28 de outubro de 2011

O Partido de Wall Street encontra o seu Nemesis

David Harvey*

Verso Books

O Partido de Wall Street controlou os Estados Unidos sem dificuldades por tempo demais. Controlou totalmente (em contraste com parcialmente) as políticas dos presidentes por pelo menos quatro décadas (para não dizer mais), independentemente de se algum presidente individual foi ou não seu agente por vontade própria. Corrompeu legalmente o Congresso por meio da dependência covarde de políticos dos dois partidos em relação ao poder do dinheiro e ao acesso à mídia comercial que controla. Graças a nomeações feitas e aprovadas pelos presidentes e Congresso, o Partido de Wall Street domina muito do aparato estatal e do Judiciário, em especial a Suprema Corte, cujas decisões estão crescentemente a favor dos interesses venais do dinheiro, em esferas tão diversas quanto eleitoral, trabalhista, ambiental e comercial.

O Partido de Wall Street tem um princípio universal de dominação: não pode haver qualquer adversário sério ao poder absoluto do dinheiro de dominar absolutamente. E esse poder é para ser exercido com um único objetivo. Os detentores do poder do dinheiro não devem apenas ter o privilégio de acumular riqueza sem fim a seu gosto, mas também de herdar o planeta, tomando direta ou indiretamente o domínio da terra, todos os seus recursos e as potencialidades produtivas que nela residem. O resto da humanidade se torna nessa visão supérfluo.

Esses princípios e práticas não surgem da ganância individual, falta de horizonte ou abusos (por mais que todos esses ocorram aos montes). Esses princípios se formaram no corpo político de nosso mundo por meio da vontade coletiva de uma classe capitalista instigada pelas leis coercivas da competição. Se meu grupo de pressão gasta menos do que o seu, então receberei menos favores. Se esse departamento gasta para atender às necessidades das pessoas, então se torna menos competitivo.

Muitas pessoas decentes estão presas a um sistema que está completamente podre. Se querem ter um salário razoável não têm outra opção além de se render à tentação do diabo: só estão “seguindo ordens”, como Eichmann disse, “fazendo o que o sistema pede”, como se diz hoje em dia, aceitando os princípios e práticas bárbaras e imorais do Partido de Wall Street. As leis coercivas da competição nos forçam todos, em diferentes níveis, a obedecer às regras desse sistema cruel e insensível. O problema é sistêmico, não individual.

Os ideais de liberdade e autonomia do partido, a serem garantidos pelos direitos à propriedade privada, livre-mercado e livre-comércio, se traduzem na realidade pelo direito de explorar o trabalho alheio, de despossuir as pessoas de seus bens a seu bel prazer e a liberdade de saquear o meio ambiente para seus benefícios individuais ou de classe.

No controle do aparato estatal, o Partido de Wall Street geralmente privatiza todos os ramos de atividade interessantes, abaixo do valor de mercado, para abrir novas frentes para a acumulação do capital. Arranja esquemas de subcontratação (do qual o complexo militar industrial é um exemplo claro) e de tributação (subsídios ao agronegócio e baixos impostos sobre os ganhos do capital) que lhe permitem limpar livremente os cofres públicos. Estimula deliberadamente sistemas regulatórios complicados e níveis surpreendentes de incompetência administrativa no resto do aparato estatal (vide a Agência de Proteção Ambiental sob Reagan e a Agência Federal de Gestão de Emergências e o “baita trabalho” de Brown sob Bush), de modo a convencer um público inerentemente cético de que o Estado não consegue ter um papel construtivo ou de apoio para melhorar a vida ou as perspectivas futuras das pessoas. Por fim, usa o monopólio da violência, que todo Estado soberano reivindica, para excluir o público do espaço público e para por pressão, vigiar e, se necessário, criminalizar e prender quem não aceitar de modo amplo suas ordens. É exímio nas práticas de tolerância repressiva que perpetuam a ilusão de liberdade de expressão enquanto essa expressão não expuser claramente a natureza verdadeira de seu projeto e o aparato repressivo sobre o qual repousa.

O Partido de Wall Street articula incessantemente a guerra de classes: “Claro que há uma guerra de classes”, disse Warren Buffett, “e é minha classe, os ricos, que a está fazendo e vencendo”. Em grande parte, essa guerra é articulada em segredo, atrás de uma série de máscaras e ilusões pelas quais os planos e objetivos do Partido de Wall Street se escondem.

O Partido de Wall Street sabe muito bem que quando perguntas políticas e econômicas se transformam em questões culturais não há como respondê-las. Geralmente aciona uma enorme variedade de opiniões de especialistas cativos, na sua maior parte empregados em institutos de pesquisa e universidades que financia e espalhados na mídia que controla, para criar controvérsias sobre assuntos que de fato não importam e sugerir soluções a perguntas que de fato não existem. Num instante, só fala da austeridade necessária a todas as outras pessoas para tratar do déficit e, num outro, propõe a redução de sua própria tributação sem se importar sobre o impacto no déficit. A única coisa que nunca pode ser debatida ou discutida é a verdadeira natureza da guerra de classes que tem mantido de modo incessante e tão cruel. Descrever algo como “guerra de classes” é, no clima político atual e no julgamento dos especialistas, colocar-se fora do espectro de considerações sérias, sendo chamado de imbecil, senão de sedicioso.

Mas agora pela primeira vez há um movimento explícito que enfrenta o Partido de Wall Street e seu mais puro poder do dinheiro. A street (rua) de Wall Street está sendo ocupada — ô, horror dos horrores — por outros! Espalhando-se de cidade em cidade, as táticas do Ocupem Wall Street são tomar um espaço público central, um parque ou uma praça, próximo a onde muitos dos bastiões do poder estão localizados, e fazer com que corpos humanos convertam esse lugar de espaço público em uma comunidade de iguais, um lugar de discussão aberta e debate sobre o que esse poder está fazendo e as melhores formas de combater seu alcance. Essa tática, mais conspicuamente presente nas lutas nobres e atuais da praça Tahrir, no Cairo, se alastrou por todo o mundo (praça do Sol, em Madri, praça Syntagma, em Atenas, agora as escadarias de Saint Paul, em Londres, além da própria Wall Street). Mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição, quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado. A praça Tahrir mostrou ao mundo uma verdade óbvia: são os corpos na rua e praças, não o fluxo de sentimentos no twitter ou facebook, que realmente importam.

O objetivo desse movimento nos Estados Unidos é simples. Diz: “Nós, as pessoas, estamos determinadas a retomar nosso país dos poderes do dinheiro que atualmente o controlam. Nosso objetivo é mostrar que Warren Buffett está enganado. Sua classe, os ricos, não vai mais governar sem oposição e não vai mais herdar automaticamente a terra. Sua classe, os ricos, não está destinada a sempre vencer”.

Diz “Somos os 99%”. Somos a maioria e essa maioria pode, deve e vai prevalecer. Na medida em que todos os outros canais de expressão estão fechados por causa do poder do dinheiro, não temos outra opção a não ser ocupar os parques, praças e ruas de nossas cidades até que nossas opiniões sejam ouvidas e nossas necessidades atendidas.

Para ter êxito, o movimento precisa alcançar os 99%. Conseguirá e o está fazendo um passo por vez. Primeiro, há todas as pessoas jogadas na miséria pelo desemprego e aquelas que foram ou estão sendo despossuídas de suas casas e bens pela falange de Wall Street. Deve formar grandes coalizões entre estudantes, imigrantes, sub-empregados e todos os que estão ameaçados pelas políticas de austeridade, totalmente desnecessárias e draconianas, impostas sobre a nação e o mundo para atender ao Partido de Wall Street. Deve por o foco nos níveis estarrecedores de exploração nos locais de trabalho — dos empregados domésticos imigrantes que os ricos exploram tão cruelmente em suas casas aos funcionários de restaurantes que são escravizados por quase nada nas cozinhas dos estabelecimentos onde os ricos comem tão copiosamente. Deve unir os trabalhadores criativos e artistas cujos talentos são transformados tantas vezes em produtos comerciais pelo grande poder do dinheiro.

O movimento deve especialmente atingir todos os alienados, os insatisfeitos e os descontentes, todos os que reconhecem e sentem nas entranhas que há algo de muito errado, que o sistema que o Partido de Wall Street criou não é só bárbaro, antiético e moralmente errado, mas também está falido.

Tudo isso tem de ser unido democraticamente em uma oposição coerente, que também tem de contemplar livremente com o que se parecem uma cidade alternativa, um sistema político alternativo e, por fim, uma forma alternativa de organizar a produção, distribuição e consumo para o benefício do povo. Se não o fizer, o futuro para os jovens que se encaminha para uma crescente dívida privada e austeridade pública profunda, em benefício ao um porcento, não é um futuro.

Em resposta ao movimento Ocupem Wall Street, o Estado, apoiado pelo poder da classe capitalista, tem um argumento surpreendente: ele, e só ele, tem o direito exclusivo de regular e organizar o espaço público. O público não tem o direito comum ao espaço público! Com que direito prefeitos, chefes de polícia, oficiais militares e autoridades do Estado dizem ao povo que têm o direito de determinar o que é público em “nosso” espaço público e quem pode ocupar esse espaço? Quando consideram em seu interesse expulsar-nos, o povo, de qualquer espaço que nós, o povo, decidamos ocupar coletiva e pacificamente? Dizem que agem no interesse público (e se referem a leis para prová-lo), mas somos nós o povo! Onde está “nosso interesse” nisso tudo? E, aliás, não é “nosso” dinheiro que os bancos e financistas usam tão descaradamente para acumular “seus” bônus?

Diante do poder organizado do Partido de Wall Street de dividir e conquistar, o movimento que está emergindo também deve ter como um de seus princípios fundadores que não será dividido nem se desviará de seu curso até que o Partido de Wall Street caia na real — para ver que o bem comum tem de prevalecer sobre os estreitos interesses do dinheiro — ou de joelhos. Os privilégios corporativos de ter todos os direitos dos indivíduos sem as responsabilidades de verdadeiros cidadãos têm de ser eliminados. Os bens públicos, como educação e saúde, têm de ser oferecidos publicamente e acessíveis a todos. Os poderes monopolistas na mídia têm de ser abalados. A compra de eleições tem de ser considerada inconstitucional. A privatização do conhecimento e cultura tem de ser proibida. A liberdade de explorar e despossuir outras pessoas tem de ser controlada e, no fim, impedida.

Os estadunidenses acreditam na igualdade. Pesquisas de opinião pública mostram (independentemente da filiação partidária) que, para a população, os 20% deveriam ter 30% da riqueza total. O fato de os 20% mais ricos deterem 85% da riqueza é inaceitável. O fato de que a maior parte disso seja controlada pelos 1% mais ricos é totalmente inaceitável. O que o movimento Ocupem Wall Street propõe é que nós, o povo estadunidense, nos comprometamos a reverter esse nível de desigualdade, não só de riqueza ou salários, mas, ainda mais importante, o poder político que essa disparidade gera. O povo estadunidense tem orgulho, com razão, de sua democracia, mas ela está à mercê do poder de corromper do capital. Agora que é dominada por esse poder o tempo de fazer outra Revolução Estadunidense, como Jefferson sugeriu ser necessário há muito tempo, está se aproximando: e que seja baseada em justiça social, igualdade e cuidado e contato consciente na relação com a natureza.

A luta que se criou — o Povo contra o Partido de Wall Street — é crucial para nosso futuro coletivo. A luta é global assim como local em sua natureza. Reúne estudantes confinados a uma luta de vida ou morte contra o poder político no Chile para criar um sistema de educação gratuito e de qualidade para todos, desmantelando o modelo neoliberal que Pinochet impôs brutalmente. Engloba os ativistas da praça Tahrir que reconhecem que a queda de Mubarak (como o fim da ditadura de Pinochet) foi apenas o primeiro passo de uma luta para emancipar-se do poder do dinheiro. Inclui os indignados da Espanha, os trabalhadores em greve na Grécia, a oposição militante que surge em todo o mundo, de Londres a Durban, Buenos Aires, Shenzhen e Mumbai. A dominação brutal do grande capital e o poder do dinheiro estão na defensiva em todo lugar.

De que lado vamos estar, nós, indivíduos? Que rua vamos ocupar? Só o tempo dirá. Mas o que sabemos é que o tempo é agora. O sistema não está só quebrado e exposto, mas também incapaz de qualquer resposta a não ser a repressão. Então nós, o povo, não temos outra opção senão lutar pelo direito coletivo a decidir como o sistema será reconstruído e com base em qual modelo. O Partido de Wall Street teve sua vez e fracassou miseravelmente. Como construir uma alternativa em suas ruínas é tanto uma oportunidade inescapável quanto uma obrigação que nenhum de nós pode ou vai querer deixar de lado.

* David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda Guerra Mundial. Seus livros mais recentes, além de O enigma do capital (Boitempo), são: A Companion to Marx’s Capital (Boitempo, no prelo) e O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004).

24 de outubro de 2011

A participação do Hezbollah na queda de Gaddafi

Charles Glass

LRB Blog

Os líbios de Benghazi celebravam a vitória sobre Gaddafi ontem, no mesmo dia que marcou o 28º aniversário de outro evento de grandes proporções na história do Oriente Médio. Num domingo, dia 23/10/1983, às 6h22, um homem-bomba invadiu, com um caminhão carregado de explosivos, o acampamento dos Marine norte-americanos no Aeroporto de Beirute. O caminhão foi explodido naquele acampamento, no que especialistas do FBI que examinaram o local descreveram, depois, como a maior explosão com explosivos convencionais de toda a história. Morreram 252 norte-americanos entre militares e servidores civis. Ataque semelhante, também em Beirute, naquela manhã, matou 58 soldados franceses. Não há qualquer dúvida de que o nascente movimento Hezbollah foi responsável pelos dois ataques.

Os autores daquele ataque a militares dos EUA e da França, que levou os dois exércitos a deixarem o Líbano meses depois, muito provavelmente estão festejando o fim de Muammar Gaddafi talvez mais que os falantes líderes em Paris e Washington. Gaddafi, que em diferentes momentos tanto acolheu quanto rejeitou governantes britânicos, franceses, norte-americanos e árabes, nunca se entendeu com o Hezbollah. As raízes dessa animosidade são político-religiosas. Em agosto de 1978, Gaddafi recebeu festivamente o líder dos xiitas libaneses, Imã Musa Sadr, e dois colegas, que chegaram em visita oficial a Trípoli. Sadr era uma força a favor da reconciliação dos libaneses e, para pôr fim às disputas internas no Líbano, fez longa greve de fome. Tinha aliados cristãos e muçulmanos, num momento em que Gaddafi apoiava a aliança de muçulmanos de esquerda libaneses e palestinos. Pouco tempo depois de ter-se encontrado com Gaddafi, o Imã Sadr desapareceu. Nunca mais foi visto. Oficiais líbios garantiram que teria voado de Trípoli para Roma, viagem da qual não há notícia; como tampouco há notícia de que o Imã Sadr tenha desembarcado em Roma. Desde então, a questão de saber o que aconteceu a ele e aos clérigos que o acompanhavam dominou as relações entre as comunidades xiitas do Líbano e da Líbia. O Hezbollah foi dos poucos movimentos da resistência contra a ocupação israelense no sul do Líbano que sempre recusou qualquer ajuda que viesse de Gaddafi.

Há incontáveis versões sobre o que teria acontecido ao Imã Sadr. Nenhuma delas jamais foi confirmada. Ano passado, seu filho Sadreddine disse à Agência National News em Beirute que seu pai e os dois colegas que o acompanhavam estariam vivos, presos numa prisão líbia. Pouco depois, Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah anunciou, em comunicado oficial, que “o Imã Sadr e os dois clérigos que o acompanhavam estão presos na Líbia e devem ser libertados”. Sadreddine Sadr jamais revelou suas fontes, mas, no início de 2011, nas primeiras escaramuças da guerra na Líbia, uma figura da oposição líbia disse que Sadr continuava preso na Líbia. Até agora, não se encontrou nenhum sinal do imã, que teria (ou tem) hoje 83 anos, nas prisões já abertas pelo Conselho Nacional de Transição.

A oposição do Hezbollah ao governo de Gaddafi criou dificuldades para o movimento libanês com seus apoiadores em Damasco, cujo regime baathista mantinha boas relações com o governo da Líbia de Gaddafi. E também pôs o Hezbollah, nos últimos meses, no campo dos apoiadores da ação da OTAN na Líbia. Com a aprovação decisiva do Hezbollah (que é parte, hoje, do governo libanês), o Líbano votou a favor da Resolução da ONU que aprovou a implantação de uma zona de exclusão aérea na Líbia, dia 15 de março. Sem a intervenção da OTAN, o levante de Benghazi contra Gaddafi dificilmente teria conseguido ser bem-sucedido. Se é verdade que Gaddafi foi deposto porque lutava contra a oposição de Benghazi, é verdade também que o desaparecimento de um clérigo libanês xiita também contribuiu para o desenlace.

