31 de janeiro de 2011

O espectro de Althusser

Warren Montag

Historical Materialism


Althusser, el infinito adios, Emilio de Ípola, Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2007 
Althusser: une lecture de Marx, edited by Jean-Claude Bourdin, Paris: Presses Universitaires de France, 2008 
Althusser et la psychanalyse, Pascale Gillot, Paris: Presses Universitaires de France, 2009 
Machiavel et nous, suivi de ‘Des problèmes qu’il faudra bien appeler d’un autre nom et peut-être politique’, Louis Althusser; Althusser et la insituabilité de la politique et de ‘la recurrence du vide chez Louis Althusser’, François Matheron, Preface by Étienne Balibar, Paris: Éditions Tallandier, 2009

Em 1990, no exato momento em que um mundo intelectual aliviado estava convencido de que poderia, finalmente, com a consciência tranquila e incontestável justificação teórica e política, esquecer Althusser, ele teve a imprudência de morrer.

Se houvesse sido, como ele expressou, sepultado em silêncio durante a última década de sua vida – um pouco de hipérbole que, não obstante, captou a sensação de que, legalmente, profissionalmente e socialmente, no momento em que ele estrangulou Hélène Legotien em 1980, já estava morto, esperando apenas pelo pronunciamento oficial que veio uma década depois – sua morte paradoxalmente o trouxe de volta à vida. Não apenas trouxe de volta os elogios e louvores que deveriam (mas talvez não poderiam) ter sido proferidos durante sua vida: as palavras de louvor e admiração, os tributos esperados e inesperados, que revelaram que o silêncio em torno de Althusser foi determinado por causas externas e não internas a seu trabalho, como se o desejo de dar a Althusser o que lhe era merecido apenas estivesse esperando o momento apropriado para se expressar.

Talvez não pudesse ter sido de outra forma considerando o desprezo generalizado que cercou seus textos mais importantes, Por Marx e Ler o Capital, textos que foram confinados a um momento histórico não só passado, mas superado, qual seja, o momento estruturalista, um momento bem conhecido por ser desprovido de qualquer interesse teórico. No mundo de língua inglesa, o fato de A miséria da teoria de E.P. Thompson, com seu retrato de Althusser como um estruturalista e stalinista, ter precedido a morte de Hélène Legotien em pouco mais de um ano, o fez parecer presciente. As revelações concernentes ao extenso histórico de doença mental de Althusser deu à afirmação de Thompson de que muito do que foi dito por Althusser não passava de “absurdos” uma certa credibilidade.

No entanto, a morte de Althusser dez anos depois marcou o tempo não só de um enterro, mas também de uma descoberta: seus efeitos alteraram para sempre a narrativa de ascensão e queda do “marxismo estrutural” (para citar o título do conhecido estudo de Ted Benton) de Althusser. Acabou que Althusser havia produzido um enorme corpo de trabalhos durante um período de mais de quatro décadas que ele, por várias e frequentemente complicadas razões, nunca publicou. Isto inclui não apenas uma tese sobre Hegel, mas uma série de manuscritos, ensaios, notas explicativas, assim como um número surpreendente de cartas abordando, muitas delas, temas filosóficos e políticos.

Destes, nenhum é mais notável que a autobiografia de Althusser, O futuro dura muito tempo [L’avenir dure longtemps], que começa descrevendo e depois dá uma (tentativa de) explicação da morte de sua esposa. A publicação desse texto em 1992 teve êxito na reabertura do “caso” Althusser, ainda que primariamente em um sentido psiquiátrico (Escritos sobre psicanálise, publicado no ano seguinte, continha longas cartas ao analista de Althusser), como se ele unicamente tivesse que tomar seu lugar ao lado do Dr. Schreber ou Pierre Rivière. Em menor medida, no entanto, sua publicação conseguiu trazer os leitores de volta às suas obras publicadas. Suas breves observações sobre filosofia foram suficientes para lançar dúvidas sobre a leitura dominante de Althusser, e desobstruíram o caminho para o aparecimento, em 1994, do primeiro volume dos Escritos filosóficos e políticos.[1] Dos textos incluídos nos Escritos filosóficos, nenhum provou ser mais estimulante ou provocativo do que “A corrente subterrânea do materialismo do encontro”[2], um texto selecionado e reunido a partir de vários fragmentos por François Matheron. Composto por materiais escritos por Althusser em 1982, foi quase imediatamente recebido em meados dos anos 90 como o aviso de nada menos que um novo projeto: o estabelecimento de um “materialismo do aleatório”. Além disso, no mesmo ano outras obras póstumas foram publicadas, Sur la philosophie, que continha uma extensa e cuidadosamente organizada entrevista com a filósofa mexicana Fernanda Navarro, Filosofia e marxismo, que repetiu os temas (às vezes textualmente) da “Corrente subterrânea”. Assim, nasceu o “último Atlhusser”, um Althusser que, como foi alegado, havia se libertado dos erros e fracassos do “jovem Althusser” (que, significativamente, não foi o Althusser dos anos quarenta e cinquenta, mas dos anos sessenta, ou seja, o Althusser posterior ao livro sobre Montequieu), caracterizado como um proponente do estruturalismo, ou marxismo estrutural. Era como se o próprio trabalho de Althusser fosse marcado por um corte epistemológico (Toni Negri o chamou de “Kehre”) pelo qual ele se separou de seu próprio passado metafísico ou idealista. Talvez tal leitura fosse inevitável, como se a única maneira de se referir a Althusser fosse dissociá-lo dele mesmo e declará-lo inocente de seu trabalho de juventude. Não obstante todos os seus problemas, tal leitura foi bem-sucedida em identificar os antagonismos internos ao trabalho de Althusser, mesmo que pudesse fazê-lo apenas através da tradução desses antagonismos na linguagem do que o próprio Althusser denominou o tempo cronológico de sucessivas problemáticas teóricas e, portanto, de um “antes” e “depois”. A influência dessa visão continua tão grande que não só a publicação póstuma dos textos escritos antes de 1975 não conseguiu substituí-la, mas Maquiavel e nós, cuja maior parte havia sido escrita em 1972-3 (e, portanto, como apontou Étienne Balibar, concomitantemente à Resposta a John Lewis) continua a ser considerado como um texto de maturidade.

Agora, finalmente, quase vinte anos após a morte de Althusser, temos motivos para esperar que a situação esteja começando a mudar. No mundo de língua inglesa, os prefácios às versões inglesas das publicações póstumas, muito bem pesquisados por G.M. Goshgarian, assim como Louis Althusser e as tradições do marxismo francês de William Lewis, reconstruíram meticulosamente o contexto político e as apostas do trabalho de Althusser, sobretudo dos nos sessenta e setenta. Uma versão revisada e atualizada do clássico de Gregory Elliot, Althusser: o desvio da teoria, fornece uma visão geral indispensável do trabalho de Althusser como um todo. O interesse renovado em Althusser também não se restringe aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha. Um conjunto de estudos em francês e espanhol que me proponho a analisar aqui retornaram ao “jovem” Althusser com uma compreensão clara do caráter incompleto e contraditório mesmo dos textos mais polidos, muitas vezes insistindo em apresentar nada menos que uma leitura sintomal do próprio Althusser: Althusser, o infinito adeus de Emilio de Ípola, Althusser e a psicanálise, de Pascale Gillot, e uma coleção de ensaios editados por Jean-Claude Bourdin, Althusser: uma leitura de Marx. Mas, talvez, de forma ainda mais significativa, eles retornaram às investigações e debates que ocorreram no interior e no entorno dos textos de Althusser antes de serem suspensos e depois postos de lado pelos eventos de 1968, e tornados quase ilegíveis pela conjuntura teórica e política que esses eventos produziram. Agora, muitos anos depois, em uma conjuntura muito diferente, parece que essas investigações e debates não apenas preservaram seu interesse, mas que adquiriram novos significado e relevância. Tal ponto de vista não apenas exclui a leitura evolutiva do “desenvolvimento” de Althusser, mas nos força a confrontar a complexidade irredutível que caracteriza sua obra do começo ao fim.

