo de resgate da Grécia podem levar a um novo conjunto de incertezas regionais.

Até agora, o Banco Central Europeu está resistindo a pedidos para ajudar a garantir o resgate da Grécia, enviando o lucro de qualquer uma de suas participações em títulos gregos para uma redução da dívida do país. Mas se o banco central ceder, Irlanda, Portugal e outros países que receberam resgates de crise podem pedir o mesmo tratamento.

Além disso, como parte do acordo de resgate da Grécia, os bancos podem concordar em assumir uma perda de até 70 por cento em suas participações em títulos gregos. Isso é algo que a Irlanda e Portugal disseram que querem evitar exigir de seus próprios credores privados, para não assustar os investidores quando esses países eventualmente começarem a tomar empréstimos nos mercados internacionais novamente.

Mas essa postura não é tão popular entre os cidadãos. Enda Kenny, o primeiro-ministro irlandês, disse esta semana que, ao contrário dos gregos, não tem planos de pressionar os bancos que detêm dívida soberana irlandesa. Essa conversa inflamou muitos contribuintes irlandeses, que tiveram de arcar com as dívidas incobráveis dos bancos.

Se a Irlanda pedisse cancelamentos de credores como os da Grécia, isso poderia abrir caminho para demandas semelhantes de Portugal e talvez de países devedores maiores, como Espanha e Itália.

"A caixa de Pandora foi aberta para a Irlanda e Portugal" e possivelmente para outros países, disse Weinberg. "Não sabemos aonde isso vai dar."

Liz Alderman reportou de Paris e Landon Thomas Jr. de Londres. Jack Ewing contribuiu com reportagens de Frankfurt e Stephen Castle de Bruxelas.

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