14 de abril de 2011

Eles não perceberam?

David Runciman



Treasure Islands: Tax Havens and the Men who Stole the World 
by Nicholas Shaxson.
Bodley Head, 329 pp., £14.99, January 2011, 978 1 84792 110 9

Winner-Take-All Politics: How Washington Made the Rich Richer – and Turned Its Back on the Middle Class 
by Jacob Hacker and Paul Pierson.
Simon and Schuster, 368 pp., £11.50, March 2011, 978 1 4165 8870 2

Como se compõem e integram o personagem de Saif al-Islam Gaddafi, figura emblemática de nosso tempo – com doutorado na London School of Economics (“O Papel da Sociedade Civil na Democratização das Instituições de Governança Global”), suas fundações de caridade, sua extensa relação de propriedades, o estilo play-boy de levar a vida, a coroada e brilhantíssima coleção de amigos (Peter Mandelson, Nat Rothschild, Príncipe Andrew), seu acesso livre ao fundo soberano da Líbia – e sua recentemente enunciada disposição para eliminar os inimigos do regime de seu pai, “um tiro em cada um”? É hipócrita, provavelmente, mas isso não explica grande coisa. Também, para alguns, seria vítima: seu infeliz orientador acadêmico e mentor na LSE, David Held, descreveu em termos de “coisa shakespeareana”, o cataclismo cerebral pelo qual o reformador neoliberal Saif teria passado para sobreviver, depois que o povo de seu pai revoltou-se em armas. Mas isso também não nos leva a qualquer discussão mais consistente.

É provável que seja bandido-gentleman, que muitos observadores online identificaram ao bandido de fala suave e empresário elegante “Stringer” Bell, personagem do seriado The Wire [1] . Mas as palavras que mais bem capturam Saif Gaddafi aparecem no impressionante comentário que Nicholas Shaxson construiu em seu livro, do papel que os paraísos fiscais cumprem hoje nas finanças internacionais. 

Shaxson não discute os próprios Gaddafis, mas pinta um quadro mundial no qual o jovem Gaddafi, até bem recentemente, vivia perfeitamente à vontade. É o mundo do ‘offshore’ [ing. literalmente “ao largo”, “em mar alto”; por extensão, designa os chamados paraísos fiscais, muitos deles localizados em ilhas; mas a expressão aparece também em “petróleo offshore”, para designar petróleo submarino; e em “pesca offshore”, pesca de alto mar (NTs)]. No que aqui interessa, é o mundo dos paraísos fiscais, da deslocalização do dinheiro para fora de fronteiras territoriais continentais das grandes potências. Shaxson não se limita ao significado técnico do termo, de designação de jurisdições privadas que existem para permitir que os muito ricos não paguem impostos. Usa a palavra ‘deslocalizado’, ‘ao largo’, offshore, tanto para pessoas como para lugares, e tanto para qualificar um meio de vida, como para qualificar um estado mental. Assim definido, o adjetivo “deslocalizado” passa a ser palavra utilíssima. Saif Gaddafi é sujeito global deslocalizado, dos que vivem no mundo deslocalizado do dinheiro offshore.

A essência seja de pessoas seja de empresas globais no mundo global deslocalizado, do offshore, é parecerem todas respeitabilíssimas, ao mesmo tempo em que existem para permitir que quantidades muito grandes de dinheiro circulem com a mínima marola possível. Fugir de pagar impostos deixou de ser atividade clandestina. Os paraísos fiscais existem precisamente para que os muito ricos possam canalizar o próprio dinheiro de modo que escape das autoridades. Mas o dinheiro tem de continuar existindo, tem de manter-se acessível. E tem de ser líquido. Por isso tudo, os muito ricos preferem os paraísos fiscais onde podem conduzir os próprios negócios de modo relativamente exposto. Claro: as mais bem sucedidas instituições e empresas deslocalizadas offshore são as que fazem e respondem menos perguntas e, correspondentemente, mentem menos.

A expressão memorável, definitiva, que Shaxson cunhou para tudo isso é “o teatro da probidade”. Os suíços sempre foram mestres nessa arte, com suas maneiras formais e papelada mínima, gerida com perfeição. Mas outro dos campeões mundiais dessa arte são os britânicos. O livro de Shaxson explica como e por que Londres tornou-se o centro do que o autor chama de “teia de aranha de atividades deslocalizadas offshore” (e que, no processo, passou a oferecer lar confortável para os Saif Gaddafis do mundo). Porque a deslocalização offshore é movimento típico de impérios em declínio. Faz perfeito sentido e adapta-se muito bem a país que tem aparência de opulência e grandeza e de viver segundo padrões muito altos, mas que, por baixo dos panos, vive desesperadamente precisado de arranjar sempre e sempre mais e mais dinheiro.

Como Shaxson demonstra, muitos dos mais bem sucedidos paraísos fiscais do planeta são ex-entrepostos comerciais ou entrepostos comerciais ainda ativos, do império britânico. Entre esses, Hong Kong, as ilhas Channel e territórios britânicos remanescentes do ultramar, como as ilhas Cayman. Esses locais oferecem regimes muito limitados ou inexistentes de impostos, regulação nenhuma, política local fraca, mas todas as manifestações cenográficas de respeitabilidade ética e de transparência democrática. 

Os depositantes podem, sem qualquer comichão “ética”, depositar o próprio dinheiro em locais que sentem como “jurisdição britânica”, mesmo que, de fato, não sejam submetidos a nenhuma lei ou regulação britânica (e a nenhuma lei de impostos britânica). As ilhas Cayman, ou Jersey, fazem uso pleno de suas conexões britânicas, para assegurar aos muito ricos que seu dinheiro esteja em total segurança (o hino nacional de Cayman ainda é “God Save the Queen”), mas se alguém reclama às autoridades britânicas, de que aquelas ilhas estão sendo usadas por criminosos e ditadores para lavar dinheiro, o reclamante é informado de que são governos democráticos independentes, sobre os quais a Grã-Bretanha não tem qualquer poder. 

É o papel que Hong Kong desempenhou antes de ser devolvida à China em 1997: podia ser apresentada ao mundo exterior como local onde reinavam valores britânicos, mas sem a funesta tendência dos britânicos de aumentar impostos e impor padrões regulatórios às finanças, por ação de pressões políticas. Desempenha hoje o mesmo papel, agora para a China. Depois de 1997, a China preservou Hong Kong como uma ‘zona administrativa especial’ autônoma do continente em todos os campos, exceto no que tenha a ver com relações internacionais e defesa. 

Nas palavras de Shaxson, “As semelhanças com o laço ambíguo que liga a Grã-Bretanha e as ilhas Jersey, ou Grã-Bretanha-Cayman, não são coincidência. As elites chinesas querem ter seu próprio centro deslocalizado, offshore, com controle político à parte e separação jurídica”. O que sugere que os centros de finanças deslocalizados, offshore, também prestam bom serviço a impérios em ascensão.

Outro traço comum à maioria desses postos é que são ilhas. Ilhas são ótimas para receber paraísos fiscais, e não só porque estão topograficamente separadas, mas porque estão distanciadas das pressões políticas sempre muito ativas no centro. Além disso, constituem comunidades muito coesas, nas quais todos sabem o que acontece, mas ninguém vê qualquer vantagem em qualquer ‘revelação’ do que não é segredo para ninguém. E, além do mais, sobre todos pesa a ameaça do ostracismo. São como “aquários”, nas palavras de Shaxson, o que serve muito bem à forma mental do mundo do dinheiro deslocalizado, porque aquários são convincentemente transparentes. Vê-se através do aquário e não há “ponto cego”. Portanto, quanto mais você examina o aquário, mais você se convence da transparência dele, até convencer-se de que, ali, nada se poderia esconder. Jersey é caso exemplar: local agradável, de pessoas gentis, com forte senso de responsabilidade civil e cheio de oportunidades para qualquer empreendedor, inclusive para o Estado empreendedor, com eleições para todos os cargos públicos (senadores, deputados, xerifes e policiais de quarteirão), mas com partidos políticos muito fracos, com eleições gerais quase só formais e sem que jamais, ali, tenha havido alguma alternância nos postos eletivos. “Os incomodados mudam-se daqui” é a lei jamais desmentida da política transparente das ilhas Jersey. 

Evidentemente a diferença de opinião não foi completamente abolida, como seria sob ditadura (e motivo pelo qual as ditaduras dão péssimos paraísos fiscais: sob ditadura, ninguém jamais sabe quando a coisa toda voará pelos ares). Ali, apenas se dá tempo ao tempo, e todas as diferenças de opinião esvaziam-se. Acontece exatamente o mesmo nas Ilhas Cayman, com população mínima (cerca de 55 mil habitantes), deputados e senadores eleitos e governador-geral nomeado por Londres, que toma todas as decisões, mas, sempre, depois de ouvir a população local, democraticamente. Como disse um ex-governador-geral de Cayman, “acho que vivemos aqui no mundo da semântica. Quantos mais caymanenses sejam nomeados para postos de poder, melhor. Os nativos servem como faróis condutores, esclarecendo os pontos obscuros, sempre que há divergência de opinião no plano político”.

Essa é a teia, mas onde está a aranha? No coração do ensaio de Shaxson e da história que expõe, está sempre a City de Londres, ela própria uma espécie de ilha dentro do estado britânico. Outra vez, o crescimento da City como local preferido dos estrangeiros que tenham dinheiro para guardar, não importa quem sejam ou de onde venham, está associado ao declínio o império. 