Tomarei como ponto de partida o extraordinário trabalho de Emilio de Ípola, Althusser, o infinito adeus. Eu digo extraordinário porque é, de uma só vez, estranho, estimulante e surpreendente. Ípola havia sido aluno de Althusser em 1965 e, embora haja uma incontestável conotação “pessoal” no trabalho, não há traços de nostalgia. Pelo contrário, longe de advogar pela “era de ouro” teórico-política da Paris dos anos 1960, Ípola retoma o debate em torno do tema, quase esquecido na França e ainda objeto de desprezo no mundo anglófono, da causalidade estrutural. Ele escreve como se os participantes (sobretudo Althusser, Jacques-Alain Miller, e Badiou) tivessem retornado depois de uma noite de descanso para retomar a discussão, e os últimos quarenta anos tivessem representado nada mais do que um instante no tempo da teoria. Na verdade, os três livros aqui mencionados compartilham do sentido, mais enfaticamente argumentado (ou até mesmo dramatizado) por Ípola, de que os debates acerca dos conceitos de causalidade estrutural, conjuntura e sujeição foram, de uma forma perfeitamente aleatória, subitamente suspensos (e nunca, até agora, retomados) pelos eventos de 1968 e uma nova “conjuntura teórica”, para usar a expressão de Althusser, na qual, para melhor ou pior, outras questões teóricas e políticas, que pareciam muito mais urgentes e inevitáveis, emergiram. Partindo dessa perspectiva, segundo a qual a sucessão histórica não pode ser confundida com progresso e o que vem depois não necessariamente é superior ao que veio antes, os debates que ocorreram no interior do círculo de Althusser não chegaram a um impasse teórico e também não cessaram por falta de interesse ou importância. Os textos nos quais eles assumiram sua existência material vagaram invisíveis através do vazio teórico até o momento em que um encontro ou uma série de encontros, tão imprevisíveis quanto aqueles que os tornaram ilegíveis por quase meio século, dotou-os não só de visibilidade, mas também de um novo poder teórico.

A legibilidade dos textos de Althusser e dos textos de seus alunos, no entanto, não é nem espontânea nem já dada. Não é fácil nos libertarmos da rede de interpretações que uma aliança objetiva de críticos e admiradores de Althusser conseguiram impor ao seu trabalho. É por esse motivo que Ípola propõe um protocolo para ler Althusser, um protocolo que, longe de visar identificar ou reconstruir a coerência e consistência dos argumentos de Althusser (Althusser de acordo com a ordem de suas razões), abre-se às lacunas, aos deslocamentos, aos silêncios, isto é, aos sintomas, que atravessam, segundo o próprio Althusser, até os textos aparentemente mais rigorosos: “Não há dúvidas de que existe na obra de Althusser um objetivo [propuesta] filosófico e político explícito, um projeto declarado que a maioria de seus exegetas, para melhor ou pior, viram como sua única contribuição. Entretanto, na medida em que adentramos sem preconceitos nos detalhes de sua análise e na sutil textura de sua escrita, nós, não sem aumentar nossa perplexidade, descobrimos nela a inesperada presença de certas dissonâncias, a intermitente, porém sistemática erupção de certas afirmações atípicas e, em certas ocasiões, de particulares momentos de incoerência na lógica de sua argumentação, os quais servem para lançar dúvidas sobre a univocidade de seu projeto”[3].

Com certas precauções, podemos falar de dois projetos interligados, porém distintos e opostos, que caracterizam o trabalho de Althusser, cuja síntese disjuntiva, na qual diferentes projetos que divergem e posteriormente se encontram no confronto, produzem uma difração de significados sobre a superfície dos textos. Entretanto, estaríamos errados em considerar o projeto “subterrâneo” totalmente formado, porém oculto sob o projeto declarado, como seu inverso ou seu reflexo, como na concepção religiosa dos significados textuais exotéricos e esotéricos. É mais correto descrever a interligação desses projetos como um processo de desenvolvimento teórico desigual e combinado, um processo que não termina nem simplesmente cessa no limite do trabalho de Althusser, mas persegue seu desenvolvimento imprevisível através dos encontros que constituem a vida após a morte de Althusser. O projeto subterrâneo, de acordo com o argumento de Ípola, emergiu como o remanescente impensado de seu projeto declarado, existindo “de maneira esporádica, em certas fórmulas que Althusser, de maneira alusiva e intermitente, deixou escapar em seus primeiros escritos”[4]. A descrição de Bourdin da própria prática de leitura de Althusser usará outra fórmula, a qual é aplicável tanto aos textos de Althusser quanto aos de Marx: “A tarefa consiste em ‘ler’ textos como o Capital com o objetivo de extrair deles a filosofia que os habita em ‘estado prático’”.[5]

A “causalidade estrutural”, como rapidamente se torna aparente, é um ponto de intersecção, uma encruzilhada na qual dois conceitos encontram-se e divergem simultaneamente na obra de Althusser: o conceito de conjuntura e o conceito de sujeito (interpelado). A primeira nos lembra que a tarefa primária de Althusser era a de reunir e pensar os diferidos efeitos que, na medida em que voltaram a alterar o significado dos textos de Marx, constituíram sua “revolução científica”. Como nos lembra Balibar, Althusser tem sido lido como um pensador da estrutura e um pensador da conjuntura, como um “funcionalista estrutural” e como um pensador da indeterminação, isto é, como um pensador de polos opostos e irredutivelmente antagônicos. O uso do termo “estrutura”, especialmente no início dos anos sessenta, juntamente com seu anti-humanismo e anti-historicismo, convenceu muitos leitores marxistas de que ele, de fato, moveu-se na direção de um a-historicismo do qual não havia saída: E.P. Thompson é o espécime perfeito de tal leitor. Por outro lado, sua constante alusão à ideia de conjuntura – uma ideia que encontrou o seu caminho em poucos comentários sobre Marx, que geralmente procurava as estruturas profundas, não superficiais da história, o local da necessidade, como Gramsci sugeriu no Moderno Príncipe, não o local dos acidentes pelos quais foi bloqueada ou retardada – surgiu (para um grupo menor e talvez mais exigente de leitores) quase como uma provocação, uma tentativa de usar a linguagem da prática política e o confronto de forças para disfarçar seu contrabando de filosofias estrangeiras além das fronteiras do marxismo oficial. Não foi sua referência constante a Lênin, à “análise concreta da situação concreta” – a “alma do marxismo”, e seu correspondente desprezo por qualquer “religião da história” marxista, compreendida como um movimento infalível em direção ao comunismo, uma maneira de falar sobre Maquiavel e talvez até sobre Spinoza e, portanto, um movimento de afastamento do marxismo, um movimento ainda mais astuto por ter sido realizado em nome de um retorno a Marx?

