30 de agosto de 2010

Operações secretas

Os irmãos bilionários que estão travando uma guerra contra Obama.

Jane Mayer

The New Yorker

David H. Koch em 1996. Ele e seu irmão Charles são libertários de longa data e discretamente doaram mais de cem milhões de dólares para causas de direita. Fotografia de Richard Schulman / Corbis

Tradução / No dia 17 de maio, um público em black-tie na Metropolitan Opera House aplaudiu um bilionário alto, de ar jovial, que logo subiu ao palco. Acontecia a 17ª noite de gala anual do American Ballet Theatre, e David H. Koch, membro do conselho de curadores da entidade, recebia homenagens pela generosidade; acabava de doar 2,5 milhões de dólares para a próxima temporada da Companhia e, antes, já doara vários outros milhões. Koch recebeu o prêmio ladeado pelos dois co-presidentes da solenidade, Blaine Trump, em vestido rosa-pêssego, e Caroline Kennedy Schlossberg, em verde-esmeralda. A mãe de Kennedy, Jacqueline Kennedy Onassis, foi patronnesse do balé e, por coincidência, proprietária anterior do apartamento, na 5ª Avenida, que Koch comprou em 1995 e vendeu 11 anos depois por 32 milhões de dólares, quando o apartamento começou a parecer-lhe pequeno.

A solenidade de gala foi um marco na ascenção social de Koch, que, aos 70 anos, é um dos mais destacados filântropos da cidade. Em 2008, doou 100 milhões de dólares para modernizar o Teatro do Estado de New York, no Lincoln Center, teatro que hoje leva seu nome. Deu 20 milhões ao Museu de História Natural, e dá nome, hoje, à ala dos dinossauros. Na primavera, depois de dar-se conta do estado de decrepitude das fontes à frente do Metropolitan Museum of Art, Koch prometeu pelo menos 10 milhões para recuperá-las. É curador do museu, talvez o prêmio social mais cobiçado da cidade, e participa também da direção do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, onde, depois de ele ter doado mais de 40 milhões de dólares, uma cátedra e um centro de pesquisas criados e mantidos por ele receberam seu nome.

Um dignitário estava estranhamente ausente da solenidade: a terceira presidenta honorária do evento, Michelle Obama. Seu gabinete informou que havia um conflito de agenda, que a impediria de comparecer. Caso é que, se a Primeira Dama partilhasse o palco com Koch, ter-se-ia ali quadro muito estranho. Em Washington, Koch é mais conhecido como membro da família que tem financiado os mais violentos ataques contra o governo federal, no geral; e contra o governo Obama, no específico.

Com o irmão Charles, 74 anos, David Koch é dono, praticamente, de todas as Indústrias Koch, um conglomerado com sede em Wichita, Kansas, cuja renda anual tem sido estimada em 100 bilhões de dólares. A empresa cresceu espetacularmente depois da morte do pai de Charles e David, Fred, em 1967, quando os irmãos assumiram o controle. Os Kochs operam refinarias de petróleo no Alaska, no Texas, e em Minnesota, e controlam cerca de 4 mil milhas de oleodutos. As Koch Industries são proprietárias da Brawny, fábrica de toalhas de papel; da Dixie cups, da Georgia-Pacific, serrarias; dos carpetes Stainmaster, da Lycra e de muitas outras empresas e fábricas. A revista Forbesclassificou o grupo Koch como a segunda maior empresa privada do país, depois da Cargill; e a rentabilidade consistente do grupo fez de David e Charles Koch – os quais, há anos, compraram as partes de outros dois irmãos – dois dos homens mais ricos dos EUA. Combinadas as fortunas dos dois irmãos, só ficam abaixo das de Bill Gates e Warren Buffett.

Os Kochs militam há muito tempo entre os libertários que pregam impostos absolutamente mínimos, sejam sobre pessoas físicas ou jurídicas; serviço social e assistência aos mais pobres também mínimos; e ainda mais mínima fiscalização sobre as indústrias, sobretudo no que tenha a ver com prevenção de danos ao meio ambiente. São ideias que combinam perfeitamente com os interesses corporativos dos irmãos. Em estudo distribuído há alguns meses, o Instituto de Pesquisa Política e Econômica da University de Massachusetts em Amherst classificou as Indústrias Koch entre as dez que mais poluem nos EUA. Para o grupo Greenpeace, em relatório recente, a companhia é “campeã da negação de todos os saberes da ciência climática”. O relatório mostrou que, de 2005 a 2008, os Kochs ultrapassaram em muito aExxonMobil na quantidade de dinheiro doado a ONGs [1] que combatem a legislação relativa a mudanças climáticas, patrocinando vasta rede de fundações, centros de pesquisa, institutos, think tanks e grupos de ativismo. De fato, os irmãos patrocinaram campanhas de oposição a tantas políticas do governo Obama – da reforma da saúde ao programa de estímulo econômico – que, nos círculos políticos, essa rede ideológica é chamada de “o Kochtopus”.

Em declaração, as Koch Industries disseram que o relatório do Greenpeace “distorce o trabalho ambiental de nossas empresas”. E David Koch, no mais recente artigo elogioso sobre ele publicado em New York, protestou que “a imprensa radical” convertera sua família em “meninos para surrar” e exagerava sua influência na política dos EUA. Mas para Charles Lewis, fundador do Center for Public Integrity, entidade não partidária de vigilância ética, “Os Kochs estãoem outro nível. Ninguém gasta tanto dinheiro quanto eles. Essa amplíssima liderança é que os mantêm a parte. Não respeitam lei alguma, praticam todos os tipos de manipulação política e práticas para burlar os controles públicos. Vivo em Washington desde o caso Watergate, e jamais vi coisa semelhante. Os Kochs são a Standard Oil dos nossos tempos.”


Poucas semanas depois da solenidade de gala no Lincoln Center, o braço militante da Fundação Norte-americanos pela Prosperidade [ing. Americans for Prosperity Foundation] – ONG iniciada por David Koch em 2004 – promoveu reunião bem diferente. No fim de semana do 4 de Julho, houve um congresso que recebeu o nome de “O Texas na Defesa do Sonho Americano” [ing. Texas Defending the American Dream] num salão de festas em Austin. Apesar de Koch promover livre e pessoalmente suas aventuras filantrópicas, não compareceu àquele congresso, nem se falou dele. Nessa ocasião, os presentes não assistiram a discursos sobre arte e balé. À tribuna subiram, exclusivamente, oradores empenhados em denunciar malfeitos do presidente Barack Obama. Peggy Venable, organizadora do congresso, alertou os presentes contra “a visão socialista do atual governo, sobre nosso país”.

500 pessoas participaram do congresso, que foi, em boa parte, sessão de treinamento para ativistas do Movimento “Tea Party” no Texas. Cartaz de convocação apresentava o congresso como levante popular contra o poder das corporações. “Hoje, as vozes dos americanos comuns são caladas por lobbyistase por interesses especiais”, lia-se nos cartazes. “Mas você pode reagir”. Nem uma palavra sobre os interesses corporativos que financiavam o congresso. A Casa Branca lamentou que os reais patrocinadores do evento não tivessem aparecido. David Axelrod, principal conselheiro de Obama, comentou: “O que eles não dizem é que o que parece ser movimento de base é orquestrado por um bando de bilionários do petróleo.”

Em abril de 2009, Melissa Cohlmia, uma das porta-vozes da companhia, negou que os Kochs tenham qualquer ligação direta com o Movimento Tea Party. Para ela, Americans for Prosperity é “organização independente, e o grupo Koch de modo algum dirige suas atividades”. Mais tarde, divulgou uma declaração: “Nenhum tipo de ajuda financeira foi encaminhada pelas empresas Koch, pelas fundações Koch, nem pessoalmente por Charles Koch ou David Koch, como apoio a festas de chá”. E David Koch disse ao New York: “Jamais participei de eventos de festas de chá. Nenhum representante de festa do chá jamais se aproximou de mim”.

Mas em Austin, Venable – experiente ‘marketeira política’, hoje a serviço da Fundação Americans for Prosperity, e que desde 1994 trabalha para grupos políticos financiados pelos Koch – falou menos enigmaticamente. “Adoramos o que as Tea Parties estão fazendo, porque é desse modo que reconquistaremos os EUA para nós!” – disse ela, para o público que aplaudia, frenético. Em entrevista posterior, descreveu-se, ela mesma, como membro do movimento desde o nascimento, rindo: “Eu já militava no Tea Party antes de o movimento virar moda!” Esclareceu que a Fundação Americans for Prosperity apenas ajudara no trabalho de “educar” os ativistas do Movimento Tea Party sobre alguns aspectos políticos; para ensiná-los a dar os passos seguintes, depois das grandes manifestações de rua, de modo a que a energia política dos ativistas fosse canalizada “com mais eficácia”. E observou que a Fundação Americans for Prosperity fornecera aos ativistas do Movimento Tea Party listas de nomes selecionados de políticos a serem focados. Quanto aos Kochs, disse que “Claro que estão conosco. David é presidente da Fundação. Claro que já nos encontramos e considero excelente o trabalho que desenvolvem”.

Venable homenageou vários “líderes cidadãos” do Movimento Tea Party, no Congresso. O ramo texano da Fundação Americans for Prosperity entregou o prêmio de “Blogueiro do Ano” a uma jovem senhora, de nome Sibyl West. Dia 14 de junho, em seu Blog, West descreveu o presidente Obama como “Cheirador-de-cocaína em-chefe” [ing. cokehead in chief]. Em discussão online, West comentou que o presidente já estaria apresentando sintomas de “possessão demoníaca, também chamada esquizofrenia etc.”. No congresso, falaram vários palestrantes pagos, entre os quais Janine Turner, mais conhecida como atriz do seriado de TV Northern Exposure” Disse ela: “Eles querem que nossas crianças ignorem os direitos que têm. Querem que nossas crianças ignorem a existência de Deus!”

Em almoço servido no local do encontro, Venable apresentou Ted Cruz, ex-procurador geral do Texas, que disse à multidão que Obama “é o presidente mais radical que jamais ocupou o Salão Oval” e que ocultara dos eleitores sua agenda secreta – “o governo está controlando completamente nossa economia e nossa vida.” A luta contra Obama, disse Cruz, “é a luta épica de nossa geração!” Foi aplaudido de pé. E, sob aplausos, repetiu o brado de desafio de um texano, no Alamo: “Vitória, ou morte!”

A associação Americans for Prosperity sempre trabalhou ao lado do MovimentoTea Party, desde o início do movimento. Nas semanas anteriores ao primeiro Dia de Protesto contra os Impostos, em abril de 2009, a associação Americans for Prosperity já hospedava uma página de internet com “Pontos-chave do Movimento Tea Party”. O ramo do Arizona conclamava o povo a enviar saquinhos de chá para Obama; no Missouri, os Americans for Prosperityconvidavam seus membros a alistar-se no “Cadastro de Contribuintes do [movimento] Tea Party” e indicavam hora e local de nove manifestações de rua. O grupo continua a pregar a insurgência. O ramo da Carolina do Norte criou há pouco tempo uma página na internet, Tea Party Finder, anunciada como “um portal de todas as ‘Festas do Chá’ na Carolina do Norte.”

O fervor anti-Obama que está contaminando as eleições de 2010 são importante triunfo político para os irmãos Kochs. Ao garantir dinheiro para “educar”, financiar e organizar os cidadãos que se reúnem nas manifestações do Movimento Tea Party, os Koch contribuíram decisivamente para converter o que era agenda privada dos dois, em movimento de massas.

Bruce Bartlett, economista e historiador conservador, ex-funcionário doNational Center for Policy Analysis, think-tank sediado em Dallas e mantido pelos irmãos Kochs, disse que “O problema desses movimentos de cidadãos contra o governo é que sempre há muitos caciques e poucos índios. Nesse movimento [Tea Party] não havia pessoas ‘reais’, eram poucos os eleitores. Os Kochs estão trabalhando para criar, de fato, um movimento.” Com o MovimentoTea Party nas ruas, diz Bartlett, “as pessoas, de repente, viram que há muitos índios por aí – gente que, reunida, pode garantir poder ideológico efetivo aos caciques”. Os Kochs, disse ele, estão “trabalhando para modelar, controlar e dirigir uma manifestação popular limitada, de modo que passem a manifestar e divulgar a agenda pessoal privada dos dois, já convertida em ‘grande movimento popular’.”


Um consultor de campanha do Partido Republicano, que fez trabalhos de pesquisa para Charles e David Koch, disse, falando sobre o Movimento Tea Party, que “os irmãos Koch forneceram todo o dinheiro necessário para financiar o movimento, desde o início. Foi como se estivessem semeando. Depois veio a tempestade, e os sapos começaram a brotar no brejo – agora, lá estão. São os nossos candidatos!”

Os Kochs e seus operadores políticos não dão entrevistas. Em lugar deles, um importante executivo de empresa de Relações Públicas muito próximo dos Kochs oferece dois amigos: George Pataki, ex-governador de New York, e Mortimer Zuckerman, magnata do mercado imobiliário e da publicidade. Pataki, Republicano cuja campanha recebeu contribuições de David Koch, descreve-o como “um patriota profundamente preocupado com o destino dos EUA.” Para Zuckerman, o que mais chama a atenção é a “decência gentil” de David, e o amplo escopo de seus “interesses públicos”.

Para o consultor de campanha do Partido Republicano, comentando as atividades políticas da família, “Dizer que vivem abaixo do radar, é pouco. Eles são subterrâneos!” Outro ex-conselheiro dos Koch diz que “eles são espertos. Essa coisa de extrema direita, de veias explodindo, trabalha a favor deles. Eles veem esse movimento como um modo de fazer o serviço sujo, sem que eles próprios se sujem.” Rob Stein, estrategista político do Partido Democrata, que estudou as finanças do movimento conservador, disse que os Kochs estão “no epicentro do movimento anti-Obama. Teriam feito o mesmo, se lá estivesse Hillary Clinton. Fizeram o mesmo com with Bill Clinton. Estão em campo para destruir qualquer ideia progressista.”


