23 de dezembro de 2010

Obscurantismo contemporâneo

Alain Badiou

Le Monde

Tradução / Como devemos chamar as construções intelectuais extraordinárias que são os trabalhos de Darwin, Marx e Freud? Elas não são estritamente ciências, mesmo se a biologia – incluindo a biologia contemporânea – for pensada dentro da moldura darwiniana. Elas certamente também não são filosofias, mesmo se a dialética, esse antigo nome platônico para filosofia, tenha ressurgido com Marx. Elas não podem ser reduzidas a práticas às quais esses autores jogaram luz, mesmo se a experimentação prova a razão de Darwin, mesmo se políticas revolucionárias tentam verificar a hipótese comunista de Marx, e mesmo se a cura psicanalítica coloque Freud nas fronteiras sempre confusas da psiquiatria.

Vamos chamar o “século 19” de período que vai da Revolução Francesa à Revolução Russa. Eu proponho chamar essas três tentativas de dispositivos de pensamento geniais e, afirmando isso, em um certo sentido esses dispositivos identificam o que o século 19 trouxe, como uma nova força, para a história da emancipação humana. Depois de Darwin, os movimentos da vida humana e da existência, irrevogavelmente desvencilhados de toda transcendência religiosa, foram deixados à imanência de suas próprias leis.

Depois de Marx, a história dos grupos humanos foi removida tanto da opacidade da providência e da onipotência quanto das inércias opressivas da propriedade privada, da família e do Estado. Ela foi deixada ao jogo livre das contradições dentro da qual um futuro igualitário deve ser ser escrito – mesmo se for com esforço e incerteza. Depois de Freud, ficou compreendido que não há alma, cujo treinamento seria sempre algo moralizante, opondo os desejos primordiais ao que a infância traz com o que será. Ao contrário, é no centro desses desejos, particularmente dos desejos sexuais, que a possível liberdade do sujeito está em jogo – uma liberdade em que ele ou ela dependem da linguagem, esse resumo da ordem simbólica.

Por muito tempo, todas as formas de conservadorismo atacaram esses três grandes dispositivos. É natural. É muito bem conhecido o fato de que nos Estados Unidos, mesmo hoje, as instituições educacionais são geralmente forçadas a opor o criacionismo bíblico à evolução em um sentido darwiniano. A história do anti-comunismo praticamente sobrepõe-se à da ideologia dominante em todos os grandes países em que o capital-parlamentarismo reina sob a capa da “democracia”. A psiquiatria positiva, que vê desvios e anomalias em todos os lugares que devem ser contra-atacados com o uso brutalidades químicas, tenta desesperadamente “provar” que a psicanálise é uma impostura.

Por muito tempo, particularmente na França, não obstante, os imensos efeitos emancipatórios, em pensamento e ação, de Darwin, Marx e Freud, prevaleceram em meio a argumentos ferozes, revisões agonizantes e críticas criativas. O movimento desses dispositivos dominou a arena intelectual. Conservadorismos estavam na defensiva.

Depois do vasto processo de normalização em escala global que começou nos anos 1980, todo tipo de pensamento ou mera crítica emancipatória é inconveniente. Portanto, nós temos visto um esforço atrás do outro para remover todos os traços desses grandes dispositivos de pensamento que são cunhados como “ideologias” onde eles são exatamente a crítica racional da ideologia por si só. A França, de acordo com Marx o “lugar clássico da luta de classes”, se viu sob a ação de pequenos grupos de renegados da “década vermelha” (1965-1975), que estão na linha de frente dessa reação. Nós temos testemunhado a multiplicação de “livros negros” sobre o comunismo, sobre a psicanálise, sobre o progressismo e sobre tudo que não é igual à estupidez contemporânea: consumir, trabalhar, votar e calar a boca.

Entre essas tentativas, que, sobre o rótulo de “modernidade”, reciclam as tolices obsoletas liberais da década de 1820, as menos detestáveis não são aquelas derivadas de um materialismo do prazer que atua como uma espécie de vigia, particularmente em relação à psicanálise. Longe de ser qualquer tipo de emancipação, o imperativo “aproveite!” é aquele que as tão proclamadas sociedades ocidentais nos ordenam a obedecer. E isso para nos prevenir de ver o que realmente conta: o processo em que algumas verdades disponíveis são liberadas, que os grandes dispositivos de pensamentos costumavam considerar.

Portanto, devemos chamar de “obscurantismo contemporâneo” todas as formas, sem exceção, de supressão e erradicação do poder contido, para o benefício de toda a humanidade, em Darwin, Marx e Freud.

13 de dezembro de 2010

Chega de direitos humanos

WikiLeaks e Saara Ocidental

Jeremy Harding


Tradução / Graças a WikiLeaks, aprendem-se duas coisas sobre a ocupação ilegal, pelo Marrocos, do Sahara Ocidental, lições que nos vêm da Embaixada dos EUA em Rabat: 1) a ocupação é fonte de renda pessoal para oficiais do exército marroquino, mas... 2) tudo bem, tudo ótimo.

O Sahara Ocidental foi possessão espanhola, que Madrid teria de entregar às populações nativas em 1975. O rei Hassan II do Marrocos aproveitou-se do caos reinante na Espanha ao tempo da morte de Franco e anexou o território. A ONU lamentou muito; a Frente Polisario embarcou numa guerra de libertação, que acabou em impasse e num cessar-fogo, em 1989. Naquele momento, o Marrocos controlava a maior parte do território, onde fazia jorrar colonos, com o projeto de superar, em números populacionais, os sarauis indígenas.