Ípola sugere exatamente o oposto: os polos aparentemente opostos do pensamento de Althusser são melhor compreendidos como tentativas de responder a um mesmo problema teórico-político. A causalidade estrutural não pertence nem ao primeiro nem ao último Althusser, não está nem ao lado da estrutura nem ao lado da conjuntura: é o elemento no pensamento de Althusser que, uma vez entendido no nexo em que tomou forma, anula essas polaridades, que podem ser vistas como nada mais que tentativas de se pensar o mesmo problema histórico sob diferentes pontos de vista. Aqui, a reconstrução cuidadosa de Pascale Gillot do lugar e participação da noção de causalidade estrutural – especialmente na medida em que foi moldada pelo encontro com a análise lacaniana – é muito proveitoso. Althusser foi mais inspirado do que instruído pela psicanálise, particularmente pela noção de “causalidade metonímica”, aparentemente construída por ele com base na apresentação de Jacques-Alain Miller ao seminário de Althusser sobre psicanálise de 1963-4. Citando as notas de Balibar à apresentação de Miller, Gillot ilumina esse outrora misterioso conceito: a manque-à-être (a falta no ser) que caracteriza a existência do sujeito na e pela ordem da linguagem não pode ser considerada a “causa” do desejo que simultaneamente tenta e fracassa em preencher essa falta [manque]. Ao invés disso, “o desejo é a metonímia da falta no ser [le désir est le métonymie du manque à être]”. Aqui, e vou além da análise de Gillot, podemos ver a maneira pela qual o interesse crescente e a familiaridade de Althusser com relação a Spinoza moldaram sua “construção” da causalidade metonímica. Se recusando a seguir a rejeição de Miller da própria noção de causa, ele compreende a metonímia como a ação de uma causa que não existe fora ou anteriormente aos seus efeitos. No sentido de que não está presente em lugar algum, exceto no efeito que “produz”. É uma causa ausente. Spinoza, que rejeitou a noção do vácuo ou do vazio, seja no sentido científico ou teológico, preferiu chamar tal causa (precisamente, Deus) de uma causa imanente, talvez excluindo de antemão qualquer recurso a um vazio originário ou nada, como, à sua maneira, fez Miller. A diferença entre a causa ausente e a causa imanente, tão discreta a ponto de parecer insignificante, seria decisiva para o surgimento do “materialismo do aleatório”.

Talvez ainda mais importante, o conceito de causalidade estrutural marcou a tentativa de Althusser de romper com os modelos de causalidade emanativa ou expressiva cujos efeitos tanto práticos quanto teóricos no marxismo provaram-se tão desastrosos. A ideia ou princípio de fé de que uma teologia imanente das forças produtivas realiza-se na contradição entre forças de produção e relações de produção (ou mesmo a contradição entre a base econômica e a superestrutura ideológica) governou as políticas aparentemente opostas entre si do evolucionismo social-democrata e do voluntarismo ultra-esquerdista (ou, no tempo de Althusser, do PCF e do Maoísmo da União dos Jovens Comunistas Marxistas-Leninistas (1966-8) e seu sucessor, A Esquerda Proletária (1968-73)). Essa fé implacável na teleologia imanente da história foi expressa em fórmulas como “capitalismo tardio” ou “os primeiros estágios da transição para o comunismo”. Foi Althusser, sobretudo o “Althusser estruturalista”, que repetidamente observou a insistência de Lênin, muitas vezes não apenas contra seus argumentos anteriores, mas talvez até mesmo contra seus próprios instintos, de que uma orientação política não era determinada pelas etapas do desenvolvimento histórico (o capitalismo esteve sempre-já “maduro”), mas pela conflituosa unidade da conjuntura cuja própria configuração, cujas alianças e conflitos “objetivos” frequentemente surgiam para contradizer as leis “imutáveis” do desenvolvimento histórico.

Em sua introdução à nova edição francesa de Maquiavel e nós, Balibar faz uma observação muito importante, de que mais do que os fragmentos em que Althusser buscou pensar em um “materialismo do aleatório”, muitas vezes tratado como sua palavra “final”, o texto sobre Maquiavel representa uma reiterada tentativa, de mais de uma década, de examinar certos problemas-chave: “a interpretação de Maquiavel constituiu para ele um lugar privilegiado de invenção e experimentação, e não representou uma aplicação a um ‘caso particular’”[6] . Se Maquiavel de fato era o elemento no qual Althusser, com o risco de cair no “empirismo” e no “pluralismo” dos quais havia sido acusado logo após a publicação de Contradição e Sobredeterminação[7] em 1962, seguiria uma linha de pensamento que começava com as noções de sobredeterminação e subdeterminação, é apenas aqui em Maquiavel e nós que ele irá, como gostava de dizer, “colocar suas cartas na mesa”. Existiriam, por um lado, as condições objetivas para a realização da nação italiana (ou a construção do socialismo) e, de outro, os obstáculos meramente acidentais e epifenomenais (cujo eventual desaparecimento é, portanto, garantido) a essa realização? Althusser, seguindo Gramsci seguindo Maquiavel, perguntará se uma necessidade histórica (o próprio produto das leis da história) que pode ser “adiada”, “atrasada”, “retardada” por anos, décadas ou séculos, pode ser chamada de maneira precisa de uma “necessidade”. Como ele famosamente ou infamemente alegou em Contradição e Sobredeterminação, um regime histórico que consiste na necessidade e suas (intermináveis listas de) “exceções” deve abrir caminho para o reconhecimento da necessidade da exceção que, assim, deixa de ser compreendida como uma exceção.

Ao falar de Maquiavel, e, portanto, a uma distância segura dos temas relacionados às revoluções traídas, adiadas e abandonadas, Althusser pode dizer abertamente que a necessidade histórica não existe antes ou fora da conjuntura, que seria então compreendida como sua expressão imperfeita ou degradada. Melhor, a necessidade histórica existe na, e apenas na, sua realização conjuntural. A necessidade ou causa da conjuntura é “estrutural”, “a estrutura da conjuntura”, imanente em ou ausente de (essa é a questão) seus efeitos. Assim, conjuntura não é o nome de uma lista aleatória ou casuística de elementos, determinações ou circunstâncias; em vez disso, é a codificação de múltiplas relações de força. O “sistema”, tão frágil e instável como um sistema pode ser, que essas forças, em seus próprios antagonismos, constituem determinam os movimentos de deslocamento e de condensação que asseguram que “a hora solitária da última instância” nunca chegue[8].