Por estranho que pareça, essa tão ferozmente capitalista família Koch deve parte de sua fortuna a Joseph Stalin. Fred Koch – pai dos irmãos Koch – era filho de um tipógrafo holandês que se instalou no Texas, onde comandou um jornal semanal. Fred estudou no MIT, onde se diplomou em engenharia química. Em 1927, inventou um processo mais eficiente para converter petróleo em gasolina, mas, reza o folclore familiar, foi visto como ameaça pelas gigantes do petróleo, que levaram sua indústria à ruína. Sem conseguir sucesso em sua terra, Koch encontrou na União Soviética quem se interessasse por sua invenção. Nos anos 1930, sua empresa treinou engenheiros bolcheviques e ajudou Stalin a construir e por em funcionamento 15 modernas refinarias. Com o tempo, vários dos colegas soviéticos de Koch acabaram colhidos nos expurgos de Stálin. Koch jamais esqueceu a experiência, e lamentou aqueles contatos. Voltou aos EUA. Sempre guardou, na sala de trabalho de sua empresa – Rock Island Oil & Refining, Wichita – fotos que provavam que aquelas refinarias soviéticas foram destruídas na II Guerra Mundial. Gus di Zerega, ex-amigo de Charles Koch, relembra que “à medida que os soviéticos foram-se tornando potência militar, Fred manifestava cada vez mais um certo sentimento de culpa por tê-los ajudado tanto. Acho que essa lembrança sempre o perturbou muito.”

Em 1958, Fred Koch tornou-se um dos membros fundadores da John Birch Society – grupo ultraconservador, conhecido, dentre outras ideias, pelo ceticismo com que encaram qualquer governo e por disseminar medos de uma invasão comunista aos EUA. Para os membros daquele grupo, o presidente Dwight D. Eisenhower seria agente do comunismo internacional. Em manifesto que escreveu e publicou, Koch dizia que “os comunistas já estão infiltrados nos dois partidos, Democratas e Republicanos”. Escreveu elogios a Benito Mussolini, quando tornou proscritos os comunistas na Itália, tanto quanto atacou o movimento norte-americano pelos direitos civis. “Os homens de cor são parte do grande plano dos comunistas para dominar a América”, alertava. Os direitos sociais, para ele, seriam plano secreto para atrair para as grandes cidades os negros que viviam no interior, para as quais trariam “uma perigosa disputa racial”. Em discurso em 1963, no qual já se veem as primeiras linhas do que diz hoje o movimento Tea Party, sobre um plano socialista secreto, Koch previa que os comunistas “infiltrar-se-ão em todos os gabinetes do governo dos EUA, até porem um comunista na Casa Branca, que nenhum de nós conhecerá.”

Koch casou-se com Mary Robinson, filha de um médico do Missouri, e tiveram quatro filhos: Freddie, Charles e os gêmeos David e William. John Damgard, presidente da Futures Industry Association, colega de escola e amigo de David, lembra que Fred Koch era “um verdadeiro John Wayne”. Koch pregava educação ‘dura’, levando os filhos e amigos para caçar na África e exigindo que trabalhassem no rancho da família. Os Kochs viviam numa mansão de pedra num enorme complexo à frente do Country Club de Wichita; no verão, os rapazes ouviam os amigos saltar na piscina próxima, mas não podiam juntar-se a eles. “Ao instilar em mim uma ética do trabalho desde muito cedo, meu pai fez-me um grande favor, embora nada se parecesse com favor, conforme eu via as coisas, naquele tempo”, escreveu Charles. “Quando eu tinha oito anos, meu pai cuidava para que eu praticamente não tivesse uma hora de ócio.” David Koch relembra que seu pai também fazia pregação política em família. “Falavaconstantemente às crianças sobre tudo que o governo faz de errado”, contou a Brian Doherty, editor da revista anti-Estado Reason, e autor de Capitalistas Radicais, história do movimento liberal contra o Estado nos EUA, editado em 2007. “São ideias com as quais cresci. – O ponto de vista mais fundamental é a ideia de que quanto maiores são Estado e governo, pior para todos. Nada pode advir de bom, da imposição de controles governamentais e estatais sobre nossa vida e nossas fortunas.”

David estudou na Deerfield Academy, em Massachusetts; Charles foi mandado para uma escola militar. Charles, David e William formaram-se em engenharia, como o pai, no seu templo sagrado, o MIT; imediatamente depois de formados passaram a trabalhar nas empresas da família. Charles chegou à presidência,com David como seu braço direito; William teve carreira menos bem sucedida na companhia. Freddie foi para Harvard e estudou dramaturgia na Yale School of Drama. O pai sempre desaprovou essas escolhas e puniu-o financeiramente. (Por um porta-voz, Freddie desmentiu essa informação.)

Em 1967, depois da morte de Fred Koch, de ataque cardíaco, Charles trocou o nome da companhia para Koch Industries, homenagem ao pai. O testamento de Fred Koch faria dos filhos homens extremamente ricos. David Koch fez piada com sua boa sorte, em discurso, em 2003, para alunos de Deerfield, onde, depois de doar 25 milhões de dólares, foi declarado único “doador honorário” de toda a história da escola. Disse ele: “Vocês talvez se perguntem ‘como David Koch arranjou dinheiro para ser tão generoso?’. Deixem-me contar-lhes uma história. Eu era bem pequeno. Um dia, meu pai deu-me uma maçã. Eu vendi a maçã por cinco dólares e comprei duas maçãs e vendia-as por dez. Depois, comprei quatro, e vendi-as por vinte. E assim fui indo, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano, até que meu pai morreu e deixou-me 300 milhões de dólares de herança.”

David e Charles absorveram a política conservadora do pai, mas não concordam com tudo, segundo di Zerega, que foi amigo de Charles em meados da década dos 60s, quando o conheceu entre as prateleiras de uma livraria da John Birch Society em Wichita. Charles convidou-o a visitar a mansão dos Kochs, para participar de uma discussão política informal. “Era absolutamente evidente que, para Charles, boa parte daquela conversa da Birch Society não passava de bobagens” – relembra diZerega.

DiZerega, que depois perdeu contato com Charles, separou-se daqueles grupos de direita e tornou-se professor de ciências sociais. Credita a Charles ter ampliado seus pontos de vista no campo da filosofia política, o que acabou por encaminhá-lo para a universidade; seu primeiro livro foi dedicado a três pessoas, uma das quais, Charles Koch. But diZerega crê que os irmãos Koch seguiram trajetória intelectual oposta à sua, convertendo a paranóia do pai, sobre o comunismo soviético, em absoluta desconfiança contra o governo dos EUA, e vendo o crescimento do Estado, a começar pelo New Deal, como ameaça tirânica à liberdade. Em ensaio postado em Beliefnet, diZerega escreveu: “Quando o socialismo de Estado fracassou (...) o alvo de muitos naquelas ONGs passou a ser qualquer tipo de regra ou lei. O ‘socialismo’ continuou a ser definido como ameaça.”

Membros da John Birch Society passaram a interessar-se por uma escola austríaca de economia que promovia ideias do livre-mercado. Charles e David Koch foram particularmente influenciados pelo trabalho de Friedrich von Hayek, autor de The Road to Serfdom (1944, O caminho da servidão) [5], para o qual o planejamento governamental centralizado sempre levaria inexoravelmente ao totalitarismo. (...)

Charles e David também se tornaram devotados seguidores de outro pensador liberal ainda mais radical, Robert LeFevre, que pregava a abolição do Estado, mas não aceitava o rótulo de “anarquista”; autodesignava-se “autarquista”. LeFevre gostava de dizer que “governo é uma doença mascarada de remédio.” Em 1956, criou uma instituição denominada The Freedom School, em Colorado Springs. Brian Doherty, da revista Reason, disse-me que “LeFevre foi um anarquista que conquistou o coração de Charles”, e que aquela escola foi “um mundinho de pessoas para as quais o New Deal foi erro horrível”. Segundo diZerega, Charles apoiou financeiramente a escola e deu-lhe dinheiro para que pudesse fazer cursos lá.

Durante os anos 70s, Charles e David continuaram a construir as Indústrias Koch. Em 1980, William, auxiliado por Freddie, tentou arrancar de Charles o controle da empresa, entendendo que o irmão assumira um tipo de comando autocrático. Como ato de retaliação, a diretoria, que agia sob o comando de Charles, demitiu William. (“Charles comanda tudo com mão de ferro”, disse-me Bruce Bartlett, o economista.) Correram vários processos, com William eFreddie de um lado, e Charles e David no campo oposto. Em 1983, Charles e David compraram as partes dos irmãos na empresa, por algo próximo de um bilhão de dólares. Mas o antagonismo permaneceu, e os processos continuaram ainda por mais 17 anos; todos os irmãos tinham seus próprios investigadores privados; em 1990, cruzaram-se todos, sem se cumprimentarem, nos funerais da mãe. Afinal, Freddie mudou-se para Monaco, onde não há imposto sobre a renda. Comprou propriedades históricas na França, Áustria e em vários outros locais, recheando-as com antiguidades, obras de arte, partituras originais de óperas e manuscritos de obras literárias. William criou sua própria empresa de energia, a Oxbow, e dedicou-se a competições náuticas; gastou cerca de 65 milhões de dólares para vencer a America’s Cup, em 1992.

Sob o comando de Charles, e sem qualquer oposição interna, as Koch Industriesexpandiram-se rapidamente. Roger Altman, presidente do banco Evercore de Investimentos, contou-me que o desempenho da companhia foi “muito além de fenomenal”. Charles permaneceu em Wichita, com a esposa e dois filhos, zeloso da privacidade da família, ao mesmo tempo em que se dedicava a apoiar ações de caridade na comunidade. David mudou-se para New York City, onde é vice-presidente executivo da companhia e presidente de seu Chemical Technology Group. Especialista em finanças que conhece bem as Koch Industries, disse-me que “Charles é a companhia. Dirige tudo.” David, descrito pelos associados como “afável” e “meio desajeitado”, viveu boa vida de solteiro rico por vários anos. Alugou um iate no sul da França e comprou uma casa de frente para o mar em Southampton, onde ofereceu festas que a página New York Social Diarydescreveu como “versão, na costa Leste, das noitadas de Hugh Hefner.” Em 1996, casou-se com Julia Flesher, assistente de moda. Vivem em um duplex de 9 mil pés quadrados no número 740 da Park Avenue, com os três filhos. Apesar de David ter hábitos mais cosmopolitas que Charles, Brian Doherty, que entrevistou os dois irmãos, não conseguiu achar um único tema sobre o qual os dois irmãos tenham algum dia discordado.

À medida que suas fortunas aumentavam, Charles e David Koch passaram a financiar movimentos políticos radicais contra o Estado/governo. O objetivo de Charles, como Doherty descreveu-o, era arrancar o governo “pela raiz”. O primeiro grande passo público dos irmãos aconteceu em 1979, quando Charles convenceu David, então com 39 anos, a concorrer nas eleições. Passaram a apoiar o Libertarian Party, e apoiaram a candidatura presidencial de Ed Clark, que competia contra Ronald Reagan, candidato da direita. Frustrados com os limites legais para doações de campanha, os irmãos arquitetaram um plano para por David em melhor lugar na lista eleitoral: como candidato a vice-presidente, ele poderia gastar o quanto quisesse, de sua fortuna pessoal, na campanha. O mote de propaganda foi “O Libertarian Party tem uma única fonte de recursos: Você.” De fato, a única fonte de recursos, ou, pelo menos, a maior, destacadamente, era David Koch, que gastou naquela campanha mais de dois milhões de dólares.

Muitas das ideias divulgadas na campanha eleitoral de 1980 antecipavam o Movimento Tea Party de hoje. Ed Clark disse ao jornal The Nation que oslibertarians” se preparavam para montar “uma ‘tea party’ realmente muito grande”, porque estavam “doentes, de morrer” por causa dos impostos. O Libertarian Party pregava a extinção do FBI e da CIA, e de todas as agências federais reguladoras, como a Comissão de Seguridade e Câmbio e o Departamento de Energia; pregava também o fim da Seguridade Social, das leis de salário mínino, de todo o controle sobre compra e porte de armas e de todos os impostos sobre lucros e rendas, pessoais e de corporações e empresas; propunha ainda a legalização da prostituição, de drogas recreacionais e do suicídio. Restaria ao Estado/governo uma única função: proteger os direitos individuais dos cidadãos. William F. Buckley, Jr., conservador mais à moda tradicional, chamava o movimento de “anarco-totalitarismo”.

Nas eleições daquele novembro, os Libertarian receberam apenas 1% dos votos. Os irmãos perceberam que o seu projeto político não seduzira os eleitores. Charles Koch passou a debochar abertamente da política e dos políticos convencionais. “Política é negócio repugnante. Todos os políticos são corruptos”, disse a um jornalista, naquela época. “Estou interessado em promover ideias liberais radicais.” Segundo o livro de Doherty, os irmãos Kochs já definiam os políticos eleitos como “atores que recitam discursos decorados”. Um dos mais antigos crentes da religião liberal radical dos Kochs disse a Doherty que os irmãos, nessa mesma metáfora, queriam ser “o autor que define os personagens e escreve as falas.” Para mudar o curso da história dos EUA, tinham de “agir e influenciar as áreas que produzem as ideias políticas que circulam entre os cidadãos: a universidade e os think tanks.”


Depois das eleições de 1980, Charles e David Koch desapareceram da arena pública. Mas fizeram jorrar mais de cem milhões de dólares em dúzias de ONGs, aparentemente independentes. Registros da Receita Federal dos EUA mostram que, em 2008, as três principais fundações mantidas pela família Koch doaram dinheiro a 34 ONGs políticas e de militantes, três das quais fundadas por membros da família e várias das quais dirigidas por eles. Os Kochs e suas empresas, além disso, também doaram outros vários milhões a campanhas políticas, ONGs de militantes e grupos de lobby. Essa gigantesca onda subterrânea de dinheiro acordou suspeitas na esquerda; Lee Fang, do b
log Think Progress, escreveu que os Kochs “são os bilionários que estão por trás da atual onda de racismo e ódio que se alastra pelos EUA”.

Mas só os Kochs sabem precisamente quanto gastaram em ONGs de vários tipos. Registros oficiais do fisco nos EUA mostram que, entre 1998 e 2008, aCharles G. Koch Charitable Foundation gastou mais de 48 milhões de dólares. A Claude R. Lambe Charitable Foundation, controlada por Charles Koch e a esposa, com mais dois empregados da companhia e um contador, gastou mais de 28 milhões. A David H. Koch Charitable Foundation gastou mais de 120 milhões. Ao mesmo tempo, desde 1998 as Koch Industries já gastaram mais de 50 milhões em atividades de lobbying. Separadamente, o comitê de ação política da companhia (KochPAC) doou cerca de oito milhões de dólares a campanhas políticas, mais de 80% dos quais para o Partido Republicano. Até agora, em 2010, as Koch Industries lideram o grupo das contribuições de empresas de energia para candidatos e partidos – exatamente como em todas as eleições, desde 2006. Além disso, nos últimos 12 anos, os irmãos Koch e outros membros da família já gastaram, pessoalmente, mais de dois milhões de dólares em contribuições para campanhas políticas. No segundo trimestre de 2010, David Koch era o maior doador individual para a Associação dos Governadores Republicanos – um milhão de dólares doados. Mas muitos outros presentes que os Kochs distribuem absolutamente não deixam qualquer rastro; as leis que regulam impostos federais nos EUA permitem doações pessoais anônimas a ONGs, grupos e entidades grupos de ação política sem fins lucrativos.