Depois da 2ª Guerra Mundial, a libra esterlina ainda financiava grande parte do comércio global, mas a economia britânica já não tinha como defender o valor da pound contra o dólar. Depois de Suez, que provocou uma corrida para a pound, o governo tentou impor limitações aos empréstimos externos feitos por bancos comerciais londrinos. A resposta dos bancos, com a conivência do Bank of England, foi transferir seus empréstimos internacionais para o dólar. O resultado foi que assim se criou o chamado “mercado do eurodólar” – que sempre foi um muito efetivo paraíso fiscal, deslocalizado, offshore. Porque as trocas comerciais estavam acontecendo em dólares, os britânicos entenderam que não era preciso impor regulação alguma; e, porque estava acontecendo em Londres, os americanos não tinham meios para taxar aquelas trocas ou regulá-las, fosse como fosse.

Entre os primeiros a perceber as vantagens do novo sistema estavam os soviéticos, que precisavam de lugar seguro para guardar seus dólares fora dos EUA, de modo que os americanos não pudessem congelá-los, no caso de as relações entre os dois países se deteriorarem. Pouco depois, os próprios americanos acompanharam o movimento de        “deslocalização”, offshore, dos soviéticos rumo a Londres; não todos os cidadãos norte-americanos, claro: só os bancos norte-americanos e os indivíduos muito ricos – que viram o mercado londrino como alguém com quem podiam negociar, perfeitamente protegidos das garras das autoridades tributárias dos EUA. O dinheiro começou a chegar a Londres em pilhas e pilhas e pilhas.

O Banco de Londres vivia feliz: Londres era novamente o centro nervoso (e rico) da finança internacional. O governo dos EUA, como se pode adivinhar, não vivia igualmente muito feliz: temiam uma crise da balança de pagamentos. Mas quando, em 1963, o presidente Kennedy tentou conter os fluxos de dinheiro para fora do país e taxou o lucro de seguros estrangeiros, num esforço para conter a exportação de dólares para mercados exteriores mais lucrativos, obteve resultado exatamente oposto ao que almejava e produziu o que Shaxson chama de “estouro da boiada rumo ao mercado londrino offshore, deslocalizado, livre de impostos e regulações de qualquer tipo”. Os estrategistas da economia dos EUA estavam, pois, ante um dilema. Podiam tentar enfrentar a ameaça do mercado deslocalizado, ou com maiores juros domésticos, ou com controles ainda mais apertados contra a saída de dinheiro e regime regulatório mais rígido que exigisse dos bancos dos EUA que prestassem informações ao fisco nos EUA sobre suas atividades no mercado offshore londrino. E os EUA podiam ainda copiar Londres e criar seu próprio offshore doméstico, mais perto de casa: em outras palavras, se você não pode derrotá-los, alie-se a eles. 

A segunda via era a via de menor resistência – dentre outras coisas, seria meio útil para fortalecer a posição do dólar como moeda global de reserva; e, ao longo do tempo, os EUA escolheram essa via. Lentamente, a partir do final dos anos 1960s, ao longo dos anos 1970s e, depois, muito mais rapidamente nos anos 1980s e 1990s, os EUA desregularam todos os controles financeiros e deixaram que o dinheiro se movimentasse daqui para lá, com cada vez menos perguntas, controles e limitações, na esperança de que, no fluxo, mais dinheiro acabaria deixado pelo caminho, grudado nos dutos.

Nos EUA, iniciado o processo, criou-se uma onda de competição entre os estados dos EUA (“guerra fiscal”, como se chama no Brasil), com cada estado da federação tentando oferecer o ambiente menos regulado, mais hospitaleiro, menos intrusivo, para atrair empresas para seus respectivos territórios. O estado líder nesse movimento foi o pequeno Delaware, que sempre tentara compensar o território reduzido, com abertura para todos os negócios. Desde os anos 1980s, muitas e muitas corporações mudaram-se para o estado de Delaware, em busca dos benefícios de laissez-faire extremo com que Delaware tratava os direitos de acionistas e empregados, contra os interesses das gerências corporativas. 

Se você mudasse seu negócio para o Delaware (o que custava, apenas, o trabalho de mobiliar um escritório-sede e preencher alguns formulários), praticamente ninguém ou quase ninguém conseguiria provar coisa alguma contra você, porque as cortes de justiça do Delaware viviam sob a firme crença de que o que você fizesse era problema seu, não delas. Outra vez, os demais estados enfrentaram um dilema: podiam tentar isolar o Delaware, apertando cada vez mais os seus próprios padrões regulatórios, ou abriam uma disputa pela partilha do botim. Vários estados dos EUA decidiram competir e buscar a sua parte naquele latifúndio de desregulação. O que começara deslocalizado para longe, passou a ser deslocalizado aqui mesmo. O offshore atracou.

Quando os funcionários de Delaware viajaram pelo mundo, no final de 1980s para divulgar seus serviços (e esperando, dentre outras coisas, atrair para seu paraísooffshore estadual deslocalizado e atracado todo o dinheiro quentíssimo que se esperava que escapasse de Hong Kong no processo da devolução à China), divulgavam o slogan “Em Delaware, seu dinheiro está protegido contra todas as políticas”. 

Shaxson define um paraíso fiscal sem taxas e impostos, como “local que procura atrair negócios oferecendo estabilidade política, para ajudar pessoas e empresas a escapar de regras, regulações e jurisdições de que o resto do mundo vive cheio”. E é aí que está o xis.

Que fim deram à política? Por que esses movimentos do grande dinheiro não geraram instabilidade política, ou, no mínimo, alguma discussão política? No caso do Delaware, como em outras comunidades-aquário, o tamanho provavelmente explica alguma coisa (por longo tempo, toda a política estadual do Delaware foi modelada pela ação da família Du Pont, cujas vastas operações, na indústria química, dominavam a economia local). Mas no caso, digamos, de Washington, onde a mudança para uma forma de pensar de deslocalização ampla, de desatracamento, de offshore amplo geral e irrestrito do grande dinheiro deveria, no mínimo, ter gerado discussão social e, no mínimo, alguma oposição política empenhada? 

O que aconteceu aos representantes eleitos de todas as multidões de norte-americanos que não têm milhões e milhões a defender, que não têm dólares a deslocalizar nem que quisessem deslocalizar-se um pouco, e que tem, isso sim, interesse amplo geral e irrestrito em criar e defender sistema justo, amplo, progressista e progressivo de impostos, e que seja eficiente em termos de arrecadação? Não viram o que estava acontecendo?! Mas... mas... ninguém nunca percebeu nada?!

Essa é a questão que ocupa Jacob Hacker e Paul Pierson, em seu novo livro “A Política do Vencedor Leva Tudo”. Não consomem muito tempo explicando os mistérios do offshore e da deslocalização do grande dinheiro, mas o argumento que constroem é impressionantemente próximo do argumento exposto por Shaxson. Segundo Sahxson, um dos modos pelos quais se pode identificar um ambiente favorável a dinheiro deslocalizado, e sem conflito político, é verificar se, no local considerado, a política local foi capturada pelos serviços financeiros. Nesse sentido, Washington é perfeito para acolher paraísos fiscais, dinheiro grosso deslocalizado: a política, em Washington foi completa e absolutamente capturada pelos interesses de um grupo muito pequeno de indivíduos extremamente ricos – a maioria dos quais são o próprio mundo da grande finança. 

Para Hacker e Pierson isso, mais que qualquer outro fator, explica por que os muito ricos ficaram tão mais ricos ao longo dos últimos 30 anos. Quando dizem “ricos”, não dizem “ricos em geral”: falam dos super-ricos. Os verdadeiros beneficiários da explosão dos ganhos dos mais ricos desde os anos 1970s não foram os 1% mais ricos, mas, sim, os 0,1% mais ricos da população total. Desde 1974, os 0,1% mais ricos dos EUA viram sua renda passar de 2,7 para 12,3% do total da renda nacional, o que parece ser o caso mais espantoso de desigualdade na distribuição nacional, entre os que têm e os que não têm. Quem são essa gente? 

Como Hacker e Pierson observam, não são necessariamente superestrelas e celebridades do mundo da arte, entretenimento ou esportes. Nem são herdeiros ricos que vivem de fortuna acumulada nas famílias, como se via acontecer no início do século passado. 

Hoje, parcela significativa dos super-ricos são executivos e gerentes, muitos deles, executivos e gerentes de empresas financeiras.

Hacker e Pierson creem que a política deva ser culpada por isso. Aconteceu porque os políticos e os funcionários públicos deixaram que acontecesse; não aconteceu por causa de mercados internacionais, nem por causa da globalização ou por diferenças nas oportunidades educacionais ou de vida em geral. 

O que aconteceu foi construído, por pressão de lobbystas e de outras organizações para criar ambiente amigável para os super-ricos, que satisfaça suas necessidades. E se trata, de fato, de uma espécie muito particular de política, e de uma espécie muito específica de escolha. Não é resultado de conspiração, dado que aconteceu aí, à vista de todos. Mas não é movimento político do tipo de política que se vê nas ruas, com comícios, discursos e triunfos eleitorais,

A política que deixou que acontecesse o que aconteceu com o grande dinheiro planetário deslocalizado depende em grande parte do que Hacker e Pierson chamam de “um movimento de deriva”: “fracassos sistemáticos, prolongados de sucessivos governos responderam à deriva de um movimento econômico. Os políticos e decisores, com grande frequência, foram persuadidos a não resistir, a nada fazer, a deixar que as coisas se acomodassem, que andassem para onde quisessem andar, que o dinheiro corresse pelo mundo, para cima e para baixo, à vontade, até que o dinheiro se acumulou na ponta mais alta da pirâmide. 

Essa ideia faz eco ao que Shaxson diz sobre como o sistema de deslocalização do grande dinheiro foi deixado livre, leve, solto, sem qualquer controle, ao longo dos últimos 40 anos. E nem se fala de conspiração, porque ninguém precisou conspirar. De fato, o que aconteceu aconteceu porque “ninguém estava prestando atenção ao grande dinheiro”.

Uma das reclamações de Hacker e Pierson sobre o modo como nós em geral vemos a política é que não vemos o que realmente acontece, porque só vemos o showeleitoral e as disputas partidárias. É o teatro da política eleitoral, que se desenrola ao lado do teatro da probidade.