Dado o interesse no aleatório ou tendência conjuntural em Althusser, é ainda mais surpreendente que nenhum trabalho de Althusser receba mais atenção desses estudos recentes do que “Aparelhos ideológicos do Estado”. Este texto, extraído de um extenso manuscrito póstumo, Sobre a reprodução, publicado por Jacques Bidet em 1995, tem exercido grande influência em mais campos de estudo que qualquer outro trabalho de Althusser. De fato, em alguns aspectos importantes, ele é significativamente diferente das outras obras (publicadas) de Althusser: é, em parte, um manual do Marxismo-Leninismo escrito em uma linguagem simplificada, para não dizer simplista, e, em parte, uma descrição densa e extremamente elíptica (em que, mais uma vez, promove um encontro entre Spinoza e Lacan) da constituição dos sujeitos de uma maneira que transforma completamente a própria ideia de ideologia. A coexistências dessas duas partes completamente diferentes em um único texto produziu o efeito, talvez almejado, de obscurecer a originalidade e dificuldade da última parte do ensaio, e assegurar que seria lido à luz da primeira parte: para usar o rótulo – ou imprecação – aplicado ao texto de Althusser dos AIEs nos livros de sociologia americanos, qual seja, seu “funcionalismo estrutural”. Devemos ser absolutamente claros: essa não é uma leitura equivocada. De fato, o adiamento por Althusser de qualquer discussão sobre resistência e luta a um curto pós-escrito, no qual tenta negar o que acabara de fazer citando “a primazia da luta de classes”, apenas reforçou a separação entre a reprodução das relações sociais capitalistas e a luta de classes, cuja mútua imanência o ensaio torna impensável. Como Isabelle Garo observa, no texto do AIE, “a ideologia é situada apenas no lado das funções de conservação e reprodução”.[9] Na verdade, é esse próprio funcionalismo – o argumento de que o capitalismo produz os próprios aparatos ideológicos necessários à sua reprodução, os meios pelos quais um sujeito coletivo persegue o fim de sua própria subsistência – que assegurou ao ensaio seu prestígio. Uma comparação do ensaio dos AIE com as partes de Sobre a reprodução das quais foi extraído, no entanto, revela alguns fatos surpreendentes. Por razões que ainda não foram exploradas, Althusser removeu cuidadosamente passagens da versão publicada que de alguma forma qualificariam ou complicariam o funcionalismo que a maioria dos leitores encontraram no ensaio, especialmente aquelas em que ele descreve os antagônicos “subprodutos [sous-produits]” que o processo de reprodução “secreta”. Para Ípola, Gillot e muitos outros colaboradores de Althusser: uma leitura de Marx (mais diretamente, Garo e Franck Fischbach, e talvez não diretamente, Jacques Bidet e Roberto Nigro)[10], todos esses problemas estão condensados em uma única “tese”: a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos.

Como Garo e Fischbach apontaram, essa tese é inédita no marxismo que toma, ao menos em suas formas dominantes, o sujeito humano como um dado, e mais, como um ponto de partida que apenas posteriormente se dividiria, fragmentado, perdido para si mesmo, ou em uma palavra, alienado. Por mais “complexas” e sofisticadas que pudessem ser, da teoria da reificação de Lukács até a noção da “sociedade do espetáculo”, o que se poderia chamar de “teorias do sujeito” tendiam a dar ênfase no equívoco de um sujeito já constituído. Althusser sozinho, ao menos de uma maneira direta, colocou a questão da constituição do sujeito, de como os indivíduos livres e iguais, que são os sujeitos reais das sociedades “democráticas”, mas meramente os sujeitos potenciais de regimes “totalitários” (eu coloco esses termos entre aspas porque o ensaio de Althusser põe essas distinções radicalmente em questão), são constituídos e responsabilizados – e puníveis – pelas ações de que são autores e proprietários.

O conceito de sujeito interpelado, entretanto, não pode ser compreendido independentemente das teses que o precedem no argumento de Althusser. Removê-lo do contexto de seu desenvolvimento teórico e imaginar, como muitos comentadores o fazem, que a interpelação é primariamente um ato discursivo ou um ato linguístico no qual um Sujeito chama o sujeito através de um ato discursivo, é remontar Althusser a um dualismo do discursivo e do não-discursivo, se não exatamente do espírito e da matéria. Na verdade, as referências e alusões lacanianas no ensaio têm servido com frequência para encorajar tais leituras. Quanto mais de perto lemos o ensaio, mais podemos vislumbrar o contorno de Spinoza sob o de Lacan. Não é simplesmente, ou primariamente, a noção de interpelação que separa Althusser das teorias da ideologia anteriores. Mais importante, o termo “ideologia” no ensaio dos AIE não tem nada em comum com suas anteriores utilizações a não ser o nome, e o ensaio em si pode ter contribuído para o declínio da frequência do uso de “ideologia”. Ideologia sugere um sistema de ideias que, ao menos no período moderno, tendia a ser considerado falso ou inadequado (o próprio Althusser ofereceu uma versão de tal teoria em “Marxismo e humanismo” em Por Marx). Em seu ensaio sobre os AIE de 1970, Althusser rompe irrevogavelmente com tais noções de ideologia: “a ideologia tem uma existência material”, o que significa que nem mesmo as ideias têm uma existência “ideal”, mas são sempre-já realizadas “em um aparelho e sua prática ou suas práticas”

Assim, como Garo aponta, a frase “a ideologia representa a relação imaginária do indivíduo com suas condições reais de existência”, muitas vezes compreendida como uma noção ilusória, “o que os indivíduos imaginam” (isto é, falsamente) ser sua relação com a realidade, assume um significado radicalmente oposto. A relação imaginária não é apenas completamente material e real, está inserida nos aparelhos e práticas. O que é essa relação? É exatamente como Spinoza descreveu no Apêndice à Parte I da Ética, assim como no Escólio da Proposição 2, Parte III: os indivíduos imaginam ser a causa de suas ações, eles imaginam que um ato de vontade move o corpo para a ordenação da mente. Mas esses erros “subjetivos” são “refletidos” na existência objetiva dos aparelhos: eles não são apenas os “autores” de suas ações, sua autoria é uma rede teórico-prática interminável, organizada em torno da “intenção”, que é atribuída e imposta a eles e a seus corpos, um fato que Foucault, um leitor receptivo, porém crítico, do ensaio dos AIE, capturaria em seu famoso dito: a alma é a prisão do corpo. Michel Pêcheux, um dos interlocutores privilegiados de Althusser em matéria de ideologia, cujo importante texto, Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, foi publicado em 1975 na coleção “Théorie” de Althusser, afirma que para Althusser a autonomia do sujeito é a forma de sua sujeição. Podemos pensar nos miseráveis simultaneamente “libertados” (isto é, expulsos e abandonados) e criminalizados pelo processo de acumulação primitiva na Inglaterra descrito por Marx, os ancestrais dos “imigrantes ilegais” de hoje.

Assim, a interpelação não é mais redutível à fala ou ao discurso do que a convocação ouvida pelo apóstolo Paulo no caminho de Damasco: é o chamado, vocatio ou κλέτις, já inscrito no movimento de perseguição e contra-perseguição, de violência e contra-violência (“duro é recalcitrar contra os aguilhões”, ou seja, resistir à tortura). É esse chamado pelo qual a polícia individualiza o sujeito que será inquirido a “identificar-se”, para melhor ser responsabilizado por seus atos, uma convocação na qual o discurso e a força armada, e, portanto, não simplesmente a força do discurso, são uma única e mesma coisa.