Nas últimas décadas, membros de várias dinastias de industriais consumiram parcelas de seus milhões para promover uma agenda conservadora. Nos anos1980, a famíla Olin, dona de um conglomerado de químicos e manufaturas, tornou-se conhecida por estar financiando uma onda de pensadores de direita nas universidades, sobretudo nas Faculdades de Direito. Nos anos 1990, Richard Mellon Scaife, descendente de Andrew Mellon, consumiu milhões em tentativas para desacreditar o presidente Bill Clinton. Ari Rabin-Havt, vice-presidente da página Media Matters, de tendência pró-Democratas, comentou que o esforço dos Kochs não é como outros que se têm visto, na quantidade de fundos pessoais e das empresas que estão sendo consumidos: “O que estão fazendo, em termos de dinheiro usado para dirigir a opinião pública nos EUA, é chocante”.

Claro que os Democratas também gastam dinheiro. O principal financiador de Democratas, George Soros, dirige uma Fundação, o Open Society Institute, que já gastou cerca de cem milhões de dólares nos EUA, em um ano. Soros também tem feito generosas contribuições privadas às campanhas de vários candidatos Democratas, inclusive para a campanha de Obama. Mas Michael Vachon, seu porta-voz, diz que tudo o que Soros faz e doa é transparente, e que “nenhuma de suas contribuições visa a atender interesses privados de seus próprios negócios.” Os Kochs têm dado milhões de dólares a ONGs, organizações sem finalidades lucrativas que criticam as regulações de preservação do meio ambiente e apoiam redução de impostos para a indústria. Gus diZerega, o ex-amigo, sugeriu que o idealismo dos Kochs dos tempos da juventude, a favor das causas do liberalismo radical dos Libertarian norte-americanos, já rendeu importantes dividendos, em termos de autofavorecimento dos interesses das empresas. Sobre Charles, diz que “pode estar confundindo ‘fazer dinheiro’ e ‘fazer a cabeça’ dos eleitores.”

Críticos sugeriram que a abordagem dos Kochs subverteu o objetivo da isenção de impostos. Por lei, fundações de caridade só devem promover atividades não partidárias que promovam o bem-estar de toda a sociedade. Relatório de 2004, divulgado pela Comissão Nacional de Filantropia Responsável [ing. National Committee for Responsive Philanthropy], grupo que fiscaliza associações que se apresentam como filantrópicas, concluía que “Essas fundações dão dinheiro a ONGs sem finalidades de lucro que pesquisam e trabalham a favor de causa que têm efeito sobre a margem de lucros das Koch Industries.”

Mas os Kochs já foram bem além do autointeresse imediato, financiando ONGs cujo objetivo declarado é dirigir o país na direção não de mais lucros para as empresas Koch, mas na direção da causa ‘antigoverno’ e ‘anti-Estado’ em que a família milita. Dentre as ONGs que os Koch mantêm está o Institute for Justice, cujo objetivo é impetrar ações contra o Estado e as leis federais; o Institute for Humane Studies, que diploma professores universitários defensores do ‘libertarianismo’ à moda Koch; e o Bill of Rights Institute, que produz e promove interpretações conservadoras da Constituição. Muitas das ONGs fundadas pelos Kochs empregam especialistas que escrevem e publicam ensaios de divulgação das ideias dos Koch, que imediatamente depois de publicadas passam a ser citados por políticos e jornalistas. David Koch já reconheceu que a família exerce pesado controle ideológico sobre tudo. “Se distribuímos essa enorme quantidade de dinheiro, temos de ter absoluta certeza de que o dinheiro seja gasto de modo que se acrescente aos nossos objetivos”, disse a Doherty. “E se um ou outro grupo erra o passo e começa a fazer coisas com as quais não concordamos, retiramos o financiamento.”


O fato de os Kochs subsidiarem um movimento fortemente pró-corporações, atende, em vários sentidos, o projeto exposto em menorando secreto, de 1971, que Lewis Powell, então advogado na Virginia, escreveu dois meses antes de ser indicado para a Suprema Corte. O movimento antiguerra havia voltado suas baterias contra empresas que estavam sendo contratados pelo Departamento de Defesa – dentre outras, a Dow Chemical – e Ralph Nader liderava uma cruzada nacional em defesa do interesse público e contra as corporações. Powell, em relatório a ser apresentado à Câmara de Comércio dos EUA, exigia que as empresas norte-americanas reagissem e respondessem. A grande ameaça que persiste contra a livre-empresa, Powell escreveu, não é o Comunismo nem é a Nova Esquerda, mas, sim “elementos respeitáveis da sociedade” – intelectuais, jornalistas e cientistas. Para derrotá-los, escreveu ele, os líderes das corporações têm de gerar campanha unificada, de longo prazo, para mudar a opinião pública.

Charles Koch parece ter abordado os dois campos, tanto os negócios quanto a política, com a firme deliberação de um engenheiro. “Para produzir mudança social” – disse ele a Doherty – “é preciso ter uma estratégia” que seja “verticalmente e horizontalmente integrada”, da “primeira ideia da criação até as políticas de implantação e desenvolvimento; da formação de movimentos de base até os lobbyies de mais alto nível, ações judiciais inclusive.” O projeto, ele admitiu, sempre foi extremamente ambicioso. “Nossa filosofia é radical”, disse ele.

Em 1977, os Kochs financiaram a criação do primeiro think tank dos ‘libertaristas’ – o Cato Institute. Segundo o Center for Public Integrity, entre 1986 e 1993 a família Koch doou 11 milhões de dólares àquele instituto. Hoje, oCato tem mais de uma centena de empregados fixos em período integral, e os documentos produzidos por seus especialistas são considerados de alta respeitabilidade, reproduzidos e citados pela chamada ‘grande imprensa’. O Instituto apresenta-se como não partidário; muitas vezes os seus professores e especialistas criticaram os dois grandes partidos políticos que dominam o cenário político-eleitoral nos EUA. Mas em todos os casos, todos os especialistas sempre argumentam a favor de menos impostos sobre “a produção”, redução na oferta de serviços sociais aos mais pobres, e políticas ambientais de “não intromissão do Estado nas empresas”.

Quando, em discurso em 2008, o presidente Obama referiu-se aos saberes sobre aquecimento global como “saberes indiscutivelmente corretos”, o Cato Institutecomprou anúncio de página inteira no Times para desmenti-lo. Os intelectuais e especialistas que trabalham como empregados do Cato Institute criticam ininterruptamente as tentativas políticas para conter o aquecimento global; para eles, todas seriam “caras demais, sem qualquer resultado e desnecessárias”. Ed Crane, fundador e presidente do Cato, disse a mim, em entrevista, que “as teorias sobre aquecimento global só servem para dar ao governo mais controle sobre a economia.”

Os professores-doutores empregados do Cato Institute têm dedicado quantidade particularmente enorme de energia para amplificar o chamado “escândalo Climagate”. Ano passado, msg privadas de e-mails de cientistas especialistas em clima da University of East Anglia, na Inglaterra, foram misteriosamente vazados para a grande imprensa; dizia-se que as msg deixariam transparecer, nas entrelinhas, a intenção de falsificar dados para sugerir que o aquecimento global seria real. Nas duas semanas depois da divulgação dos e-mails, um único professor-doutor empregado do Cato Institute deu mais de 20 entrevistas a jornais e televisões, sempre sobre o suposto ‘escândalo’. Os professores cujos e-mails haviam vazado foram objeto de cinco processos independentes de inquérito, e absolvidos em todos eles: jamais apareceu qualquer prova, em e-mails ou nas pesquisas daqueles pesquisadores, que se pudesse apresentar como indício para desmentir o consenso científico sobre o aquecimento global.

Apesar disso, a discussão alcançou seu objetivo de implantar na opinião pública a descrença e o ceticismo sobre a gravidade do problema das mudanças no clima. A própria National Oceanic and Atmospheric Administration teve de elaborar e divulgar relatório, para confirmar que, sim, há provas inequívocas do aquecimento global. Mesmo assim, há hoje mais americanos que duvidam de que o aquecimento global seja problema grave do que jamais antes, desde 1997; para esses, os cientistas teriam exagerado a gravidade do problema. Os Kochs promovem esses números na página internet da companhia, mas não fazem qualquer referência à influência do dinheiro (dos Koch) na difusão dessas ‘dúvidas’.

Em memorando de 2002, Franck Luntz, consultor político do Partido Republicano, escreveu que, enquanto “os eleitores acreditarem que não há consenso sobre o aquecimento global na comunidade científica” prevalecerá ostatus quo. A chave de que se serviram os opositores da reforma da legislação sobre meio ambiente, disse ele, foi por em dúvida o saber científico – estratégia de relações públicas que a indústria do tabaco usou, com os resultados que a indústria esperava obter e que bloquearam, durante anos, a reforma da lei antifumo. Os Kochs têm financiado inúmeras fontes de dúvidas sobre questões da preservação ambiental, como a Heritage Foundation, que argumentou que “os fatos científicos reunidos nos últimos dez anos não são suficientes para justificar a ideia de que haveria alguma ameaça de aquecimento global que possa ter efeitos catastróficos para a vida humana.” Os irmãos também financiam grupos muito mais obscuros, como o Independent Women’s Forum, que se opõe à ideia de que se incorporem lições sobre preservação ambiental ao currículo das escolas públicas nos EUA. Até 2008, o grupo era presidido por Nancy Pfotenhauer, ex-lobbyist que trabalhava para as Koch Industries. Mary Beth Jarvis, vice-presidente de uma subsidiária da Koch, está hoje no comitê diretor do grupo.

Naomi Oreskes, professora de História e Estudos da Ciência na University of California, San Diego, é co-autora de Merchants of Doubt [Mercadores da Dúvida], novo livro em que se listam várias tentativas, pela indústria dos EUA, para manipular a opinião pública sobre temas científicos e a própria ciência. Nesse livro, Oreskes observa que os Kochs, cabeças de “um conglomerado de empresas com refinarias e oleodutos”, “têm muito a ganhar” com a difusão de ideias que façam duvidar da ciência. E acrescenta: “Se a resposta [a muitos problemas ambientais que o mundo enfrenta hoje] for substituir combustíveis fósseis, outro grupo passará a lucrar com outros combustíveis. Ninguém pode surpreender-se ao saber que o antigo grupo resistirá ao novo, com unhas e dentes.”

David Koch disse ao New York que não estava convencido de que o aquecimento global seria provocado por atividade humana. Mas mesmo que fosse, disse ele, o aquecimento do planeta será benéfico, criando mais longas estações de plantio e colheita no Hemisfério Norte. “A Terra poderá alimentar muito mais gente, porque haverá mais solo aproveitável para produzir comida”, disse.


Em meados dos anos 1980, os Kochs deram milhões de dólares à George Mason University, em Arlington, Virginia, para instalar lá outro think tank. Hoje conhecido como Mercatus Center, o centro se autopromove como “a principal fonte mundial de ideias orientadas para o mercado – superando o fosso que separa as ideias de academia e os problemas do mundo real.” Registros financeiros mostram que as fundações da família Koch contribuíram com mais de 30 milhões de dólares para a George Mason University, boa parte dos quais foi para o Mercatus Center, ONG sem finalidades de lucro. “É o centro nevrálgico da produção de políticas pró-desregulação em Washington,” disse Rob Stein, estrategista do Partido Democrata. É uma combinação, no mínimo, esquisita. “A George Mason é universidade pública, recebe fundos públicos”, lembrou Stein. “O Estado de Virgínia hospeda uma instituição pública que, na prática, é controlada pelos irmãos Koch.”

O fundador do Mercatus Center é Richard Fink, ex-economista. Fink comanda toda a operação dos lobbyistas das Koch Industries em Washington. Além disso, é presidente da Charles G. Koch Charitable Foundation, da Claude R. Lambe Charitable Foundation, diretor da Fred C. and Mary R. Koch Foundation e diretor e cofundador, com with David Koch, da Americans for Prosperity Foundation.

Fink, com seus muitos cargos, opera o sistema nervoso central do Kochtopus. Parece já ter suplantado Ed Crane, presidente do Cato Institute, na função de principal general político dos irmãos. David ainda permanece na diretoria doCato, mas tudo leva a crer que Crane já não goza das boas graças de Charles Koch. Associados sugeriram a essa jornalista, que Crane não teria tratado com a esperada reverência a filosofia do management de Charles, exposta num livro intitulado “A Ciência do Sucesso” [The Science of Success] , propagandeado sob o nome de Market-Based Management (MBM) [Management Baseado no Mercado]. Nesse livro, Charles recomenda que a cultura das corporações seja sempre motivada a adotar a competitividade típica dos mercados. Koch describes o MBM como “um sistema holístico” de “cinco dimensões: visão, virtude e talentos, processos de conhecimento, direitos e incentivos para decidir.” Alto funcionário do Cato Institute disse-me que Charles “sente-se um gênio. É o rei e está convencido de que veste roupas.” Fink, por sua vez, não abraçou com o mesmo entusiasmo as ideias de Charles. (Nem Fink nem os irmãos Kochs aceitaram ser entrevistados para essa matéria.)

Em conferência, em 1995, para grandes mantenedores e financiadores de organizações de caridade, Fink falou como economista, ao apresentar o objetivo do Mercatus Center. Disse que os grandes doadores devem usar os think tanks, ONGs e grupos de ação política para converter matéria prima em estado bruto, em “produtos políticos”.

Para o Wall Street Journal, o Mercatus Center seria “o mais importante think tank de que jamais se ouviu falar nos EUA”; observou também que 14 das 23 leis de desregulação que George W. Bush incluiu em sua “lista de sucessos” foram sugeridas, em primeiro lugar, por professores-doutores empregados doMercatus. Fink disse àquele jornal que os Kochs têm “outros meios para lutar suas guerras”, e que o Mercatus Center promove ativamente os interesses privados do conglomerado. Mas Thomas McGarity, professor de Direito da University of Texas, especialista em questões ambientais, disse-me que “Koch vive às turras com a EPA [Environmental Protection Agency, Agência de Proteção Ambiental dos EUA] e o Mercatus Center sempre ataca a Agência.”