Muito frequentemente, dizem eles, reduzimos a política ao plano do esporte: “Isso, sem dúvida, é o que explica que a política eleitoral seja tão atraente, como tema, para a mídia: é excitante e é simples. Os torcedores memorizam as jogadas características de seus atletas preferidos ou se tornam especialistas em grandes pelejas passadas. Mas todos sempre podem gozar o apaixonante espetáculo oferecido por duas equipes altamente motivadas disputando a palma.”

Aqui, tenho de fazer um mea culpa. Já várias vezes me surpreendi pensando se me interesso por política pelo mesmo motivo que me interesso por esportes, e várias vezes senti-me vagamente culpado. Desconfio que a culpa se explique porque, de fato, não sei, a fundo, o que acontece nem num caso nem no outro. Eleições são eventos fascinantes, aqueles dias são vividos de modo tão radical, que com certeza ali nada se vê do que seja a verdadeira política: os grupos de pressão – dinheiro, lobbyes, ameaças – operam nesses dias para arrancar o melhor dos candidatos, sejam quem for, para influenciar a modelagem das políticas futuras. Eleições são também falsos pontos de virada histórica. 

Seria fácil aceitar que, se os ricos têm vencido nas últimas décadas, o processo começou com a eleição do grande agente pró-big business e antigoverno que foi Ronald Reagan em 1980 (e, concomitantemente, de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha em 1979). Mas Hacker e Pierson dizem que o verdadeiro ponto de virada aconteceu antes, em 1978, ainda durante a presidência de Jimmy Carter. 

Nesse ano, os lobbyistas e outros grupos organizados, que trabalhavam para implantar na opinião pública os discursos pró-desregulação e execravam o “peso dos impostos e regras” sobre os mais ricos e os interesses das grandes corporações, descobriram que ninguém labutava na resistência contra seus planos. 

Apesar de o Partido Democrata controlar a Casa Branca e as duas Casas do Congresso, 1978 assistiu à derrota de todas as tentativas para aprovar reformas progressistas no campo tributário e para fortalecer a posição legal dos sindicatos. Em vez disso, aprovaram-se leis para reduzir a carga tributária das empresas e aumentar a carga tributária dos empregados (leis que autorizam desconto de impostos na fonte, que são leis conservadoras). Tudo isso aconteceu, porque os políticos seguiram a via de menor resistência – como sempre fazem os políticos eleitos – e a resistência mais bem organizada e mais bem abastecida de dinheiro veio dos representantes do big business, não das forças trabalhistas organizadas.

O que aconteceu nos EUA nos anos 1980s foi, portanto uma extensão dos anos Carter, não alguma virada em relação a eles. O processo de desregulação e redistribuição rumo à concentração do dinheiro no pico da pirâmide foi acelerado nos anos Reagan, que era amplamente simpático a essa concentração. Mas não aconteceu por Reagan ser simpático ao processo, mas porque suas simpatias encontraram ambiente político favorável para correr com rédea solta, ambiente no qual a oposição manteve-se muda e a esperada coalizão de interesses populares jamais se materializou no campo contrário. Afinal de contas, como Hacker e Pierson observam, Richard Nixon, do qual se poderia esperar que partilhasse várias das simpatias de Reagan, uma década antes, havia labutado na direção oposta e acolhera o marco legal do estado de bem-estar e mantivera um sistema tributário amplamente progressista. (Processo semelhante acontecera na Grã-Bretanha, com Edward Heath.) 

Nixon agiu como agiu, não por suas simpatias estarem num lado ou noutro, mas porque não teve escolha: a pressão organizada para impedir que se aprovassem leis de concentração da riqueza ali estava, atenta, e muito mais forte que a pressão a favor dos interesses dos muito ricos. Só durante os anos Carter é que essa pressão enfraqueceu, e enfraqueceu muito mais do que se poderia esperar que enfraquecesse. Os políticos da revolução Reagan/Tatcher fizeram o que fizeram porque eram ideólogos comprometidos, determinados a não ceder um palmo de seus princípios. Fizeram o que fizeram, porque perceberam que não seriam presos nem seriam eleitoralmente derrotados.

Mas... e que fim levou a resistência contra os interesses da elite de super-ricos? Esse é o verdadeiro enigma, a cuja elucidação Hacker e Pierson dedicam-se empenhadamente, porque levam a democracia a sério – apesar de serem doentiamente obcecados na defesa de eleições.

Democracia implica favorecer os interesses da maioria, em detrimento dos interesses da minoria. Nas palavras de Hacker e Pierson, “A democracia talvez não preste em muitos pontos. Mas se supõe que seja eficaz para solucionar problemas que afetam maiorias amplas.” Será que a maioria realmente não se incomodou com estar perdendo tanto, a favor dos interesses de uma pequena elite de super-ricos? 

No caso dos EUA, a ideia geral é que os eleitores permitiram que tudo acontecesse porque vivem preocupados com outras coisas: religião, cultura, aborto, armas etc. Quem pense assim entende que os norte-americanos comuns assinaram uma espécie de pacto faustiano com o Partido Republicano, pelo qual os ricos ficariam com o dinheiro e os pobres receberiam apoio e respeito aos valores culturais que lhes eram caros. Hacker e Pierson rejeitam essa ideia, mas não só porque não acreditam que o processo que analisam dependa de haver um Republicano na Casa Branca. 

Os autores veem fortes evidências de que o público eleitor norte-americano continua a desejar um sistema tributário mais justo e entende que não é trabalho dos políticos proteger os interesses dos mais pobres contra os interesses da alta finança. O problema parece ser que os eleitores simplesmente não sabem o que os políticos fazem. O eleitor não é adequadamente informado sobre como as leis foram sendo consistentemente alteradas na direção que mais prejudicava o maior número de pessoas. “Os norte-americanos também são igualitaristas no que tenha a ver com o que entendem como mundo ideal” – escrevem Hacker e Pierson. “Mas têm opiniões muito menos claras, menos acuradas, quando se trata do mundo real”.

Por que ninguém estava prestando atenção ao que estava acontecendo? A culpa talvez seja da Internet, que torna cada vez mais difícil que alguém pense sobre alguma coisa, por tempo suficiente. Mas chama a atenção, de fato, que o argumento de Hacker e Pierson implica retorno a uma crítica muito antiga da democracia, uma crítica que floresceu nos anos 1920s e 1930s, mas foi suplantada, no período do pós-guerra, pela convicção de que os eleitores seriam competentes para manifestar comportamento racional em massa. 

Essa crítica tradicional não vê qualquer fragilidade na democracia, no sentido de supor que os eleitores desejem coisas erradas, ou que não saibam o que querem. O eleitor sabe o que quer, mas não sabe como consegui-lo. As pessoas não são idiotas, mas, no que tenha a ver com política e votos, são ignorantes, preguiçosas, deixam-se satisfazer rapidamente por qualquer resposta de ocasião, construída para acalmá-las e calá-las. Hacker e Pierson reconhecem que hoje já se vê como ‘politicamente incorreto’ dizer tais coisas, mesmo nos discursos políticos sérios. Mas ainda é plena verdade. 

“A maioria dos cidadãos dá pouca atenção à política, o que se vê pelas ruas. Generosidade política, hoje, seria, precisamente, chamar a atenção dos eleitores para seus vícios.” A solução tradicional que se encontrou para esse problema tem sido suprir a ignorância dos eleitores com opiniões de especialistas, que se apresentam como dispostos a reformar todo o sistema, na direção do melhor interesse dos eleitores. A dificuldade é que, quanto mais falam esses especialistas, menos os eleitores manifestam interesse em informar-se mais sobre o que se passa no mundo. 

É onde Hacker e Pierson identificam o xis do problema da política democrática: para combater o que acontece fora do radar dos eleitores, é preciso que a luta continue a acontecer nos espaços que o eleitor vê. A esperança progressista é que, assim sendo, o leitor eventualmente acorde para as lutas e decida engajar-se nelas. Nas palavras de Hacker e Pierson: “Os reformadores políticos têm de aprender a discutir política pequena e para poucos, em milhões e milhões de fronts, a política de eixo longo e transmissão complexa.” O que exige muito tempo.

Mas tempo parece ser uma das coisas que os reformadores não têm. Como Shaxson aponta, em seu estudo de como nasceram os paraísos fiscais, uma das causas pelas quais a deriva andou na direção da desregulação é que a resistência política demorou demais para constituir-se como resistência. E aqui, outra vez, aparece mais uma das críticas tradicionais que se fez à democracia: enquanto os democratas bons e decentes organizam-se para fazer do mundo lugar mais acolhedor, o mundo a ser transformado já se transformou. 

Em ambiente de altas finanças, cada vez mais rápido, é sempre mais fácil reunir uma coalizão de vontades a favor de cada vez menos regulações e regras, que reunir gente para trabalhar a favor de mais regulações ou leis mais apertadas. Assim também, é sempre mais fácil não aplicar leis que haja, do que fazê-las valer: não aplicar leis é trabalho instantâneo – basta fechar os olhos, exige o tempo de uma piscadela – mas aplicar leis é processo lento e laborioso. 

Shaxson, como tantos de nós, parece ter construído a arapuca na qual se vê preso. Por um lado, entende que a chave para resistir ao poder do dinheiro deslocalizado, global, offshore, super concentrado no topo da pirâmide, é construir sistema mais transparente, baseado no que chama de “troca automática de informação, em plataformas multilaterais”. Mas, isso, é o mesmo que entregar o timão aos especialistas (que, cada dia mais, falam sozinhos, ou só entre eles). 

Por outro lado, Shaxson quer governos nacionais mais ativos, dinâmicos, que respondam mais e melhor aos cidadãos. Mas, nesse caso, supervalorizam-se os governos nacionais e se enfraquece qualquer governança global, cuja coordenação é indispensável a qualquer sistema que se queira transparente. Se as políticas nacionais forem reforçadas, mais difícil será implantar qualquer coordenação no plano internacional. Essa é a arapuca-total em que se meteu a globalização.