Pêcheux levou muito a sério a acusação (notavelmente feita por um dos ex-alunos de Althusser, Jacques Rancière) de que a ênfase de Althusser na reprodução às custas da transformação deixa pouco espaço para a resistência, que não é simplesmente um estratagema do desenvolvimento capitalista. Fischbach examina as duas tentativas mais proeminentes de imaginar a resistência à interpelação, as de Judith Butler e Slavoj Žižek, mas não considera nenhuma delas satisfatória. Para Butler, “a subjetividade é mais extensa que a identidade do sujeito que resulta da sujeição da interpelação ideológica”[11]. Para Žižek, a subjetividade resgata aquela negatividade na qual a ordem simbólica funda-se em um gesto que afirma sua própria não-substancialidade. Ambas as opções, subjetividade como reserva de possibilidade e subjetividade como negatividade tendem à “desrealização” e à “desencarnação”[12] do sujeito. Em oposição, Fischbach postula aquele corpo composto cuja própria persistência tomaria a forma de resistência à “abstração e alienação a que a interpelação ideológica nos sujeita”.[13]

Parece, então, que se Althusser alguma vez nos incitou a ler Spinoza, isto é, realmente ler Spinoza, buscando nos cantos mais remotos de sua obra soluções aos prementes problemas confrontados pela prática teórica do marxismo, agora Spinoza volta-se a Atlhusser e seus contemporâneos, lançando uma brilhante luz sobre passagens tantas vezes lidas, mas negligenciadas. Levar a sério esses estudos recentes é ver Althusser não como uma presença fantasmagórica pairando nas margens do mundo, assombrando-a como uma memória ruim, mas antes como uma parte indispensável ao processo no qual o presente pode tornar-se inteligível a si mesmo, seu trabalho em sua irregularidade e sua conflituosidade retornando ao presente para abrir um buraco em suas paredes, um buraco através do qual algo novo, o futuro, pode passar.

Notas

[1] Nenhum dos dois volumes dos Écrits philosophiques et politiques de Althusser foi traduzido ao português, embora seja possível encontrar alguns dos textos que o compõem.

[2] ALTHUSSER, Louis. A corrente subterrânea do materialismo do encontro. In: Crítica Marxista, n. 20, pp. 9-48, 2005.

[3] IPOLA 2007, pp.36-7.

[4] IPOLA 2007, p.39.

[5] BOURDIN (org.) 2008, p.195

[6] ALTHUSSER e MATHERON 2009, p.14.

[7] ALTHUSSER 2015, pp.71-106.

[8] Ver “L’horreur dialectique (description d’um itinéraire)” para uma análise dessa tendência no pensamento do Althusser, especialmente à medida que toma forma no interior e contra a noção de dialética (BOURDIN (org.) 2008, pp.147-92).

[9] BOURDIN (org.) 2008, p.54.

[10] Digo isso porque, num certo sentido, pode-se dizer mais adequadamente que os problemas da alienação (Bidet) e da antropologia (Nigro), problemas que, se levarmos em conta o termo utilizado, Althusser rejeitava, foram substituídos pela problemática da interpelação.

[11] BOURDIN (org.) 2008, p.144

[12] Ibid.

[13] BOURDIN (org.) 2008, p.145

Referências

Althusser, Louis. Montesquieu, la politique et l’histoire, Paris: Presses Universitaires de France, 1959.

______. Pour Marx, Paris: Maspero, 1965.

______. Réponse à John Lewis, Paris: Maspero, 1973.

______. L’avenir dure longtemps, Paris: Stock/IMEC, 1992.

______. Écrits sur la psychanalyse: Freud et Lacan, edited by Olivier Corpet and François Matheron, Paris: Stock/IMEC, 1993a.

______. The Future Lasts a Long Time, translated by Richard Veasey, London: Chatto and Windus, 1993b [1992].

______. Écrits philosophiques et politiques, two volumes, edited by François Matheron, Paris: Stock/IMEC, 1994a.

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______. Writings on Psychoanalysis: Freud and Lacan, edited by François Matheron, translated by Jeffrey Mehlman, New York: Columbia University Press, 1996 [1993].

______. The Spectre of Hegel: Early Writings, translated by G.M. Goshgarian, London: Verso, 1997.

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Elliot, Gregory. Althusser: The Detour of Theory, Second Edition, Historical Materialism Book Series, Leiden: Brill, 2006.

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26 de janeiro de 2011

"Juro cumprir a Constituição''

Na posse de Dilma Rousseff chamou-me a atenção o conciso juramento dedicado ao cumprimento da Constituição, fundamento do Estado democrático. Veio-me à mente o fato de que, no tocante à seguridade social, nenhum dos seus antecessores cumpriu esse compromisso solene, a começar por Sarney.

Eduardo Fagnani


A questão de fundo é que certos setores da sociedade resistem a aceitar essa conquista social. A mesma recusa se verificou em todos os governos desde 1988. Optaram por descumprir princípios fundamentais da organização e do orçamento da seguridade social (SS) e dos mecanismos que asseguram o controle social sobre os rumos das políticas de saúde, previdência e assistência social (Conselho Nacional da Seguridade Social).

Após 22 anos, percebo um conjunto de aparentes inconstitucionalidades. Digo aparentes porque, sendo economista, não tenho competência para comprovar com rigor esses pontos. Conclamo os juristas a participar desse debate. Fica a pergunta: não cabem ações diretas de inconstitucionalidade?

A primeira aparente ilegalidade é que o poder público jamais organizou a SS como rezam os artigos 165, 194, 195 e 59 - este último do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A Constituição de 1988 instituiu a SS integrada pelos setores da saúde, previdência e assistência social e seguro-desemprego (artigo 194). O artigo 59 dos ADCT estabeleceu prazos claros: "Os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e aos planos de custeio e de benefício serão apresentados no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis meses para apreciá-los". O parágrafo único complementa: "Aprovados pelo Congresso Nacional, os planos serão implantados progressivamente nos dezoito meses seguintes". Esses prazos, todavia, não foram observados. Tais determinações - mantidas pela Lei Orgânica da Seguridade Social (1991) e pela Emenda Constitucional 20/98 - foram olimpicamente descumpridas. O Executivo jamais formulou o projeto de lei de organização da seguridade social, conforme reza, rigorosamente, a Carta Magna. Optou por formular projetos de lei setoriais separados e institucional e financeiramente desarticulados.

Para financiar a SS a Constituição introduziu o orçamento da seguridade social (OSS), um conjunto de impostos gerais e contribuições de empregados e empregadores vinculados ao financiamento dos setores da saúde, previdência, assistência e seguro-desemprego (artigo 195). A segunda aparente inconstitucionalidade é que o Executivo jamais apresentou o OSS, rigorosamente como reza a Carta Magna. Em primeiro lugar, como mencionado, o ponto de partida são os planos de custeio e de benefício dos setores que integram a SS (artigo 59 do ADCT). Em segundo lugar, uma vez consolidado o OSS, suas fontes e seus usos devem ser apresentados anualmente, numa peça única, visando à transparência e ao controle social: o parágrafo 5.º do artigo 165 determina que a lei orçamentária anual compreende o orçamento fiscal, o orçamento das empresas estatais e o orçamento da seguridade social, "abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público". Esses preceitos constitucionais não foram cumpridos, com rigor, pelo Executivo.