Advogado especialista em questões ambientais, que já confrontou o Mercatus Center, classificou-o como “centro de lavagem de objetivos econômicos”. E explicou a estratégia: “Os grandes conglomerados põem muito dinheiro no que parece ser um think tank neutro confiável. O think tank contrata especialistas com pedigrees e muitos títulos universitários para que publiquem ensaios e pesquisas carregados de aparente credibilidade. Mas todos os ensaios e pesquisas têm de coincidir perfeitamente, e sempre coincidem, com os interesses econômico-financeiros dos que sustentam o think tank.”

Em 1997, por exemplo, a EPA começou a trabalhar para reduzir o ozônio de superfície, uma modalidade de poluição causada, em parte, pelas emissões das refinarias de petróleo. Susan Dudley, economista que se tornou principal analista do Mercatus Center, criticou o novo projeto de lei proposto pela Agência. A EPA, disse ela, não levara em consideração que, sem a proteção da camada de poluição, aumentaria o número de casos de câncer de pele. Calculou que qualquer controle da poluição atmosférica provocaria aumento de 12% dos casos de câncer de pele por ano.

Em 1999, a Corte de Justiça do Distrito de Columbia ‘reaqueceu’ o argumento de Dudley. Ao julgar a legalidade da lei proposta pela EPA, a Corte decidiu que a Agência “desconsiderou explicitamente” o “possível efeito benéfico do ozônio”. Em outro ponto da sentença, a Corte decidiu, por dois votos contra um, que aEPA excedera sua competência, ao tentar definir padrões para as emissões de ozônio. Como o Constitutional Accountability Center [Centro de Exame e Avaliação da Constitucionalidade de Sentenças das Cortes nos EUA], think tankprivado, revelou, os juízes que votaram naquele julgamento haviam participado de ‘sessões de estudos jurídicos’, num rancho em Montana, à expensa daFoundation for Research on Economics and the Environment [Fundação para Pesquisa sobre Economia e Meio Ambiente] – grupo mantido financeiramente pelas fundações da família Koch. Acusados, os juízes da Corte de Columbia alegaram que o voto não fora afetado pelos ‘estudos jurídicos’ realizados no rancho, em Montana.


“As ideias não acontecem do nada”, disse-me Matt Kibbe, presidente do FreedomWorks, grupo que divulga ações do Movimento Tea Party. “Ao longo da história, as ideias sempre careceram de quem as financiasse e divulgasse.” Os irmãos Koch, depois de ajudarem a criar o Cato e o Mercatus, concluíram que os think tanks, operando sozinhos, não provocariam a mudança desejada. Fazia-se indispensável um mecanismo que levasse aquelas ideias para as ruas, de modo a atrair apoios de massa. Em 1984, David Koch e Richard Fink criram mais uma ONG, e Kibbe juntou-se a eles. O grupo – Citizens for a Sound Economy [Cidadãos por uma Economia Sólida] – tinha todas as características de um movimento de base, nascido ‘espontaneamente’ de um grupo de cidadãos, mas, segundo o Center for Public Integrity, foi, desde o surgimento, patrocinado pelos irmãos Kochs, que lá depositaram $7,9 milhões de dólares entre 1986 e1993. A missão do grupo, disse Kibbe, “era tomar essas ideias mais densas e traduzi-las para as massas (...). Líamos os mesmos livros que Obama sobre revoluções não violentas – Saul Alinsky, Gandhi, Martin Luther King. Estudamos a ideia do Movimento Tea Party de Boston, como exemplo de mudança social não violenta. Aprendemos que tínhamos de ter gente na rua, vendendo ideias, não candidatos ou Partidos.” Em poucos anos, o grupo mobilizara 50 formadores de opinião que trabalhavam nas ruas, em 26 estados, reunindo eleitores para trabalhar a favor da agenda dos Kochs. David e Charles, segundo um dos participantes, eram “muito controladores, sempre de cima para baixo. É impossível construir uma organização com eles. Mandam em tudo.”

Nessa época, os irmãos enfrentaram uma crise política. Em 1989, a Comissão do Senado para Assuntos dos Nativos norte-americanos investigou os negócios dos Kochs e divulgou relatório arrasador, em que a Koch Oil foi acusada de arquitetar “um esquema amplo e sofisticado para roubar óleo cru de tribos de nativos norte-americanos e outros, mediante submedições fraudulentas”. Os Kochs admitiram que haviam tomado por vias ilícitas cerca de 31 milhões de dólares em óleo cru, mas que acontecera acidentalmente. Charles Koch disse, aos investigadores da Comissão, que a medição de óleo cru é “arte muito imprecisa”.

Para defender a própria reputação, as Koch Industries contrataram Robert Strauss, naquele momento ‘o rei’ dos lobbyistas em Washington; imediatamente, a companhia inaugurou escritório na cidade. Convocou-se o Grande Juri para investigar as acusações, o que deu em nada, porque a causa não prosperou e não houve sequer acusação formal. Imediatamente depois das audiências no Senado, os operadores dos Koch passaram a investigar a vida pessoal de assessores próximos dos membros da Comissão, tendo interrogado até uma ex-esposa. Os investigadores do Senado foram intimidados pelas táticas dos Kochs. Nas palavras de Kenneth Ballen, assessor da Comissão do Senado. “Aquele pessoal reuniu poder devastador!”

Em 1993, quando Bill Clinton assumiu a presidência, o grupo Citizens for a Sound Economy [Cidadãos por uma Economia Sólida] já se havia tornado protótipo das ONGs e campanhas de oposição que hoje proliferam no governo Obama – sempre financiados por grandes corporações. O grupo moveu bem-sucedido ataque contra a proposta de Clinton, de taxar os combustíveis pela quantidade de calor gerado [B.T.U. tax on energy], com táticas como anúncios em televisão e rádio, organização de eventos que atraíam a mídia e ataque cerrado contra os adversários. Organizaram manifestações contra-impostos à frente do Capitólio – manifestações que, para a Rádio Pública Nacional (NPR), “foram projetadas para implantar o medo no coração dos Democratas mais vacilantes”. Dan Glickman, ex-congressista do Partido Democrata por Wichita, que apoiara a lei proposta por Clinton, ainda lembra: “Durante 18 anos fui eleito e reeleito. Os Kochs dedicaram-se a impedir que eu fosse mais uma vez eleito e financiaram a campanha do meu adversário direto. Usaram vários recursos – eles e os empregados deles.” Glickman não foi eleito. “Não há como provar, mas estou convencido de que fui a primeira vítima deles”, diz ele.

Os Kochs continuaram a gastar prodigamente seu dinheiro, criando inúmeras ONGs com nomes imponentes. Tornou-se praticamente impossível avaliar a extensão de sua influência em Washington. Em 1990, o grupo Citizens for a Sound Economy [Cidadãos por uma Economia Sólida] criou um grupo satélite,Citizens for the Environment [Cidadãos pelo Meio Ambiente], que dizia e repetia incansavelmente que problemas ambientais como, por exemplo, a chuva ácida, não passavam de “mitos”. Quando o jornal Pittsburgh Post-Gazetteinvestigou o assunto, descobriu-se que o grupo satélite “não tinha membros nem associados”.


Em 1997, outra investigação do Senado passou a examinar o que um relatório da minoria descrevia como “plano audacioso para despejar milhões de dólares em contribuições para as campanhas de candidatos do Partido Republicano, em todo o país, sem que se conheçam nem a fonte nem o total das contribuições”, com o objetivo evidente de burlar a legislação sobre doações de campanha eleitoral. Uma corporação, Triad Management, havia pago mais de três milhões de dólares em campanhas em 26 votações na Câmara de Deputados e em três votações no Senado. Mais da metade do dinheiro pago em campanha de anúncios publicitários saíra de uma obscura ONG sem fins lucrativos, oEconomic Education Trust [Fundo para a Educação Econômica]. O relatório da minoria no Senado sugeria que “esse fundo foi financiado, totalmente ou em parte, por Charles e David Koch de Wichita, Kansas.” Os irmãos tornaram-se suspeitos de ter pago secretamente pelos anúncios publicitários, a maioria dos quais fora ao ar em estados nos quais as Koch Industries tinham negócios. No Kansas, onde a Triad Management era especialmente ativa, o dinheiro aplicado em publicidade influenciara decisivamente quatro de seis votações. Os Kochs, ao serem perguntados por repórteres se haviam de fato pago pelos anúncios, recusaram-se a comentar. Mas em 1998, o Wall Street Journal confirmou que um consultor, cujo nome estava na lista de pagamentos dos Kochs, estivera envolvido naquele esquema. Charles Lewis, do Center for Public Integrity [Centro pela Integridade Pública], descreveu aquele escândalo como “histórico. O caso da Triad foi a primeira vez que um grande conglomerado foi apanhado em grande operação de ataque à legislação vigente, de modo realmente ameaçador.”

Durante o governo Clinton, a indústria de energia foi cada vez mais visada pela fiscalização em geral. Em meados dos anos 1990s, o Justice Department iniciou dois processos contra as Koch Industries, acusadas de serem responsáveis por mais de 300 vazamentos de óleo, que derramaram cerca de 3 milhões de galões de óleo em rios e lagos. A multa estava sendo estimada em algo como 214 milhões de dólares. Em acordo, as Koch Industries pagaram multa-recorde, na justiça civil, de 30 milhões de dólares e concordaram com aplicar mais cinco milhões de dólares em projetos ambientais.

Em 1999, as Koch Industries foram condenadas por negligência na morte de dois adolescentes texanos que morreram numa explosão, consequência de um vazamento em canos subterrâneos de gás butano. (Em 2001, a companhia pagou valor não conhecido, em acordo cujas cláusulas não foram divulgadas.) E nos últimos mesos do governo Clinton, o mesmo Departamento de Justiça processou a companhia por 97 infrações e crimes, todos relacionadas à descarga de 91 toneladas de benzeno, produto carcinogênico, da refinaria em Corpus Christi, Texas. As multas aplicáveis alcançavam 150 milhões de dólares, e quatro empregados das Koch Industries esperavam sentenças de até 35 anos de prisão. O Koch Petroleum Group declarou-se culpado das acusações criminais de violação de regras ambientais e falsificação de documentos, e pagou multa de 25 milhões de dólares. David Uhlmann, procurador do Estado que, à época, chefiava a sessão de crimes ambientais do Departamento de Justiça, descreveu o processo como “um dos casos mais significativos jamais julgados depois da LeiClean Air Act.” E acrescentou: “Crimes ambientais são quase sempre motivados por interesses econômicos e arrogância. O caso Koch reuniu enormes doses de ambos.”

Na campanha eleitoral de 2000, as Koch Industries gastaram cerca de 900 mil dólares na campanha de George W. Bush e outros Republicanos. Nos anos Bush, as Koch Industries e outras empresas de combustíveis fósseis conheceram enorme prosperidade. A lei da energia de 2005, que Hillary Clinton chamou de “Lei Dick Cheney & Lobbyistas” garantiu-lhe condições excepcionais de operação. Segundo estudo divulgado pelo Blog Media Matters, a partir de 2000 as empresas do Grupo Koch receberam cerca de 100 milhões de dólares em contratos com o governo.

Em 2004, a Citizens for a Sound Economy foi acusada de ter feito campanha ilegal a favor da reeleição de Bush. O braço do grupo no Oregon tentou impor o nome de Ralph Nader na lista eleitoral presidencial, na tentativa para dividir os votos dos Democratas para John Kerry. Para os críticos, ONGs que se beneficiem de isenção de impostos são proibidas, por lei, de trabalhar em campanhas eleitorais (mas a denúncia, apresentada à Comissão Eleitoral Federal, não foi acolhida, e o processo não prosperou.)

Naquele ano, rivalidades internas levaram à divisão da ONG Citizens for a Sound Economy. David Koch e Fink criaram outro grupo, Americans for Prosperity, e contrataram Tim Phillips para presidi-la. Phillips é político veterano, que já trabalhou com Ralph Reed, pregador evangélico e ativista do Partido Republicano, co-fundador da Century Strategies, empresa de ‘marketing-político’ [ing. campaign-consulting company], conhecido por seus laços com o lobbyist Jack Abramoff [6]. Biografia online de Phillips apresenta-o como “especialista” em organizar grupos políticos “de base” e “de elite”. O fato de os Kochs terem contratado Phillips foi sinal claro de que se preparavam para batalhas mais ‘sangrentas’. Outro lobbyista que também trabalha para os conservadores, Grover Norquist, conhecido por elogiar os lobbystas“especialistas em degolas políticas”, disse, de Phillips: “é cachorro grande, dos que fazem as coisas acontecerem.”

Ano passado, Phillips disse ao Financial Times que a ONG Americans for Prosperity tinha apenas 8 mil membros registrados. Hoje, a página da ONG na internet festeja “1,2 milhões de ativistas.” Seja qual for a versão correta, o envolvimento político dos Kochs sempre foi intenso. Ex-funcionário do Cato Institute disse que a ONG Americans for Prosperity “sempre foi microcomandada pelos Kochs.”

O investimento dos irmãos pode ter rendido bons lucros: a ONG Americans for Prosperity, agindo em acordo com outras ONGs comandadas pela família Koch foi importante instrumento no processo de desorientar o governo Obama.

Em janeiro de 2008, Charles Koch escreveu na newsletter de sua empresa, que os EUA poderiam estar à beira “do maior assalto às nossas liberdades e da maior perda de prosperidade, desde os anos 1930s.” Em outubro daquele ano, a ONGAmericans for Prosperity promoveu conferência de todos os seus agentes, num hotel da cadeia Marriott, nos arredores de Washington. Erick Erickson, editor-chefe do Blog conservador RedState.com, subiu à tribuna, agradeceu a David Koch e jurou “união e luta contra (...) os exércitos da esquerda!”

Imediatamente depois da posse de Obama, a ONG Americans for Prosperitylançou um movimento de manifestações chamadas “Porkulus” [7], contra as medidas de estímulo à economia propostas pelo governo Obama. Em seguida, oMercatus Center distribuiu matéria, em que dizia que os fundos de estímulo à economia haviam sido distribuídos desproporcionalmente a favor de distritos governados por Democratas; adiante, o autor foi obrigado a corrigir as declarações, mas não antes de Rush Limbaugh, citando aquela matéria, falar do programa do governo Obama como “programa lixo”; e o programa Fox News e outros veículos conservadores terem repetido incansavelmente as mesmas expressões. (Phil Kerpen, vice-presidente para assuntos políticos da ONGAmericans for Prosperity, é colaborador frequente da página do Fox News na internet. E outro funcionário da ONG Americans for Prosperity, Walter Williams, é convidado frequente do programa de Limbaugh.)