O Hezbollah manteve inalterada a oposição a Gaddafi mesmo quando EUA, França e Inglaterra o reintroduziram festivamente na comunidade internacional, compraram o petróleo que ele tinha para vender e venderam-lhe armas. Nenhuma tortura, nenhuma violência, nenhuma ditadura líbia pareceu pouco recomendável aos olhos ocidentais, enquanto o petróleo líbio estivesse assegurado; o excelente petróleo líbio, com baixo conteúdo de enxofre e tão próximo da Europa, é o mais cobiçado dentre todos os países da OPEP. Gaddafi tinha 28 anos, era capitão do exército (depois, foi promovido a coronel) e comandou 8.000 soldados líbios que tomaram o poder na Líbia, em setembro de 1969, em golpe sem derramamento de sangue. Em novembro do mesmo ano, dia 20/11/1969, Henry Kissinger, então presidente-assistente da Comissão de Negócios do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, recebeu o seguinte memorando interno, top secret, assinado por Robert Behr e Harold Saunders, assessores do mesmo conselho:

“Nossa [dos EUA] atual estratégia é buscar estabelecer relações satisfatórias com o novo governo líbio. A recomposição de nossa balança de pagamentos e a segurança dos investimentos norte-americanos em petróleo são considerados nossos interesses prioritários. Queremos conservar nossas instalações militares, mas sem que isso ameace nosso retorno econômico.”

Os EUA alertaram Gaddafi sobre tentativa de golpe de estado, pouco depois, que o novo governante sufocou. Mas a gratidão aos EUA durou pouco. Gaddafi imediatamente depois forçou os EUA e o Reino Unido a abandonarem as bases militares que mantinham no país e aumentou a taxa da Líbia nos negócios do petróleo – e, com esses lucros, construiu tanto a infraestrutura e o desenvolvimento da Líbia, quanto a estrutura de corrupção do estado que, agora, o Conselho Nacional de Transição está herdando. Quando Tony Blair tirou Gaddafi das sombras, depois do atentado em Lockerbie, os EUA passaram a entregar prisioneiros à Líbia para sessões especiais de interrogatório e tortura.

Só o Hezbollah sai com honra dessa saga sórdida.

21 de outubro de 2011

Chega de chiclete

Mike Davis


Ilustração: © Erika Rothenberg 911 World Domination (detalhe)

Tradução / Quem poderia prever que o Occupy Wall Street e sua proliferação ao estilo de uma planta selvagem aconteceriam em cidades grandes e pequenas?

John Carpenter previu. Há quase 25 anos (1988), o mestre do terror (Halloween, A coisa) escreveu e dirigiu They Live ["Eles vivem", no Brasil], retratando a Era Reagan como uma catastrófica invasão alienígena. O filme continua sendo seu tour de force. Aliás, quem poderia esquecer das primeiras cenas brilhantes em que uma grande periferia terceiro-mundista é mostrada ao longo de uma autoestrada e refletida pelos arranha-céus espelhados de Bunker Hill, em Los Angeles? 

Ou da maneira como Carpenter retrata banqueiros milionários e ricos midiocratas dominando a pulverizada classe trabalhadora dos Estados Unidos, que vive em barracas numa encosta cheia de entulhos e implora por trabalhos casuais?

They Live continua sendo o tour de force subversivo de Carpenter. Poucos que o viram poderiam esquecer seu retrato de banqueiros bilionários e mediacratas do mal e seu governo distante como um zumbi sobre uma classe trabalhadora americana pulverizada vivendo em tendas em uma encosta cheia de escombros e implorando por empregos. Partindo dessa igualdade negativa entre falta de moradia e desesperança, e graças aos óculos escuros mágicos encontrados pelo enigmático "Nada" (interpretado por Kurt Russell), o proletariado finalmente alcança a unidade inter-racial, não se deixa enganar pelas fraudes subliminares do capitalismo e fica furioso, extremamente furioso. 

Sim, eu sei, estou adiantando as coisas. O movimento "Occupy the World" ainda procura seus óculos mágicos (programa, demandas, estratégia e assim por diante), e sua fúria permanece baixa, em estado gandhiano. Mas, como previu Carpenter, arrancar um número suficiente de cidadãos norte-americanos de suas casas e/ou carreiras (ou pelo menos atormentar dezenas de milhões com essa possibilidade) para promover algo novo e de grandes proporções é um movimento lento e cambaleante em direção ao Goldman Sachs. E, ao contrário do "Partido do Chá" [Tea party], até agora não há fios de marionete. 

Em 1965, quando eu tinha dezoito anos e participava da equipe nacional dos Estudantes para uma Sociedade Democrática, planejei uma ocupação do Chase Manhattan Bank, "parceiro do apartheid" por conta de seu papel central no financiamento da África do Sul depois do massacre de manifestantes pacíficos. Foi o primeiro protesto em Wall Street em uma geração, e 41 pessoas foram arrastadas de lá pela polícia.

Um dos fatos mais importantes sobre a revolta atual é simplesmente que ela ocupou as ruas e criou uma identificação espiritual com os desabrigados. Para ser bem franco, a minha geração, educada no movimento dos direitos civis, teria pensado em primeiro ocupar os prédios e esperar que a polícia colocasse todos porta afora na base de cacetadas. (Hoje, os policiais preferem spray de pimenta e "técnicas não letais".)  Ainda acho que tomar o comando dos arranha-céus é uma ideia esplêndida, mas para um estágio mais avançado da luta. Até o momento, a genialidade do Occupy Wall Street é o fato de ter liberado alguns dos imóveis mais caros do mundo e transformado uma praça privada em um espaço público magnético e catalisador de protestos.

Nossa ocupação há 46 anos foi uma incursão de guerrilheiros; a de agora é uma Wall Street sob o cerco dos liliputianos. Também é o triunfo do princípio supostamente arcaico do cara a cara, da organização dialógica. As mídias sociais são importantes, é claro, mas não onipotentes. O sucesso da auto-organização dos ativistas - a cristalização da vontade política a partir do livre debate - continua sendo melhor nos fóruns urbanos da realidade. Dito de outra forma, a maior parte das nossas conversas na internet equivale ao padre sendo ensinado a celebrar a missa; até mesmo megasites como o MoveOn.com são voltados para um grupo que já sabe do que é dito, ou pelo menos para seu provável grupo demográfico.

As ocupações também são para-raios, acima de tudo, para as menosprezadas e alienadas tropas dos Democratas, mas, além disso, elas parecem estar derrubando barreiras de geração, proporcionando as bases comuns, por exemplo, para que os professores de meia-idade, ameaçados e que trabalham na educação básica, troquem ideias com jovens graduados e empobrecidos.

De maneira ainda mais radical, os acampamentos tornaram-se lugares simbólicos para reparar as divisões dentro da coalizão do New Deal impostas nos anos do governo Nixon. Como observa Jon Wiener em seu impecável blog, The Nation, "operários e hippies - juntos, finalmente". 

Evidentemente. Quem não se comoveria quando o presidente da AFL-CIO, Richard Trumka - que trouxe mineiros de carvão para Wall Street em 1989 durante uma greve cruel, mas bem-sucedida, contra a Pittston Coal Company -, convocou homens e mulheres cheios de energia para “montar guarda” no Zucotti Park, apesar do esperado ataque da polícia de Nova York? 

Ainda que velhos radicais como eu sejam propensos a declarar como messias qualquer recém-nascido, essa criança tem o sinal do arco-íris. Acredito que estamos vivenciando o renascimento das qualidades que definiram de modo tão marcante as pessoas comuns da geração de meus pais (migrantes e grevistas da Crise de 1929): uma compaixão generosa e espontânea, uma solidariedade baseada em uma ética perigosamente igualitária: Pare e dê carona a uma família. Jamais fure uma greve trabalhista, mesmo se sua família não puder pagar o aluguel. Compartilhe seu último cigarro com um estranho. Roube leite quando não houver para seus filhos e dê metade para as crianças do vizinho (isso foi o que minha própria mãe fez repetidas vezes em 1936). Ouça atentamente aos sagazes e serenos que perderam tudo, menos a dignidade. Cultive a generosidade do "nós". 

O que quero dizer, suponho, é que me sinto extremamente impactado por aqueles que se juntaram para defender as ocupações apesar de diferenças significativas de idade, classe social e raça. E, da mesma maneira, adoro as crianças corajosas que estão prontas para encarar o próximo inverno e passar frio nas ruas, bem como seus irmãos e irmãs desabrigados.

Mas voltemos à estratégia: qual o próximo elo na corrente (no sentido de Lenin) que precisa ser apreendido? Até que ponto é imperativo para as plantas selvagens formar uma convenção, assumir demandas programáticas e, dessa forma, colocarem a si próprias no leilão das eleições de 2012? Obama e os Democratas certamente, e talvez desesperadamente, precisarão de energia e autenticidade. Mas é improvável que os "ocupacionistas" se coloquem à venda, ou seu extraordinário processo de auto-organização. 

Pessoalmente, tendo para uma posição anarquista e seus imperativos óbvios.

Primeiro, exponham a dor de 99%, levem Wall Street a julgamento. Tragam Harrisburg, Laredo, Riverside, Camden, Flint, Gallup e Hooly Springs para o centro financeiro de Nova York. Confrontem os predadores com suas vítimas. Um tribunal nacional sobre o genocídio econômico.

Segundo, continuem a democratizar e ocupar produtivamente o espaço público (isto é, reivindicar os bens comuns). O veterano historiador e ativista Mark Naison, do Bronx, propôs um plano arrojado para transformar os espaços degradados e abandonados de Nova York em recursos de sobrevivência (jardins, áreas de acampamento, playgrounds) para desabrigados e desempregados. Os manifestantes do Occupy em todo o país agora sabem como é ser desabrigado e não poder dormir em parques ou numa barraca. Mais uma razão para arrebentar as amarras e escalar os muros que separam o espaço não usado das necessidades humanas urgentes.

Terceiro, fiquem atentos à verdadeira recompensa. A grande questão não é subir os impostos dos ricos ou realizar uma melhor regulamentação dos bancos. Trata-se de uma democracia econômica – o direito das pessoas comuns de tomar macrodecisões sobre investimento social, taxas de juros, fluxo de capital, criação de empregos, aquecimento global e afins. Se o debate não for sobre o poder econômico, ele é irrelevante.

Quarto, o movimento deve sobreviver ao inverno para combater o poder na próxima primavera. As ruas são frias em janeiro. Bloomberg e todos os outros prefeitos e autoridades locais estão contando com um inverno rigoroso para acabar com os protestos. Por isso é muito importante reforçar as ocupações durante as férias de Natal. Vistam seus casacos.

Por fim, precisamos nos acalmar - o itinerário do protesto atual é totalmente imprevisível. Mas se alguém erguer um para-raios, não podemos nos surpreender caso caia um relâmpago.

Banqueiros entrevistados recentemente no The New York Times parecem considerar os protestos do Occupy pouco mais que um incômodo baseado, segundo eles, numa compreensão rudimentar do setor financeiro. Eles deveriam ser mais humildes. Na verdade, deveriam tremer diante da imagem da carreta de munições.

Quatro milhões e meio de empregos na área industrial foram perdidos nos Estados Unidos desde 2000, e uma geração inteira de recém-graduados encara agora a mais alta mobilidade descendente na história do país. Desde 1987, afro-americanos perderam mais da metade de seu patrimônio líquido; os latinos, inacreditáveis dois terços. 

Arruinar com o sonho americano e com as pessoas comuns será extremamente prejudicial para vocês. Ou, como Nada explica aos agressores imprudentes no excelente filme de Carpenter: "Vim aqui para mascar chiclete e quebrar tudo... e meus chicletes acabaram."

Mike Davis foi um dos principais intelectuais de sua época e editor colaborador da Los Angeles Review of Books. Seus trabalhos incluem City of Quartz (1990), um estudo seminal das falhas econômicas e raciais de Los Angeles, Planet of Slums (2005), In Praise of Barbarians (2007) e Set the Night on Fire: L.A. in the Sixties (2020), co-escrito com Jon Wiener.

20 de outubro de 2011

O Rasputin de Putin

Peter Pomerantsev

London Review of Books

Vol. 33 No. 20 · 20 October 2011

Tradução / O próximo ato da história da Rússia está para começar: Putin e Medvedev sairão do palco por um instante, trocarão de roupa e emergirão para representar cada um o papel do outro. Putin, outra vez presidente. Medvedev, primeiro-ministro. É a apoteose do que se conhece como “democracia administrada” e triunfo máximo do autor do roteiro do show, chefe ideólogo e eminência parda de Putin, Vladislav Surkov, o “demiurgo do Kremlin”. Conhecido também como o “rei dos fantoches, o homem que privatizou o sistema político russo”, Surkov é o verdadeiro gênio da era Putin. Conheça-o e você conhecerá, não só a Rússia contemporânea, mas um novo tipo de política de poder, filha do autoritarismo, muito mais sutil que os tiranos do século 20.

Há algo de querubim no rosto liso, gorducho, de Surkov e, nos olhos, algo de demônio. Tem formação de diretor de teatro. Depois, tornou-se homem de Relações Públicas. Hoje seu papel oficial é “vice-chefe da administração presidencial”, mas ninguém tem maior influência que ele na política russa. É o inventor do conceito de “democracia soberana”, segundo o qual as instituições democráticas existem sem liberdades democráticas; foi quem converteu a televisão em máquina de propaganda kitsch a serviço do culto a Putin; e também inventou grupos de jovens pró-Kremlin que gostam de ser comparados à Juventude Hitleriana, que espancam jornalistas estrangeiros e de oposição e queimam livros “não patrióticos” na Praça Vermelha. Mas isso é só parte da história.

Nas horas vagas, Surkov escreve ensaios sobre arte conceitual e letras para grupos de rock. É fã do gangsta rap. Há uma foto de Tupac sobre sua mesa, ao lado da foto de Putin. E é suposto autor de um romance que é sucesso de vendas, Almost Zero [Quase Zero]. “Suposto”, porque o romance foi publicado (em 2009) por Natan Dubovitsky, pseudônimo – e a esposa de Surkov é chamada de Natalya Dubovitskaya. Oficialmente, Surkov é autor do prefácio, no qual nega que seja o autor do romance e, em seguida, contradiz-se: “O autor desse romance é sujeito sem originalidade obcecado por Hamlet”; e, adiante: “é o melhor livro que li em toda minha vida”. Em entrevistas, chegou bem perto de admitir a autoria, embora ninguém jamais tenha ouvido confissão completa. Tenha de fato escrito todas as palavras, ou não, não perde ocasião de associar-se ao romance.

O romance é uma sátira da Rússia contemporânea; o herói, Egor, é homem de Relações Públicas, corrupto, dos que servem a qualquer senhor que lhe pague o aluguel. Ex-editor de poesia de vanguarda, Egor trabalha agora comprando textos de escritores empobrecidos, confinados ao submundo, e vendendo os direitos autorais a ricos burocratas e gângsteres com ambições artísticas que os publicam como se fossem obra deles. O mundo dos Relações Públicas e editores é pintado no romance como extremamente perigoso. Cada empresa editora tem suas próprias gangues, cujos membros matam-se a tiros para obter os direitos de publicação de Nabokov e Pushkin, e os serviços secretos infiltram agentes naquele mundo, para seus específicos fins imundos. É exatamente o tipo de livro que os grupos dos jovens de Surkov queimam na Praça Vermelha.

Nascido no interior da Rússia, filho de mãe solteira, Egor cresce para converter-se em rato de livraria, desencantado com a ideologia confusa do final da União Soviética. Nos anos 1980s, muda-se para Moscou, onde vive na periferia do cenário boêmio; nos anos 1990s, torna-se um ‘guru’ no campo das Relações Públicas. Em linhas gerais, essa trajetória tem muitos pontos em comum com a de Surkov, cujos detalhes eram praticamente desconhecidos, até que um artigo publicado em Novoye Vremya, no início de 2011, ofereceu a história real. Surkov nasceu em 1964, de mãe russa e pai checheno, que partiu quando o filho ainda era pequeno. Contemporâneos de escola relembram o colega que fazia piadas com as manias do professor em Komsomol, usava calças de veludo e cabelos longos à Pink Floyd, escrevia poesia e fazia sucesso com as garotas. Foi aluno nota 10, cujos ensaios sobre literatura eram lidos em reuniões de professores: não era o único a achar-se esperto demais para acreditar no cenário político e social que o cercava.

Nos anos 1980s e início dos 1990s, a Rússia passava por diferentes modas, em velocidade estonteante: a estagnação soviética levou à perestroika, que levou ao colapso da União Soviética, à euforia liberal e, em seguida, ao desastre econômico. Como acreditar em alguma coisa, quando tudo à sua volta muda tão depressa? Surkov abandonou vários cursos universitários, de metalurgia a direção teatral, passou pelo exército, pôs-se a frequentar festas boêmias, tinha explosões de violência (foi expulso da escola de arte dramática por causa de uma briga). Surkov, nos termos em que aparece descrito num dos telegramas diplomáticos distribuído por WikiLeaks, sempre se viu como gênio incompreendido, mas demorou a encontrar a verdadeira vocação.