Sob auspícios da ONU, os dois lados – o reino do Marrocos e a Frente Polisario – concordaram que a independência passaria porreferendum. Vinte anos depois, ainda não aconteceu e já ninguém espera que aconteça: os marroquinos avançaram sobre o terreno, encontrando resistência bizantina, ano após ano. A missão da ONU foi posta de lado; o projeto colonial avança; há centenas de milhares de refugiados na Argélia e uma população no território, sempre punida quando reivindica direitos de independência.

São questões de somenos para o embaixador Thomas T. Riley, escrevendo de Rabat em 2008. O que conta é “a robusta relação militar entre EUA e Marrocos”, confirmada pela “compra de armamento sofisticado dos EUA, que incluirá, esse ano, 24 F-16s”[1]. O regime, anuncia Riley:

“também aumentou suas atividades num acordo de parceria com a Guarda Nacional de Utah, que visita regularmente o Marrocos para conduzir operações de treinamento e ajuda humanitária”.

Ainda assim, perturba-o um pouco a corrupção no exército do Marrocos (no total, 218 mil soldados; entre “50 e 70% (...) preocupados com operações na região do Sahara Ocidental”). Riley cita o Tenente General Abdelaziz Bennani, comandante da Sessão Sul – i.e. o território anexado. Ao que parece, Bennani:

“usou sua posição para arrancar dinheiro de empresas fornecedoras dos militares e influenciar decisões comerciais. Boato muito disseminado diz que é proprietário de grandes fatias de empresas pesqueiras no Sahara Ocidental (...) há relatórios, inclusive, de alunos da Academia Militar do Marrocos que pagam para obterem indicação para postos militares mais lucrativos.”

No topo da lista: o Sahara Ocidental

Riley arranjou excelente emprego na Savvis, a empresa de comunicações, depois que os Republicanos perderam a Casa Branca. Fast forward até o verão de 2009: outro par de mãos trabalha no laptop em Rabat – o chargé d’affaires, Robert P. Jackson – que digita outro telegrama que tem muito prazer em intitular “Western Sahara Realities” [Realidades do Sahara Ocidental]’ [2]. E repete os números de Riley – cerca de 150 mil soldados marroquinos estão alocados no Sahara Ocidental – e diz, corretamente, que 385 mil pessoas vivem na área anexada. (Só uma faixa ‘liberada’, à margem do deserto, é ainda controlada pela Frente Polisario, e o cessar-fogo continua vigente.)

Jackson acerta também ao dizer que os colonos marroquinos chegam hoje “a bem mais da metade daquele número”. Esse portanto é território cuja população nativa é apenas ligeiramente maior que o número de soldados ali alocados por Rabat: a proporção é quase de 1:1. Se isso não for repressão, o que mais será? Lá estarão para dar aulas de educação moral e cívica? O exército marroquino organizará seminários sobre genealogia dos mórmons, para proveito da Guarda Nacional de Utah? Pois Jackson escreve que “o respeito aos direitos humanos no território melhorou muito”2. Admite que os cidadãos nativos não têm direito de reivindicar qualquer independência: talvez os direitos humanos dos sarauís sejam como direitos animais das raposas, que já conquistaram o direito de se meterem na toca, à espera de que alguém defenda o direito das raposas. Mas não esperem que Jackson – hoje embaixador dos EUA em Camarões – faça o serviço.

Há oito anos, perto de Layoune, capital do Saara Ocidental, os sarauís organizaram um acampamento para protestar contra a ocupação marroquina foi invadido e sitiado pelos militares e, em novembro, foi destruído; houve 60 feridos e foram presos os suspeitos de sempre. E só, em matéria de direitos humanos dos sarauís.

Há até passagens mais preocupadas com a natureza do conflito, no telegrama de Jackson. Pergunta-se por que a Frente Polisario (a qual, segundo ele, operaria “à moda dos cubanos”) jamais reclamou áreas do próprio Marrocos, da Mauritânia ou da Argélia, onde vivem grandes números de sarauís, como parte do Estado independente que reivindicam. Conclui que não o fazem foi falta de “um nacionalismo mais amplo”, de onde conclui que a disputa é estreitamente territorial – expressão de antigas tensões de fronteira entre Marrocos e Argélia, com a Frente Polisario atuando como cúmplice dos argelinos.

Sim, sim, trata-se de território, mas só na medida em que a descolonização do Sahara espanhol deveria ter implicado em direito à independência. A etnia dos que vivem na região, ou de outros, além fronteiras, nada tem a ver com isso. Seja qual for o papel da Argélia nesse conflito, a Frente Polisario jamais comprometeria seus objetivos desafiando a Organização da Unidade Africana (OAU) ou a inviolabilidade das fronteiras coloniais e sonhando com um Sahara Ocidental ‘maior’, expandido. Tivesse feito isso, não teria recebido parecer favorável da Corte Internacional de Justiça, a ONU não teria concordado com o referendo sobre a independência, e o governo do que é hoje o único território colonizado da África (República Árabe Democrática Sarauí, ing. Saharawi Arab Democratic Republic, SADR o SADR) não seria membro da União Africana nem seria reconhecida por 81 Estados.

Pois... vejam só! Um chargé d’affaires em Rabat desqualifica o movimento de independência, porque fez o que deveria ter feito. Já o Marrocos, que viola rotineiramente fronteiras de um Estado soberano, que viola as aspirações legítimas dos sarauís, que infla a terra anexada com colonos e soldados... é premiado com duas dúzias de aviões bombardeiros para a própria ‘proteção’!

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