Shaxson ilustra o problema, ao final de seu livro, quando lista propostas para mudar a cultura da grande finança deslocalizada global offshore. Um dos exemplos que oferece de como se pode fazer, vem dos EUA onde, em 2001, o Congresso afinal aprovou leis mais duras contra a lavagem de dinheiro e impediu a proliferação de bancos offshore que se ocultam sob delegados e acionistas cujos verdadeiros nomes ninguém conhece e que são os verdadeiros proprietários daqueles bancos. Mas, aí, é preciso considerar a data: todas essas leis foram incluídas no “pacote” do Patriot Act, e só foram aprovadas porque todos os deputados e senadores estavam paralisados pelo 11/9. Além do mais, ninguém, em sã consciência, dirá que daquelas leis resultou mundo mais bem integrado ou mais transparente, ou alguma revitalização da política nos EUA. 

Shaxson recomenda também que os governos se dediquem mais a manter ‘em casa’ o dinheiro da grande finança. Uma das forças motrizes do mundo da grande finança deslocalizada global offshore, diz ele, são “as marés de dinheiro sujo do petróleo que escorrem para dentro do sistema offshore global, e distorcem, nesse processo, toda a economia global.” Solução radical para manter as riquezas minerais dos países longe das mãos dos poucos indivíduos hiper-ricos e nas mãos de cidadãos comuns, é redistribuir o dinheiro, internamente, diretamente para os cidadãos. Parece irrealista, mas já se faz assim em vários lugares do mundo, por exemplo, na Líbia e no Alaska. Mas Shaxson não deixa que sua análise avance até a revelação dos nomes dos políticos governantes que fazem isso: Muammar Gaddafi, na Líbia; e Sarah Palin, no Alasca. 

Assim sendo, sim, políticos ágeis, socialmente sensíveis, democráticos ou não, podem fazer grande diferença; mas não se conclui daí que, de suas políticas, resultem melhor compreensão entre os povos, nem, sequer, alguma paz. Esses dois ensaios brilhantes que resenhamos aqui acertam, ao sugerir que a política seja parte da questão. Mas a política (e a democracia) continuam a ser, também, sempre, parte do problema. 

13 de abril de 2011

Como os socialistas construíram a América

A história de nossa nação tem muitos tons ricos e vibrantes - alguns deles vermelhos.

Jonh Nichols



Tradução / Se há uma constante no discurso da elite [dos EUA] nacional nestes dias é a afirmação de que a América foi fundada como um país capitalista e que o socialismo é uma importação perigosa que, a despeito de nossa não autorizada fé no livre mercado, deve ser barrada na fronteira.

Essa “sabedoria” mais convencional – cada vez mais aceita ao menos até as recentes mobilizações de massa no Wisconsin, em Ohio, no Michigan e no Maine – tem defendido que tudo o que é público é inferior a tudo o que é privado, que as corporações são sempre boas e que os sindicatos sempre são ruins, que a tributação progressiva é intrinsecamente má e que o melhor modelo econômico é aquele que permite que os ricos fiquem cada vez mais ricos, assim como a República, que então distribuirá migalhas da sua riqueza para a imensa maioria dos estadunidenses. Rush Limbaugh informa-nos regularmente que as propostas de taxação de pessoas ricas como ele, com o objetivo de financiar assistência em saúde para crianças e empregos para os desempregados são “antiéticas” frente aos propósitos originais da nação e que as reformas de Barack Obama estão “destruindo o modo como este país foi fundado”.

Quando Obama apresentou sua tímida proposta de organização de um sistema de assistência médica privado mais humano, Sean Hannity, da Fox, denunciou que “a Constituição foi rasgada, injuriada, o estado de direito foi afastado”. Newt Gingrich disse que a administração Obama estava “preparada para fundamentalmente violar a Constituição” e estava governando para “30% do país [que] de fato é a favor de um sistema socialista secular de esquerda”.

Em 2009, Sarah Palin mostrou preocupações constitucionais parecidas, quanto à proposta de Obama de desenvolver uma “legislação universal de energia para construções verdes” com o objetivo de promover a eficiência energética. “Nosso país poderia vir a se tornar algo que sequer reconheceríamos, certamente que isso está muito distante do que os pais fundadores de nosso país tinham em mente para nós”; gravemente preocupada, informou Palin a Hannity, que respondeu com uma pergunta de uma palavra: “Socialismo?”. “Bem”, disse ela, “é para onde estão nos conduzindo”.

Na verdade, não é. Palin está errada quanto aos perigos da eficiência energética, e está errada a respeito de Obama. O presidente disse que não é um socialista, e os maiores porta-vozes socialistas do país concordam veementemente. De fato, as únicas pessoas que parecem acreditar que Obama apresenta uma tendência minimamente socialdemocrata são aqueles que imaginam que qualquer menção à palavra “socialismo” poderia inspirar uma reação como a do vampiro confrontado com a hóstia.

Infelizmente, Obama pode ser mais assustado pela letra "S" do que por Palin. Quando um repórter do New York Times perguntou ao presidente em março de 2009 se suas politicas internas sugeriam que ele fosse um socialista, um Obama relaxado respondeu: “A resposta seria não”. Ele disse que estava sendo criticado simplesmente porque estava “tendo de fazer algumas escolhas difíceis” quanto ao orçamento. Mas depois que conversou com seus assessores hiper cautelosos, ele começou a se preocupar. Então chamou o repórter de volta e disse: “para mim é difícil acreditar que você estava realmente falando sério quando fez a questão sobre o socialismo”.

Então, como se estivesse lendo as marcações de um discurso, Obama declarou: “Não foi sob o meu governo que se começou a comprar um bando de ações de bancos. E não foi sob o meu comando que se concedeu subvenção massiva, a receita da drogadição, sem fontes de recursos para arcar com isso. Temos na verdade operado de uma maneira que tem sido inteiramente consistente com os princípios do livre mercado”, disse Obama, que concluiu atacando: “alguns dos que andam me chamando por aí de ‘socialista’ não podem dizer o mesmo”.

Há mais do que um pingo de verdade nessa declaração. Obama de fato está evitando a adjetivação de socialista, ou mesmo de um social democrata médio, nas respostas aos problemas que o confrontam. Ele afastou a opção do pagador único no início do debate sobre a reforma da saúde, rejeitando o tratamento que em outros países promoveu assistência em saúde de qualidade aos cidadãos, a custos baixos. Sua resposta supostamente “socialista” ao colapso da indústria automobilística foi dar dezenas de bilhões de dólares no resgate dos fundos da GM e da Chrysler, que usaram o dinheiro para despedir milhares de trabalhadores e então realocar dúzias de plantas industriais no exterior – uma abordagem o mais distante possível que um país pode ter do modelo social democrata de aplicação dos investimentos e de políticas públicas na promoção de empregos e na dinamização econômica da sociedade.

Quando a plataforma em águas profundas da British Petroleum (BP) explodiu, ameaçando toda a costa do Golfo, em vez de dispor dos engenheiros das Forças Armadas e de outras agências do governo encarregadas de lidarem com crises, Obama deixou a gestão do problema a cargo da corporação que tinha mentido a respeito da extensão do vazamento de petróleo, que tomou decisões com base na sua disponibilidade de tempo, em detrimento das necessidades humanas e ambientais, e fracassou até nas tarefas mais básicas.

Então deveríamos levar o presidente ao pé da letra quando ele diz que age com base nos princípios do livre mercado. O problema, claro, é que a rigidez de Obama quanto a isso está conduzindo-o a rejeitar ideias mais seguras do que aquelas fixadas pelo setor privado. Emprestar ideias e abordagens de socialistas não tornaria Obama em nada mais socialista do que Abraham Lincoln, Teddy Roosevelt, Franklin Roosevelt ou Dwight Eisenhower. Todos esses presidentes anteriores misturaram ideias de traços marxistas ou emprestados das plataformas dos partidos socialistas com tanta frequência que o New York Times observou, num perfil publicado em 1954, a fé de um velho Norman Thomas de que “ele tinha dado uma grande contribuição no pioneirismo de ideias que hoje ganharam o apoio dos dois maiores partidos” – ideias como “seguridade social, financiamento público da moradia, investimento público, proteção legal para direitos trabalhistas e outros atributos do Estado de Bem Estar”. O fato é que muitos dos homens que ocuparam o Salão Oval antes de Obama souberam que a implementação de ideias de cunho socialista ou social democrata não os colocaria em conflito com a experiência estadunidense ou com a Constituição.

O ponto aqui não é defender o socialismo. O que deveríamos estar defendendo é a história – a história dos EUA, que tem tons ricos e vibrantes, e alguns do vermelho. O passado deveria ser consultado não somente para anedotas ou factóides, mas para fornecer uma perspectiva no presente. Essa perspectiva empodera os estadunidenses que buscam um debate robusto, que compreenda um amplo espetro ideológico – um empreendimento apropriado para um país em que Tom Paine imaginou cidadãos que “lançando seu olhar sobre um vasto campo, tomariam um caminho igualmente vasto, e então, aproximando-se cada vez mais do universo, sua atmosfera de pensamento se expanderia e sua liberalidade preencheria um espaço mais amplo”.

A América sempre sofreu com os idiotas que teriam feito definhar o debate ao nível de uma série de opiniões estreitas o suficiente para abarcar os editos de um potentado, uma prece ou um dono de plantation. Mas a história real da América nos diz que a única coisa a respeito da qual nossa situação presente corresponde é que temos padecido com os idiotas tão completamente que uma boa parte dos estadunidenses – não apenas os Tea Partisans ou os Limbaugh Dittoheads, mas cidadãos da grande classe média - na verdade levam Sarah Palin a sério quando ela vocifera que o socialismo, na forma do código de construção civil verde é antitético ao americanismo.