Treinava artes marciais num clube com Mikhail Khodorkovsky, então uma das estrelas emergentes do jovem empresariado russo. Khodorkovsky contratou-o como guarda-costas, entendeu que podia usar mais os miolos que os músculos de Surkoav e logo o promoveu a gerente de Relações Públicas. Logo se tornou conhecido pela capacidade, não só para criar engenhosas campanhas de Relações Públicas, mas, também, para manipular os demais e conseguir ver suas campanhas promovidas, pela grande imprensa, com uma mistura de charme, violência e suborno. “Surkov age como um Chekista dos anos 1920s e 1930s” – disse Dmitry Oreshkin, analista político. “Sempre fareja o ponto mais fraco dos outros”. A partir daí, ocupou postos de chefia em bancos e canais de televisão. Em 1999, foi convidado para integrar o governo de Yeltsin. Mais designer que burocrata, logo se destacou. Foi dos principais contatos com imprensa-empresa na promoção da campanha presidencial de Putin em 2000. Desde então, enquanto tantos de seus colegas caíram em desgraça, Surkov tem conseguido manter-se no jogo, se reconstruindo para atender às carências dos patrões. “Slava é um camaleão” – segundo Boris Nemtsov, destacado político da oposição: “Sob Yeltsin, foi democrata; sob Putin, é um autocrata”.

Num dado momento, começou a temer que tanto sucesso atraísse sua desgraça: começaram boatos de que teria ambições presidenciais, boato perigoso, sobretudo em círculos políticos; e Surkov imediatamente fez vazar sua história de filho de pai checheno, até aí mantida secreta, como modo de declarar que jamais concorreria aos mais altos postos; ou, pelo menos, é o que se diz. Foi seu modo de dizer “conheço meu lugar”. Um de seus ex-patrões descreve-o como “pessoa fechada, com muitos demônios na alma. Não consegue ver-se no mesmo nível que o resto da humanidade. Tem de estar acima ou, sendo necessário, abaixo: é ou o senhor ou o escravo.”

As partes mais interessantes de Almost Zero acontecem quando o autor deixa a sátira social e apresenta o mundo interior de seu protagonista. Egor é descrito como “um Hamlet vulgar” capaz de ver sob a superficialidade do próprio tempo, mas incapaz de qualquer sentimento genuíno por qualquer um ou qualquer causa: “Seu self estava trancado numa casca de noz (...) por fora só suas sombras, bonecos. Via-se como quase autista, fingindo contato com o mundo externo, falando aos demais com voz falsa para pescar o que quisesse da fauna de Moscou: livros, sexo, dinheiro, comida, poder e outras coisas úteis”. O romance refere-se repeticamente a Hamlet – embora Prospero fosse talvez mais adequado –, com os demais personagens principais comparados aos Atores, “preparados para representar atos pastoris, tragédias ou qualquer coisa entre uns e outras”. O romancista Eduard Limonov descreve Surkov como alguém que “converteu a Rússia num teatro pós-moderno, no qual ele faz experimentos com modelos políticos velhos e novos”. Há aí alguma verdade. Na Rússia contemporânea, diferente da velha URSS ou da atual Coreia do Norte, o cenário muda constantemente: pela manhã, o país é uma ditadura; à hora do almoço, é democrático; no jantar, uma oligarquia, e todo o tempo, nos bastidores, empresas de petróleo são expropriadas, jornalistas assassinados, bilhões mandados para longe. Surkov está no centro do show, num momento patrocinando skinheads nacionalistas, no momento seguinte apoiando grupos de direitos humanos. É uma estratégia de poder baseada em manter eternamente confusa qualquer oposição, uma eterna troca de máscaras, sem fim, porque indefinível.

Essa fusão de despotismo e pós-modernismo, na qual nenhuma verdade é afirmável, reflete-se na loucura que cresce entre a elite russa, por programação neurolinguística e hipnose Eriksoniana: modalidades de manipulação subliminal que se baseiam, em grande parte, em confundir o oponente, desenvolvidas nos anos 1960s nos EUA. Há em Moscou uma infinidade de centros de programação neurolinguística e de hipnose, freqüentados por todos os tipos de aspirantes ao poder, que pagam milhares de dólares para aprender o segredo de converter-se no próximo grão-mestre manipulador.

Autores franceses pós-modernos recentemente traduzidos dão peso filosófico ao modelo Surkoviano de poder. François Lyotard, teórico francês do pós-modernismo, só começou a ser traduzido na Rússia no final dos anos 1990s, exatamente quando Surkov passou a trabalhar para o governo. O autor de Almost Zero adora invocar conceitos de Lyotard, como a quebra das grandes narrativas culturais e a fragmentação da verdade – ideias que soam novíssimas na Rússia. Um blogueiro observou que “o número de referências a Derrida no discurso político já cresceu muito além do razoável. Em recente conferência, o deputado Ivanov, da Duma, citou Derrida três vezes e Lacan, duas”. Num eco do destino do socialismo no início do século 20, a Rússia adotou um modismo intelectual ocidental supostamente libertário e converteu-o em instrumento de opressão.

No tempo dos sovietes, funcionários do estado pelo menos fingiam nominalmente que acreditavam no comunismo. Hoje, o presidente dos principais canais de televisão na Rússia, Vladimir Kulistikov, que trabalhou para a Radio Free Europa, anuncia, com orgulho, que “posso trabalhar com qualquer poder com o qual me mandem trabalhar”. Desde que você tenha mostrado lealdade nos momentos que contam, você é livre para fazer o que bem entenda do seu tempo de folga. Um super proprietário de galerias de Moscou assessora o Kremlin em assuntos de propaganda, ao mesmo tempo em que em suas galerias, exibe arte anti-Kremlin; o diretor de cinema mais em voga faz filme blockbuster satirizando o regime de Putin, ao mesmo tempo em que freqüenta as festas de Putin; e Surkov publica romance sobre a corrupção do sistema e escreve letras de rocks denunciando o regime de Putin – letras que, noutros tempos, o poriam na cadeia.

Na Rússia Soviética, você tinha de renegar qualquer noção de liberdade artística, se quisesse uma fatia do bolo. Na Rússia de hoje, se você for esperto e tiver talento, pode ter as duas coisas. Gera-se assim um tipo inimitável de fusão, da propriedade feudal mais primitiva, com uma ironia arqui-pós-moderna. Cartaz de propaganda que se via por todo o centro de Moscou no início de 2011 captura com perfeição esse clima. Com design de cartaz nazista, mostrava jovens louros, de ar germânico, contemplando uma gloriosa paisagem de montanhas alpinas. Abaixo, lia-se “A vida está cada vez melhor”. Seria erro supor que houvesse alguma ironia humorística no cartaz, mas tampouco é coisa séria. É, pode-se dizer, as duas coisas simultaneamente. Diz que essa é a sociedade em que vivemos (uma ditadura), mas estamos só brincando de ditadura (até fazemos piada da ditadura), mas brincando a sério (estamos ganhando muito dinheiro nessa brincadeira de ditadura e a ditadura não permitirá nenhum tipo de subversão das regras). Há alguns meses, houve uma enorme ‘festa-Putin’ num dos mais glamurosos clubes de Moscou. Strippers dançavam penduradas em mastros, cantando “Quero você, primeiro-ministro”. É a mesma lógica. Todos somos genuínos lambe-botas do chefão, mas, como somos pessoas liberadas, gente do século 21, que apreciamos os filmes dos irmãos Coen, lambemos as botas com um sorriso de ironia, ao mesmo tempo em que reconhecemos que, se algum dia errarmos o passo, logo estaremos mortos.

Esse é o mundo que Surkov criou, mundo de máscaras e poses, colorido, mas vazio, com nada de substrato além do apreço ao poder pelo poder e pela acumulação de vastas riquezas. O país vive conforme o roteiro escrito pelo quase-diretor de teatro. A vitória de Surkov parece total. Mas, de fato, não é. Almost Zero não é o único campeão de vendas escrito por membro da elite política e econômica da Rússia.

Em janeiro, Khodorkovsky, velho amigo de Surkov, o magnata do petróleo que continua preso, convertido agora em destacado dissidente político, publicou uma seleção de ensaios e entrevistas. Surkov e Khodorkovsky têm complexa história pessoal comum. Khodorkovsky, pelo que se diz, jamais confiou plenamente em Surkov. Por isso, quando seu jovem diretor de Relações Públicas pediu-lhe sociedade com direito a voto na empresa de petróleo e no banco, Khodorkovsky recusou. Brigaram. E muitos dizem que essa inimizade foi fator decisivo na condenação e prisão de Khodorkovsky.

Hoje os dois livros são como a representação da fenda intelectual que divide a Rússia. Os ensaios de Khodorkovsky tratam, principalmente, do que o autor pensa sobre o futuro político da Rússia. Na cadeia, Khodorkovsky converteu-se à social-democracia e denuncia o capitalismo de cassino que lhe permitiu acumular fortuna. Não são ideias originais. O que chama a atenção no livro de Khodorkovsky é o tom – sereno, digno, comedido. Khodorkovsky nem ataca seus carcereiros, nem se ajoelha, embora o que se espera que faça seja, precisamente, ajoelhar-se.

No que tenha a ver com o Kremlin, o cenário ideal, ao qual se renderam quase todos os demais oligarcas, seria que Khodorkovsky baixasse a cabeça, suplicasse perdão, assinasse uma confissão falsa: a estratégia da velha KGB. Ele recusa-se a fazer isso – o que o converteu em figura de destaque dos liberais. Ninguém supõe que seja puro de coração, nem ele nem qualquer dos outros bilionários dos anos 1990s, mas sua atitude hoje, no quadro do conformismo Surkoviano, impressiona. Julgamento recente condenou-o a mais seis anos de cadeia, acusado por ter, de certo modo, roubado sua própria empresa de petróleo. Como se não bastasse, o juiz anunciou, na fala final, que dois ex-ministros, que haviam deposto a favor de Khodorkovsky, depuseram, de fato, contra ele, depois de reanalisadas as provas. O que era branco virou preto, o preto, branco. O ponto central é o próprio absurdo: o Kremlin declarou que controla completamente toda a realidade e que o que diga, por ridículo que seja, é a verdade.

Desde o julgamento de Khodorkovsky, têm havido alguns surtos de protesto, de personagens antes leais. Primeiro, uma glamurosa ballerina, não conhecida pela coragem política, desligou-se do partido que Surkov criou, quando sua assinatura apareceu em documento público de denúncias contra Khodorkovsky. Depois, o assessor de imprensa do tribunal no qual Khodorkovsky foi condenado, admitiu, em lágrimas, que o juiz fora obrigado a ler, como sua fala final, documento preparado pelo Kremlin. Mais recentemente, Mikhail Prokhorov, o mais famoso dos oligarcas que ainda permanece fora na cadeia, denunciou Surkov como “mestre manipulador de fantoches”; imediatamente depois da denúncia, Prokhorov perdeu o posto de presidente da Comissão Presidencial para a Modernização.

A foto de Khodorkovsky olhando por trás das barras de sua cela, que se vê na capa de seus Collected Essays mudou de significado. Quando foi preso, em 2003, essa imagem anunciava a dominação e o poder de Putin, o homem que prendera e domesticara, do dia para a noite, os mais poderosos oligarcas. “Você não passa de fotografia que saiu da capa da revista Forbes, para a cadeia” – dizia aquela imagem. O trabalho de Surkov foi assegurar que aquela foto aparecesse no maior número possível de páginas de jornal e telas de televisão. Oito anos depois, Khodorkovsky continua preso, mas a imagem diz algo mais: “Vocês me veem atrás das grades, mas toda a Rússia é uma prisão”.

Caso claro de dizer que branco é preto, a imprensa controlada por Surkov refere-se aos liberais que apóiam Khodorkovsky como “demo-esquizos” (ru. Demoshiza, contração de “democratas esquizofrênicos”), quando é a ideologia Surkoviana que é, em sentido vulgar, esquizofrênica: quem exige alguma coerência hoje são os apoiadores de Khodorkovsky. O rótulo “demo-esquizo” serve também ao útil propósito de misturar “democracia” e “doença mental”.

O adjetivo “democrático” tem infeliz destino na Rússia: é usado quase sempre como sinônimo depreciativo de “barato”, “de baixa qualidade”: McDonald tem preços “democráticos”; a entrada de alguns clubes noturnos sórdidos, também pode ser dita “democrática” – quer dizer: por ali, entra qualquer um. Alguns restaurantes também se orgulham de ser “democráticos”: os proprietários são filhos de ex-dissidentes soviéticos e, nesses restaurantes, artistas, cineastas, jornalistas e outros “demo-esquizos” podem fumar, beber, comer e curtir a noite toda.

Descobri-me eu também num desses restaurantes, tarde da noite, quando, finalmente, depois de um mês de telefonemas, pedidos, súplicas e chantagem, consegui arranjar um ingresso para assistir à versão teatral de Almost Zero, a peça de teatro mais exclusiva que essa Moscou tão profundamente teatral jamais viu. O preço oficial do ingresso mais barato era 500 dólares. No mercado negro, os ingressos chegam rapidamente aos quatro dígitos. Para mim, custou duas garrafas de champanhe e a garantia de que uma das atrizes principais poderia hospedar-se sem pagar na casa de parentes meus em Londres. Mas nem assim consegui assento regular. Quem me recebeu no teatro só me deixou entrar depois que as luzes apagaram. Deram-me uma almofada e mandaram-me sentar no chão à frente da primeira fila. Minha cabeça bateu, a noite inteira, contra a coxa perfumada de uma modelo impossivelmente perfeita, ao lado, o marido, com cara de serial killer e ar de não estar gostando do arranjo. Havia muitos como esses dois, na platéia: os espertos, os do poder, os que mandam no país, e suas estonteantes mulheres satélites. Não são gente que se veja com frequência pelos teatros, mas estavam lá porque era o que tinham de fazer: se encontrassem Surkov, poderiam dizer o quanto adoraram essa peça fascinante que ele não escreveu. A outra metade da plateia estava lotada de gente da facção artística da cidade: empresários, produtores, diretores, atores. Estavam lá por razão semelhante: Surkov é famoso pelo auxílio financeiro que dá a teatros e festivais. Não poderiam não ter assistido à peça.

“Jamais assistirei àquilo”, disse uma conhecida jornalista, no tal restaurante “democrático”. “Nem chego perto, de coisas que tenham a ver com Surkov. E Serebrennikov, aquele merda? Quem imaginaria que cairia tão baixo? Mamando assim, desavergonhadamente, no Kremlin!” Serebrennikov é o diretor da peça. É famoso por dirigir peças escandalosas e subversivas, e por nunca tirar os óculos escuros. Para muitos, é um gênio; a colaboração dos Serebrennikov e Surkov é o equivalente de Brecht montar peça escrita por Goebbels. Em Moscou, há quem jamais perdoará tal parceria.

Mas Serebrennikov encontrou jeito aradiloso de atravessar esse terreno perigoso. Sua montagem de Almost Zero transformou o romance. Seu Egor é herói faustiano, que vendeu a alma ao diabo, mas agora a quer de volta. Sua vida rasa, vazia, com festas, sexo fácil e humilhações casuais, é o inferno. Esse Egor é emocional e destroçado pela culpa, exatamente o contrário do herói gelado do romance. Em cenas acrescentadas, não existentes no romance, os atores de Serebrennikov falam diretamente ao público, acusando os presentes de viverem despreocupadamente em mundo de nepotismo, corrupção e violência. Os boêmios presentes riram, desconfortáveis. Os maridos durões das esposas satélites olhavam fixamente à frente sem piscar, como se as provocações nada tivessem a ver com eles. Vários não voltaram depois do intervalo. Assim, o grande diretor conseguiu o que queria, conquista característica da Era Surkov: agradou aos políticos chefes – Surkov patrocina um festival de artes que Serebrennikov dirige –, ao mesmo tempo em que preservou sua integridade liberal. Um pé na canoa de Surkov, o outro na canoa de Khodorkovsky. Grande desempenho.

“A vida na Rússia” – disse-me aquela jornalista no bar democrático – “ficou melhor, mas deixa um pós-gosto amargo”. Bebeu um gole. “Você percebeu que Surkov parece nunca envelhecer? Não tem uma ruga.” Bebemos e conversamos. Sobre a obsessão de Surkov com Hamlet. Minha acompanhante lembrou uma interpretação da peça sugerida por uma professora de literatura que se converteu em produtora de bandas de rock (trajetória “muito Moscou”).

“Quem é a figura central em Hamlet?” – ela perguntou. “Quem é o demiurgo que manipula toda a situação?” Respondi que não sabia.

“Fortinbras” – disse ela –, “o príncipe coroado da Noruega que, no final, toma a Dinamarca. Horácio e a trupe de atores que visitam o castelo de Hamlet estão a serviço de Fortinbras: sua missão é enlouquecer Hamlet, empurrando-o para o abismo, e fomentando o conflito em Elsinore. Releia a peça. O pai de Hamlet matou o pai de Fortinbras; Fortinbras tinha todos os motivos para buscar vingança. Sabe-se que o pai de Hamlet não foi bom rei, Horácio diz exatamente isso, na peça; ele e os atores estavam longe do reino há muitos anos: partiram para afastar-se do reinado do pai de Hamlet. Teriam tido contato com Fortinbras na Noruega? No final da peça, Horácio fala com Fortinbras, como espião que apresente o relatório de missão cumprida. Conhecendo a natureza instável do jovem Hamlet, eles contratam a trupe de atores para arrastá-lo a uma série de atos que derrubarão a casa reinante em Elsinore. Por isso, todos veem o espectro, no início da peça. Depois, quando só Hamlet o vê, já está alucinando. Os moscovitas veem essa subtrama imediatamente. Vivemos aqui muito mais próximos do mundo de Shakespeare.”