A ONG Americans for Prosperity também criou outra ONG-satélite, Patients United Now [Doentes Afinal Reunidos], que organizou, segundo estimativas do próprio Phillips, mais de 300 manifestações públicas contra a reforma da saúde proposta pelo governo Obama. Numa dessas manifestações, enforcou-se um boneco que tinha colado ao rosto uma foto de um político Democrata; em outro, os manifestantes carregavam um estandarte com fotos de cadáveres no campo de concentração de Dachau. O grupo também ajudou a organizar manifestações chamadas “Kill the Bill” [Matem a Lei] à frente do Capitólio, em março, nas quais apoiadores da reforma da saúde disseram que foram ofendidos e espancados. Phillips discursou em várias dessas manifestações.

A mesma ONG Americans for Prosperity já organizou pelo menos 80 eventos de protesto contra a legislação cap-and-trade, que visa a cobrar das empresas pela poluição do ar que gerem. Oradores, nessas manifestações, disseram, com flagrante exagero, que até os churrasqueiros de fim de semana que assassem carne nos quintais de casa e os fornos de cozinha teriam de pagar novos impostos. O grupo esteve também envolvido nos ataques contra o czer dos “empregos verdes” de Obama, Van Jones, e organizou cruzada nacional contra as reuniões oficiais de discussão sobre o clima. Dizendo-se representante dos trabalhadores comuns, que perderiam empregos por culpa dos ambientalistas, Phillips foi a Copenhagen ano passado e organizou uma manifestação de protesto à frente do prédio da ONU onde se realizava a conferência sobre mudança climática. Lá, disse que “Somos uma organização de massa e de base (...). É uma desgraça que filhos ricos de famílias ricas trabalhem tanto para fazer subir os índices de desemprego nos EUA. Hoje, já chegamos aos 20%!”

Grover Norquist, que organiza reuniões semanais para líderes conservadores em Washington, às quais sempre comparecem representantes da ONG Americans for Prosperity, disse-me que no verão passado, as inúmeras manifestações de rua organizadas pelo mesmo grupo foram importantes para minar a divulgação, para os eleitores, da agenda de Obama. Os líderes Republicanos no Congresso, disse ele, “não teriam conseguido o que conseguiram sem o mês de agosto, quando as pessoas saíram às ruas. O movimento assustou os que se dispunham a negociar algum acordo em troca do voto” – Republicanos que poderiam ter votado construtivamente a favor das reformas propostas por Obama. Além disso, a visão do movimento nas ruas, que parecia sinalizar crescente oposição a Obama, também afetou as corporações doadoras de fundos para campanhas eleitorais na K Street [8]. “K Street é um poço de três bilhões de dólares” – disse Norquist. “Quando Obama estava forte, a Câmara de Comércio disse ‘Podemos trabalhar com o governo Obama’. Mas mudaram de opinião quando milhares de pessoas saíram às ruas e ‘aterrorizaram’ os congressistas e candidatos. Agora, que Obama está fraco, aquele pessoal endureceu.”

Quando se aproximava o primeiro aniversário da posse de Obama, David Koch veio a Washington para participar de uma triunfal reunião promovida pela ONG Americans for Prosperity. Os números de popularidade de Obama estavam despencando. Nenhum senador Republicano trabalhava a favor do governo para a aprovação do plano de reforma da saúde, dentre outros temas. Os jornais escreviam sobre a incapacidade política de Obama e vários grupos do Movimento Tea Party acusavam o governo de estar iniciando “um golpe para assumir controle absoluto de todo o governo”. Num discurso, Koch disse que “Dias como o que vivemos hoje trazem de volta à pauta real a amplidão da visão de nosso comitê diretor, há cinco anos.” E prosseguiu: “Tivemos a visão antecipada de um movimento de massa, com base num estado, mas de amplidão nacional, de centenas de milhares de cidadãos norte-americanos de todos os níveis e padrões de vida, em pé e dispostos a lutar pelas liberdades econômicas que fizeram de nossa nação a mais próspera sociedade da história (...). Felizmente, os ramos que brotaram, da California a Virginia, e do Texas a Michigan, mostram que mais e mais os nossos concidadãos começam a ver as mesmas verdades que vemos há tanto tempo.”

Apesar de, naquele dia, Koch não se ter alistado formalmente ao Movimento Tea Party, chegou bem perto disso. Em seu discurso, elogiou o Movimento por demonstrar “a poderosa, visceral hostilidade que há no nosso corpo político contra o ameaçador aumento do poder do governo, e seu esforço ilimitado para socializar os EUA.” Charles Koch, em carta que enviou aos seus 70 mil empregados, comparou o governo de Obama ao regime venezuelano de Hugo Chávez. O sentido de perigo dos Kochs chega a ser curioso. A desigualdade de renda nos EUA é hoje maior do que jamais, desde os anos 1920s; e desde os anos 1970s os ganhos dos mais ricos caíram mais que os ganhos da classe média. Absurda que seja, a mensagem dos irmãos Koch encontrou evidente eco entre os eleitores: pesquisa recente mostrou que 55% dos norte-americanos acreditam que Obama seja socialista.

A ONG Americans for Prosperity, enquanto isso, já anunciou que gastará mais 45 milhões de dólares antes das eleições de meio de mandato, em novembro. Apesar de a legislação que rege as ONGs proibir que apóiem diretamente qualquer candidato, ainda assim o grupo planeja trabalhar em cerca de 50 eleições locais para a Câmara de Deputados e meia dúzia para o Senado, com manifestações, campanhas porta-a-porta e publicação de anúncios em jornais, revistas e televisões, com o objetivo de “educar os eleitores sobre quem são e o que pretendem os candidatos.”

Apesar de os Kochs terem conseguido neutralizar a força de Obama nos meses iniciais do mandato, estão longe de dar-se por satisfeitos. Richard Fink, em entrevista ao Blog FrumForum.com nessa primavera, disse que “Se se considerar onde estávamos em 2000 e onde estamos hoje, com a contínua expansão dos gastos do governo e uma dívida que já ameaça quebrar o país, vê-se que conseguimos pouco.” E continuou: “Pode-se dizer que a infraestrutura que construímos ainda não chegou à superfície, à plena luz do dia”. Sugeriu que os Kochs ainda precisem “envolver-se mais nas questões práticas, do dia a dia do governo.”


Em 1991, David Koch sofreu graves ferimentos, na queda de um avião em Los Angeles. Foi o único passageiro da primeira classe que sobreviveu. Na recuperação, um exame de rotina revelou um câncer na próstata. Koch tratou-se, recuperou-se, iniciou família e reconsiderou toda a sua vida. Como disse aPortfolio, “Quando acontece de você ser o único sobrevivente da parte da frente do avião, e todos os demais morrem... É, você pensa: ‘Deus, o bom Deus poupou-me para algum grande destino.’ Costumo dizer que, desde então, trabalho o mais que possa, fazendo a melhor coisa que jamais me ocorreu fazer. Deus pode confiar em mim.”


Koch passou a fazer doações espetacularmente generosas para instituições de arte e ciência. Tornou-se benemérito da pesquisa sobre câncer, com foco em câncer de próstata. Além do que doou ao Sloan-Kettering, deu 15 milhões de dólares ao New York-Presbyterian Hospital, 125 milhões ao MIT para pesquisa sobre câncer, 20 milhões à Johns Hopkins University e 25 milhões ao M. D. Anderson Cancer Center, em Houston. Como agradecimento, o Sloan-Kettering outorgou a Koch o Prêmio de Excelência em Liderança Corporativa. Em 2004, o presidente Bush nomeou-o Conselheiro do Nacional Cancer Advisory Board, que dirige o National Cancer Institute.

Os papéis que Koch desempenha no mundo corporativo e político, contudo, mostram alguns conflitos de interesses. Por exemplo, ao mesmo tempo em que David Koch apresentava-se como campeão da luta contra o câncer, as Koch Industries empenhavam-se no lobby para impedir que a Agência de Proteção Ambiental (EPA) classificasse o formaldeído – que o conglomerado produz em grandes quantidades – como produto “reconhecido como carcinogênico em seres humanos”.

Os cientistas sabem há muito tempo que o folmaldeído produz câncer em ratos, e vários estudos científicos de grandes populações já concluíram que o forlamdeído também produz câncer em seres humanos – dentre outros, pesquisa publicada ano passado pelo National Cancer Institute, órgão de cujo Conselho Consultivo Koch participa. O estudo acompanhou 25 mil pessoas ao longo de, em média, 40 anos; os que foram expostos a mais altas concentrações de formaldeído apresentaram índices consideravelmente mais altos de leucemia. Esses resultaros foram decisivos para que o grupo de especialistas do National Institutes of Health concluíssem que o formaldeído deve ser classificado como carcinogênico e, portanto, como produto a ser incluído na lista das substâncias estritamente controladas pelo governo. Muitas grandes corporações lutaram contra qualquer tipo de controle do formaldeído durante décadas; as Koch Industries sempre foram importantes doadoras de campanha de deputados e senadores que mantinham paralisadas várias iniciativas da EPA, sempre exigindo que se fizessem mais estudos, antes de que se aprovassem novos controles e leis.

As Koch Industries tornaram-se grandes produtoras de químicos em 2005, depois de incorporarem a Georgia-Pacific, madeireira e produtora de papel, por 21 bilhões de dólares. A divisão química da Georgia-Pacific produz formaldeído, e o usa em vários produtos de madeira, como compensados e laminados. Tem capacidade para produzir 2,2 bilhões de pounds. Dezembro passado, Traylor Champion, vice-presidente da Georgia-Pacific para assuntos de meio ambiente, enviou carta formal de protesto às autoridades federais de Saúde. Escreveu que a companhia “discorda veementemente” das conclusões do painel de especialistas da Agência Nacional de Saúde (NIH) de que o formaldeído devesse ser definido como carcinogênico em seres humanos. . panel’s conclusion that formaldehyde should be treated as a David Koch não se afastou nem do posto de Conselheiro do National Cancer Advisory Board, nem do comando de suas empresas, enquanto as mesmas empresas faziam lobby contra o mesmo governo, para manter no mercado o formaldeído. (Porta-voz do National Cancer Advisory Board disse que o assunto não foi jamais discutido no Instituto.)

James Huff, diretor associado do National Institute for Environmental Health Sciences, divisão do Instituto Nacional de Saúde, disse que parecia-lhe “repugnante” que Koch tivesse assento, como conselheiro, ao National Cancer Advisory Board: “Não é bom para a saúde pública. Interesses comerciais e empresariais não deveriam ser representados lá”. E prosseguiu: “Os Conselhos são muito importantes, porque influenciam o rumo da agência, a favor ou contra o formaldeído continuar a ser vendido sem qualquer restrição. Há bilhões em jogo nas questões que envolvem o formaldeído.”

Harold Varmus, diretor do National Cancer Institute, conhece David Koch do Memorial Sloan-Kettering, do qual foi diretor. Disse que, no Sloan-Kettering, “há muita gente que doa dinheiro e que tem também grandes interesses comerciais. Só não admitimos o pessoal da indústria de cigarros.” Ao saber do protesto das Koch Industries contra o controle do formaldeído, Varmus disse que, para ele, era “uma surpresa”.


A sala “David H. Koch das Origens do Homem”, no Museu Nacional Smithsonian de História Natural oferece uma viagem multimídia pela teoria de que a humanidade evoluiu como resposta à mudança climática. Na entrada principal, os visitantes encontram um gráfico gigante que mostra a variação da temperatura da Terra ao longo dos últimos 10 milhões de anos, e que mostra que a temperatura hoje é muito mais baixa do que há dez mil anos. Acima do gráfico, lê-se: “A HUMANIDADE EVOLUIU COMO RESPOSTA A UM MUNDO EM MUTAÇÃO.” A mensagem, que se lê também na página do museu na internet , é que “as adaptações-chave pelas quais passou o ser humano foram respostas à instabilidade do meio ambiente.” Só ao final da mostra, sob a manchete “O DESAFIO DA SOBREVIVÊNCIA”, lê-se que os níveis de dióxido de carbono são mais altos hoje do que nunca, antes, em toda a história do homem no planeta, e que se preveem aumentos dramáticos para o próximo século. Nada se diz sobre a causa desse fenômeno; nem uma palavra sobre a suspeita de que os combustíveis fósseis tenham papel determinante nessa catástrofe prevista. A mostra faz com que tudo pareça evolução natural. O texto que acompanha a exposição diz que “Durante o período de evolução do ser humano, a temperatura da Terra e a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera flutuaram simultaneamente.” Na exposição, um jogo interativo sugere que os seres humanos continuarão a adaptar-se a todas as mudanças climáticas, também no futuro. A humanidade poderá construir “cidades subterrâneas” e desenvolver “corpos menores, mais compactos”, ou “espinhas dorsais encurvadas”, de modo que “não haverá problema para que as pessoas circulem em ambientes estreitos.”

Todas essas ideias são eco, sem dúvida alguma, da mensagem de Koch. A carta que a companhia distribuiu em janeiro aos empregados, por exemplo, argumenta que “a temperatura da Terra oscila desde muito antes do aparecimento do homem” e conclui: “Dado que ninguém pode controlar a Mãe Natureza, temos de começar a pensar em como sobreviver com as mudanças”. Joseph Romm, médico que edita a página ClimateProgress.org na internet, está indignado com a exposição montada no Museu Smithsonian. “A exposição foi montada para devolver ao ponto zero toda a discussão contemporânea sobre mudanças climáticas”, diz ele. “Acho que os Kochs querem que suas empresas sejam vistas como ‘de mente aberta’, associadas ao maior museu de história natural dos EUA. Mas a verdade é que aquela exposição foi construída para divulgar o ideário dos maiores poluidores do planeta, os mesmos que, na clandestinidade, financiam todos os tipos de ação interessadas em derrotar o esforço contemporâneo, de toda a humanidade, para sobrevivermos, primeiro de tudo, ao desastre provocado por aquelas empresas. Acho que o Smithsonian errou, ao admitir aquela exposição.”

Cristián Samper, diretor do museu, disse que a exposição não trata de mudança climática. Disse que Koch “é um dos mais generosos doadores que tivemos, durante minha gestão, porque é muito interessado no conteúdo do nosso trabalho, mas não interfere em nada”. Disse também que “não sabia de tantos detalhes de seu envolvimento em outros assuntos.”