***

Palin não é a primeira deste tipo. Não há nada de novo na acusação de um presidente que está dirigindo um “grande governo” voltado a outros projetos que não a invasão de algum país distante é socialista. Na primavera de 2009, alguns meses após Obama e o novo congresso democrático tomarem posse, vinte e três membros da oposição reapresentaram um velho projeto, em que propõem que “nós, os membros do Comitê Nacional Republicano convocamos o Partido Democrata a ser verdadeiro e honesto com o povo americano, ao reconhecerem que eles evoluíram de um partido que apoiava a tributação e os gastos para um partido de tributação e nacionalização e que, portanto, deveriam concordar em se renomearem de Partido Socialista Democrático”.

As cabeças frias prevaleceram. Por sorte. Num encontro de emergência do comitê – cuja história remonta à primeira convenção republicana, em 1856, em que seguidores do socialista francês Charles Fourier, o editor de Karl Marx e seus camaradas abolicionistas iniciaram a mais radical reestruturação dos partidos políticos na história dos EUA – foi sugerido que a proposta de impor um novo nome para os democratas poderia fazer com que o “Partido Republicano parecesse vulgar e sectário”. O plano foi derrubado, mas uma resolução denunciando a “marcha para o socialismo” passou. Assim, os membros da RNC [Convenção Nacional Republicana, em sua sigla em inglês] agora oficialmente “reconhecem que o Partido Democrata é dedicado a reestruturar a sociedade americana junto aos ideais socialistas” e que os democratas têm como sua “clara e óbvia intenção... propor, aprovar e implementar programas socialistas por meio da legislação federal”.

O Partido Republicano está atualmente mais firme em sua acusação de que os democratas estão conduzindo a nação “para o socialismo” do que estava durante a Ameaça Vermelha de Joe McCarthy nos anos 50, quando o senador do Wisconsin acusou Harry Truman de abrigar células do Partido Comunista no governo. Truman reagiu ao ultraje conservador, argumentando que o governo tinha a autoridade para impor leis antilinchamento nos estados e propondo um plano nacional de saúde. Mas o que incomodava mesmo os republicanos era que Truman, que se esperava fosse perder a disputa em 1948, tinha não só acabado de vencer a eleição como restaurado o controle do Congresso. Para contraatacar essa tendência eleitoral afrontosa, os republicanos conservadores, liderados pelo senador do Ohio Robert Taft, anunciaram em 1950 que seu slogan daquelas eleições para o congresso seria “Liberdade contra o Socialismo”. Eles então produziram um adendo a sua plataforma nacional, cuja maior parte era devotada à histeria de McCarthy acusando o plano de reformas Fair Deal, de Truman, de ser “ditado por um pequeno, mas poderoso grupo de pessoas que acreditam no socialismo, que não tem um conceito da verdadeira fundação do progresso americano, e cujas propostas estão completamente em desacordo com os verdadeiros interesses e verdadeiros desejos dos trabalhadores, agricultores e homens de negócio”.

Truman reagiu, lembrando aos republicanos que suas políticas foram apresentadas na plataforma eleitoral de 1948, que tinha obtido vasta maioria dentre o eleitorado. “Se nosso programa foi ditado, como dizem os republicanos, foi ditado pela votação em novembro de 1948. Foi ditado por um “pequeno mas poderoso grupo de 24 milhões de eleitores”, disse o presidente, que acrescentou: “Eu penso que eles sabiam melhor que o Comitê Nacional Republicano quais os desejos verdadeiros dos trabalhadores, agricultores e homens de negócios”.

Truman não deu cabimento à menção da palavra “socialismo’, que naqueles dias era distinguida na mente da maioria dos estadunidenses como o stalinismo soviético, com o qual o presidente – um péssimo guerreiro da guerra fria - estava disputando. Nem vociferou Truman, que contava dentre seus aliados essenciais com sindicalistas como David Dubinsky, Jacob Potofsky e Walter Reuther, todos eles ligados a causas socialistas e em muitos casos ao partido socialista de Eugene V. Debs e Norman Thomas, contra os males da social democracia. Antes, debochou: “Fora o grande progresso deste país, fora os grandes avanços na conquista de uma vida melhor para todos, fora a ascensão para uma liderança mundial, os líderes republicanos não aprenderam nada. Confrontados pelo grande recorde deste país, e pela tremenda promessa de futuro que ele porta, tudo o que eles fazem é coaxar ‘socialismo’”.

Os republicanos mais espertos abandonaram a campanha. O retorno ao realismo foi liderado pela senadora do Maine, Margaret Chase Smith, que temia que o seu partido fosse prejudicado não só nos prospectos eleitorais, mas no país. No verão ela lançou a sua “Declaração de Consciência” – o primeiro desafio sério ao McCartismo a partir do GOP [Antigo Grande Partido, em sua sigla em inglês, como muitos republicanos chamam] – no qual ela rejeita a histeria anticomunista do momento:

“Aqueles de nós que gritam mais alto a respeito do americanismo, encenando características ferozes, também são os que mais frequentemente, em suas próprias palavras e atos, ignoram alguns dos princípios americanos básicos: o direito de criticar, o direito de defender crenças impopulares, o direito de protestar e o direito ao pensamento independente".

Os republicanos devem estar determinados a terminar com o controle democrata do congresso”, sugere Smith em sua declaração:

“Mas fazer isso com um regime republicano que abraça uma filosofia carente de integridade política ou de honestidade intelectual seria igualmente desastroso para esta nação. A nação precisa seriamente de uma vitória republicana. Mas eu não quero ver o Partido Republicano obter vitória política cavalgando sobre os Quatro Cavaleiros da Calúnia – Medo, Ignorância, Intolerância e Difamação. Eu tenho dúvidas se o partido republicano pode fazer isso – simplesmente porque eu não acredito que o povo americano apoie um partido político que ponha a exploração política acima do interesse nacional”.

A maioria dos republicanos não teve coragem para confrontar McCarthy tão diretamente. Mas a sabedoria de Smith prevaleceu entre os líderes do Comitê Nacional Republicano e dos velhos membros do GOP nas comissões do congresso, que largaram o slogan “liberdade contra o socialismo” e reduziram o número de palavras do manifesto de 1950 para um resumo com 99, que os repórteres do Washington [Post] explicaram que tinham sido remendados para “pegar leve” na coisa toda do “liberdade contra o socialismo”. O congressista James Fulton, que como muitos outros moderados do GOP da época na verdade sabiam e trabalhavam com membros do Partido Socialista e com radicais de várias colorações, foi o mais direto. O slogan barato, argumentou, tinha afastado o partido da questão fundamental do GOP na era do pós-guerra: “se voltamos a ser Matusalém ou oferecemos um programa alternativo para o progresso social no quadro de um orçamento equilibrado”.

Imagine se hoje um proeminente republicano iria dizer algo parecido. A ira de Limbaugh, Hannity, Palin e do movimento Tea Party iria cair sobre ele. O Clube para o Crescimento iria se organizar para derrotar “os republicanos só no nome”, e a limpeza ideológica do partido de Lincoln, Teddy Roosevelt, Eisenhower e Margaret Chase Smith aceleraria. Alguns dos meus amigos democratas estão bastante contentes com o prospecto; como hoje os republicanos estão beirando ao extremismo que evitaram, mesmo nos dias de McCarthy, sugerem esses democratas, as possibilidades de vitória ficarão claras para candidatos do tipo. Mas isso menospreza o dano causado à democracia quando o discurso degenera, quando a única luta real se dá entre a franja de um partido e outro que assume o caminho da vitória para se mover para a centro direita e então espera que os medos de uma direita totalitária manterão todo mundo à esquerda, votando na linha democrata.

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Se legislações universais de construções verdes e proteções à saúde das crianças podem ser usados com sucesso por nossa mídia degenerada como um ataque aos valores americanos e ao estado de direito, então a direita já venceu, não importa qual o resultado no dia da eleição. E uma nação fundada na revolta contra o império, uma nação que alimentou a resposta republicana radical ao pecado da escravidão, uma nação que confrontou o colapso econômico e a injustiça com um New Deal e uma Guerra contra a Pobreza, uma nação que gerou um movimento pelos direitos civis e que ainda recita uma Prece da Aliança (escrita em 1892 pelo socialista cristão Francis Bellamy) ao ideal de uma América “com liberdade e justiça para todos” está desprovido do que sempre em nossa história tem sido o elemento essencial de nosso progresso.

Esse elemento – uma crítica social frequentemente combinada com um partido político socialista e mais recentemente ligado ao ativismo socialista independente no mundo do trabalho e na militância por direitos iguais entre homens e mulheres, pelas minorias étnicas, imigrantes, gays e lésbicas, e pessoas portadoras de necessidades especiais – tem desde os primeiros dias de nação sido parte de nossa vida política. Este país não seria o que é hoje – de fato, poderia inclusive não ser – não tivesse tido a influência positiva de revolucionários, radicais, socialistas, socialdemocratas e seus companheiros de viagem. O grande cientista político Terence Ball nos lembra que “no auge da guerra fria uma forma limitada de assistência em saúde – o Medicare – passou no Congresso ganhando das objeções da Associação Médica Americana e da indústria de seguros, e foi parar na mesa do presidente Johnson.”

Isso não aconteceu por acaso. Um jovem escritor reconheceu que era possível rejeitar o totalitarismo soviético, enquanto ainda se aprende com Marx e abraça a esquerda democrática socialista do movimento católico Dorothy’s Day para se juntar à Liga da Juventude Socialista. Michael Harrington queria mudar o rumo do debate sobre a pobreza na América, e talvez notável ou profeticamente, ele presumiu que se ligar ao outrora forte mas naquela altura aliado partido socialista era a maneira de fazer isso. Num artigo de 1959, para a então liberal Commentary Magazine, Harrington buscou, nas palavras do seu biógrafo, Maurice Isserman, “superar a sabedoria convencional de que o Estados Unidos tinha se tornado uma sociedade majoritariamente de classe média. Usando o critério da linha da pobreza da renda de 3 mil dólares anuais para uma família de 4 pessoas, ele demonstrou que quase um terço da população vivia ‘abaixo desse padrão que fomos ensinados a observar como o mínimo decente para comer, morar, vestir e ter saúde’”.