A terceira aparente inconstitucionalidade é a captura dos recursos do OSS para outras finalidades não previstas na Carta de 88. Diversos estudos mostram que as contas do sistema sempre foram superavitárias. Em 2009, por exemplo, o superávit foi de R$ 32,6 bilhões, capturado pela área econômica. Esse desvio contradiz os artigos 194 e 195.

Em quarto lugar, destaca-se o desrespeito aos mecanismos de controle social. Para fiscalizar e verificar se o Executivo organizou a SS de acordo com o previsto no artigo 194 e se os recursos do OSS não foram desviados (artigo 195), a Constituição determinava que o poder público deveria observar o "caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados" (§ único, VII, do artigo 194, com nova redação dada pela Emenda 20/98: "caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados"). A ideia era criar o Conselho Nacional da Seguridade Social (o que ocorreu com a Lei 8.212/91. Entretanto, esse conselho nunca foi constituído. E mais grave: em 2001 a MP 2.216-37 revogou os artigos da lei que o havia instituído. Fica minha pergunta aos juristas: uma medida provisória tem força legal para extirpar um dos núcleos centrais da organização da SS, determinado pela Constituição da República?

Outra aparente inconstitucionalidade é a forma de o Ministério da Previdência e Assistência Social apresentar os dados da Previdência, desde 1989. O órgão não considera a previdência como integrante da seguridade. Parte do princípio de que a folha de salário do trabalhador urbano deve cobrir o gasto com o INSS urbano e o rural. O resultado é um "rombo" na Previdência por causa do INSS rural - na medida em que a previdência urbana é superavitária. Ora, insisto que os artigos 194 e 195 rezam que o INSS rural (não contributivo) deve ser coberto pelas receitas de impostos (Cofins, CSLL, etc.). Ao apresentar "déficit" do INSS rural, o Ministério comete o mesmo equívoco de sentenciar o "rombo" das contas do Legislativo, do Judiciário e das Forças Armadas (também financiadas por impostos).

Com sua notável biografia de luta pela democracia e pela correção demonstrada ao longo da sua vida pública, a presidenta Dilma poderá contribuir para a consolidação das conquistas sociais de 1988, o que passa por cumprir a Constituição, como jurou fazer ao tomar posse.

Sobre o autor
Professor do Instituto de Economia da UNICAMP

10 de janeiro de 2011

O levante da Aliança Nacional Libertadora

As revoltas sociais aparecem no Brasil como resultado de país constituído pelo mando das oligarquias e pela ausência de hegemonia democrática

Antonio Carlos Mazzeo

Folha de S.Paulo

A matéria veiculada nesta Folha sobre as atividades de Luiz Carlos Prestes no levante da Aliança Nacional Libertadora contra o governo de Getulio Vargas ("Carta de Prestes mostra ação da URSS", 13/ 12/2010, Poder), em novembro de 1935, apesar de arrimada em algumas cartas do líder comunista, não acrescenta novas luzes a uma questão relevante para a história brasileira, ainda afrontada com paixões sectárias, a começar pelo nome que se atribui a esse movimento: "Intentona Comunista".

O levante da ANL integra um momento conturbado na história mundial. A década de 1930 é de depressão econômica, convulsões políticas e ditaduras fascistas na Europa. Nos EUA, Roosevelt elimina o "sindicalismo vermelho", a partir de um neocorporativismo aliado a setores da "aristocracia operária" e da máfia estadunidense, para impulsionar o New Deal.

Havia tensão na cena política internacional, na qual estava também o movimento comunista.

Vargas, que chega ao poder por um "coup de main", concluindo o período das revoltas tenentistas da década de 1920, irá enfrentar muitos opositores, dos constitucionalistas em 1932 a setores democráticos e populares que se posicionam contra sua política econômica e denunciam um possível golpe coordenado por Góis Monteiro.

Em 1934, uma onda de greves cobre o país, com ampla participação do funcionalismo público.

Nesse contexto funda-se a ANL, em 30 de março de 1935, com nítida hegemonia comunista, cujo programa político inspirava-se nas frentes populares, adotadas internacionalmente para combater o fascismo, e destacava pontos como o cancelamento da dívida externa, a nacionalização de empresas estrangeiras, liberdades democráticas e reforma agrária, além da construção de um governo popular.

Não é preciso escarafunchar as entrelinhas das cartas de Prestes para perceber que ali estavam embrionárias formulações do PCB, desenvolvidas já em 1926. Uma vasta bibliografia atesta o apoio do Komintern (a 3ª Internacional Comunista) à construção da ANL e, posteriormente, ao levante armado de 1935.

Demonstra, também, o elemento endógeno decisivo do levante, isto é, que o governo Vargas materializava a impossibilidade de alternativas institucionais numa forma societal geneticamente autocrática, propensa a golpes militares e a ditaduras das classes dominantes.

Não existem "chaves ocultas" para entender o que a historiografia nacional vem pondo em evidência.

As revoltas sociais aparecem no Brasil como resultado de um país constituído pelo mando das oligarquias e pela ainda presente ausência de uma hegemonia radicalmente democrática.

O mais é produto de ficção conspirativa inspiradas por ódios ideológicos e por frustrações subjetivas.

Antonio Carlos Mazzeo, livre-docente em ciência política, é professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e autor, entre outros, de "Sinfonia Inacabada - A Política dos Comunistas no Brasil" (Boitempo) e "O Voo de Minerva - A Construção da Política, do Igualitarismo e da Democracia no Ocidente Antigo" (Boitempo).


3 de janeiro de 2011

Não, o povo não é uma massa bruta e ignorante

A palavra "populismo" tem sido muito usada nos últimos meses. Falou-se dos ataques contra o Islã de Marine Le Pen, da denúncia das elites de Jean-Luc Mélenchon, da transformação dos ciganos em bodes expiatórios de Nicolas Sarkozy... Que populismo é esse que atinge as democracias ocidentais? Libération convocou três filósofos: Jacques Rancière (leia abaixo) que critica a própria noção de populismo. Enzo Traverso que se preocupa com a ascensão da islamofobia e Bernard Stiegler que analisa o "populismo industrial" nascido da transição da democracia escrita para a sociedade das imagens analógicas.

Jacques Rancière

Libération

Não passa um dia sem que alguém decida denunciar os riscos do populismo. Não é por isso fácil identificar aquilo que a palavra designa. O que é um populista? Através de todas as flutuações do termo, o discurso dominante parece caracterizá-lo a partir de três traços essenciais: um estilo de interlocução dirigido diretamente ao povo por cima dos seus representantes e notáveis; a afirmação de que os governos e as elites dirigentes cuidam melhor dos seus interesses do que a coisa pública; uma retórica identitária que exprime o medo e a rejeição dos estrangeiros.