Os Kochs sempre dependeram desse tipo de ignorância sobre os detalhes do que fazem. Sempre lhes bastou operar o que David Koch chamou de “a maior empresa de que vocês jamais ouviram falar”. Hoje, com a crescente exposição pública do Movimento Tea Party, e com a opinião pública cada vez mais informada sobre os laços que unem os Koch e aquele movimento, é possível que os irmãos tenham alguma dificuldade para continuar a escapar de todas as investigações. Recentemente, o presidente Obama deu sinal de que está atento à rede política dos Koch. Falando ao Comitê Nacional dos Democratas, em reunião de doadores de campanha, em Austin, alertou os apoiadores do Partido Democrata sobre recente decisão da Suprema Corte no caso da ONG Citizens United – que aprovou leis que proíbem as corporações da indústria e do comércio de doar fundos para campanhas eleitorais. O presidente lembrou que as novas leis, de fato, tornaram ainda mais fácil, para as grandes corporações, “ocultarem-se por trás de ONGs que se apresentam com títulos grandiloquentes e aparentemente progressistas, como Americans for Prosperity.” E continuou: "ninguém é obrigado a esclarecer quem são os Americans for Prosperity. E fica-se sem saber se não são, por exemplo, corporações estrangeiras. Ou, talvez, alguma gigante do petróleo."♦

Jane Mayer, principal correspondente do The New Yorker em Washington, é autora de “Dark Money” e ganhadora do prêmio Freedom of the Press de 2021.

9 de agosto de 2010

Após a repressão

Conversando com Mahmoud Ahmadinejad - e a oposição - sobre o Irã atual.

Jon Lee Anderson

The New Yorker

Em uma rara entrevista com um repórter ocidental no Irã, o presidente negou reprimir a oposição. “Todo mundo é livre”, disse ele. Ilustração de Barry Blitt

No início deste verão, enquanto caminhava nas montanhas Alborz, próximo de Teerã, me deparei com três membros do Movimento Verde reformista iraniano. Era uma tarde de calor acachapante e eles haviam se abrigado em um pomar de cerejeiras ao lado de um córrego, onde as frutas pendiam brilhantes dos ramos. Há muito tempo que as montanhas Alborz propiciam refúgio, ar puro e exercício. Os bairros do norte de Teerã são mais afluentes do que o resto da cidade e seus moradores são geralmente mais instruídos e bem informados sobre ideias e tendências estrangeiras. O Movimento Verde não está presente apenas na Zona Norte de Teerã, mas o apoio ali recebido foi particularmente intenso no verão passado, depois que o conservador linha-dura Mahmoud Ahmadinejad reivindicou a vitória nas eleições presidenciais contestadas.

Uma das mais populares trilhas de caminhada começa junto aos muros da prisão de Evin, onde nas últimas décadas milhares de dissidentes foram torturados, mortos e enterrados em segredo. Pouco mais adiante, passada a ponte de madeira sobre um desfiladeiro estreito do rio, terminam as últimas ruas pavimentadas da cidade. Ao longo das margens, há casas de chá ao ar livre, onde se toca música e as pessoas bebem suco de cereja fresca enquanto fumam narguilé. Esses locais oferecem uma pausa nas restrições da vida na República Islâmica, longe das unidades móveis da polícia religiosa e do Basij, instituição paramilitar composta pelos fanáticos à paisana que atacaram os adeptos do Movimento Verde nos protestos do ano passado.

Desde a repressão do governo, manifestações de rua têm sido raras, como raros são os jornalistas estrangeiros no Irã. Eu havia recebido um visto para entrevistar Ahmadinejad e, durante minha estada, fui vigiado de perto pelo governo. Até mesmo um passeio a pé nas montanhas não foi garantia de privacidade; enquanto eu subia, vi, entre outros adeptos do jogging, várias duplas de homens de barba desgrenhada, roupas indefiníveis e com a aparência severa de quem milita no Basij. Em certo momento, passei por uma unidade de soldados. Faziam a sua caminhada, como todo mundo, mas era evidente que estavam ali para fazer sentir sua presença. As mulheres na trilha estavam coradas e suavam em seus xadores e mantôs, as túnicas pretas que as iranianas são obrigadas a usar sobre suas roupas.

No pomar, no entanto, elas haviam tirado os lenços de cabeça e riam e conversavam animadamente. As pessoas me cumprimentaram, obviamente reconhecendo-me como um ocidental, uma visão rara em Teerã por esses dias. Um senhor puxou conversa, em excelente inglês, e deixou claro que era um reformista. Três outros iranianos sentados a pouca distância deram uma rápida olhada giratória antes de se pôr a recitar algo com a intenção de serem ouvidos. Eram versos do falecido poeta Ahmad Shamlou:

Eles farejam teu hálito,
Com medo de que possas ter dito eu te amo.
Eles farejam teu coração.
Estes são tempos estranhos, minha querida.
Os açougueiros estão postados em cada esquina com porretes e cutelos sangrentos.

Apontando para Teerã a distância, o meu interlocutor comentou: “Lá estão os novos açougueiros. Eles farejam tudo, não só em público, mas também na vida privada.” Seus amigos assentiram com a cabeça. Um deles acrescentou: “A frustração das pessoas vai achar um escape assim que as rachaduras no monólito começarem a aparecer.”

Segundo o homem que puxara conversa comigo, dois dos que haviam declamado os versos eram partidários de Mir-Hossein Mousavi e Mehdi Karroubi, presidenciáveis reformistas derrotados nas eleições de 2009. Os protestos, que haviam começado contra a fraude eleitoral, se transformaram em enormes manifestações contra o regime islâmico – as maiores ocorridas no Irã desde que o aiatolá Ruhollah Khomeini derrubou o xá Reza Pahlevi em 1979. Algumas semanas depois, o aiatolá Ali Khamenei, autoridade política máxima do Irã, endossou a vitória de Ahmadinejad e condenou os protestos, abrindo o caminho para a polícia de choque e o Basij entrarem em ação. Armados com facas e pistolas, eles foram enviados às ruas para atacar os manifestantes. O número de pessoas assassinadas varia de quarenta a oitenta, entre elas um sobrinho de Mousavi. Milhares foram presas.

Nos julgamentos de fachada realizados em agosto, mais de 100 detidos foram exibidos no tribunal. Estavam magros, pálidos e claramente aterrorizados. De acordo com a Anistia Internacional, muitos prisioneiros haviam sido espancados, torturados e estuprados em centros de detenção secretos. Vários “confessaram” uma quantidade improvável de crimes políticos, inclusive traição. Desde então, a maioria foi libertada sob fiança, entre eles o correspondente iraniano-canadense da Newsweek Maziar Bahari, que fugiu do país. Mas centenas de outros receberam penas de prisão severas e pelo menos cinco foram condenados à morte. Dois deles já foram enforcados pelo crime de moharebeh – combater Deus.

O Movimento Verde ainda realizou manifestações intermitentes até o final do ano passado e, em quantidade decrescente, na primavera. Mas o movimento foi cerceado. Dias antes da manifestação marcada para 12 de junho passado, primeiro aniversário da eleição, Mousavi e Karroubi preferiram cancelá-la em nome da “segurança do povo”.

Durante a campanha, Mousavi defendeu de forma ostensiva os direitos das mulheres e a normalização das relações com os Estados Unidos, além de denunciar as declarações de Ahmadinejad que questionavam a veracidade do Holocausto. Agora, ele raramente sai de sua casa no norte de Teerã e aparece somente em fotos e depoimentos veiculados em seu site. Ele e os outros líderes reformistas vivem sob prisão domiciliar informal, sujeitos a interrupções e ataques de turbas pró-regime sempre que se arriscam a sair.

Por ocasião do 21º aniversário da morte do aiatolá Khomeini, em 6 de junho passado, até mesmo o seu neto reformista Hassan Khomeini foi vaiado pelos adeptos da linha-dura, forçando-o a deixar o palco. (Consta que, mais tarde, ele teria dado um soco no ministro do Interior e quebrado seu nariz.)

Mehdi Karroubi, que também estava presente na cerimônia, foi abordado por uma turba de homens que gritavam: “Morte aos hipócritas”. Uma semana depois, ao visitar o aiatolá reformista Yousef Saanei na cidade santa de Qom, o carro de Karroubi foi atacado por uma multidão que gritava “sujo”, “corrupto” e “joguete americano”. Sob essas pressões constantes, o Movimento Verde deixou de existir como força política visível. Karroubi é o único líder reformista proeminente que ainda aparece habitualmente em público.

No pomar de cerejeiras, os homens do Movimento Verde com quem eu conversava ganharam a companhia das esposas. Uma delas discorreu sobre Spinoza, um dos precursores do Iluminismo na Europa e da separação do que ela chamou de “mesquita e Estado”: “Precisamos de um Spinoza no Irã.” Por enquanto, as redes sociais na internet lhe pareciam ser “o melhor caminho para as pessoas se comunicarem e estarem prontas quando as rachaduras na estrutura do poder aparecerem”. Seria, então, a chance de uma mudança. De resto, havia pouco que o Movimento Verde pudesse fazer. Manifestações de rua estavam fora de cogitação, explicou ela, porque “custariam vidas”, e “a violência só gera mais violência”.

Um dos homens discordou: “Essa revolução veio pela violência, e o único jeito de ela ir embora é por meio da violência. A mudança só virá quando você assumi-la e a fizer acontecer.” A mulher retrucou, com tristeza: “Mas eu preciso viver com alguma esperança. Não posso?”

No caminho de volta para a cidade, havia muros de pedra e rochas em que os manifestantes de 2009 haviam pichado slogans encobertos de tinta pelo governo. O único ainda intacto estava numa pedra do tamanho de um ovo de ganso, na qual alguém havia rabiscado com crayon verde “Morte ao ditador”.

Essa era uma Teerã muito diferente da que eu havia visitado pela última vez em dezembro de 2008, seis meses antes das eleições contestadas. Agora, a maioria dos políticos, jornalistas e acadêmicos que vi naquela ocasião não tinha mais liberdade para falar. Entre eles estavam os conhecidos reformistas Mohammad Ali Abtahi, ex-vice-presidente no governo de Khatami e influente blogueiro, e Mohammad Atrianfar, um editor e assessor do ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani. Os dois, homens robustos, sem papas na língua, que haviam criticado francamente as falhas do sistema político iraniano, foram presos durante a repressão pós-eleitoral. Quando reapareceram, semanas mais tarde, nos julgamentos de fachada, eram figuras alquebradas que se humilharam, confessando uma série de crimes bizarros e dedando amigos e colegas como seus cúmplices de conspiração. Abtahi disse que era culpado de “provocar as pessoas, causar tensão e criar o caos na mídia”. Atrianfar elogiou seus “interrogadores polidos”, disse que estava orgulhoso da própria “derrota”, e falou da importância fundamental de “preservar o sistema” no Irã.

Os adeptos do movimento passam muito tempo pensando sobre os acontecimentos do ano passado. Com frequência, ficam desanimados, pesarosos mesmo. “As pessoas calcularam mal”, me disse um de meus amigos iranianos. “Acharam que todo mundo no país fosse parecido com elas, e que o resto do país fosse como Teerã.” Em sua opinião, as manifestações tinham tanto a ver com a classe social como com a política. Os eleitores de Mousavi e Karroubi do Movimento Verde eram, em grande medida, de classe média ou alta.

Os soldados e os membros do Basij que os atacaram eram, em sua maioria, eleitores de Ahmadinejad, saídos, como o próprio presidente, da maioria menos privilegiada da população, que vive predominantemente no sul da cidade. Por vezes, a capacidade do Movimento Verde de pôr nas ruas de Teerã um número significativo de manifestantes – as estimativas variam de centenas de milhares a 3 milhões de pessoas – dava a impressão de que representavam a maioria no país. “Eles estavam errados”, disse meu amigo. “E seus líderes ‘subestimaram mal’ – para parafrasear seu ex-presidente Bush – o quão selvagem o regime poderia ser.” Adotando um tom zombeteiro de voz, ele acrescentou: “O quê? Você achou que com seu voto ia conseguir mudança? Que você realmente tinha escolha?” Um amigo dele tinha sido detido e libertado após concordar em assinar uma declaração de arrependimento. “O interrogador lhe disse: ‘Desta vez você não tem escolha. Ou se submete ou enfio esta vara no seu rabo. Esta é a sua escolha.’”

Não muito tempo depois de chegar a Teerã, assisti a uma entrevista coletiva de Ahmadinejad, na qual eu era o único ocidental presente. Nenhum repórter mencionou o Movimento Verde. Quando questionei um jornalista iraniano sobre a omissão, sua resposta foi um erguer de sobrancelhas: “Por que perguntar sobre algo que não existe?” Ahmadinejad respondeu a várias perguntas sobre as últimas exigências dos clérigos – eles pediam códigos de vestimenta mais rigorosos. O assunto é de grande importância para uma parte da juventude iraniana – no norte de Teerã, as ruas estão cheias de cabelos tingidos de loiro, bronzeados artificiais e penteados colmeia a la Amy Winehouse. Ahmadinejad enfureceu o clero conservador ao se opor às suas exigências. Poucos dias depois, o Ministério da Cultura e Orientação Islâmica retrucou, publicando as diretrizes que passariam a reger os estilos de penteado masculinos considerados adequados: topetes eram permitidos; gel, estilo moicano, ou cabelos excessivamente longos, não.

A maioria das outras perguntas dizia respeito à polêmica em torno do programa nuclear iraniano. Em 9 de junho, o Conselho de Segurança das Nações Unidas havia aprovado novas sanções – com a notável concordância de China e Rússia – e logo depois, uma medida adicional foi anunciada pelos Estados Unidos e outros governos ocidentais. Entre outras coisas, as sanções americanas exigiam que as empresas estrangeiras que negociam com o Irã, em particular nos setores de petróleo e gás, desistissem de seus interesses sob risco de serem banidas do mercado financeiro americano. Ahmadinejad retaliou, anunciando que o Irã suspenderia todas as negociações nucleares com o Ocidente até o final de agosto. Para que pudessem ser retomadas, acrescentou, precisava ser informado da posição dos seus parceiros de negociação no grupo P5 mais 1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha ) quanto ao “regime sionista” e suas armas nucleares. Ao final, era difícil não sentir a iminência de um confronto.

Durante a entrevista coletiva, Ahmadinejad parecia calmo e confiante, quase arrogante. A forma inquieta que caracterizava suas aparições públicas até alguns anos atrás havia desaparecido. Desde que foi reeleito, ele neutralizou os principais políticos reformistas, e se voltava agora contra seus rivais do establishment conservador. Ao longo das últimas semanas, retomara a luta contínua com o ex-presidente Rafsanjani – um aiatolá abastado, considerado o grande patrono do movimento reformista iraniano – cuja base de poder mais lucrativa está na Universidade Islâmica Azad.