Harrington foi além dos seus sonhos mais radicais. O artigo levou a um livro, “A outra América: Pobreza nos Estados Unidos”, que se tornou leitura obrigatória para os políticos, vendendo 70 mil cópias no seu primeiro ano. “Dentre os leitores célebres do livro estavam John F. Kennedy, que no outono de 1963 começou a pensar em propor uma legislação antipobreza”, rememora Isserman. “Depois do assassinato de Kennedy, Lyndon Johnson tomou para si a tarefa, convocando em seu discurso à nação em 1964 uma “incondicional guerra contra a pobreza”. Sargent Shriver liderou a força tarefa responsável pelo projeto de legislação e convidou Harrington a Washington como consultor”. As propostas de Harrington de renovar os projetos de trabalhadores públicos do New Deal nunca foram plenamente abarcadas. Mas a defesa dele e de outros de que o governo deveria intervir por aqueles que não podiam cuidar de si mesmos ou de suas famílias contava com o que o autor descreveu como uma “Seguridade Social completa”, ao prover assistência em saúde para os idosos. Isso demandou da administração Johnson o projeto “Great Society”, incluindo o projeto de lei do Social Security Act de 1965 – ou Medicare. Johnson fez o seu combate, mas os estadunidenses concordaram com seu presidente quando ele argumentou que “o plano de assistência em saúde, pelo qual o presidente Kennedy tanto lutou para implementar, é o modo americano; é prático, é sensível, é igualitário e é justo”.

Poderia um plano descrito como “medicina socializada” pela Associação Médica Americana, porque era, de fato, verdadeiramente medicina socializada ser “o modo americano”? É claro. Durante o debate sobre o Medicare no começo dos anos 60, o senador do Texas e candidato George H.W.Bush condenou a proposta como “estranhamente socialista”. Ronald Reagan, então fazendo a transição de garoto propaganda na televisão para garoto propaganda televisivo do senador conservador Barry Goldwater, alertou os cidadãos de que se esse projeto fosse aprovado os estadunidenses poderiam ver a si mesmos “dizendo às nossas crianças e aos filhos de nossos filhos como foi um dia a América, quando os homens eram livres”. Mas Bush e Reagan administraram o programa quando de suas gestões na presidência, e os ativistas do Tea Party hoje, nos seus encontros nas salas de estar das cidades, ameaçam qualquer legislador que ouse mexer no seu amado Medicare.

Os estadunidenses não teriam tido o Medicare se Harrington e os socialistas que vieram antes dele – de candidatos presidenciais como Debs e Thomas a dirigentes como Mary Marcy e Margaret Sanger e como a militante do partido comunista Elizabeth Gurley Flynn – não tivessem por décadas pressionado os limites do debate sobre a assistência em saúde. Tampouco um ativista como o Senador Edward Kennedy teria declarado: “Eu vejo Michael Harrington como fazendo o Sermão da Montanha à América”. O mesmo foi verdade nos dias dos debates abolicionistas, quando os socialistas – inclusive amigos de Marx que imigraram para os Estados Unidos depois que as revoluções de 1848 foram esmagadas na Europa – energizaram o movimento contra a escravidão e ajudaram a dar-lhe expressão política na forma do Partido Republicano.

O mesmo foi verdade nos primórdios do século XX, quando editores do partido socialista, como Victor Berger combateu as tentativas de destruição das liberdades civis e definiu nosso moderno entendimento de liberdade de expressão, liberdade de imprensa e direito de reconversão processual. O mesmo foi verdade quando o longevo socialista A. Philip Randolph convocou em 1963 a Marcha em Washington por Empregos e Liberdade e convidou o jovem pregador Martin Luther King Jr., que tinha muitos conselheiros socialistas além do respeitável Randolph, para fazer o que viria a ser conhecido como o discurso “I Have a Dream” [Eu tenho um sonho].

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Em cada momento crítico da nossa jornada nacional, os pensadores socialistas e os militantes, assim como candidatos e burocratas, empurraram o governo para uma direção progressista. Pode ser verdade, como sugere o historiador Patrick Allitt, que “milhões de estadunidenses, inclusive muitos desses críticos [da administração Obama], sejam defensores ardentes do socialismo, mesmo que eles não entendam isso ou sequer usem na verdade a palavra” para descrever os serviços públicos que são “organizados segundo linhas diretivas socialistas”, como escolas e autoestradas. De fato, socialistas contemporâneos e militantes do Tea Party podem na verdade encontrar um fundo comum (talvez desconfortável) na asserção de Allitt de que “o socialismo como um princípio organizacional está vivo e bem aqui, assim como o estava ao longo do mundo industrializado” – mesmo que eles não concordem que isso seja uma boa coisa. Programas “organizados segundo linhas diretivas socialistas” não tornam um país socialista. Mas a América sempre foi e deve continuar sendo informada pelos ideais socialistas e pela crítica socialista das políticas públicas.

Vivemos em tempos complexos, em que profundos desafios econômicos, sociais e ambientais exigem um conjunto de respostas. Os socialistas certamente não têm todas as respostas, mesmo que as pesquisas indiquem que mais americanos encontram apelo na palavra “socialismo”, do que em décadas. Mas sem ideias e sem militância socialista, não teremos uma contrabalança suficiente para o impulso anti-governo que tem menos a ver com libertarianismo do que manipulação do debate pelas todas poderosas corporações. Abraham Lincoln, Teddy Roosevelt, Franklin Roosevelt, Dwitht Eisenhower e John Kennedy não eram socialistas. Mas a nação se beneficiou de seus empréstimos às ideias socialistas e social democratas. Barack Obama certamente não é um socialista. Mas ele, e a nação que ele comanda, seriam bem servidos por um empréstimo similar ao povo que um dia imaginou o Social Security, o Medicare, o Medicaid e a Guerra contra a Pobreza.

Sobre o autor 

Jonh Nichols é correspondente em Washington do The Nation e editor associado do The Capital Times (http://host.madison.com/ct/), Wisconsin. Seu livro mais recente é “A Letra S: uma breve história na tradição americana (The “S” Word: A Short History of an American Tradition... Socialism). É co-fundador da organização pela reforma da liberdade de imprensa e co-autor, junto com Robert W. McChesney de A morte e a vida do jornalismo americano: a revolução midiática que dará origem ao mundo de novo (The Death and Life of American Journalism: The Media Revolution that Will Begin the World Again) e de Tragédia e Farsa: Como a mídia americana vende a guerra, corrompe eleições e destrói a democracia (Tragedy & Farce: How the American Media Sell Wars, Spin Elections, and Destroy Democracy). Os outros livros de Nichols incluem: Dick: o homem que é presidente (Dick: The Man Who is President).

1 de abril de 2011

Sobre a concatenação no mundo árabe

De Túnis a Manama, 2011 trouxe uma reação em cadeia de levantes populares, em uma região onde a dominação imperial e o despotismo interno há muito se entrelaçam. Um apelo à liberdade política para se reconectar com a igualdade social e a fraternidade árabe, em um novo internacionalismo radical.

Perry Anderson

New Left Review


Editorial

A revolta árabe de 2011 pertence a uma classe rara de acontecimentos históricos: a da concatenação de levantes políticos, um deflagrando o outro em toda uma região do mundo. Houve apenas três precedentes: as guerras de libertação das colônias hispano-americanas de 1810–25; as revoluções europeias de 1848–49; e a queda dos regimes no bloco soviético em 1989–91. Cada um deles foi historicamente específico de seu tempo e lugar, tal como serão as explosões em cadeia no mundo árabe. Desde que se acendeu o fósforo na Tunísia, em dezembro de 2010, e as chamas se espalharam para o Egito, Bahrein, Iêmen, Líbia, Omã, Jordânia e Síria, não se passaram mais de três meses; qualquer previsão sobre os resultados é prematura. Na lista dos levantes antigos, nenhum durou menos de dois anos. O mais radical acabou em completa derrota, por volta de 1852. Outros dois triunfaram, embora os frutos da vitória tenham sido muitas vezes amargos: bem diversos das esperanças de um Simón Bolívar ou de uma Bärbel Bohley. O destino final da revolta árabe pode ser parecido com qualquer um deles, mas também pode ser sui generis.

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Dois aspectos fizeram com que o Oriente Médio e o norte da África ocupassem uma situação à parte no universo político contemporâneo. O primeiro é a duração e a intensidade do domínio ocidental da região, durante todo o século passado. Do Marrocos ao Egito, o controle colonial do norte da África repartiu-se entre a França, a Inglaterra e a Itália antes da Primeira Guerra Mundial, enquanto o Golfo virou uma série de protetorados britânicos, com Áden constituindo um posto extremo da Índia britânica. No pós-guerra, no último vagão do butim territorial europeu, os despojos do Império Otomano ficaram com a Inglaterra e a França, formando o que foi denominado, nas suas pranchetas e esquadros, Iraque, Síria, Líbano, Palestina e Transjordânia. A colonização formal demorou a chegar a boa parte do mundo árabe. A África Subsaariana, o Sudeste da Ásia, o subcontinente indiano, para não falar da América Latina, foram conquistados muito antes que a Mesopotâmia ou o Levante. Diferentemente de qualquer dessas zonas, porém, no mundo árabe a descolonização formal foi acompanhada por uma sequência praticamente ininterrupta de guerras e intervenções imperiais no período pós-colonial.