No mapa da civilização, Moscou – com sua política de dissimulação de capa e espada (capa de griffe e espada com punho de diamantes), seus espiões envenenadores, barões-burocratas e oligarcas exilados que planejam revoluções de longe daqui, seus Cecil-Surkovs cochichantes nas orelhas do poder, seus Raleigh-Khodorkovskys prisioneiros na Torre – é bem perto de Elsinore.

Em Wall Street

Keith Gessen



Tradução / Quando os manifestantes começaram a ocupar Wall Street, eu estava ocupado (mais ou menos) e, para ser sincero, relutante. Detesto essas coisas. Detesto ficar parado em pé no mesmo lugar, cercado por policiais, gritando slogans tolos. “Sem justiça, não há paz”. Será mesmo? “De quem é a rua? A rua é nossa”. Ora, é e não é. A futilidade também é meio frustrante. Participei das manifestações contra o bombardeio do Kosovo; o bombardeio de Belgrado; a invasão do Afeganistão; a invasão do Iraque. Gostaria que a lista fosse maior, mas, parece, só me decido a sair de casa contra os F-15s. Não, não é verdade. Também saí e protestei à frente da Convenção nacional do Partido Democrata em 2000. Para mim, Gore era centrista demais. Aquela, pelo menos, nós ganhamos. 

Na Rússia, onde também protestei contra várias coisas, sempre me senti diferente – há algo em estar ali, quase sempre no frio, mostrando a cara à frente da Polícia russa; mostrando que você não tem medo deles. Sempre parecia que valia a pena. Não sei se valia ou não. Sempre havia muito mais policiais que manifestantes. Sempre éramos menos do que gostaríamos de ser. No inverno, quando os nacionalistas das torcidas de futebol ocuparam Manezh Square, sob os muros do Kremlin, foi diferente. Eram muitos, muitos mais que a Polícia. Só não derrotaram a Polícia, porque não quiseram. Se, naquela noite, as torcidas de futebol tivessem decidido ocupar o Kremlin, provavelmente teriam ocupado. (Em vez disso, atacaram não eslavos que passavam por ali.) Aquela multidão fez todos os demais protestos de que participei em Moscou nos últimos quatro anos parecerem tímidos, frágeis, patéticos.

Ontem, na Praça Foley[1], havia, no mínimo, dez mil pessoas. Fiquei sem ar, boquiaberto. As fachadas neoclássicas dos cinco prédios da Justiça em volta da praça. Normalmente, dão à praça um ar de desolação, como se você tivesse sido jogado em Washington DC. Mas com toda aquela gente... parecia a Europa. Muitos sindicalistas de meia idade, vindos de todos os cantos da cidade; muita gente também, de ar interessado, sério e também (minha opinião) gente frívola, mais ou menos da minha idade, dessa gente que se vê andando pela cidade. Camaradas, é aqui que a coisa acontece.

Fazia tempo que não lembrava, mas voltou-me à cabeça um protesto do qual não participamos. Lembro só das imagens de televisão: um grupo de jovens Republicanos, homens e mulheres, ternos e terninhos de trabalho, cantando à frente de uma cantina escolar (acho que era) onde, na Flórida, acontecia a recontagem dos votos [reeleição de Bush], exigindo que a recontagem fosse suspensa.

O Wall Street Journal noticiou o evento, alguns dias depois, como “levante burguês” espontâneo. De fato, não passavam de assessores parlamentares do Partido Republicano, mandados de avião para a Flórida, para protestar. Mas e nós? Onde estávamos? Em casa, sentados, enquanto os burgueses lá estavam, mobilizados, dando seu recado: se os votos fossem contados e o resultado da eleição fosse revertido, seria a guera civil.

Ontem, a multidão demorou duas horas para andar seis quarteirões até o Zuccotti Park, onde algo entre 50 e 500 pessoas – estudantes, anarquistas, anarquistas que estudam – vivem acampados há três semanas. A primeira impressão do parque é que a população de outro parque – Washington Square Park – se transferira para lá, com toda a mudança. Mas era a Praça Washington Square em armas. Do lado leste do parque, um círculo de pessoas batia tambor. Na Praça Washington Square, seria a trilha sonora de sua juventude perdida. Ali, eram tambores de guerra. Boa parte do Zuccotti Park foi ocupado por sacos de dormir, muitos deles cobertos com lona azul, para protegê-los da chuva. (É ilegal montar barracas sem autorização em New York City, para manter os sem tetos afastados do centro da cidade, e, agora, para impedir que os manifestantes montem o seu cartaz ideal.) No centro do parque está montado uma espécie de bufê, com pessoas andando em fila e pilhas de pizzas doadas e macarrão, servido nos pratos. Ninguém parecia interessado nas maçãs disponíveis numa grande caixa. Ali perto, o centro de imprensa e mídia – cerca de doze pessoas reunidas em roda, cada um com seu laptop, e um pequeno gerador com vários cabos interconectados e wifi.

O parque ocupado fica logo depois de uma esquina de Wall Street; é praticamente do outro lado da rua, à frente do gigantesco canteiro de obras do Marco Zero. A nova sede do banco Goldman Sachs fica logo ao lado do poço das fundações do Marco Zero. Uma loja de Brooks Brothers de um lado do parque, e outra, de Men’s Wearhouse, do outro lado. Os banqueiros tiveram de atravessar o parque. Um acampado, jovem petroleiro do Alasca, contou-me que praticamente não dormira na noite anterior, primeiro porque os ocupantes faziam muito barulho e, depois, quando resolveram dormir, começaram os banqueiros, a passar por cima de seu saco de dormir, desde as 5h30 da madrugada. Se fossem pela própria Wall Street, logo veriam que todas as medidas de segurança implantadas depois do 11/9 foram reforçadas por vários bloqueios da Polícia, para impedir o crescimento natural da ocupação, que levaria um oceano de manifestantes e seus sacos de dormir até a porta do prédio da Bolsa de Valores de New York.

Não sei se os banqueiros têm-se sentido mais desconfortáveis em New York nas últimas semanas, que nos últimos anos, mas é possível. Uma coisa é ser espinafrado pelo culto e barbudo Paul Krugman ou pelo mau-humorado Barney Frank; outra coisa, bem diferente, é ser mandado calar o bico (“O dinheiro fala... demais!”, lê-se num cartaz), por uma coleção sortida e sempre crescente de jovens saudáveis e bonitos. Já é bom começo, para os banqueiros pararem de desgraçar algumas das cabeças mais brilhantes dessa geração. Que Goldman Sachs construa a nova sede, mas não tenha coragem de pôr as palavras “Goldman” ou “Sachs” na fachada do n. 200 de West Street, isso sim, também já é alguma coisa.

Manhattan foi construída do sul para o norte, e o distrito financeiro, no extremo sul da ilha, é a parte mais antiga da cidade. A igreja Trinity, ao lado do Zuccotti Park, é a mais antiga da cidade, como o cemitério que há ali ao lado. (Onde está enterrado Alexander Hamilton, fundador do Federal Reserve.) Há algo de grandioso, embora assustador, no distrito financeiro. As fotos famosas de Paul Strand, de 1915[2], de banqueiros andando para o trabalho de manhã cedo, transformados em anões, pela arquitetura de proporções tão gigantescas que parece ter sido construída para outra espécie, muito maior que nós, ainda captura bem o clima, sobretudo depois que o sino do encerramento das operações na Bolsa já pôs para fora os trabalhadores e meteu-os no trem para New Jersey. Ninguém vem passear aqui; aqui, nada acontece. Até que aconteceu.

Anteontem, dia da grande marcha que partiu da Praça Foley, partimos antes de um pequeno grupo de ativistas que andou para o centro e tentou atravessar uma barreira da polícia para chegar à própria Wall Street. Vi pelo YouTube, na mesma noite: um policial girando o cassetete como se fosse taco de baseball, fazendo-o descer sobre carne humana. No dia seguinte, começaram as ocupações dos centros cívicos por todo o país na Philadelphia, Austin, Washington, Los Angeles – até em Boston.

Voltei ao Zuccotti Park aquela noite, para a Assembleia Geral diária. Esperava discussão tediosa sobre a ideologia e as demandas da ocupação – ressuscitar a lei Glass-Steagall Act? – mas logo vi, deliciado, que a pauta incluía, quase exclusivamente, questões de logística. Cerca de 80 pessoas ouviam e repetiam (é o “microfone do povo”) os relatórios de vários ‘comitês’ altamente práticos. 

O rapaz da internet relatou que já estava quase pronto um novo website e também propôs que se votasse se a ala oeste do parque (a roda dos tambores) deveria receber uma conexão de internet; o comitê Legal relatou que muitos advogados haviam informado que estavam vindo; que, por isso, o comitê Legal seria reorganizado em vários subcomitês. Relações Públicas pediu que, fosse quem fosse o sujeito que andava fazendo telefonemas de críticas à Associated Press, que parasse imediatamente. “Nosso objetivo não é atacar a imprensa. Nosso objetivo é manipular a imprensa, para que divulgue nossa mensagem para todo o planeta”. (Disse também que quem tivesse planos de ações contra a imprensa fizesse contato com o comitê, para discussão e assessoramento). O Comitê de Arte e Cultura anunciou que “a poesia da Revolução tem de ser inesquecível”, informou sobre show artístico que estava sendo organizado e prometeu uma grande surpresa para depois da Assembleia Geral – como depois se viu, o rapper Talib Kweli cantou para todos. O comitê de Relações Comunitárias apresentou relatório sóbrio, mas otimista: haviam participado de reuniões da comunidade local e ouvido as preocupações dos moradores da área – disseram que, no 11/9, a vida daquela região foi terrivelmente abalada. E que, agora, outra vez, a vida deles está sendo terrivelmente abalada. Os altos prédios que cercam o parque Zuccotti criam um corredor de eco, e alguns dos bloqueios implantados pela Polícia para impedir a passagem dos manifestantes até a Wall Street também impedem que os moradores usem as calçadas diariamente. Por enquanto, relataram um rapaz e uma moça do comitê de Relações Comunitárias, os moradores decidiram não apresentar queixa contra os manifestantes – mas o comitê de Relações Comunitárias destacou a importância de os ocupantes continuarem a ser muito cordiais com os moradores da área. Sem o apoio da população residente local, a ocupação pisará sobre gelo muito mais fino. É claro que os ocupantes só podem exigir ficar onde estão: no nosso escritório em Wall Street. Que outras ocupações façam outras demandas. O objetivo da primeira ocupação é permanecer onde estamos.

Gostei muito do relatório do comitê Sanitário, cujas linhas, atentamente repetidas duas vezes pelos manifestantes, para que todos ouvissem – o “microfone do povo” – soou como a mais perfeita agenda de limpeza e organização popular que jamais ouvi. “Amanhã”, disse a moça (“amanhã” repetiam os das primeiras filas; “amanhã”, repetiam novamente os das filas de trás, no microfone do povo), “vamos limpar toda a área. Quem estiver dormindo aqui, deve limpar e arrumar suas coisas até o meio dia (“meio dia”, “meio dia”, pelo microfone do povo). Se quando passarmos para recolher, os papelões e a sujeira de cada um já estiverem reunidos, será ótimo”.

18 de outubro de 2011

O capitalismo aprendeu a criar organismos hospedeiros

Em face da crise financeira, qualquer esperança de que o parasita vai morrer quando ele ficar sem comida é em vão - o capitalismo é muito inventivo

Zygmunt Bauman

The Guardian

A figura da chanceler alemã Angela Merkel com o slogan "acumulação de dinheiro" em um protesto contra o sistema bancário e financeiro, em Colônia. Foto: Wolfgang Rattay/Reuters

Tradução / As notícias sobre a morte do capitalismo são, parafraseando Mark Twain, um pouco exageradas. A capacidade surpreendente de ressurreição e regeneração é inerente ao capitalismo. Uma capacidade parecida com a dos parasitas – organismos que se alimentam de outros organismos, estando agregados a outras espécies. Depois de exaurir completa ou quase completamente um organismo hospedeiro, o parasita normalmente procura outro, que o nutra por mais algum tempo.

Há cem anos, Rosa Luxemburgo compreendeu o segredo da misteriosa habilidade do sistema em ressurgir das cinzas repetidamente, assim como uma fênix; uma habilidade que deixa atrás de si traços de devastação – a história do capitalismo é marcada pelos túmulos de organismos que tiveram suas vidas sugadas até a exaustão. Luxemburgo, no entanto, restringiu o conjunto dos organismos que aguardavam em fila, esperando a conhecida visita do parasita, às “economias pré-capitalistas”, cujo número era limitado e em constante regressão, sob o impacto da expansão imperialista.

A cada visita sucessiva, outra terra “intocada” era convertida em campo de pastagem para a exploração capitalista. Portanto, mais cedo ou mais tarde, não serviriam mais às necessidades da “reprodução ampliada” do sistema, já que não ofereceriam os lucros que tal expansão requeria. Pensando por essa trilha (um viés completamente compreensível, dado que a expansão há cem anos era principalmente territorial, mais extensiva que intensiva, mais lateral que vertical), Luxemburgo só poderia antecipar os limites naturais da duração concebível do sistema capitalista. Uma vez que todas as terras “intocadas” do globo fossem conquistadas e integradas à máquina de reciclagem capitalista, a ausência de novas terras de exploração iria forçar, ao fim, o colapso do sistema. O parasita morre, quando faltam organismos vivos de onde possa retirar alimento.

Hoje o capitalismo já atingiu uma dimensão global, ou está muito próximo disso – um cenário que Luxemburgo via em horizonte distante. Sua previsão estará a ponto de se concretizar? Penso que não. Nos últimos 50 anos, o capitalismo aprendeu a inimaginável e desconhecida arte de criar novas “terras intocadas”, em vez de se limitar às já existentes. Essa nova arte tornou-se possível porque o sistema viveu uma transição. A “sociedade de produtores” converteu-se numa “sociedade de consumidores”. E a fonte principal da “agregação de valor” já não está na relação capital-trabalho, mas na que há entre mercadoria e cliente. Lucro e acumulação baseiam-se principalmente na progressiva mercantilização das funções da vida; na mediação, pelo mercado, da satisfação de necessidades sucessivas; na substituição do desejo pela necessidade, como engrenagem principal da economia voltada para o lucro.

A crise atual deriva da exaustão de uma dessas “terras intocadas” criadas artificialmente. Milhões que pessoas foram obrigadas a abandonar a “cultura dos cartões de crédito” para se dedicar à “cultura das planilhas de gastos”. Por algum tempo, elas foram estimuladas a gastar o dinheiro que ainda não haviam ganhado, vivendo com crédito, falando de empréstimos e pagando juros. A exploração dessa “terra intocada” particular está, em linhas gerais, acabada. O sistema entregou para os políticos a tarefa de limpar os detritos deixados pela farra dos banqueiros. É algo que entrou na lista dos “problemas políticos”: passou de “problema econômico” para (citando a chanceler alemã, Angela Merkel) algo dependente de “vontade política”. Mas alguém poderia duvidar que estão em construção novas “terras intocadas” – as quais também terão vida bastante limitada, dada a natureza parasítica do capitalismo?

O sistema funciona por um processo contínuo de destruição criativa. O que se cria é capitalismo numa “fórmula nova e melhorada”; o que se destrói é a capacidade de auto-sustentação e vida digna nos inúmeros “organismos hospedeiros” para os quais todos somos atraídos e ou seduzidos, de uma maneira ou de outra. Suspeito que um dos recursos cruciais do capitalismo deriva do fato de que a imaginação dos economistas – incluindo os que o criticam – está muito atrasada em relação à sua invenção, a arbitrariedade do seu procedimento e crueldade com que opera.

16 de outubro de 2011

Duas, Três, muitas Wall Streets

Amy Davidson

The New Yorker

Um banner na frente da Catedral de São Paulo na cidade de Londres no dia 16 de outubro, parte do dia global de protestos contra o corporativismo de Wall Street.

Tradução / Onde fica Wall Street? Céticos em relação ao “Occupy Wall Street” – e há muitos deles, apesar de serem muito menos hoje do que eram há uma semana – gostam de apontar que os manifestantes não estão de fato ocupando uma rua chamada Wall, mas um parque chamado Zuccotti; e que “Wall Street” é um termo arcaico, de qualquer forma, já que muitas firmas financeiras não residem lá. Os manifestantes, em outras palavras, foram ingênuos e mal orientados: eles nem sabem onde estão de pé, quanto mais contra quê estão levantando-se. Mas na noite de sábado, conforme os protestos, que já haviam sido replicados em cidades de Boston a Seattle, moveram-se para outras partes da cidade, como o Washington Square Park e a Times Square, e ao redor do mundo, puderam vislumbrar aonde eles podem estar indo. Onde não fica Wall Street, afinal? Está nos termos de financiamento de um imóvel, e em empréstimos estudantis e em legislaturas. E onde não há raiva?

A Times Square, onde quarenta e cinco pessoas foram presas no sábado – com mais quarenta e sete no Washington Square Park e em outros lugares – seria uma boa escolha como nova base para o Occupy Wall Street, não porque é um espaço comercial e corporativo (Condè Bast, pai do The New Yorker, é um dos inquilinos) mas porque é um espaço cívico. É bem maior do que o Zuccotti Park. Nova Iorquinos sabem como se reunir lá (e turistas também). É cheio de câmeras e cheio de representantes, a qualquer dado instante, de dúzias de países. É onde se pode ter acesso a notícias, e compartilha-las.