Com 357 campi em todo o Irã e cerca de 1,4 milhão de estudantes e docentes, a universidade está entre as mais ricas instituições do país. Ahmadinejad acusara a universidade de apoiar os reformistas e propôs uma lei que permitiria ao governo assumir o controle da instituição. Num primeiro momento, o Parlamento votou contra a medida; mas depois que partidários de Ahmadinejad ameaçaram recorrer à violência, o Parlamento reverteu sua decisão (desde então, a batalha pelo controle passou para os tribunais). Questionado sobre Rafsanjani, o presidente iraniano desviou do tema com soberba: “Próxima pergunta?”

Poucos dias depois, fui convocado para o encontro com Ahmadinejad no Prédio Branco, parte do complexo presidencial, no centro de Teerã. O edifício, que abrigava um escritório do primeiro-ministro nos tempos do xá, está situado dentro de jardins murados, e o interior de suas salas exibe elegantes painéis de parede e piso de madeira encerada coberta com tapetes persas. Do outro lado do muro, num conjunto adjacente, vive o Guia Supremo, o aiatolá Khamenei, que raramente aparece em público, mas é, por mandado constitucional, o poder decisivo no Irã.

Ahmadinejad costuma usar um blusão bege, o uniforme não oficial do Basij, mas, quando me recebeu, estava de terno cinza e camisa branca sem gravata, no estilo informal de praxe entre os funcionários da República Islâmica. Seu rosto estava maquiado com base, e o cavernoso salão onde a nossa reunião se realizaria estava equipado com holofotes, sombrinhas e microfones.

A entrevista, como sempre, seria filmada para a televisão estatal iraniana. Havia um bando de produtores, tradutores, técnicos e seguranças, todos olhando fixamente. Ahmadinejad e eu nos sentamos face a face no meio da sala. Enquanto os técnicos ajustavam meu fone de ouvido, o assessor-chefe de imprensa, um homem sério de trinta e poucos anos, se aproximou de mim, tenso. Tinha um pedido: ao invés de questionar o presidente sobre a probabilidade de uma guerra entre o Irã e os Estados Unidos, eu poderia reformular as perguntas e indagar sobre as possibilidades de “paz”. Sugeriu também que Ahmadinejad teria prazer em falar sobre sua preocupação com a crise financeira global e sobre o derramamento de óleo no Golfo do México, para o qual, disse ele, o presidente havia oferecido a “ajuda do Irã”.

Ahmadinejad deverá estar em Nova York este mês, para participar da Assembleia Geral da ONU, e a minha entrevista era claramente uma forma de enviar uma mensagem do presidente. Durante todo o tempo que passei no Irã, as autoridades do país reiteraram que, apesar das novas sanções, sua posição negociadora fora fortalecida. Acrescentaram desejar a retomada das negociações nucleares, desde que sob condições adequadas. Uma fonte especializada que pediu anonimato disse-me que o Irã queria “o que todos os países em situação semelhante, como o Paquistão e a Índia, querem: legitimidade nuclear. Eles querem um acordo com os Estados Unidos que os aceite como potência nuclear.”

No imaginário iraniano, ter uma arma nuclear é vital para o país assumir o lugar a que teria direito entre as principais nações do mundo. Outrora, o Irã controlava um vasto império que incluía a Geórgia e o Tadjiquistão, e a população, nacionalista e orgulhosa, continua extremamente sensível à humilhação que considera ter sofrido por parte da Grã-Bretanha, Estados Unidos e Rússia ao longo da história. Ao mesmo tempo, cultiva sentimentos profundamente arraigados de superioridade cultural em relação aos países vizinhos. Isso contribui para sua visão de mundo tão assustadoramente ingênua quanto toxicamente presunçosa.

Na tarde anterior à minha entrevista, Ali Akbar Javanfekr, assessor de imprensa da presidência e diretor da Irna, a agência oficial iraniana de notícias, me chamou ao seu gabinete e sugeriu, educadamente, que eu poderia ser “mais do que um simples entrevistador do presidente, mas um instrumento de paz”. Estava em meu poder, disse ele, retransmitir “as intenções honestas e boas do Irã aos Estados Unidos”. Quando levantei o tema de Israel, ele afetou uma expressão triste. “Infelizmente Israel está condenado”, retrucou. “Digo isto sem qualquer animosidade, mas como uma declaração de fato. O resto do mundo exige isso, e os Estados Unidos deveriam se afastar, porque não podem ganhar nada com esta relação, exceto mais problemas.” Ele sorriu e acrescentou: “É como uma mãe com uma criança mimada, desobediente, que incomoda os vizinhos, mas que a mãe não consegue disciplinar.”

Quando sugeri que um confronto militar pode ser uma perspectiva mais provável do que a paz, Javanfekr pareceu espantado: “Você realmente acha que os Estados Unidos, depois de tudo – as guerras no Iraque e no Afeganistão – ainda podem atacar o Irã? Eles não sabem nem o que está acontecendo dentro do seu comando militar em Cabul” – uma alusão ao escândalo em que o general Stanley McChrystal foi removido de seu comando –, “então como podem achar que sabem o que está acontecendo aqui?”

Quando saí do gabinete de Javanfekr, ele me deu uma carta endereçada ao secretário de imprensa da Casa Branca, Robert Gibbs. Nela, mencionava minha entrevista com o presidente Ahmadinejad e sugeria que a Casa Branca deveria “retribuir de forma positiva” com a concessão de uma entrevista com Obama, a primeira de um presidente americano a um repórter iraniano.

Ahmadinejad tem formação em engenharia, com doutorado em gestão de tráfego, mas parece se considerar uma espécie de filósofo moral. Como é de seu hábito, começou a entrevista com um solilóquio espontâneo sobre a “universalidade de humanidade, amor, amizade e respeito”, depois sorriu bem-humorado quando lhe perguntei se ele entendia por que havia gente nervosa com suas repetidas conclamações pela destruição de Israel e sua insistência no direito do Irã à energia nuclear. Ele respondeu: “O programa de energia nuclear iraniano e a questão da Palestina são duas questões distintas. Elas não têm conexão uma com a outra.” E continuou: “O Irã aceitou o Tratado de Não Proliferação, nós o assinamos, e há funcionários da AIEA presentes em nosso país; eles possuem câmeras que mantêm todas as nossas atividades sob vigilância. O governo americano aceitou o Tratado de Não Proliferação? Não utilizou a bomba? Não tem um estoque delas? Quem deve estar preocupado com armas nucleares, eles ou nós?”

Mesmo deixando de lado o fato de que os Estados Unidos ratificaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear em 1970, os argumentos de Ahmadinejad pareciam diversionistas. Há um consenso crescente no Ocidente de que o Irã está realmente em busca da capacidade de produzir armas nucleares. O secretário de Defesa americano Robert Gates disse em junho que o setor de inteligência sugeriu que o Irã poderia ter material enriquecido suficiente para fabricar uma bomba dentro de um a três anos. Um alto ex-funcionário civil americano, familiarizado com a política do governo Obama para o Irã, me disse: “Tive acesso a informações que sugerem que o Irã foi além do seu argumento de que não busca autonomia nuclear.” Os iranianos têm sustentado que seus objetivos se limitam a um programa nuclear civil. Contudo, segundo o mesmo informante, “parece que eles gostariam de poder estar em posição de fabricar uma bomba, sem, na realidade fazê-la.”

Esta possibilidade tem afligido vários estrategistas americanos, que não veem grande diferença entre possuir uma arma e ter a capacidade de fabricá-la. Outros acreditam que a ideia da bomba pode ser tão útil para o Irã quanto a própria bomba. “No fundo”, explica o especialista em assuntos iranianos, “o perigo representado pelo Irã varia de acordo com a visão de cada um. Eu acredito que o Irã almeja a autonomia nuclear sobretudo para a sua defesa, como capacidade de dissuasão.” Ele destacou que o programa nuclear do Irã remonta à década de 70, quando o xá ainda estava no poder, e intensificou-se em reação ao uso de armas químicas por Saddam Hussein. Em anos recentes, “com 200 a 300 mil soldados norte-americanos nos dois lados de suas fronteiras (Iraque e Afeganistão), e com Israel equipado de armas nucleares, acelerou-se em Teerã o desejo de ter uma arma dissuasiva”.

Existe um complicador regional que se soma à questão central. Os Estados Unidos e Israel sustentam há tempos que o Irã mantém um programa de apoio velado ao terrorismo no Oriente Médio, através do Hezbollah, no Líbano, e do Hamas, em Gaza. Em janeiro passado, noticiou-se que a Marinha americana interceptou um cargueiro iraniano carregado de material militar quando se dirigia para a Síria e, em novembro, navios israelenses detiveram outro navio que transportava material bélico; acredita-se que as cargas se destinavam ao Hamas e ao Hezbollah. Em março, após vários dias de reuniões com líderes árabes e israelenses no Oriente Médio, a secretária de Estado Hillary Clinton disse a repórteres que ouvira muitas reclamações sobre a intromissão do Irã na região. “Está claro que o Irã pretende interferir nos assuntos internos de todos esses povos e tentar continuar seus esforços para financiar o terrorismo, seja o Hezbollah, o Hamas ou outros prepostos”, disse ela.

Quando levantei essas preocupações, Ahmadinejad respondeu com desdém: “Veja, essas questões levantadas pelos sionistas pertencem à mesma ordem das coisas que deveriam ser eliminadas. Nunca escondemos nosso apoio ao povo do Líbano, da Palestina ou do Iraque. [...] Fazemos isso com orgulho, como um ato de humanidade. O povo da Palestina está em sua própria casa. O mesmo acontece com as pessoas do Líbano, do Iraque, e do Afeganistão. Nós não estamos na casa dos americanos. Oitenta anos atrás, onde estavam essas pessoas que agora governam como sionistas?”

Independente de sua ignorância da história do século XX ser verdadeira ou intencional, o fato é que Ahmadinejad entende a provocação gerada por seu linguajar ultrajante. Pareceu-me encantado quando perguntei se acreditava em uma conspiração sionista internacional para controlar o mundo. (Ele insinuou que sim.) Como solução para o conflito israelense-palestino, sugeriu, como já o fez antes, que se realizasse um referendo em Israel e nos territórios ocupados. “Acreditamos que os habitantes da Palestina, sejam eles muçulmanos, cristãos ou judeus, deveriam poder escolher seu próprio destino. Aqueles que vieram de outros lugares, caso queiram permanecer, deveriam viver sob o governo do povo, e esse governo decidirá o que devem fazer. Se querem voltar para suas terras, podem fazê-lo.”

Quando a entrevista tomou o rumo da política interna, Ahmadinejad negou as inúmeras notícias sobre a repressão de seu governo. “Um dos problemas dos líderes do Ocidente é a falta de informação sobre os problemas do mundo”, disse ele. “Mostre-me um país no Ocidente em que 85% das pessoas participam das eleições presidenciais! Não há nenhum! O Irã é recordista em democracia. [...] Hoje você pode constatar que todos os meus rivais e a assim chamada ‘oposição’ estão livres.” Ele comparou a violência contra os manifestantes do Movimento Verde com a agitação na recente cúpula do G-20. “Se alguém ateia fogo a um carro ou um imóvel nos Estados Unidos, o que vão fazer com ele?” Disse que ficou “chocado” com as imagens de tevê que mostravam policiais batendo em manifestantes, “tudo porque eles eram contra o fracasso das políticas econômicas do Ocidente”. E acrescentou, com fisionomia grave: “O Irã jamais se comportaria dessa maneira em relação às pessoas.”

A alegação de Ahmadinejad é desmentida pelos relatos de várias testemunhas. Mehdi Karroubi enviou-me o seguinte e-mail: “Desde os dias que se seguiram à eleição, o regime procurou me confinar e controlar meus contatos com conhecidos e companheiros de partido. Como primeira medida, fecharam meu jornal, o escritório do meu partido e meu escritório pessoal.” Karroubi também confirmou os relatos de ataques que sofreu por parte de “turbas de mercenários”. “Chegaram ao ponto de tentar me assassinar e atirar contra meu carro.” Em Qom, também quebraram as janelas das casas do aiatolá Saanei e do falecido aiatolá Montazeri, que o haviam visitado. “Todas essas ações visavam me confinar e aterrorizar quem pretendesse manter contato comigo.”

Ainda assim, Ahmadinejad insistiu que no Irã havia liberdade para se dizer e fazer o que quisesse. E acrescentou: “Veja, você mesmo está aqui, bastante à vontade, falando comigo sem receio. Nenhum presidente americano jamais teve a coragem de permitir que um repórter iraniano fizesse o mesmo, fazer-lhe perguntas livremente. Isso é liberdade ou uma ditadura?”

Quando lhe perguntei se ele me permitiria entrevistar Mousavi, Karroubi e Khatami, Ahmadinejad respondeu: “Não me cabe autorizar ou não alguém a entrevistar outra pessoa. Todo mundo é livre. Se determinadas pessoas têm alguma limitação imposta pelo sistema judicial, isso depende do juiz, não tem nada a ver com o governo. Aqui há liberdade. Todos eles [Mousavi, Karroubi e Khatami] têm sites, canais de notícias e jornais, e dizem o que querem a meu respeito. Ninguém os perturba.”

Só que o fechamento do jornal de Karroubi fez parte de um movimento de censura de amplo alcance, no qual várias outras publicações políticas, econômicas e culturais foram suspensas ou proibidas. Firewalls do governo foram erguidos para bloquear sites de notícias ocidentais e da oposição iraniana; muitos canais de televisão ocidentais via satélite, como o serviço em língua farsi da BBC, também foram bloqueados de forma intermitente.

Ahmadinejad afirmou que as relações entre o Irã e os Estados Unidos se tornaram cada vez mais conflituosas: “Não estou feliz com esta situação. Os iranianos também não.” Ele lembrou que, após a vitória de Barack Obama em 2008, enviou ao novo presidente uma carta aberta de congratulação, seguida de uma proposta de encontros bilaterais “na presença da mídia”. Acrescentou que isso lhe valeu uma série de críticas dentro e fora de seu país, mas Obama sequer lhe respondeu. Em vez disso, só fez ameaças desde que se tornou presidente.

Na verdade, poucas semanas depois de tomar posse, Obama mandou uma mensagem em vídeo ao Irã, por ocasião do Nowruz, o ano-novo persa, no qual se comprometia com uma política de “envolvimento que seja honesta e fundada no respeito mútuo” e com uma “diplomacia que aborde toda a gama de questões que temos diante de nós”. Coube ao aiatolá Khamenei, que normalmente não se envolve em política pública, contestar a mensagem de Obama, dizendo que o Irã desejava mais do que apenas “mudanças de palavras” dos Estados Unidos.