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As intervenções começaram cedo, com a expedição inglesa para reinstalar um regente fantoche, em 1941, e se multiplicaram com a edificação de um estado sionista sobre o túmulo da revolta palestina, esmagada pela Inglaterra em 1938–39. Daí em diante, um poder colonial em expansão, atuando às vezes como sócio, às vezes por procuração, mas com frequência crescente como iniciador de agressões regionais, combinou-se com a afirmação dos Estados Unidos como o senhor do mundo árabe, no lugar da França e da Inglaterra.

Desde a Segunda Guerra Mundial, cada década tem tido sua colheita de violência, seja por meio de suserania, seja através da ocupação. Nos anos 40, houve a nakba desencadeada por Israel na Palestina. Nos anos 50, o ataque anglo-franco-israelense ao Egito e os desembarques americanos no Líbano. Nos 60, a Guerra dos Seis Dias de Israel contra o Egito, a Síria e a Jordânia. Nos anos 70, a Guerra do Yom Kippur. Nos 80, a invasão israelense do Líbano e o esmagamento da Intifada palestina. Nos anos 90, a Guerra do Golfo. Na última década, a invasão e ocupação americana do Iraque. Na atual, o bombardeio da Líbia pela Otan, agora em 2011.

Nem todo ato de beligerância nasceu em Washington, Londres, Paris ou Tel-Aviv. Conflitos militares de origem local também foram comuns: a guerra civil no Iêmen, nos anos 60, a tomada do Saara ocidental pelo Marrocos, nos 70, o ataque ao Irã pelo Iraque, nos 80, e a invasão do Kuwait pelo Iraque, nos 90. Mas a conivência, ou envolvimento ocidental, raramente esteve ausente. Pouca coisa andou na região sem o atento olho imperial e – quando necessário – sem a aplicação de força ou dinheiro.

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O motivo para o grau excepcional de vigilância e interferência euro-americana no mundo árabe é simples. Por um lado, ele é o repositório da maior concentração de reservas de petróleo da Terra, vitais para as economias do Ocidente. Essa condição gerou um vasto arco de desdobramentos, desde bases aéreas, navais e de espionagem em todo o Golfo, com um braço avançado no Iraque, até a profunda infiltração dos órgãos de segurança egípcios, jordanianos, iemenitas e marroquinos. Por outro lado, o mundo árabe é a moldura na qual se insere Israel, que precisa ser protegido porque os Estados Unidos abrigam o lobby sionista, enraizado na comunidade imigrante mais poderosa do país – que nenhum presidente ou partido ousa afrontar –, e a Europa purga a culpa pela Shoah. Como Israel, por sua vez, ainda é uma potência ocupante que depende do auxílio ocidental, e os seus patrocinadores viraram alvo da retaliação de grupos islâmicos (que praticam o terror tal qual o Irgun e o Lehi no seu tempo), o controle da região tornou-se cada vez mais estrito. Nenhuma região do mundo tem merecido o mesmo grau de atenção da hegemonia imperial.

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O segundo aspecto distintivo tem sido a longevidade e a intensidade das variadas tiranias que, desde a descolonização formal, rapinam o mundo árabe. Nos últimos trinta anos, regimes democráticos, na forma entendida pela organização Freedom House, espalharam-se da América Latina à África Subsaariana e ao Sudeste da Ásia. No Oriente Médio e no norte da África, porém, não ocorreu nada análogo. Ali, déspotas de toda catadura têm se mantido no poder, independentemente das mudanças de tempo ou circunstância.

A família Al Saud – no melhor sentido siciliano do termo –, que tem sido o instrumento central do poder americano na região desde o seu acordo com Roosevelt, manda na península, sem contestação, há quase um século. Os xeques amestrados do Golfo e de Omã, sustentados ou instalados pelo Raj, o sistema inglês na Índia, têm tanta necessidade de ouvir a opinião de seus súditos quanto os seus vizinhos wahabitas, colaboradores de Washington. As dinastias da Jordânia e do Marrocos – a primeira, criatura dos ingleses; a segunda, herança do colonialismo francês – passam o poder a seus herdeiros há três gerações de autocratas, junto com uma fachada parlamentarista. Tortura e assassinato são a rotina desses regimes, os melhores amigos do Ocidente na região.

Tampouco foi diferente nas chamadas repúblicas, cada qual uma ditadura tão brutal quanto a outra, e muitas delas não menos dinásticas que as próprias monarquias. Também nelas a longevidade coletiva dos governantes não teve paralelo em lugar nenhum: Kadafi no poder por 41 anos; Assad, pai e filho, 40; Saleh, 32; Mubarak, 29; Ben Ali, 23. Somente os militares argelinos, numa presidência rotativa à moda dos generais brasileiros, fugiram dessa norma, mas respeitaram todos os demais princípios de opressão.

Na postura externa, esses regimes foram menos uniformemente subservientes ao imperialismo hegemônico. A ditadura egípcia, salva de uma debacle militar, em 1973, graças aos Estados Unidos, foi desde então um fiel peão de Washington, tendo menos independência operacional em relação aos americanos do que o reino saudita. O governante iemenita foi comprado numa pechincha para atuar na “guerra contra o terror”. O tunisiano cultivou patrões na Europa, sobretudo na França, mas não só nela.

Os regimes argelino e líbio, gozando da alta renda proporcionada pelos recursos naturais, tiveram uma margem maior de autonomia, embora demonstrando um padrão crescente de obediência – exigida na variante argelina para conseguir a aprovação ocidental ao esmagamento da oposição islâmica, e na variante líbia para expiar seu passado e fazer lucrativos investimentos na Itália.

A exceção significativa foi a Síria, que não poderia se submeter sem a retomada das Colinas de Golan – bloqueada por Israel – e receosa em deixar o mosaico fóssil do Líbano cair totalmente nas mãos do dinheiro saudita e da espionagem ocidental. Mas até mesmo essa exceção foi intimada, sem maiores dificuldades, a cerrar fileiras na Operação Tempestade no Deserto.

As duas vigas mestras da região – a dominação contínua pelo sistema imperial americano e a ausência contínua de instituições democráticas – estão conectadas. A conexão não é uma simples derivação. Onde a democracia é considerada uma ameaça ao capital, os Estados Unidos e seus aliados nunca hesitaram em removê-la, como ilustra o destino de Mossadegh, de Arbenz, de Allende ou, atualmente, de Jean-Bertrand Aristide. No sentido inverso, onde a autocracia é essencial, ela é bem preservada.

Os despotismos da Arábia, baseados em cambalachos tribais e no trabalho suado de imigrantes, são engrenagens estratégicas da Pax Americana, nas quais o Pentágono intervém de supetão quando é necessário protegê-las. As ditaduras republicanas, ou monárquicas, que pairam sobre grandes populações urbanas noutros pontos da região, são expedientes um pouco diferentes, mais de ordem tática. Essas tiranias têm sido auxiliadas e apoiadas pelos Estados Unidos, mas não foram uma criação americana exclusiva. Todas têm raízes nas sociedades locais, ainda que sejam bem regadas por Washington.

Segundo o famoso dito de Lênin, a república democrática é a casca ideal para o capitalismo. A partir de 1945, nenhum estrategista ocidental discordou da afirmação. O imperium euro-americano preferiria, em princípio, lidar com democratas árabes a tratar com ditadores, desde que fossem igualmente respeitosos da sua hegemonia. A partir da década de 80, tal respeito raramente faltou nas regiões recém-democratizadas.

Por que o mesmo processo não se aplica ao Oriente Médio e ao norte da África? Essencialmente, porque os Estados Unidos e seus aliados têm motivos para recear que, devido a sua longa história de violência imperial na área e às permanentes demandas de Israel, o sentimento popular possa não lhes apresentar um reconforto eleitoral semelhante ao de outras regiões.

Uma coisa é construir um regime cliente à força de baionetas, e pastorear votos suficientes para sustentá-lo, como foi feito no Iraque. Outra coisa são eleições mais livres, como descobriram os generais da Argélia e os chefes da Fatah. Em ambos os casos, confrontados com a vitória democrática de forças islâmicas consideradas pouco sensíveis a pressões ocidentais, a Europa e os Estados Unidos aplaudiram a anulação das eleições e a repressão dos vencedores. As lógicas imperial e ditatorial continuam entrelaçadas.
Esse é o quadro no qual a revolta árabe finalmente irrompeu, numa concatenação facilitada pelos dois grandes fatores de unidade da região: a língua e a religião. O mote dos levantes foram as demonstrações em massa de cidadãos desarmados, que em quase toda parte enfrentaram com coragem exemplar a repressão a gás, água e chumbo.

De país em país, a reivindicação principal ecoou num grito estrondoso: Al-Sha’b yurid isquat al-nizam – “O povo quer o fim do regime!” O que as multidões nas praças e ruas querem, essencialmente, é liberdade política. A democracia, uma palavra bem conhecida – todos os regimes a utilizam amplamente –, mas uma realidade desconhecida, virou o denominador comum dos vários movimentos nacionais.

Raramente articulado a um conjunto de instituições, o poder de atração da reivindicação de democracia surgiu mais como uma negação do status quo – por ser tudo que a ditadura não é – do que da afirmação do seu conteúdo. Punir a corrupção nos altos escalões do velho regime aparece com mais destaque do que as particularidades da Constituição a ser feita. Nem por isso a dinâmica dos levantes ficou menos clara. Seu objetivo é, no mais clássico dos sentidos, puramente político: liberdade.

Mas por que agora? O elenco odioso de regimes permaneceu inalterado por décadas. A deflagração das revoltas não se explica pelos seus objetivos. Nem pode ser atribuída apenas a novos canais de comunicação: a difusão da Al Jazira, os aparecimentos do Facebook ou do Twitter facilitaram, mas não criaram o novo espírito de insurgência.