Os manifestantes do O.W.S. já foram testemunhas eficazes. O que é impactante em relação a este fim de semana é como bem sintonizados foram os ecos, e a maneira como as vozes se uniram. Não era apenas um monte de gente gritando a respeito de bancos, com os italianos descontrolando-se mais do que a maioria (embora eles tenham se descontrolado, queimando carros em Roma). Pessoas em Londres, Hong Kong, Madrid, Tóquio, Coreia do Sul, Estocolmo, e Sydney carregavam cartazes parecidos e alegavam fazer parte dos “99%”. Não se deve dispensar este termo como algo ingênuo ou sem significado sem observar o que vem acontecendo, nos últimos anos, à desigualdade de renda: como Nicholas Kristof aponta no Times, “O 1% do topo dos americanos possui mais riquezas do que os 90% debaixo”. Der Spiegel, reportando sobre os protestos em Berlin e Frankfurt, referiu-se ao “Occupy-Märsche”. Wall Street há muito tem sido uma marca multinacional; agora o Occupy também é.

Outro par de reclamações em relação ao movimento é que ele é baseado apenas em retórica cativante, e que é desarticulado quanto ao que quer. E ainda assim, de alguma maneira, conforme as marchas espalham-se, as ideias estão ficando mais coerentes, não menos. Há uma conversação global acontecendo no momento, e seria tolice não escutá-la. Para um movimento anti-corporativista, o O.W.S. tem um bom senso de concessão – mais importante, ele tem algo a dizer sobre emancipação.

6 de outubro de 2011

Super-abutres: Os bilionários que escolheriam o nosso Presidente

Greg Palast

TruthOut

Tradução / O magnata dos fundos hedge Paul Singer gosta de comer carcaças em decomposição no café da manhã. O que ele mastiga e engole é de embrulhar o estômago, mas os convivas dele também provocam enjoo: os bilionários Ken Langone e os irmãos Koch, Charles e David.

Singer convocou reunião do clube dos meninos bilionários com o propósito de escolher o próximo presidente para nós. O estilo antigo de escolher presidentes – democracia, contagem de votos e tudo isso – nunca foi o favorito dessa turma. Posso falar isso com base nas minhas investigações sobre cada um destes cavalheiros para o The Guardian. Quando a Estátua da Liberdade tem pesadelos, ela sonha que esses caras vão se juntar para tomar a América através de um golpe de estado via dinheiro.

Benvindos ao pesadelo. Singer, Langone e os Koch decidiram, no mês passado, eleger Chris Christie para nós. A pseudo-campanha do governador de Nova Jersey naufragou antes de decolar. Mas isso não importa. Agora que a Suprema Corte efetivamente acabou com os limites de financiamento de campanhas e permitiu contribuições secretas através das corporações, essa nova combinação de ultra ricos não deve ser vista como apenas como uma ameaça aos Democratas e sim à Democracia.

Deixe-me apresentar uma lista dos arquivos que cheiram a enxofre desse homens que querem dar as cartas.

Bilionário 1: Ken Langone

Langone gosta de ser identificado como o fundador do Home Depot, um sujeito simples, de avental azul levando uma sacola de parafusos.

Mas ele também foi o homem, com seus colegas da extrema direita, por trás da Database Technologies (DBT). Foi na minha primeira investigação sobre o Langone, em 2000, que descobri que a DBT tinha criado uma lista de vários milhares de “criminosos” – quase todos negros, todos inocentes, todos eliminados das listas de eleitores da Flórida pela cliente da DBT, Katherine Harris. E a empresa do Langone sabia exatamente o que estava acontecendo.

O que qualifica o Langone para escolher nosso presidente? Nas palavres dele mesmo: “Eu sou doido, eu sou rico”.

Bilionários 2 e 3: David e Charles Koch

Você acha que já leu tudo sobre os irmãos bilionários. Bem, aqui vai mais:

Em 1996, Richard Elroy, agente do FBI, disse à minha equipe que petróleo havia sido roubado da reserva indígena Osage, em Oklahoma. Ele e outro homem filmaram o furto, segundo testemunhas pessoalmente encomendado por Charles Koch. Uns barris aqui, uns barris ali.

E foram somando: cerca de um bilhão e meio de barris de petróleo roubado, diz um especialista, um terço da fortuna dos Koch naquela época. David e Charles dividiram o produto do furto através da empresa privada deles, a Koch industries.

Bilionário 4: Paul Singer

Agora chegamos ao rei da carcaça, Paul Singer, conhecido como Singer, O Urubu. Não fui eu que o apelidei. O nome Urubu foi dado a ele pelo primeiro ministro britânico e pelo Banco Mundial. Recentemente, o ex-enviado das Nações Unidas Winston Tubman sugeriu que eu perguntasse ao Singer ou aos sócios deles, “Você sabe que está provocando a morte de bebês?”

O que esse cara faz, bota veneno no leite das crianças? Pior: ele retira o leite.

O modus operandi do Singer é encontrar pequenas dívidas de nações pobres esquecidas (Peru e Congo estavam no cardápio dele). Ele espera os contribuintes dos Estados Unidos e da Europa perdoarem a dívida da nação pobre, depois espera um pouco mais pelas ofertas de ajuda em alimentos, medicamentos e empréstimos para investimentos. Aí Singer ataca. Legalmente, toma todos os recursos e todo o dinheiro que estava indo para o país em desespero. As trocas comerciais param, os fundos ficam congelados e toda a economia efetivamente se torna refém.

Singer, então, exige das nações que estão oferecendo ajuda que paguem regates monstruosos para permitir que as trocas comerciais recomecem. No programa Newsnight da TV BBC nós descobrimos que Singer exigiu 400 milhões de dólares do Congo por conta de uma dívida que ele comprou por 10 milhões de dólares. Se ele não recebe seus 4.000% de lucro, ele pode efetivamente matar a nação de fome. E eu não digo isso figurativamente – digo matar de fome, sem comida. No Congo-Brazzaville, no ano passado, um quarto de todas as mortes de crianças com menos de cinco anos de idade foram provocadas por má nutrição.

Para a BBC, tentei fazer ao Urubu Singer a pergunta do diplomata sobre a matança de bebês, mas não pude ir além de George Gershwin. (Na torre de Nova York que abriga o poleiro do bilionário, um sósia de Gershwin, de fraque e cartola, toca canções em um piano de calda para a entrada triunfal de Singer).

E não são apenas pobres carcaças africanas. Durante as investigações para o meu livro “Vulture’s Picnic”, descobri que o primeiro grande ataque de urubu do Singer foi às vítimas americanas de amianto.

Pano de fundo: Os executivos de três empresas – a operadora de minas WR Grace, a construtora de chapas para revestimento de paredes USG e a empresa de materiais de construção Owens Corning – sabiam que a exposição ao amianto em suas operações estava matando os trabalhadores. Quando foram pegas e processadas, as empresas entraram com pedido de falência e concordaram em dar quase toda a receita bruta das operações às pessoas que estavam morrendo ou que ficaram doentes por causa do amianto.

Mas o Singer teve uma ideia melhor. Essas empresas, como você pode imaginar, valiam quase nada e o Singer comprou a Owens Corning por uns trocados.

Se ele pudesse reduzir o montante pago às vítimas, Singer poderia aumentar muito o valor da Corning. Então, começou a campanha de relações públicas, atacando os trabalhadores que estavam morrendo, dizendo que todos estavam fingindo.

Um dos atacantes era um cara chamado George W. Bush.

Em Janeiro de 2005, o presidente organizou um encontro televisionado para promover um “especialista” que declarou que mais de meio milhão de trabalhadores que processavam a indústria do Singer eram mentirosos. Se os trabalhadores não podiam respirar, ele disse ao presidente, não era culpa do amianto.

O “especialista” não era um médico mas, notavelmente, sua “pesquisa” foi em parte financiada por… Paul Singer. Como Bush também foi. Depois da morte de Ken Lay, da Enron, Singer e seu bando de urubus do fundo hedge Elliot International se tornaram os maiores contribuintes do Comitê Nacional Republicano. É difícil medir com precisão sua generosidade porque parte desta ajuda chega por portas laterais. Por exemplo, Singer colocou dinheiro na campanha difamatória do Swift Boat, contra o adversário de Bush, John Kerry. (Nota do Viomundo: o anúncio, na televisão, distorcia a atuação de Kerry na guerra do Vietnã).

O ataque legal, político e de relações públicos aos trabalhadores a beira da morte reduziu as compensações que seriam pagas pelas empresas de amianto, aumentando seu valor. Singer então revendeu a Corning com o belo lucro de um bilhão de dólares.

É legal. É brilhante. É doente. É Singer.

Um dos meus gols favoritos do Singer foi a trama bem sucedida para legalmente roubar o Tesouro do Peru. Um dos advogados americanos do país me disse, de boca aberta, como o Singer deixou o velhaco presidente do Peru, Alberto Fujimori, fugir do país para escapar de acusações de assassinato. Singer tomou o avião de Fujimori. E o urubu deu seu preço: um dos últimos atos de Fujimori como presidente antes de fugir foi fazer com que sua pobre nação pagasse 58 milhões de dólares ao Singer.

Por que os bilionários precisam comprar a Casa Branca

Um executivo da Koch Industries (ele não sabia que estava sendo gravado) disse que perguntou a Charles Koch, que já tinha um bilhão de dólares de herança, porque Koch estava usurpando alguns dólares, por semana, dos índios americanos. Koch disse a ele: “eu quero a minha justa parte, e é tudo isso”.

Tudo isso, claro, inclui a Casa Branca.

Colocar Bush na Casa Branca valeu ouro para esses cavalheiros – mais, na verdade. E agora, os Koch, Singer e Langone se juntaram para escolher um candidato que, rezam, possa tomar de volta o imóvel 1600 da Avenida Pensilvânia.

O me dê para Langone

A lista de “criminosos” da empresa DBT, do Langone, incluía apenas pessoas inocentes por isso, certamente, você não encontraria ali o nome do Langone. Em 2004, o Procurador Geral de Nova York, Eliot Spitzer, apresentou acusação formal contra o Langone de conspiração, acusando o bilionário de subverter as investigações de reguladores da bolsa de valores sobre negócios suspeitos do banco de investimentos do Langone.

Um detalhe técnico encerrou a ação civil de conspiração.

Mas agora, a reforma bancária e de ações do Obama, apesar de fraca, dá aos reguladores novos poderes para manter um olho independente sobre as travessuras no mercado de ações. Para Langone, escolher o presidente significa cerrar o olho regulador.

O me dê para os Koch

Elroy, o homem do FBI, disse aos nossos investigadores que o Departamento de Justiça iria permitir que o FBI algemasse Charles Koch por conta da acusação de roubo do petróleo dos índios Osage. Porém, diz Elroy furioso, os amigos bem financiados pelos Koch, na época senadores Bob Dole e Don Nickles, entraram em cena – e Koch saiu livre. Sem acusação.

Dennis DeConcini, senador do Arizona na época, quis saber por que acusações civis ou criminais nunca foram apresentadas contra os Koch. Essa não era uma pergunta muito sábia. O senador me disse que os Koch apeaçaram destruí-lo politicamente no comitê do Congresso que ele presidia se ele fosse adiante com as investigações a respeito do roubo do petróleo dos indígenas. Ele continuou, mas sua carreira política não.

Durante o governo Clinton, as indústrias dos Koch foram acusadas criminalmente por violarem a Lei da Água Limpa. Sob o presidente Bush, as acusações, mas não a água, foram lavadas.

Em outras palavras, o crime paga bem – se você escolher quem vai ser o xerife.

O dá-me Paul Singer

Paul Singer apostou pesado na indústria de amianto e depois foi arrumar o cassino, ajudando a instalar Bush na Casa Branca. Ou seja, ele tinha um presidente disposto a bater nos trabalhadores de amianto e apoiar a chamada “reforma ilícita” que solapou as alegações das vítimas. O que as vítimas perderam, Singer ganhou.

Mas existem problemas no horizonte para Singer. Em 2007, o governo Britânico proibiu Singer e todos os especuladores-urubus de dívidas do Terceiro Mundo de coletarem suas libras de carne no Reino Unido. Outras nações europeias estão seguindo o mesmo caminho.

Vários congressistas americanos estão brigando por uma proibição ao estilo britânico das atividades do Singer. (Até mesmo a Corporação Chevron está reclamando dos ataques dos urubus. Quando a Chevron chama banqueiros de inescrupulosos, eles devem ser realmente muito inescrupulosos). Sem uma caneta de veto sobre o Congresso, Singer pode perder centenas de milhões de dólares.

Singer está jogando na defesa, mas é melhor no ataque: para coletar contra a Argentina, seus lobistas conseguiram aprovar no congresso uma lei que estrangulava as trocas comerciais com a nação da América do Sul. Obama e a Secretária Hillary Clinton bloquearam esse ato louco contra nosso aliado. Como resultado Singer não é um gaúcho contente. Vai haver sangue. Obama terá que pagar.

O dá-me para todos eles

Existe uma coisa que todo bilionário quer: outro bilhão. E isso está ameaçado pelos planos do Obama de taxar os lucros hoje isentos.

Caras como Singer e Langone não pagam impostos como eu e você. Enquanto pagamos impostos sobre salários, os lucros de especulações tipo urubu e arbitragem são via de regra declaradas como “carried interest”, efetivamente não são taxados. É um benefício de um bilhão de dólares para os bilionários, e todos os candidatos republicanos juraram manter essa brecha na legislação aberta e garantir que eu e você paguemos os impostos para o Singer.

Infelizmente, para Singer, os Koch e Langone, os candidatos republicanos que estão beijando a bunda dos bilionários não parecem ser elegíveis.

Então, o Clube dos Meninos Bilionários instigou o Governador Christie, o bully de Jersey, a usar os músculos para entrar no Escritório Oval. Christi não decolou, o que não foi surpresa. Mas se eles vão escolher o candidato republicano ou recuar para a tática de difamar nos bastidores, uma frágil coisa chamada democracia tem poucas chances contra o poder de tsunami dos talões de cheques somados do quarteto.

1 de outubro de 2011

As crises do capitalismo democrático

As raízes da Grande Recessão de hoje geralmente estão localizadas nos excessos financeiros da década de 1990. Wolfgang Streeck traça um arco muito mais longo, de 1945 em diante, de tensões entre a lógica dos mercados e os desejos dos eleitores — culminando, ele argumenta, na tempestade internacional da dívida que agora ameaça submergir a responsabilidade democrática sob as ondas da tempestade de capital.

Wolfgang Streeck


NLR 71 • SEPT/OCT 2011

Tradução / O colapso do sistema financeiro norte-americano que ocorreu em 2008 converteu-se em uma crise econômica e política de dimensões globais.[1] Como esse evento mundialmente impactante pode ser conceitualizado? As teorias econômicas predominantes tendem a conceber a sociedade como uma entidade regida por uma tendência geral ao equilíbrio, em que as crises e a mudança não passam de desvios temporários do estado estável de um sistema normalmente bem integrado. Um sociólogo, no entanto, não é obrigado a compartilhar dessa visão. Em vez de interpretar nossa atual atribulação como um distúrbio isolado em uma condição essencialmente estável, vou considerar a "Grande Recessão"[2] e o (quase) colapso subsequente das finanças públicas como a manifestação de uma tensão elementar subjacente à configuração político-econômica das sociedades capitalistas avançadas - uma tensão que faz do desequilíbrio e da instabilidade regra, e não exceção, e que encontrou expressão numa sucessão histórica de distúrbios no interior da ordem socioeconômica. Mais especificamente, vou argumentar que a crise atual só pode ser plenamente compreendida à luz das transformações contínuas e inerentemente conflituosas da formação social que chamamos de "capitalismo democrático".

O capitalismo democrático só se estabeleceu completamente após a Segunda Guerra Mundial e à época apenas nas porções "ocidentais" do mundo, na América do Norte e na Europa Ocidental. Ali funcionou muito bem durante as duas décadas seguintes - tão bem, de fato, que esse período de crescimento econômico ininterrupto ainda domina nossas ideias e expectativas sobre o que o capitalismo moderno é ou poderia e deveria ser. Isso a despeito de, haja vista a turbulência que se seguiu, o quarto de século imediatamente posterior à guerra dever ser reconhecido como verdadeiramente excepcional. Na verdade, creio que não os trente glorieuses mas as várias crises que se seguiram representam a condição normal do capitalismo democrático - uma condição pautada por um conflito endêmico entre mercados capitalistas e políticas democráticas, que recrudesceu com o término do alto crescimento econômico dos anos 1970. Abaixo discutirei a natureza desse conflito, e em seguida abordarei a sucessão de transtornos político-econômicos que ele gerou, ambos os quais precederam e moldaram a atual crise global.

Mercados versus eleitores?