É por isso claro que nenhuma necessidade liga estes três traços. Que existe uma entidade chamada povo, que é a fonte de todo o poder e o interlocutor prioritário do discurso político, era a convicção profunda dos oradores republicanos e socialistas de outrora. Não lhe é associada qualquer forma de sentimento racista ou xenófobo. Que os nossos políticos pensam mais nas suas carreiras do que no futuro dos seus concidadãos e que os nossos governos vivem em simbiose com os representantes dos grandes interesse financeiros, pode ser proclamado sem se ser necessariamente um demagogo. A mesma imprensa que denuncia as derivas "populistas" oferece-nos quotidianamente os testemunhos mais detalhados. Por sua vez, certos chefes de Estado e de governo ditos "populistas", como Silvio Berlusconi ou Nicolas Sarkozy, estão longe de propagar a ideia "populista" que elites são corruptas. O termo "populismo" não serve por isso para caracterizar uma força política concreta. Não designa uma ideologia nem sequer um estilo político coerente. Serve simplesmente para desenhar a imagem de um certo povo.

Porque "o povo" não existe. Aquilo que existe são imagens diferentes, por vezes antagônicas, do povo, imagens construídas privilegiando certas formas de pertença, certos traços distintivos, certas capacidades ou incapacidades. A noção de populismo constrói um povo caracterizado pela atroz aliança entre uma capacidade - a potência bruta do grande número - e de uma incapacidade - a ignorância atribuída a esse mesmo grande número. Por isso, o terceiro traço, o racismo, é essencial. Trata-se de mostrar aos democratas, sempre suspeitos de ingenuidade "angelical", o que é na verdade o povo profundo: uma turba habitada por uma pulsão primária de rejeição que visa simultaneamente os governantes que declara traidores, incapaz de compreender a complexidade dos mecanismos políticos, e os estrangeiros que receia devido ao seu apego atávico a um quadro de vida ameaçado pela evolução demográfica, econômica e social. A noção de populismo recoloca em cena uma imagem do povo elaborada no final do século XIX por pensadores como Hyppolite Taine e Gustave Le Bon, aterrados pela Comuna de Paris e pelo crescimento do movimento operário: a das massas ignorantes impressionadas pelas palavras sonantes dos "agitadores" e dadas à violência extrema pela circulação de rumores incontroláveis e de pânicos contagiosos.

Esses tumultos epidêmicos das massas cegas manipuladas pelos líderes carismáticos estarão verdadeiramente na ordem do dia entre nós? Quaisquer que sejam os preconceitos expressos todos os dias relativamente aos imigrantes, e nomeadamente aos "jovens da periferia", eles não se traduzem em manifestações populares de massa. Aquilo a que hoje em dia chamamos racismo no nosso pais é essencialmente a conjunção de duas coisas. Por um lado, as formas de discriminação no emprego ou no local de residência que se exercem na perfeição dentro de gabinetes assépticos. Por outro, medidas de Estado que não resultam de todo de movimentos de massa: restrição à entrada no território, recusa de conceder documentos a gente que trabalha e paga impostos em França há anos, recusa do direito de cidadania a quem nasce dentro do país, dupla penalização, leis contra o foulard e a burqa, metas obrigatórias de deportação ou o desmantelamento de acampamentos de nômades. Essas medidas têm como principal objetivo precarizar uma parte da população quanto aos seus direitos de trabalhadores ou de cidadãos, constituir uma população de trabalhadores que podem a qualquer momento ser reenviados para o seu destino e de franceses que não têm a certeza de o continuar a ser.

Essas medidas são apoiadas por uma campanha ideológica, justificando essa diminuição de direitos pela evidência de uma não-pertença aos traços característicos da identidade nacional. Mas não foram os "populistas" da Frente Nacional que desencadearem essa campanha. Foram os intelectuais, de esquerda ao que se diz, que encontraram o argumento imparável: essas pessoas não são verdadeiramente francesas porque não são laicas.

A recente "derrapagem" de Marine Le Pen é instrutiva a esse respeito. Não faz efetivamente senão condensar numa imagem concreta uma sequência discursiva (muçulmano - islâmico - nazista) que se insinua um pouco por toda a prosa dita republicana. A extrema-direita "populista" não exprime uma paixão xenófoba específica que emana das profundezas do corpo popular; ela é um satélite que utiliza a seu favor as estratégias do Estado e as campanhas intelectuais mais sofisticadas. O Estado alimenta um permanente sentimento de insegurança que funde os riscos da crise e do desemprego com os do gelo na estrada ou os do ácido fórmico, para fazê-los culminar a todos na suprema ameaça do terrorismo islâmico. A extrema-direita coloca as cores da carne e do sangue sob o retrato robô delineado pelas medidas ministeriais e pela prosa dos ideólogos.

Assim, nem os "populistas" nem o povo projetado pelas denunciações rituais do populismo correspondem verdadeiramente à sua definição. Mas isso pouco interessa aos que agitam o seu fantasma. O essencial, para esses, é amalgamar a própria ideia do povo democrático à imagem da turba perigosa. E de retirar daí a conclusão que todos nos devemos entregar a quem nos governa e que qualquer contestação da sua legitimidade e da sua integridade é a porta aberta ao totalitarismo. "Antes uma república das bananas do que uma França fascista", dizia um dos mais sinistros slogans anti-Le Pen em abril de 2002. A atual campanha em torno dos perigos mortais do populismo procura converter em teoria a ideia de que não temos outra escolha.

Jacques Rancière é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da Universidade de Paris.

Para derrotar a pobreza, pague aos pobres

Um único programa social está transformando a forma como países de todo o mundo ajudam seus pobres.

Tina Rosenberg

The New York Times

An apartment building in front of the Rocinha shantytown in Rio de Janeiro. Bruno Domingos/Reuters

A cidade do Rio de Janeiro é famosa pelo fato de que uma pessoa pode olhar de um barraco precário em um morro, desde uma favela miserável, e ver praticamente dentro da janela de condomínios de alto luxo. Partes do Brasil se parecem com o sul da Califórnia. Partes parecem com o Haiti. Muitos países mostram grande riqueza ao lado de grande pobreza. Mas até recentemente o Brasil era o país mais desigual do mundo.

Hoje, no entanto, o nível de desigualdade econômica no Brasil está se reduzindo num ritmo maior que o de qualquer outro país. Entre 2003 e 2009, a renda dos pobres brasileiros cresceu sete vezes mais que a renda dos brasileiros ricos. A pobreza foi reduzida neste período de 22% para 7% da população.

Contraste isso com os Estados Unidos, onde entre 1980 e 2005, mais de 4/5 do aumento da renda foi para o 1% no topo da escala (veja aqui — the book is on the table — uma grande série sobre desigualdade nos Estados Unidos feita por Timothy Noah, da [revista eletrônica] Slate). A produtividade entre os trabalhadores americanos de renda baixa e média aumentou, mas a renda não. Se a tendência atual for mantida, os Estados Unidos podem em breve se tornar tão desiguais quanto o Brasil.

Vários fatores contribuíram para o feito surpreendente do Brasil. Mas a maior parte é devida a um único programa social que agora está transformando a forma com que os países de todo o mundo ajudam os pobres.

O programa, chamado Bolsa Família no Brasil, recebe nomes diferentes em lugares diferentes. No México, onde primeiro começou em escala nacional e foi igualmente bem sucedido na redução da pobreza, é chamado Oportunidades.

O termo genérico para os programas é “transferência condicional de renda”. A ideia é fazer pagamentos regulares a famílias pobres, em dinheiro ou transferências eletrônicas, se elas cumprirem certas metas.