A fagulha que iniciou o incêndio sugere a resposta. Tudo começou com a morte, provocada pelo desespero, de um vendedor de verduras empobrecido num vilarejo no interior da Tunísia. Na raiz da comoção que sacode o mundo árabe havia pressões sociais vulcânicas: desigualdade social, aumento do custo dos alimentos, falta de moradia, ausência de emprego para a juventude instruída – e não instruída – numa pirâmide demográfica sem paralelo no mundo. Em poucas regiões a crise social é tão aguda, e tão evidente é a ausência de um modelo de desenvolvimento capaz de integrar as novas gerações.

Até agora, no entanto, há um desencontro quase total entre o conteúdo social da revolta árabe e os seus objetivos políticos. Em parte, isso é reflexo da composição dos principais participantes. Nas grandes cidades – à exceção de Manama, a capital do Bahrein – não foram os pobres que, em geral, acorreram às ruas majoritariamente. Os trabalhadores não organizaram uma longa greve geral. Os camponeses estão quase ausentes.

É esse o efeito de décadas de repressão policial, e da eliminação de qualquer organização coletiva dos desfavorecidos. O seu ressurgimento levará tempo. Mas o desencontro é também efeito do limbo ideológico em que a sociedade foi deixada nessas mesmas décadas – um período de descrédito do socialismo e do nacionalismo árabes e de neutralização do confessionalismo radical, que deixou um islamismo aguado como único passe-partout. Nessas condições criadas pela ditadura, o vocabulário da revolta só se pode concentrar na ditadura – na queda da ditadura – como discurso político, e em nada mais.

A liberdade precisa ser reconectada com a igualdade. Sem essa conexão, as rebeliões podem facilmente murchar numa versão parlamentar da velha ordem, tão incapaz de responder à energia e às tensões sociais explosivas quanto as oligarquias decadentes do período de entreguerras. A prioridade estratégica para a reemergência da esquerda no mundo árabe deve ser a luta pelas formas de liberdade política que permitirão que essas pressões sociais encontrem a expressão coletiva adequada.

Isso significa, por um lado: a abolição geral de toda a legislação de emergência; a dissolução do partido dirigente ou a deposição da família governante; a limpeza do aparelho do Estado de todos os ornamentos do antigo regime; o julgamento dos seus líderes.

E significa, por outro lado, depois de varrer os restos do antigo regime, prestar uma atenção cuidadosa e criativa aos detalhes das Constituições a serem escritas. Nesse ponto, as exigências-chave são: liberdade total de expressão e organização cívica e sindical; sistemas eleitorais sem distorção – ou seja, proporcionais, e não do tipo em que só o mais votado se elege; presidentes sem plenos poderes; proibição do monopólio, estatal ou privado, dos meios de comunicação; e o acesso, garantido em lei, dos desfavorecidos aos benefícios públicos.

Somente assim as reivindicações de justiça social que deflagraram a revolta podem dar origem à liberdade coletiva necessária para a sua conquista.

Outra ausência se faz notar no levante. Na mais famosa das revoltas concatenadas, a europeia de 1848–49, não só dois, mas três tipos de exigências se entrelaçaram: políticas, sociais e nacionais. O que dizer da última, a árabe, de 2011? Até o momento, os movimentos de massa não produziram uma só demonstração antiamericana, ou sequer anti-israelense. O descrédito histórico do nacionalismo árabe, com o fracasso do nasserismo no Egito, é, sem dúvida, uma razão para isso. Outra razão é o fato de que a subsequente resistência ao imperialismo americano foi identificada com regimes – Síria, Irã, Líbia – tão repressivos quanto os que se entenderam com ele. Ainda assim, é notável que o anti-imperialismo seja o cachorro que não latiu – ou não latiu até agora –no pedaço do mundo onde o poder imperial é mais visível. Isso pode continuar?

Os Estados Unidos podem assumir uma visão dos acontecimentos que, até agora, é confiante e otimista. No Golfo, o levante no Bahrein, que poderia ter posto em risco seu Q.G. naval, foi esmagado por uma intervenção contrarrevolucionária na melhor tradição de 1849, com uma impressionante demonstração de solidariedade interdinástica. Os reinos saudita e hashemita aguentaram firmes.

O bastião iemenita da batalha contra o salafismo parece mais periclitante, mas o ditador de turno é dispensável. No Egito e na Tunísia, os governantes se mandaram, mas a hierarquia militar do Cairo, com suas excelentes relações com o Pentágono, continua intacta. E a grande força civil emergente em ambos os países é um islamismo domesticado.

Anteriormente, a perspectiva de a Irmandade Muçulmana – ou de suas sucursais regionais – entrar para o governo teria provocado grande alarme em Washington. Mas o Ocidente dispõe agora de um modelo tranquilizador na Turquia, aplicável nas terras árabes, que oferece o melhor dos mundos políticos. O Partido da Justiça e Desenvolvimento da Turquia mostrou o quão leal à Otan e ao neoliberalismo ele pode ser. E mostrou também que é capaz de aplicar doses certas de intimidação e repressão, mesmo numa democracia piedosa e liberal, brandindo o porrete e o Alcorão. Se um Erdoğan puder ser encontrado no Cairo ou em Túnis, Washington terá todos os motivos para ficar satisfeito com a sua troca por Mubarak e Ben Ali.

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Nessa perspectiva, a intervenção militar na Líbia pode ser considerada a cereja no bolo – servindo, simultaneamente, para polir as credenciais democráticas do Ocidente e se livrar do mais recente e embaraçoso recruta da “comunidade internacional”. Sendo mais um luxo do que uma necessidade para o poder global americano, a iniciativa do ataque da Otan veio da França e da Inglaterra, reencenando, como numa máquina do tempo, a expedição de Suez em 1956. Novamente, Paris tomou a iniciativa, para limpar Sarkozy de suas intimidades com Ben Ali e Mubarak, e também para deter a sua desastrosa queda nas pesquisas de opinião. Londres entrou em forma para atender ao desejo de Cameron em imitar Blair. O Conselho de Cooperação do Golfo e a Liga Árabe deram cobertura ao empreendimento numa mansa imitação de Israel em 1956. Mas Kadafi não é Nasser, e Obama, dessa vez com poucos motivos para temer as consequências, pôde acompanhar a iniciativa. O protocolo de hegemonia exigiu que os Estados Unidos assumissem o comando nominal, permitindo que guerreiros como a Bélgica e a Suécia mostrassem o seu valor aéreo. Para o pessoal da era Clinton que permaneceu no atual regime americano, um bônus adicional será a reabilitação da intervenção humanitária, depois dos reveses no Iraque. Os meios de comunicação e a intelectualidade francesa, como era de se prever, extasiaram-se com a restauração da honra da pátria nesse gênero de empreendimento. Mas mesmo nos Estados Unidos o cinismo está disseminado: o molho para o ganso líbio, visivelmente, não é o mesmo para o pato de Bahrein, ou qualquer outro.

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Até o momento, nada disso alterou o panorama da revolta. Cautela com o poder do hegemônico, preocupação com aspectos nacionais, simpatia pelos rebeldes líbios, esperança de que o episódio acabe logo – tudo isso se combinou para emudecer as reações ao mais recente bombardeio pelo Ocidente. Mas não é de se esperar que a questão nacional continue indefinidamente separada da questão política e da social. Para o mundo muçulmano a leste da agitação, as guerras americanas no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão ainda estão por serem vencidas, e o bloqueio do Irã ainda está longe da sua conclusão lógica. E, no centro da agitação, a ocupação da Cisjordânia e o bloqueio de Gaza continuam como antes. Até o mais moderado dos regimes democráticos pode achar difícil se isolar desses teatros de prepotência imperial e de selvageria colonial.

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In the Arab world, nationalism has too often been a clipped currency. A maioria das nações do mundo árabe – exceto Egito e Marrocos – são criações artificiais do imperialismo ocidental. Mas, assim como na África Subsaariana e alhures, as origens coloniais não impediram que se cristalizassem identidades no interior das fronteiras artificiais desenhadas pelos colonizadores. Nesse sentido, toda nação árabe tem hoje uma identidade coletiva tão real e problemática quanto qualquer outra. Há uma diferença, porém. Língua e religião, entrelaçadas em textos sagrados, foram – e são – historicamente fortes para caracterizar uma demarcação cultural que extrapola a imagem de cada estado-nação em particular. Esse ideal forjou o nacionalismo árabe – e não egípcio, iraquiano ou sírio.

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Houve então a ascensão, a corrupção e o fracasso do nasserismo e do baathismo. Eles não ressuscitarão. Mas o impulso que fez com que existissem terá de ser recuperado, se a revolta se tornar uma revolução no mundo árabe. A liberdade e a igualdade precisam ser reconectadas. Mas, sem fraternidade, numa região tão difusamente maltratada e interligada, elas correm o risco de azedar. Dos anos de 1950 em diante, pagou-se um preço muito alto, em termos de egoísmo nacional, para se obter algum progresso no Oriente Médio e no norte da África. O que se precisa não é a caricatura de solidariedade oferecida pela Liga Árabe, instituição cuja folha corrida de traições e de fracassos rivaliza com a da Organização dos Estados Americanos, a OEA, nos dias em que Fidel Castro, com toda a razão, a chamava de Ministério das Colônias americano. É necessário que exista um internacionalismo árabe generoso, capaz de visualizar – num futuro distante, quando o último xeque for derrubado – uma distribuição equitativa da riqueza do petróleo, proporcional à população, e não manter a monstruosa e arbitrária opulência de uns poucos, e a indigência desesperada de tantos outros. No futuro mais imediato, a prioridade é simples: uma declaração conjunta de que o tratado abjeto que Sadat assinou com Israel está morto e enterrado –um tratado que arrasou os seus aliados em troca de um arranjo que não dá ao Egito sequer a soberania para mover seus soldados em seu próprio território; um tratado cujas implicações referentes à Palestina, desprezíveis em si mesmas, Israel nem sequer simulou cumprir. Eis aí o teste decisivo da recuperação da dignidade democrática árabe.

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