Suspeitas de que capitalismo e democracia possam não se combinar facilmente estão longe de ser novidade. Já no século XIX e em boa parte do século XX, a burguesia e a direita política manifestavam temores de que a "regra da maioria", implicando, inevitavelmente, o predomínio dos pobres sobre os ricos, acabaria por extinguir a propriedade privada e os mercados livres. A classe trabalhadora ascendente e a esquerda política, por sua vez, advertiam que os capitalistas poderiam se aliar às forças reacionárias para abolir a democracia com o intuito de se protegerem de ser governados por uma maioria permanente empenhada na redistribuição econômica e social. Não quero discutir os méritos relativos das duas posições, muito embora a história sugira que, ao menos no mundo industrializado, a esquerda tinha mais razão para temer que a direita sacrificasse a democracia, a fim de salvar o capitalismo, do que tinha a direita para temer que a esquerda abolisse o capitalismo em favor da democracia. Seja como for, nos anos pós-Segunda Guerra havia um pressuposto amplamente compartilhado de que, para que fosse compatível com a democracia, o capitalismo teria de ser submetido a um controle político amplo (compreendendo, por exemplo, a nacionalização de empresas e setores essenciais ou um modelo de "cogestão" que incluísse os trabalhadores, como na Alemanha), a fim de que a própria democracia fosse protegida de restrições impostas pelo livre mercado. Enquanto Keynes, assim como Kalecki e Polanyi até certo ponto, estavam em voga, Hayek parecia condenado a um exílio temporário.

Desde então, no entanto, a teoria econômica predominante ficou obcecada pela "irresponsabilidade" de políticos oportunistas que satisfazem um eleitorado pouco versado em economia, interferindo em mercados naturalmente eficientes em busca de metas - como pleno emprego e justiça social - que mercados genuinamente livres proporcionariam a longo prazo de qualquer jeito, mas que deixam de proporcionar quando distorcidos pela política. Segundo teorias tradicionais da "escolha pública", as crises econômicas basicamente se originam de intervenções políticas que distorcem os mercados visando metas sociais[3]. Nessa visão, as intervenções adequadas são aquelas que deixam os mercados livres de interferência política; as incorretas, que distorcem os mercados, derivam de um excesso de democracia - mais precisamente, da transposição, levada a cabo por políticos irresponsáveis, da democracia para a economia, onde ela não deveria se meter. Hoje, poucos iriam tão longe quanto Hayek, que nos últimos anos de vida advogou a abolição da democracia tal como a conhecemos em defesa da liberação econômica e da liberdade civil. Não obstante, o cantus firmus da atual teoria econômica neoinstitucionalista é profundamente hayekiano. Para funcionar de maneira adequada, o capitalismo requer políticas econômicas pautadas por normas, proteção de mercados, direitos de propriedade constitucionalmente resguardados de interferência política discricionária; autoridades regulatórias independentes; bancos centrais vigorosamente protegidos de pressões eleitorais; e instituições internacionais - como a Comissão Europeia ou o Tribunal de Justiça europeu - que não tenham de se preocupar com reeleição popular. Contudo, essas teorias evitam propositadamente a questão crucial de como chegar a isso, talvez porque seus defensores não tenham respostas, ou ao menos nenhuma que possa ser dada publicamente.

Há vários modos de conceitualizar as causas subjacentes ao atrito entre capitalismo e democracia. Para os presentes fins, vou caracterizar o capitalismo democrático como uma economia pautada por dois princípios ou regimes conflitantes de alocação de recursos: o primeiro opera de acordo com a produtividade marginal, ou com aquilo que é exposto como uma vantagem por um "livre jogo das forças de mercado", e o outro se baseia em necessidades ou direitos sociais, tal como estabelecidos por escolhas coletivas em contextos democráticos. Sob o capitalismo democrático, os governos são teoricamente instados a cumprir ambos os princípios simultaneamente, ainda que eles quase nunca se alinhem de forma substantiva. Na prática, podem negligenciar um princípio em favor do outro por algum tempo, até serem penalizados pelas consequências: governos que deixem de atender demandas democráticas por proteção e redistribuição se arriscam a perder o apoio da maioria, enquanto aqueles que desconsideram as demandas por compensação dos detentores dos recursos produtivos - com relação à produtividade marginal - provocam disfunções econômicas que se tornam cada vez mais insustentáveis, solapando também seu apoio político.

Na utopia liberal da teoria econômica convencional, a tensão entre esses dois princípios de alocação do capitalismo democrático é superada pela conversão da teoria no que Marx teria chamado de "força material". Segundo essa visão, a economia como "conhecimento científico" ensina aos cidadãos e aos políticos que a verdadeira justiça é a justiça do mercado, pela qual todos são recompensados de acordo com sua contribuição, em vez de terem suas necessidades transformadas em direitos. Na medida em que a teoria econômica viesse a ser aceita como teoria social, "viraria realidade" no sentido de ser performativa - revelando assim seu caráter essencialmente retórico como um instrumento de construção social por persuasão. No mundo real, porém, não é tão fácil dissuadir as pessoas de suas crenças "irracionais" em direitos sociais e políticos, em contraposição à lei do mercado e ao direito de propriedade. Até o momento, as noções de justiça social alheias à lógica do mercado têm resistido às tentativas de racionalização econômica, por mais impositivas que elas tenham se tornado na idade de chumbo da expansão do neoliberalismo. As pessoas se recusaram obstinadamente a abrir mão da ideia de uma economia moral, sob a qual possuem direitos que têm precedência sobre as repercussões das transações de mercado[4]. De fato, sempre que podem - como recorrentemente podem em democracias efetivas -, tendem de uma maneira ou de outra a insistir na primazia do social sobre o econômico, na proteção de compromissos e obrigações sociais contra as pressões do mercado por "flexibilidade", na expectativa de que a sociedade satisfaça as aspirações humanas a uma vida fora da ditadura dos "sinais" instáveis dos mercados. Provavelmente, é esse o fenômeno que Polanyi descreveu em A grande transformação como um "contramovimento" em reação à transformação do trabalho em mercadoria.

Segundo a teoria econômica predominante, desarranjos como inflação, déficits públicos e dívida privada ou pública excessiva resultam de um conhecimento insuficiente das leis que regem a economia, essa máquina de geração de riqueza, ou da desconsideração dessas leis na busca egoísta de poder político. Já as teorias de economia política - na medida em que levam a política a sério e não são apenas teorias funcionalistas da eficiência - veem na alocação de mercado apenas um tipo de regime político-econômico entre outros, regido pelos interesses dos detentores dos recursos produtivos escassos e portanto em posição de vantagem no mercado. A alocação política, por sua vez, é preferida por aqueles que têm pouco peso econômico mas têm poder político potencialmente amplo. Dessa perspectiva, a teoria econômica convencional é basicamente a exaltação teórica de uma ordem social político-econômica a serviço daqueles bem-dotados de poder de mercado, visto que equipara os interesses deles com o interesse geral. Ela apresenta as demandas distributivas dos detentores de capital produtivo como imperativos técnicos da boa, no sentido de cientificamente fundamentada, gestão econômica. Para a economia política, a explicação convencional para as disfunções econômicas, segundo a qual elas resultariam de uma clivagem entre princípios tradicionalistas da economia moral e princípios moderno- -racionais, é uma deturpação enviesada, que oculta o fato de que a economia "econômica" também é uma economia moral - mas a economia moral daqueles que ocupam posições privilegiadas no mercado.

Na linguagem da teoria econômica convencional, as crises se afiguram como punição para governos que deixam de respeitar as leis naturais da economia que são as suas autênticas governantes. Em contraposição, uma teoria de economia política digna desse nome concebe as crises como manifestações das "reações kaleckianas" dos detentores de recursos produtivos a políticas democráticas que penetram em seu domínio exclusivo, e que os impedem de explorar ao máximo seu poder de mercado, subvertendo suas expectativas de serem justamente recompensados por suas operações de risco ousadas.[5] A teoria econômica convencional aborda a estrutura social e a distribuição dos interesses e poderes nela operantes como coisas exógenas, considerando-as constantes e com isso tornando ambas invisíveis e, para os fins da "ciência" econômica, naturalmente dadas. A única política que uma teoria dessas consegue conceber envolve tentativas oportunistas, ou na melhor das hipóteses incompetentes, de transgredir as leis econômicas. Toda política econômica boa é por definição apolítica. O problema é que essa visão não é compartilhada por aqueles que consideram a política um recurso imprescindível contra os mercados, cuja operação à rédea solta interfere no que julgam ser a ordem correta das coisas. A menos que eles sejam de alguma forma persuadidos a adotar a doutrina econômica neoclássica como um modelo inequívoco daquilo que a vida social é e deve ser, suas demandas políticas, tais como democraticamente expressas, vão divergir das prescrições da teoria econômica convencional. A questão é que, enquanto uma economia, desde que suficientemente abstraída de forma conceitual, pode ser modelada como tendendo ao equilíbrio, uma economia política não pode, a menos que seja desprovida de democracia e dirigida por uma ditadura platônica de reis-economistas. A política capitalista, como veremos, tem feito o possível para nos conduzir do deserto do oportunismo democrático corrupto para a terra prometida dos mercados autorregulamentados. Até agora, porém, a resistência democrática persiste, e com ela os deslocamentos em nossas economias de mercado, às quais ela continuamente dá ensejo.

Arranjos do pós-guerra

O capitalismo democrático do pós-guerra sofreu sua primeira crise no decênio subsequente ao final dos anos 1960, quando a inflação começou a crescer rapidamente por todo o mundo ocidental,e o declínio do crescimento econômico passou a inviabilizar a fórmula da paz político-econômica entre capital e trabalho que findara os conflitos domésticos após as devastações da Segunda Guerra Mundial. Essa fórmula implicava essencialmente a aceitação dos mercados capitalistas e os direitos de propriedade pela classe trabalhadora organizada em troca de democracia política, o que lhes possibilitava contar com seguridade social e com a melhoria constante de seu padrão de vida. O período ininterrupto de mais de dois decênios de crescimento resultou em percepções populares, profundamente enraizadas, do contínuo progresso econômico como um direito de cidadania democrática - percepções que se converteram em expectativas políticas que os governos se sentiram coagidos a cumprir com a desaceleração do crescimento, mas cada vez menos capazes de cumpri-lo.

A estrutura do arranjo entre trabalho e capital no pós-guerra era fundamentalmente a mesma nos países - sob outros aspectos bem diferentes - em que o capitalismo democrático fora instituído. Compreendia um Estado de bem-estar em expansão, o direito dos trabalhadores à livre negociação coletiva e a garantia política do pleno emprego, subscrita por governos que faziam amplo uso do instrumental econômico keynesiano. Quando o crescimento começou a ratear no final dos anos 1960, porém, ficou difícil manter essa combinação. Enquanto a livre negociação coletiva possibilitava aos trabalhadores, por meio de seus sindicatos, agir de acordo com expectativas, já firmemente arraigadas, de aumentos salariais anuais em caráter regular, o compromisso dos governos com o pleno emprego, bem como com a expansão do Estado de bem-estar, protegia os sindicatos de potenciais perdas de postos de trabalho causadas por acordos salariais que excediam o crescimento da produtividade. Desse modo, a política governamental alavancava o poder de barganha dos sindicatos para além do nível que um livre mercado de trabalho poderia sustentar. No final dos anos 1960 isso se traduziu em uma onda mundial de militância trabalhista, impulsionada por um vigoroso senso de direito político a um padrão de vida ascendente e livre do medo do desemprego.

Nos anos subsequentes, governos de toda parte do mundo ocidental enfrentaram a questão de como fazer com que os sindicatos moderassem as reivindicações salariais para as suas categorias sem ter de retirar a promessa keynesiana de pleno emprego. Nos países em que a estrutura institucional do sistema de negociação coletiva não conduzia aos "pactos sociais" tripartites, a maioria dos governos permaneceu convencida ao longo de toda a década de 1970 de que permitir o aumento do desemprego a fim de conter aumentos salariais reais colocava em risco sua sobrevivência, senão para a estabilidade da própria democracia capitalista. Sua única saída foi uma política monetária acomodatícia que, conquanto permitisse que a livre negociação coletiva e o pleno emprego continuassem a coexistir, fazia-o à custa de elevar a taxa de inflação num ritmo que se acelerou ao longo do tempo.

A princípio, a inflação não era um grande problema para trabalhadores representados por sindicatos fortes e com poder político suficiente para obter indexação salarial de facto. A inflação atinge primordialmente credores e detentores de ativos financeiros, segmentos que em geral não incluem trabalhadores, ou ao menos não incluíam nos anos 1960 e 1970. É por isso que a inflação pode ser descrita como um reflexo monetário do conflito distributivo entre uma classe trabalhadora que demanda garantia de emprego, bem como uma maior participação na renda nacional, e uma classe capitalista que busca maximizar o retorno sobre o seu capital. Uma vez que os dois lados agem de acordo com ideias mutuamente incompatíveis sobre o que lhes é de direito, um deles enfatizando os usufrutos da cidadania e o outro os do poder de posse e mercado, a inflação também pode ser considerada uma expressão de anomia numa sociedade que, por razões estruturais, não consegue chegar a um critério comum de justiça social. Foi nesse sentido que o sociólogo britânico John Goldthorpe sugeriu, no final dos anos 1970, que a inflação alta era inerradicável numa economia de mercado capitalista democrática que permitia que trabalhadores e cidadãos corrigissem efeitos negativos dos mercados mediante ação política coletiva[6].

Para governos que precisam enfrentar as demandas conflitantes dos trabalhadores e do capital num mundo de taxas de crescimento em queda, uma política monetária acomodatícia era um método substituto conveniente para evitar um conflito social de soma zero. Nos anos iniciais do pós-guerra, o crescimento econômico municiara governos em luta contra concepções de justiça econômica incompatíveis com bens e serviços adicionais por meio dos quais podiam neutralizar antagonismos de classe. Agora os governos tinham de se virar com dinheiro adicional, ainda não chancelado pela economia real, como um meio de antecipar recursos futuros por meio do consumo e da distribuição no presente. Essa maneira de pacificar conflitos, apesar de eficaz a princípio, não poderia persistir indefinidamente. Como Hayek nunca cansava de assinalar, inflação acelerada fatalmente ocasiona distorções econômicas por fim incontroláveis nos preços relativos, na relação entre rendas variáveis e fixas e naquilo que os economistas chamam de "incentivos econômicos". Ao provocar reações kaleckianas de detentores de capitais cada vez mais desconfiados, a inflação acaba por gerar desemprego, penalizando os mesmos trabalhadores cujos interesses ela pode inicialmente ter favorecido. A essa altura, no mais tardar, os governos sob o capitalismo democrático estarão sofrendo pressões para abandonar os arranjos salariais redistributivo- -acomodatícios e restituir a disciplina monetária.

Inflação baixa, desemprego em alta


A inflação foi controlada após 1979 (Gráfico 1), quando Paul Volcker, recém-nomeado presidente do Fed pelo presidente Jimmy Carter, elevou as taxas de juros a patamares sem precedentes, fazendo com que o desemprego saltasse para níveis não vistos desde a Grande Depressão. O "putsch" de Volcker foi chancelado em 1984 com a reeleição de Ronald Reagan (que de início, diz-se, teria ficado receoso dos efeitos políticos das diretrizes desinflacionárias agressivas de Volcker). Margareth Thatcher, que havia seguido a esteira dos Estados Unidos, ganhou um segundo mandato em 1983, também a despeito do desemprego elevado e da rápida desindustrialização causados, entre outras coisas, por uma política monetária restritiva. Tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, a desinflação foi acompanhada de ataques abertos aos sindicatos por parte dos governos e dos empregadores, cujos casos emblemáticos foram o triunfo de Reagan sobre a Organização Sindical dos Controladores de Tráfego Aéreo e o de Thatcher sobre o Sindicato Nacional dos Mineiros. Nos anos seguintes, as taxas de inflação permaneceram continuamente baixas em todo o mundo capitalista, ao passo que o desemprego aumentou mais ou menos regularmente (Gráfico 2). Paralelamente, a sindicalização declinou em quase todos os lugares, e as greves se tornaram tão esporádicas que alguns países deixaram de manter estatísticas sobre elas (Gráfico 3).



A era neoliberal teve início com o abandono, pelos governos anglo- -americanos, das lições do capitalismo democrático do pós-guerra, que sustentavam que o desemprego solaparia o apoio político não só ao governo da vez, mas também ao próprio capitalismo democrático. Os experimentos conduzidos por Reagan e Thatcher com seus eleitorados foram observados com grande atenção por formuladores de políticas do mundo inteiro. Entretanto, aqueles que esperavam que o fim da inflação traria o fim do desarranjo econômico logo se decepcionaram. À medida que a inflação recuou, a dívida pública começou a aumentar, e não de forma totalmente inesperada[7]. A dívida pública crescente dos anos 1980 tinha diversas causas. A estagnação do crescimento indispusera os contribuintes mais do que nunca à tributação, e com o fim da inflação também acabaram os aumentos tributários automáticos por meio do "bracket creep". O mesmo se aplicava à contínua desvalorização da dívida pública em razão do enfraquecimento das moedas correntes, um processo que a princípio complementava o crescimento econômico e que passou a substituí-lo cada vez mais, reduzindo a dívida acumulada de um país em relação à sua receita nominal. No lado da despesa, o crescente desemprego, causado pela estabilização monetária, requeria gastos crescentes em assistência social. Ademais, os vários direitos sociais criados nos anos 1970 em troca de moderação dos sindicatos nas negociações salariais - por assim dizer, salários adiados da era neocorporativista - começaram a ser cobrados, onerando cada vez mais as finanças públicas.