As exigências variam, mas muitos países usam o que o México usa: famílias precisam manter as crianças na escola e fazer exames médicos regulares, a mãe precisa fazer cursos sobre temas como nutrição e prevenção de doenças. Os pagamentos quase sempre vão para as mulheres, já que elas mais provavelmente vão gastar o dinheiro com suas famílias. A ideia elegante por trás das transferências condicionais de renda é combater a pobreza hoje, mas quebrando o ciclo de pobreza amanhã.

A maior parte de nossas colunas até agora tem sido sobre ideias bem sucedidas, mas pequenas. Elas enfrentam uma dificuldade comum: como funcionar em maior escala. Esta é diferente. O Brasil está empregando uma versão de uma ideia que agora está em uso em 40 países do globo, uma ideia já bem sucedida em uma impressionantemente enorme escala. Este é provavelmente o mais importante programa de governo antipobreza que o mundo já viu. Vale a pena saber como funciona e porque foi capaz de ajudar tanta gente.

No México, Oportunidades hoje cobre 5,8 milhões de famílias, cerca de 30% da população. Uma família da Oportunidades com uma criança na escola primária e outra na escola secundária, que cumpre todas as exigencias, pode receber um total de 123 dólares por mês. Os estudantes também podem receber dinheiro para material escolar e as crianças que completam o ensino médio dentro do tempo recebem um pagamento de 330 dólares.

A Bolsa Família, que tem exigências similares, é ainda maior. Os programas de transferência condicional de renda do Brasil foram iniciados antes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ele consolidou vários programas e os expandiu. Agora cobre cerca de 50 milhões de brasileiros, um quarto dos habitantes do país. Paga um valor mensal de 13 dólares para as famílias pobres por criança de 15 anos ou menos que estiver na escola, para até três crianças. As famílias podem ter um valor adicional de 19 dólares por criança de 16 ou 17 anos ainda na escola, para um máximo de duas crianças. Famílias que vivem na extrema pobreza recebem um beneficio básico de 40 dólares, sem condições.

Estas somas parecem dolorosamente pequenas? São. Mas uma família vivendo em extrema pobreza no Brasil dobra a sua renda quando recebe o benefício básico. Faz tempo está claro que o Bolsa Família reduziu a pobreza no Brasil. Mas apenas pesquisas recentes revelaram o papel do programa na redução da desigualdade econômica.

O Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento estão trabalhando com governos para espalhar os programas em todo o mundo, dando ajuda técnica e empréstimos. Os programas de transferência condicional de renda são encontrados agora em 14 países da América Latina e em outros 26 países, de acordo com o Banco Mundial. (Um dos programas é em Nova York, um programa piloto pequeno, financiado privadamente, chamado Opportunity NYC. Uma avaliação inicial mostrou sucesso relativo, mas ainda é cedo para tirar conclusões). Cada programa é desenhado para as condições locais. Alguns na América Latina enfatizam a nutrição. O da Tanzânia está experimentando com pagamentos condicionais que dependem do comportamento de toda a comunidade.

O programa combate a pobreza de duas formas. Uma, direta: dá dinheiro aos pobres. Funciona. E, não, o dinheiro não é roubado nem desviado para os mais ricos. O Brasil e o México são muito bem sucedidos em incluir apenas os pobres. Nos dois países houve redução de pobreza, especialmente pobreza extrema, e houve redução da taxa de desigualdade.

O outro objetivo da proposta — dar mais educação e saúde às crianças — é de longo prazo e mais difícil de medir. Mas tem sido medida — o Oportunidades é provavelmente o programa social mais estudado do planeta. O programa tem um grupo de avaliação e publica todos os seus dados. Houve centenas de estudos de acadêmicos independentes a respeito dele.

No México houve redução de desnutrição, anemia e nanismo, assim como de outras doenças da infância e de adultos. A mortalidade infantil e de mães caiu. O uso de contraceptivos na zona rural aumentou e a gravidez de adolescentes caiu. Mas os efeitos mais dramáticos foram vistos na educação. Crianças no Oportunidades repetiram menos de ano e ficaram mais tempo na escola. O trabalho infantil caiu. Em zonas rurais, a porcentagem de crianças entrando no ensino médio aumentou 42%. Matrículas em escolas médias da zona rural aumentaram imensos 85%. Os maiores efeitos em educação se dão em famílias onde as mães têm o menor nível de educação. Famílias indígenas do México foram particularmente beneficiadas, com as crianças ficando mais tempo na escola.

O Bolsa Família tem um impacto similar no Brasil. Um estudo recente descobriu aumentos na permanência na escola e no avanço escolar — particularmente no Nordeste, onde a presença na escola é a menor, e particularmente para as meninas mais velhas, que correm o maior risco de abandonar os estudos. A pesquisa também descobriu que o Bolsa aumentou o peso das crianças, os índices de vacinação e o uso do cuidado pré-natal.

Quando viajei pelo México em 2008 para fazer reportagem sobre o Oportunidades, encontrei família atrás de família com histórias distintas entre o antes e o depois. Pais cujo trabalho consistia em usar machetes para cortar grama tinham, graças ao Oportunidades, filhos formados na escola secundária e que agora estavam estudando contabilidade ou enfermagem. Algumas famílias tinham filhos mais velhos que haviam sido maltrunidos na infância, mas as crianças mais jovens agora eram saudáveis porque o Oportunidades tinha chegado em tempo de ajudá-las a se alimentar melhor.

Na cidade de Venustiano Carranza, no estado mexicano de Puebla, encontrei Hortensia Alvarez Montes, uma viúva de 54 anos de idade cuja renda vinha de lavar roupa. Tinha parado de estudar na sexta série, da mesma forma que três dos filhos dela. Mas quando o Oportunidades chegou, ela manteve as crianças mais novas na escola. Estavam ambos completando o ensino secundário quando os visitei. Um deles planejava fazer faculdade.

Fora do Brasil e do México, os programas de transferência condicional de renda são mais novos e menores. De qualquer forma, há amplas pesquisas demonstrando que também eles aumentam o consumo, reduzem a pobreza e aumentam a permanência na escola e o uso de serviços de saúde.

Se programas de transferência condicional de renda funcionarem adequadamente, muitas novas escolas e clínicas serão necessárias. Mas os governos nem sempre podem acompanhar a demanda e algumas vezes só podem fazer isso reduzindo drasticamente a qualidade. Se este é um problema para países de renda média como o Brasil e o México, imagine o desafio para Honduras ou Tanzânia.

Para os céticos, que acreditam que programas sociais nunca funcionam em países pobres e que a maior parte do que é gasto com eles é roubado, os programas de transferência condicional de renda são uma resposta convincente. Aqui estão programas que ajudam os que mais precisam de ajuda e que fazem isso com pouco desperdício, corrupção ou interferência política. Mesmo programas pequenos, que atendam uma única vila e sejam bem sucedidos, são motivo para celebrar. Fazer isso na escala que México e Brasil fizeram é impressionante.

Colaboradora

Tina Rosenberg won a Pulitzer Prize for her book “The Haunted Land: Facing Europe’s Ghosts After Communism.” She is a former editorial writer for The Times and now a contributing writer for the paper’s Sunday magazine. Her new book, “Join the Club: How Peer Pressure Can Transform the World,” is forthcoming from W.W. Norton.

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