Com a inflação não mais disponível como recurso para estreitar a lacuna entre as demandas dos cidadãos e as dos "mercados", o ônus de assegurar a paz social recaiu sobre o Estado. Por algum tempo, a dívida pública se mostrou um equivalente funcional conveniente da inflação: assim como a inflação, a dívida pública tornava possível introduzir recursos ainda não gerados de fato nos conflitos distributivos em curso, propiciando aos governos explorar recursos futuros em acréscimo àqueles já disponíveis. Uma vez que o embate entre a distribuição via mercado e a distribuição social passou do mercado de trabalho para a arena política, a pressão eleitoral substituiu as reivindicações sindicais. Em vez de inflacionar a moeda corrente, os governos começaram a tomar empréstimos em proporções crescentes para atender demandas de benefícios e serviços como um direito dos cidadãos, assim como exigências concorrentes de que a renda refletisse o juízo do mercado e desse modo contribuísse para maximizar o uso lucrativo dos recursos produtivos. A inflação baixa - assim como as taxas de juros baixas que se seguiram à contenção da inflação - favorecia isso, já que assegurava aos credores que os títulos públicos iriam manter seu valor no longo prazo.

Tal como a inflação, porém, o acúmulo da dívida pública não pode perdurar para sempre. Os economistas advertiram há muito tempo que o déficit público tem um efeito de "esvaziamento" [crowding out] sobre o investimento privado, ocasionando taxas de juros altas e crescimento baixo, mas jamais foram capazes de identificar o limiar crítico. Na prática, mostrou-se possível, ao menos por algum tempo, manter as taxas de juros baixas pela desregulamentação dos mercados financeiros e simultaneamente conter a inflação por meio de práticas reiteradas de desmantelamento das ações sindicais[8]. Contudo, os Estados Unidos em particular, com sua taxa de poupança nacional excepcionalmente baixa, logo iriam vender seus títulos públicos não só para os cidadãos, mas também para investidores estrangeiros, incluindo fundos soberanos de variados tipos[9]. Além disso, à medida que aumentavam os ônus da dívida era preciso destinar uma proporção crescente dos gastos públicos ao serviço da dívida, mesmo que as taxas de juros permanecessem baixas. Acima de tudo, chegar-se-ia a um ponto - ainda que imprevisível - em que credores estrangeiros e nacionais começariam a se preocupar em reaver seu dinheiro. No mais tardar, então, as pressões dos "mercados financeiros" pela consolidação dos orçamentos públicos e pelo retorno à disciplina fiscal se fariam sentir.

Desregulamentação e dívida privada

A eleição presidencial americana de 1992 foi dominada pela questão dos dois déficits: o do governo federal e o do país como um todo, no comércio exterior. A vitória de Bill Clinton, cuja campanha se voltara sobretudo para o "duplo déficit", suscitou tentativas de consolidação fiscal em todo o mundo, promovidas de maneira agressiva, sob a liderança dos Estados Unidos, por organizações internacionais como a OCDE e o FMI. De início, a administração Clinton parece ter planejado acabar com o déficit público mediante um crescimento econômico acelerado impulsionado por reformas sociais, tais como o aumento do investimento público em educação[10]. Uma vez que os democratas perderam a maioria no Congresso nas eleições de meio de mandato de 1994, porém, Clinton se voltou para uma política de austeridade, envolvendo cortes profundos nos gastos públicos e mudanças nas políticas sociais que, nas palavras do presidente, poriam fim ao "Estado de bem-estar tal como o conhecemos". De 1998 a 2000, pela primeira vez em décadas, o governo federal americano estava administrando um superávit orçamentário.

Isso não é o mesmo que dizer, no entanto, que a administração Clinton tivesse encontrado um meio de pacificar uma economia capitalista democrática sem recorrer a recursos econômicos adicionais ainda não disponíveis. A estratégia de Clinton de gestão do conflito social se valeu intensamente do aprofundamento da desregulamentação do setor financeiro, que havia se iniciado sob Reagan[11]. A crescente desigualdade de renda, causada pela contínua dessindicalização e pelos cortes severos nos gastos sociais, bem como a redução da demanda agregada, causada pela consolidação fiscal, foram contrabalançadas pela criação de oportunidades sem precedentes para que cidadãos e pessoas jurídicas se endividassem. A feliz expressão "keynesianismo privado" foi cunhada para designar aquilo que era, em essência, a substituição da dívida pública pela dívida privada[12]. Em vez de o governo tomar dinheiro emprestado para financiar o acesso igualitário a habitação decente ou para a formação de mão de obra qualificada para o mercado, passou a permitir - às vezes forçá-los a tanto - que cidadãos individuais, sob um sistema de endividamento extremamente generoso, tomassem empréstimos por sua própria conta e risco para pagar seus estudos ou seu acesso a um bairro menos carente.

A política de Clinton de consolidação fiscal e revitalização econômica por meio da desregulamentação financeira teve muitos beneficiários. Os ricos foram poupados de aumentos de impostos, e aqueles espertos o bastante para dirigir seus interesses para o setor financeiro acumularam lucros descomunais nos cada vez mais complexos "serviços financeiros" que passaram a ser autorizados a comercializar de maneira quase irrestrita. Mas os pobres também prosperaram, ao menos alguns deles e por algum tempo. As hipotecas de alto risco [subprime mortgages] se tornaram um substituto - ainda que ilusório no final das contas - para as políticas sociais, que foram sucateadas, bem como para os aumentos salariais, que se tornaram indisponíveis nos segmentos inferiores de um mercado de trabalho "flexibilizado". Para os afro-americanos em particular, a casa própria era não só a realização do "sonho americano" como também um substituto fundamental para as aposentadorias, que muitos eram incapazes de obter no mercado de trabalho e a qual não tinham nenhum motivo para esperar de um governo comprometido com a austeridade permanente.

Durante algum tempo, a posse de um imóvel ofereceu à classe média e até a uma parcela dos pobres uma oportunidade atraente para participar da febre especulativa que nos anos 1990 e no início dos anos 2000 estava tornando os ricos bem mais ricos - por mais traiçoeira que essa oportunidade viesse a se revelar depois. Com a disparada dos preços dos imóveis causada pela demanda crescente de pessoas que em circunstâncias normais jamais teriam condições de comprar uma casa, a utilização de parte ou da totalidade do valor líquido de um imóvel para financiar os custos da escolarização da geração seguinte (que se elevavam com rapidez), ou simplesmente para consumo pessoal (a fim de compensar estagnação ou queda salarial), tornou-se uma prática comum. Tampouco era incomum que os proprietários de imóveis usassem seu novo crédito para comprar uma segunda ou terceira residência, na esperança de lucrar com o aumento ilimitado improvável do valor dos bens imobiliários. À diferença da era da dívida pública, quando se obtinham recursos futuros para uso no presente mediante empréstimos governamentais, esses recursos passaram a ser postos à disposição pela venda, em mercados financeiros liberalizados, de obrigações a pagar que representavam uma parcela significativa dos ganhos futuros dos indivíduos, municiando-os, em troca, do poder instantâneo de comprar o que bem entendessem.

Assim, a liberalização financeira compensou uma era de consolidação fiscal e austeridade pública. O endividamento individual substituiu a dívida pública, e a demanda individual, construída sob altas taxas por um crescente setor caça-níqueis, ocupou o lugar da demanda pública gerida pelo Estado pela sustentação do emprego e dos lucros na construção civil e em outros setores (Gráfico 4). Essas dinâmicas se intensificaram depois de 2001, quando o Fed passou a adotar taxas de juros bastante baixas para evitar uma recessão econômica e o consequente aumento do desemprego. Além de lucros sem precedentes no setor financeiro, o keynesianismo privado sustentou uma economia afluente que se tornou alvo da inveja dos movimentos trabalhistas europeus. De fato, a política de Alan Greenspan de crédito abundante respaldando o crescente endividamento da sociedade americana foi considerada um modelo por líderes sindicais europeus, que notaram com grande entusiasmo que o Fed, diversamente do Banco Central Europeu, era obrigado por lei a promover não só estabilidade monetária como também níveis de emprego elevados. Tudo isso, é claro, terminou em 2008, quando a pirâmide creditícia internacional na qual se apoiara a prosperidade do final dos anos 1990 e do início dos anos 2000 subitamente veio abaixo.


Endividamento soberano

Com a derrocada do keynesianismo privado em 2008, a crise do capitalismo democrático do pós-guerra entrou em sua quarta e mais recente etapa, após as sucessivas eras de inflação, de déficits públicos e de endividamento privado (Gráfico 5)[13]. Com o sistema financeiro global prestes a se desintegrar, os Estados-nação buscaram restituir a confiança econômica socializando os créditos podres emitidos como forma de compensar a consolidação fiscal. Somada à expansão fiscal necessária para evitar um colapso da "economia real", a medida resultou em um novo aumento dramático dos déficits públicos e da dívida pública - um desdobramento, cabe notar, que não se deveu de modo algum a gastos extras inconsequentes por parte de políticos oportunistas ou de órgãos públicos desavisados, como insinuado pelas teorias da "escolha pública" e pela vasta literatura de economia institucional produzida nos anos 1990 sob os auspícios, entre outros, do Banco Mundial e do FMI[14].


O salto quântico da dívida pública após 2008, que desfez por completo toda consolidação fiscal porventura alcançada na década anterior, refletiu o fato de que nenhum Estado democrático se atreveu a impor a sua sociedade outra crise econômica da magnitude da Grande Depressão dos anos 1930, como punição para os excessos de um setor financeiro desregulamentado. Mais uma vez, o poder político foi chamado a colocar à disposição recursos futuros a fim de assegurar a paz social do presente, e os Estados, mais ou menos voluntariamente, assumiram a responsabilidade por uma significativa parcela da nova dívida originalmente gerada no setor privado, de modo a tranquilizar os credores privados. Mas se isso efetivamente respaldou as fábricas de dinheiro da indústria financeira, restabelecendo com rapidez seus extraordinários lucros, salários e bonificações, não logrou evitar a desconfiança crescente de parte dos mesmos "mercados financeiros" de que os próprios governos nacionais, no processo de resgatá-los, poderiam ter se expandido além da conta. Mesmo com a crise econômica global longe de seu fim, os credores começaram a exigir ruidosamente um retorno ao equilíbrio monetário por meio de medidas de austeridade fiscal, buscando assegurar-se de que seus investimentos na dívida pública, enormemente ampliados, não seriam perdidos.

Nos três anos após 2008, o conflito distributivo sob o capitalismo democrático se converteu em um cabo de guerra intrincado entre investidores financeiros globais e Estados-nação soberanos. Se no passado trabalhadores disputavam com empregadores, cidadãos com ministros da Economia e devedores privados com bancos privados, as instituições financeiras passaram a enfrentar os mesmos Estados que pouco antes elas haviam chantageado a salvá-las. Mas a configuração subjacente de poderes e interesses se tornou bem mais complexa, e ainda aguarda exame sistemático. Desde o início da crise, por exemplo, os mercados financeiros voltaram a cobrar de diferentes Estados taxas de juros amplamente distintas, aplicando graus diversos de pressão sobre os governos para convencer seus cidadãos a aceitar cortes de gastos sem precedentes - de acordo, mais uma vez, com uma lógica de distribuição centrada no mercado basicamente inalterada. Haja vista o montante da dívida assumida hoje pela maioria dos Estados, até elevações mínimas da taxa de juros dos títulos públicos podem causar um desastre fiscal[15]. Ao mesmo tempo, os mercados precisam evitar impelir os Estados a declarar falência soberana, sempre uma opção para os governos caso as pressões dos mercados se tornem fortes demais. É por isso que há de se encontrar Estados dispostos a socorrer outros que estejam sob maior risco: para se proteger de uma elevação geral das taxas de juros dos títulos públicos que o primeiro calote acarretaria. Uma ordem similar de "solidariedade" entre Estados em favor dos investidores é promovida onde o calote soberano atinge bancos situados fora do país insolvente, o que poderia forçar os países de origem dos bancos a uma vez mais nacionalizar enormes cifras de dívida podre a fim de estabilizar suas economias.

Há ainda outras formas pelas quais a tensão entre as demandas por direitos sociais e as operações dos mercados livres se manifesta hoje no capitalismo democrático. Alguns governos, inclusive a administração Obama, têm tentado retomar o crescimento econômico por meio do endividamento - na esperança de que políticas de consolidação futuras sejam amparadas pelos dividendos desse crescimento. Outros podem estar prevendo em segredo um retorno da inflação, que dissolveria a dívida acumulada mediante uma expropriação suave dos credores - assim como o crescimento econômico, isso atenuaria as tensões políticas decorrentes das medidas de austeridade. Ao mesmo tempo, os mercados financeiros podem estar à espera de uma batalha promissora contra a interferência política, que de uma vez por todas restabeleça a disciplina de mercado e acabe com todas as tentativas políticas de subvertê-la.

Outras complicações provêm do fato de que os mercados financeiros precisam da dívida pública, uma vez que são investimentos seguros: pressionar com demasiado rigor por orçamentos equilibrados pode privá-los de oportunidades altamente desejáveis de investimento. As classes médias dos países capitalistas avançados têm investido boa parte de suas economias em títulos públicos, ao passo que muitos trabalhadores fizeram investimentos pesados em aposentadorias suplementares. Orçamentos equilibrados provavelmente implicariam que os Estados precisariam tirar das suas classes médias, na forma de impostos mais altos, aquilo que elas passaram a poupar e investir, entre outras coisas, na dívida pública. Os cidadãos não só deixariam de auferir juros, mas também não poderiam mais transmitir suas economias aos filhos. Contudo, ainda que isso deva deixá-los interessados em que os Estados fiquem, se não isentos de dívidas, ao menos confiavelmente aptos a cumprir suas obrigações para com seus credores, também pode fazer com que eles tenham de pagar pela liquidez de seus governos na forma de profundos cortes em benefícios e serviços públicos, dos quais em parte também dependem.

Por mais complexas que sejam as clivagens nas diretrizes internacionais para a dívida pública que começam a surgir, o preço da estabilização financeira provavelmente será pago por outros que não os detentores de dinheiro, ou ao menos de dinheiro real. A reforma das aposentadorias públicas, por exemplo, será acelerada por pressões fiscais, e na medida em que governos derem calote em qualquer canto do mundo as aposentadorias privadas serão igualmente atingidas. O cidadão comum irá pagar - pela consolidação das finanças públicas, pela bancarrota de Estados estrangeiros, pelas crescentes taxas de juros da dívida pública e, se necessário, por mais um resgate de bancos nacionais e internacionais - com suas economias particulares, com cortes em benefícios públicos, com redução de serviços públicos e com impostos mais altos.

Deslocamentos sucessivos

Nas quatro décadas desde o fim do crescimento do pós-guerra, o epicentro da tensão tectônica no âmbito do capitalismo democrático migrou de uma localização institucional para outra, ocasionando uma sequência de distúrbios econômicos diferentes mas sistematicamente relacionados. Nos anos 1970, o conflito entre as demandas democráticas por justiça social e as demandas capitalistas por distribuição segundo a produtividade marginal, ou "justiça econômica", se deu primordialmente nos mercados de trabalho nacionais, onde a pressão salarial dos sindicatos, no contexto de regimes de pleno emprego politicamente garantidos, provocou inflação acelerada. Quando aquilo que era, no fundo, uma forma de redistribuição mediante desvalorização da moeda corrente se tornou economicamente insustentável, forçando os governos a extingui-la com um alto risco político, o conflito ressurgiu na arena eleitoral. A partir daí ele ocasionou uma disparidade cada vez maior entre gastos públicos e receitas públicas e por consequência uma dívida pública rapidamente crescente, em resposta a demandas dos eleitores por benefícios e serviços para além daquilo que uma economia capitalista democrática poderia ser capaz de conceder ao seu "Estado taxador"[16].

Quando os esforços para refrear a dívida pública se tornaram inevitáveis, porém, eles tiveram de ser acompanhados, em nome da paz social, por desregulamentação financeira, por meio da facilitação do acesso ao crédito pessoal, como uma rota alternativa a atender demandas - com força normativa e política - dos cidadãos por segurança e prosperidade. Isso também não perdurou muito mais do que uma década até que a economia global quase cambaleasse sob o fardo de promessas irrealistas de pagamento futuro por consumo e investimento no presente, autorizadas pelos governos em contrapartida à austeridade fiscal. Desde então, o embate entre as noções populares de justiça social e a insistência econômica em justiça de mercado uma vez mais mudou de âmbito, dessa vez ressurgindo em mercados de capitais internacionais e nas complexas disputas que ora ocorrem entre instituições financeiras e eleitorados, entre governos e organizações internacionais. A questão agora é até que ponto os Estados poderão ainda impor os direitos de propriedade e as expectativas de lucro dos mercados aos seus cidadãos, ao mesmo tempo evitando ter de declarar bancarrota e resguardando o que ainda possa restar de sua legitimidade democrática.

Transigência com a inflação, aceitação da dívida pública e desregulamentação do crédito pessoal não passam de expedientes temporários para governos defrontados com um conflito aparentemente incoercível entre os dois princípios de alocação contraditórios sob o capitalismo democrático: de um lado direitos sociais, de outro produtividade marginal tal como dimensionada pelo mercado. Esses três expedientes funcionaram por algum tempo, mas logo começaram a causar mais problemas do que resolviam, indicando que uma reconciliação duradoura entre estabilidade social e econômica nas democracias capitalistas é um projeto utópico. Tudo o que os governos conseguiram alcançar ao lidar com as crises de suas épocas foi movê-las para novas arenas, onde reapareceram sob novas formas. Não há nenhum motivo para acreditar que esse processo - a sucessiva manifestação das contradições do capitalismo democrático em variedades de desarranjo econômico sempre novas - tenha terminado.

Desarranjo político

A essa altura, parece evidente que a capacidade de gestão política do capitalismo democrático declinou acentuadamente nos últimos anos, mais em certos países do que em outros mas também de maneira abrangente, no sistema político-econômico global emergente. Em consequência, riscos parecem estar se ampliando, tanto para a democracia quanto para a economia. Desde a Grande Depressão, os formuladores de políticas raras vezes - talvez jamais - depararam com tanta incerteza como hoje. Um exemplo é o fato de que os mercados esperam não só consolidação fiscal mas também, e ao mesmo tempo, prognósticos razoáveis de futuro crescimento econômico. Não é claro como ambas as coisas podem ser combinadas. Embora o prêmio de risco da dívida pública da Irlanda tenha caído quando o país se comprometeu com uma severa redução de seu déficit, algumas semanas depois voltou a subir, presumivelmente porque o programa de consolidação irlandês parecia tão estrito que tornaria a recuperação econômica impossível[17]. Ademais, há uma convicção amplamente compartilhada de que a próxima bolha já está se formando em algum lugar de um mundo mais do que nunca inundado de crédito oferecido a juros baixos. Não se pode mais oferecer créditos hipotecários de alto risco para investimentos, pelo menos não por enquanto. Mas restam ainda os mercados de matérias-primas ou a nova economia da internet. Nada impede que as empresas financeiras se utilizem do excedente de dinheiro proporcionado pelos bancos centrais para ingressar em quaisquer negócios que aparentem ser os novos segmentos em crescimento, em proveito de seus clientes prediletos e, é claro, de si mesmas. Enfim, com o malogro da reforma regulatória do setor financeiro sob quase todos os aspectos os requisitos de capital aumentaram um pouco, e os bancos que eram grandes demais para falir em 2008 também podem contar com essa condição em 2012 ou 2013, o que os deixa com a mesma capacidade de extorquir o mesmo público que tão astuciosamente conseguiram explorar naquele ano. Mas agora pode ser impossível repetir o socorro público ao capitalismo privado nos moldes de 2008, quanto mais não seja porque as finanças públicas já estão esticadas até o limite.

Contudo, na atual crise a democracia está tanto em risco quanto a economia, se não mais. Não só a "integração sistêmica" das sociedades contemporâneas - ou seja, o funcionamento eficaz de suas economias capitalistas - se precarizou, mas também sua "integração social"[18]. Com o advento de uma nova fase de austeridade, a capacidade dos Estados- nação de fazer a mediação entre os direitos dos cidadãos e os requisitos de acumulação de capital foi severamente afetada. Governos de toda parte enfrentam resistência mais forte a aumentos de impostos, particularmente em países altamente endividados, nos quais será preciso gastar dinheiro público novo por muitos anos para pagar bens consumidos há muito tempo. Além disso, com a interdependência global cada vez mais estreita, já não é possível ter a pretensão de que as tensões entre economia e sociedade, entre capitalismo e democracia, podem ser geridas no interior das comunidades políticas nacionais. Hoje nenhum governo pode governar sem prestar detida atenção às obrigações e constrangimentos internacionais, inclusive aqueles dos mercados financeiros que forçam os Estados nacionais a impor sacrifícios à sua população. As crises e as contradições do capitalismo democrático se tornaram definitivamente internacionalizadas, manifestando-se não só dentro dos Estados mas também entre eles, em combinações e permutações inauditas.

Como lemos quase todo dia nos jornais, "os mercados" passaram a ditar por vias sem precedentes o que Estados supostamente soberanos e democráticos ainda podem fazer por seus cidadãos e o que devem lhes recusar. As mesmas agências de classificação de risco sediadas em Manhattan que contribuíram de maneira fundamental para ocasionar o desastre da indústria de dinheiro global agora estão ameaçando rebaixar as notas dos títulos de Estados que aceitaram um grau antes inimaginável de endividamento novo para resgatar aquela indústria e a economia capitalista como um todo. A política ainda restringe e distorce mercados, mas apenas, parece, num plano muito distante da vivência cotidiana e das capacidades organizacionais das pessoas comuns - os Estados Unidos, armados até os dentes não só de porta-aviões mas também de um suprimento ilimitado de cartões de crédito, ainda têm a China para comprar sua dívida ascendente; todos os demais países têm de escutar o que "os mercados" lhes dizem. Desse modo, os cidadãos cada vez mais percebem seus governos não como seus agentes, mas de outros Estados ou de organizações internacionais tais como o FMI ou a União Europeia, incomensuravelmente mais isolados da pressão eleitoral do que era o tradicional Estado-nação. Em países como Grécia e Irlanda, qualquer coisa que se assemelhe a democracia será efetivamente suspensa por muitos anos. Para proceder "responsavelmente", no sentido definido por mercados e instituições internacionais, os governos nacionais terão de impor uma rígida austeridade, a preço de se tornarem cada vez mais irresponsáveis para com seus cidadãos[19].

A democracia não está sendo sequestrada apenas nos países atualmente sob ataque dos "mercados". A Alemanha, que ainda se encontra numa situação econômica relativamente confortável, comprometeu-se com décadas de cortes nos gastos públicos. Além disso, o governo alemão mais uma vez terá de fazer com que os seus cidadãos provenham liquidez para países sob risco de calote, não só para salvar bancos alemães, mas também para estabilizar a moeda comum europeia e evitar um aumento geral da taxa de juros da dívida pública, como é provável que ocorra caso o primeiro país entre em colapso. O alto custo político disso pode ser dimensionado pela queda progressiva do capital eleitoral do governo de Angela Merkel, que redundou numa série de derrotas em importantes eleições regionais ao longo de 2010. A retórica populista, que insinua que talvez os credores também devessem pagar uma parcela dos custos, tal como expressa pela chanceler alemã no início daquele ano, foi prontamente abandonada quando "os mercados" manifestaram seu assombro aumentando ligeiramente a taxa de juros da dívida pública nova. Agora a conversa é sobre a necessidade de passar, nas palavras do ministro da Economia alemão, do antiquado "governo", que não está mais à altura dos novos desafios da globalização, para a "governança", denotando em particular uma permanente redução da autoridade orçamentária do Bundestag[20].

As expectativas políticas ora apresentadas aos Estados democráticos pelos seus novos mandantes podem ser impossíveis de satisfazer. Os mercados e as instituições internacionais exigem que não só os governos como também os cidadãos se comprometam credulamente com a consolidação fiscal. Partidos políticos que se oponham à austeridade precisam ser derrotados de modo retumbante nas eleições nacionais, e tanto o governo como a oposição devem se comprometer publicamente com "finanças sadias", caso contrário o custo do serviço da dívida vai aumentar. Entretanto, pleitos em que os eleitores não tenham nenhuma opção efetiva poderão ser percebidos como inautênticos, o que talvez cause toda sorte de desarranjos políticos, da diminuição do comparecimento às urnas e a ascensão de partidos populistas aos distúrbios nas ruas.

As arenas do conflito distributivo foram se tornando cada vez mais distantes da política popular. Nem os mercados de trabalho nacionais dos anos 1970, com as múltiplas oportunidades que ofereciam para mobilizações políticas corporativistas e coalizões interclasses, nem a política de gastos públicos dos anos 1980 ficavam além da apreensão ou do alcance estratégico do "homem do povo". Desde então, os campos de batalha em que se dá o embate das contradições do capitalismo democrático ficaram cada vez mais complexos, tornando extremamente difícil para qualquer um que não pertença às elites políticas e financeiras reconhecer os interesses subjacentes e identificar seus próprios interesses[21]. Embora esse quadro possa gerar apatia no nível das massas e com isso tornar a vida das elites mais fácil, não se pode contar com isso num mundo em que a aquiescência cega aos investidores financeiros é postulada como o único procedimento racional e responsável. Para aqueles que se recusam a ser dissuadidos de outras racionalidades e responsabilidades sociais, um mundo desses pode parecer simplesmente absurdo - a ponto de que a única conduta racional e responsável seja fazer o maior número de estragos possível na haute finance. Ali onde a democracia tal como a conhecemos está efetivamente suspensa, como em países como Grécia, Irlanda e Portugal, tumultos nas ruas e insurreições populares podem ser o derradeiro modo de expressão política que resta para os desprovidos de poder de mercado. Devemos manter a esperança, em nome da democracia, de que em breve teremos a oportunidade de observar mais alguns exemplos?

As ciências sociais pouco ou nada podem fazer para ajudar a dirimir as tensões e as contradições estruturais subjacentes aos desarranjos econômicos e sociais do momento. O que podem fazer, em todo caso, é lançar luz sobre elas e identificar os encadeamentos históricos por meio dos quais as atuais crises sejam plenamente compreendidas. Também podem - e devem - evidenciar o drama de Estados democráticos que estão sendo transformados em agências de cobrança de dívidas a serviço de uma oligarquia global de investidores, que comparada à "elite do poder" de C. Wright Mills parece um esplêndido exemplo de pluralismo liberal[22]. Mais do que nunca, o poder econômico parece ter se tornado poder político, enquanto os cidadãos parecem estar quase inteiramente despojados de suas defesas democráticas e de sua capacidade de imprimir à economia interesses e demandas que são incomparáveis com os dos detentores de capital. De fato, levando em conta a sucessão das crises do capitalismo democrático desde os anos 1970, parece haver uma possibilidade real de um novo arranjo - mesmo que temporário - do conflito social no capitalismo avançado, desta vez inteiramente a favor das classes proprietárias ora firmemente entrincheiradas em sua fortaleza politicamente indevassável: a indústria financeira internacional.

Notas:

[1] O texto foi apresentado em abril de 2011 nas Max Weber Lectures, promovido pelo European University Institute de Florença. Agradeço a Daniel Mertens por sua assistência de pesquisa.
[2] Sobre a expressão, ver Reinhart, Carmen e Rogoff, Kenneth. This time is different: eight centuries of financial folly. Princeton, Nova Jersey, 2009. [ Links ]
[3] A formulação clássica se encontra em Buchanan, James e Tullock, Gordon. The calculus of consent: logical foundations of constitutional democracy. Ann Arbor, Michigan, 1962. [ Links ]
[4] Cf. Thompson, Edward. "The moral economy of the English crowd in the eighteenth century". Past & Present, vol. 50, n. 1, 1971; Scott, James. The moral economy of the peasant: rebellion and subsistence in Southeast Asia. New Haven (Connecticut), 1976. O conteúdo exato de tais direitos obviamente varia entre diferentes contextos sociais e históricos.
[5] In a seminal essay, Michał Kalecki identified the ‘confidence’ of investors as a crucial factor determining economic performance: ‘Political Aspects of Full Employment’, Political Quarterly, vol. 14, no. 4, 1943. Investor confidence, according to Kalecki, depends on the extent to which current profit expectations of capital owners are reliably sanctioned by the distribution of political power and the policies to which it gives rise. Economic dysfunctions—unemployment in Kalecki’s case—ensue when business sees its profit expectations threatened by political interference. ‘Wrong’ policies in this sense result in a loss of business confidence, which in turn may result in what would amount to an investment strike of capital owners. Kalecki’s perspective makes it possible to model a capitalist economy as an interactive game, as distinguished from a natural or machine-like mechanism. In this perspective, the point at which capitalists react adversely to non-market allocation by withdrawing investment need not be seen as fixed and mathematically predictable but may be negotiable. For example, it may be set by a historically changeable level of aspiration or by strategic calculation. This is why predictions based on universalistic, i.e., historically and culturally indifferent, economic models so often fail: they assume fixed parameters where in reality these are socially determined.
[6] Goldthorpe, John. "The current inflation: towards a sociological account". In: Hirsch, Fred e Goldthorpe, John (orgs.). The political economy of inflation. Cambridge (Massachusetts), 1978.
[7] Já nos anos 1950, Anthony Downs notou que nas democracias as demandas dos cidadãos por serviços públicos tendem a exceder a provisão de recursos disponíveis ao governo; cf., por exemplo, "Why the government budget is too small in a democracy". World Politics, vol. 12, n. 4, 1960. Ver também O'Connor, James. "The fiscal crisis of the state". Socialist Revolution, vol. 1, n. 1-2, 1970.
[8] Cf. Krippner, Greta. Capitalizing on crisis: the political origins of the rise of finance. Cambridge (Massachusetts), 2011.
[9] Cf. Spiro, David. The hidden hand of American hegemony: petrodollar recycling and international markets. Ithaca, Nova York, 1999.
[10] Cf. Reich, Robert. Locked in the cabinet. Nova York, 1997.
[11] Stiglitz, Joseph. The roaring nineties: a new history of the world's most prosperous decade. Nova York, 2003. [ Links ]
[12] Crouch, Colin. "Privatised keynesianism: an unacknowledged policy regime". British Journal of Politics and International Relations, vol. 11, n. 3, 2009. [ Links ]
[13] O gráfico mostra a evolução da crise no principal país capitalista, os Estados Unidos, onde as quatro etapas se desdobraram de maneira típico-ideal. Para outros países é preciso fazer ponderações que reflitam suas condições específicas, entre as quais suas posições na economia global. Na Alemanha, por exemplo, a dívida pública começou a se elevar acentuadamente já nos anos 1970. Isso corresponde ao fato de que ali a inflação era baixa muito tempo antes de Volcker, em razão da independência do Bundesbank e das políticas monetaristas por ele adotadas já em 1974 (cf. Scharpf, Fritz. Crisis and choice in European social democracy. Ithaca, 1991).
[14] Para uma coletânea representativa, ver Poterba, James e Von Hagen, Jürgen (orgs.). Institutions, politics and fiscal policy. Chicago, 1999. [ Links ]
[15] Para um Estado com dívida pública correspondente a 100% do pib, um aumento de dois pontos percentuais na taxa média dos juros que ele tem de pagar a seus credores elevaria seu déficit anual na mesma proporção. Um déficit no orçamento corrente de 4% do pib consequentemente aumentaria pela metade.
[16] Schumpeter, Joseph. "The crisis of the tax state" [1918]. In: Swedberg, Richard (org.). The economics and sociology of capitalism. Princeton, 1991. [ Links ]
[17] Em outras palavras, nem mesmo os "mercados" estão dispostos a apostar seu dinheiro no mantra supply-side[da doutrina macroeconômica assim denominada, literalmente "do lado da oferta"], segundo o qual o crescimento é estimulado por cortes nos gastos públicos. Por outro lado, quem poderá dizer quanta dívida nova é suficiente - e quanta é além da conta - para que um país cresça mais rápido do que sua dívida antiga?
[18] Os conceitos foram elaborados por David Lockwood em "Social integration and system integration". In: Zollschan, George e Hirsch, Walter (orgs.). Explorations in social change. Londres, 1964. [ Links ]
[19] Cf. Mair, Peter. Representative versus responsible government. Colônia, 2009 (Max Planck Institute for the Study of Societies, Working Paper 09/8).
[20] "Nós precisamos", afirmou Wolfgang Schäuble (Financial Times, 05/12/2010), "de novas formas de governança internacional, governança global e governança europeia". O ministro reconheceu que se o parlamento alemão fosse solicitado a abrir mão de sua jurisdição sobre o orçamento imediatamente, "não se conseguiria uma votação favorável", mas "se nos dessem alguns meses para trabalhar nisso, e se nos dessem a esperança de que outros Estados-membros também anuiriam, eu veria uma possibilidade". Schäuble estava falando, convenientemente, como vencedor do concurso promovido pelo Financial Times para eleger o ministro da Economia europeu do ano.
[21] Por exemplo, os apelos políticos à "solidariedade" redistributiva são agora dirigidos a nações inteiras, instadas por organismos internacionais a apoiar outras nações inteiras, a exemplo do pedido de que a Eslovênia ajude Irlanda, Grécia e Portugal. Isso escamoteia o fato de que aqueles que estão sendo apoiados por essa espécie de "solidariedade internacional" não são as pessoas do povo, mas sim os bancos, nacionais e estrangeiros, que de outro modo teriam de aceitar perdas ou lucros menores. Também elide diferenças de renda entre as nações: se os alemães são em média mais ricos do que os gregos (ainda que alguns gregos sejam bem mais ricos do que quase todos os alemães), os eslovenos são em média bem mais pobres do que os habitantes da Irlanda, que estatisticamente tem uma renda per capita mais alta do que quase todos os países do euro, inclusive a Alemanha. Essencialmente, o novo alinhamento do conflito traduz conflitos de classes na forma de conflitos internacionais, contrapondo nações que estão sujeitas às mesmas pressões dos mercados financeiros por austeridade pública. Pede-se a cidadãos comuns que demandem "sacrifícios" de outros cidadãos comuns que por acaso são de outros Estados, em vez de demandálos daqueles que há muito tempo voltaram a auferir seus "bônus".
[22] Wright Mills, C. The power elite. Oxford, 1956.

Sobre o autor

Wolfgang Streeck é diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades (Colônia, Alemanha).

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