Desde então, a equipe de Obama tem buscado oportunidades para diálogo, sem abrir mão da exigência de que o Irã não desenvolva sua arma nuclear. Durante os distúrbios pós-eleitorais, Obama absteve-se de endossar os protestos do Movimento Verde com base, aparentemente, no pressuposto de que qualquer declaração de apoio pudesse minar as chances de negociações nucleares.

Em maio, Ahmadinejad assinou um acordo com os líderes do Brasil e da Turquia, no qual o Irã prometia entregar cerca de metade de seu estoque de urânio pouco enriquecido em troca de uma quantidade menor de urânio altamente enriquecido. Com isso, as necessidades médicas e os objetivos de pesquisa do país estariam atendidos. Embora tivesse incentivado o Brasil e a Turquia a atuar como ponte, o governo Obama acabou rejeitando esse acordo, com o argumento de que ele não eliminava a dúvida central quanto às intenções nucleares do Irã. Propôs em seguida um novo pacote de sanções ao Conselho de Segurança da ONU. Ahmadinejad sacudiu a cabeça: “Qual foi a resposta? A resolução das sanções.” No governo americano, “as personalidades mudaram, mas as políticas não se alteraram. Eles continuam achando que precisam nos mostrar um porrete para obter concessões”, disse. “Lembrem que esse método já falhou. Foi tentado antes, e não tem futuro. Infelizmente, o sr. Obama está a caminho do fracasso.”

Quando a entrevista terminou, Ahmadinejad e eu nos levantamos e técnicos removeram nossos fones de ouvido e microfones. Um dos assessores do presidente lhe disse: “Parece que os americanos querem resolver todos os seus problemas com o mundo muçulmano de uma única vez!” A resposta do presidente foi curta: “Tome cuidado com o que diz!” – e denotava preocupação com o fato de o comentário ter sido captado por um microfone.

Apesar das garantias de Ahmadinejad de que eu estava livre para entrevistar quem quisesse, fui aconselhado por um alto funcionário do governo a evitar qualquer comportamento “sorrateiro” durante a minha estadia. A advertência veio acompanhada de um movimento sinuoso de mão. No final, fui autorizado a entrevistar uma única pessoa: Hossein Shariatmadari, assessor de Khamenei e editor-chefe do Kayhan, o jornal que fala pelo clero iraniano. Shariatmadari foi preso na juventude por militar em apoio ao aiatolá Khomeini, e cumpria uma sentença de prisão perpétua quando o xá fugiu do Irã, em 1979. Depois que Khomeini assumiu o poder, ele foi libertado, mas os torturadores do xá o deixaram sem nenhum de seus dentes originais. Embora tenha 61 anos, sua boca é murcha como a de um homem muito mais velho.

As suas declarações costumam servir de barômetro confiável das opiniões do Guia Supremo do Irã. Seis meses antes da eleição de junho de 2009, ele previra para mim que Ahmadinejad venceria. Tempos depois, pediu várias vezes a prisão dos dirigentes reformistas, aos quais se refere como “quinta-colunistas” do Ocidente.

“Hoje, as circunstâncias são certamente muito sensíveis” entre os Estados Unidos e o Irã, disse-me ele com cautela. “Mas não se pode chamar de crise.” Do ponto de vista do governo iraniano, acrescentou, a situação atual até parece vantajosa para Teerã: “Obama jogou fora todo o capital político que os Estados Unidos tinham construído até aqui. Ao longo das últimas duas décadas, o Ocidente mobilizou alguns grupos e tendências e tramou alguns estratagemas para seu planejado Dia D subversivo contra a República Islâmica. O sr. Obama viu uma chance nas eleições no Irã e utilizou aquelas pessoas que o Ocidente havia guardado com esse propósito. Apostou todas as suas fichas nisso e acabou nos dando a chance de ver quem eram os subversivos. Então, nesse sentido, demos realmente um passo à frente.”

Na verdade, Obama recebeu inúmeras críticas de seus aliados por manifestar pouco apoio ao Movimento Verde. Shariatmadari sugeriu que os reformistas eram uma espécie de agentes infiltrados do Ocidente, e que a agitação havia ajudado a República Islâmica ao revelar suas identidades. E continuou: “Algumas pessoas protestaram para nós e perguntaram: ‘Por que não prenderam Khatami, Mousavi, Karroubi durante os distúrbios, quando a participação deles foi revelada?’ Mas foi muito inteligente não prendê-los, pois isso mostrou finalmente o verdadeiro rosto deles.”

O Movimento Verde, disse ele, fazia parte de uma grande conspiração – concebida, entre outros, por Michael Ledeen (um veterano falcão da política externa americana), Richard Haass (presidente do Conselho de Relações Exteriores), Gene Sharp (uma autoridade em resistência não violenta), e George Soros (o financista e filantropo) – com o objetivo de derrubar o governo iraniano. Os protestos não eram contra Ahmadinejad, explicou, mas “contra todo o sistema”. Felizmente, “o povo” foi mobilizado e deteve a conspiração.

As turbas de desordeiros estimuladas oficialmente, os ataques contra os clérigos Saanei e Karroubi e o incidente embaraçoso com o neto de Khomeini indicam que a vitória de Ahmadinejad sobre o Movimento Verde teve um custo; o establishment religioso e a sociedade iraniana em geral parecem muito menos unificados do que Shariatmadari afirmou. Ele admitiu que havia diferenças, mas negou que a Revolução Islâmica estivesse se desgarrando: “Por favor, observe com cuidado. A Revolução Islâmica não está devorando seus filhos, mas expurgando seus filhos delinquentes.” Falando dos líderes reformistas, ele continuou: “Em última análise, eles serão detidos porque cometeram crimes, e serão definitivamente processados por traição e presos. Mas não agora.”

A decisão dos Estados Unidos de ignorar o acordo de troca nuclear e de pressionar com um novo pacote de sanções também “é positiva para nós”, sustentou. “Primeiro, porque mostra que os americanos não estão interessados em um envolvimento positivo e preferem a força; em segundo lugar, porque, se as sanções forem aplicadas, podem nos prejudicar, mas não de forma grave, porque muitos outros países se queixarão de que seus interesses são prejudicados por elas. Qualquer nação com uma capacidade de compra de 70 bilhões de dólares não pode ser seriamente prejudicada por sanções.”

Além disso, continuou Shariatmadari, “quem acha que vai inspecionar nossos navios”, como previsto nas sanções, “não deve esquecer que o estreito de Ormuz está sob nosso controle. Vamos retaliar. Na eventualidade de um navio britânico inspecionar um dos nossos, quando ele entrar no estreito, será a nossa vez”.

Apesar do que diz Shariatmadari, a economia do Irã está com problemas. Durante décadas, o governo desviou cerca de 100 bilhões de dólares por ano de riqueza petrolífera do país para um sistema de subsídios de preços que as sanções tornaram cada vez mais insustentável. Ahmadinejad tentou nos últimos meses aprovar uma lei que cortaria os subsídios em 40%, num lance politicamente arriscado: segundo algumas estimativas, a medida faria com que o preço da gasolina quadruplicasse e aumentaria muito o custo da cesta básica, o que poderia prejudicar sua imagem entre as classes mais pobres. Ahmadinejad tem hesitado em cravar as datas de implementação da nova lei, que prevê um aumento de 70% nos impostos sobre mercadorias. Em meados de julho, os influentes comerciantes do Grande Bazar de Teerã fecharam as lojas em protesto. A greve foi eficaz: o governo recuou, prometendo limitar o aumento em apenas 15%.

As sanções, por si só, não devem causar aperto suficiente para levar os iranianos de volta às ruas. Se a população acreditar que os problemas econômicos do país foram causados, em grande parte, pelas sanções ocidentais, como enfatizou Ahmadinejad, ela pode vir a se mobilizar tanto a favor do governo quanto protestar contra ele, sobretudo se as tensões com os Estados Unidos e Israel persistirem. “Não se esqueça também que a opinião pública mundial, agora, está do nosso lado”, acrescentou Shariatmadari. “No Oriente Médio, o povo só está esperando para ver quem vai desafiar o Ocidente.”

Shariatmadari parecia excluir a possibilidade de um ataque militar por parte dos Estados Unidos. “Eles estão num beco sem saída no Iraque e no Afeganistão, onde fracassaram. O que conseguiram nesses países? Será muito difícil para eles preparar a opinião pública americana para um novo ataque.” Ele descartou a ideia de que a ofensiva viria provavelmente na forma de bombardeios aéreos, cujo objetivo seria destruir as instalações nucleares do país, bem como suas capacidades militares. “A possibilidade de um ataque limitado contra nós não existe. Qualquer ação militar contra nós significa guerra total. Eles não vão se safar. Sim, eles podem definir limites para o início de uma guerra, mas o seu fim não está nas mãos deles. Qualquer que seja o formato de um ataque americano – com ou sem Israel – nós vamos atingir Israel. Apesar de seu arsenal nuclear, todo o território deles estará sob a barragem de nossos mísseis.”

Shariatmadari encerrou nossa entrevista com uma previsão: “Daqui a cinco anos, o Irã e os Estados Unidos ainda não terão relações diplomáticas. Os americanos acabarão por aceitar um Irã nuclear e encontrarão outro pretexto para enfrentá-lo. Vejo uma probabilidade muito baixa de guerra, porque os Estados Unidos não estão em posição de nos atacar. Claro, alguns políticos americanos podem cometer um erro estúpido, mas esperamos que existam alguns homens sábios entre eles.”

Do lado americano, a fala atrevida do regime iraniano foi julgada preocupante. “A ideia deles de que os Estados Unidos são um país militarmente incapaz é perigosa”, disse-me o ex-congressista Lee Hamilton, copresidente do Grupo de Estudos do Iraque. “Nossa capacidade não está em questão. Se tivermos a vontade política de ir em frente, creio que temos os meios.” Ele acredita que Ahmadinejad talvez tenha interpretado mal as intenções do Ocidente. “Eles estão muito isolados no Irã e não conhecem os Estados Unidos tão bem quanto pensam.”

Em 26 de julho, a União Europeia e o Canadá anunciaram mais uma rodada de sanções; no mesmo dia, o governo de Teerã enviou uma carta à Agência Internacional de Energia Atômica que, segundo uma autoridade iraniana, oferecia sua disposição de retomar as negociações em torno do acordo Brasil–Turquia, “sem quaisquer condições”. Na avaliação do ex-alto funcionário civil americano, as sanções tiveram o efeito desejado. “Na minha experiência, as coisas que têm maior influência sobre o Irã são aquelas que encontram formas de bloquear o que eles querem fazer, e uma dessas coisas é ser um grande ator regional. Eles não podem fazer isso muito bem sob sanções. Eles reagem à adversidade.”

Enquanto isso, Obama mantinha a pressão para obter um acordo mais abrangente. Nas últimas semanas, o governo americano mencionou publicamente tanto a perspectiva das negociações como a possibilidade de uma guerra. Enquanto Hamilton afirmava que as autoridades ainda estavam debatendo qual seria a melhor abordagem, outros consideravam que o tempo para a diplomacia estava acabando. “Há mais ou menos três meses existe disposição perceptível para uma ação militar”, disse ele. “O governo já declarou que um Irã nuclear é inaceitável, o que retira da pauta o recurso à contenção.” (Hamilton lembrou também que no passado os Estados Unidos voltaram atrás na rejeição à tentativa de contenção, como no caso da Coreia do Norte.)

Em 1º de agosto, o presidente do Estado-Maior Conjunto, almirante Mike Mullen, confirmou no programa da NBC Meet the Press que os Estados Unidos fizeram planos para um ataque contra o Irã. “As ações militares estiveram na mesa e permanecem na mesa”, disse ele. “Espero que não cheguemos a isso, mas é uma opção importante, que foi bem analisada.” Mullen acrescentou temer que um ataque poderia ter “consequências não planejadas, difíceis de prever numa região extremamente instável do mundo”.

Três dias depois, Obama declarou a repórteres que permanecia aberto a negociações com os iranianos, se eles oferecessem “medidas que fortaleçam a confiança”. O presidente disse: “É vital submetermos aos iranianos um conjunto claro de etapas que poderiam nos satisfazer como demonstração de que eles não têm intenções nucleares.” Acrescentou: “Eles saberão se podem responder com um ‘sim’.”

Se quiser trazer o Irã para a mesa de negociações, Obama terá de superar uma boa dose de resistência em Washington. “Você viu a votação das sanções. O que foi aquilo, 408 a 8 no Congresso?”, comentou Hamilton. “Obama está diante de uma oposição ao Irã no Congresso muito forte, engajada e profunda.” Essa dificuldade é agravada pela frustração diante da incapacidade de encontrar uma solução diplomática. Uma vez que a relação dos Estados Unidos com o Irã se centrou na única e intratável questão das armas nucleares, tornou-se difícil para o governo fazer progressos perceptíveis. Obama tem tido mais sucesso do que Bush na orquestração de um esforço de sanções internacionais. Mas, depois das sanções, o que mais ele pode fazer?

Hamilton defende o caminho da diplomacia paciente. “Não haverá uma solução da noite para o dia. Os iranianos parecem achar que os Estados Unidos devem tomar a iniciativa e fazer um gesto dramático, mas um gesto como esse da parte de Obama é muito difícil agora. [...] Minha impressão é que as negociações devem ser conduzidas em segredo, independente de quem as faça ou onde quer que ocorram.”

Para Hamilton, o impasse americano-iraniano lembra as relações da Guerra Fria com a União Soviética. “Ano após ano, nos reuníamos e líamos discursos uns para os outros, e depois erguíamos brindes aos nossos netos, mas nunca aconteceu nada. Então, finalmente, chegamos às negociações e as coisas se moveram. Espero que isso não demore quarenta anos.”

Os grupos reformistas no Irã tendem a ter altos e baixos – o movimento que depôs o xá demorou quase vinte anos para ganhar força plena – mas o Movimento Verde, tal como está agora, parece representar pouca ameaça ao governo atual. Mousavi criticou Ahmadinejad recentemente, em seu site, pela forma de conduzir as negociações nucleares. Afirmou que essa conduta agravou as sanções e impediu o Irã de desenvolver “tecnologia nuclear pacífica”.

Alguns analistas interpretam isso como parte da tentativa de Mousavi de continuar a se apresentar como um nacionalista inflexível, na esperança de manter influência sobre o movimento reformista. Mas a minha fonte especializada em Irã acredita que, na ausência de uma liderança forte, o movimento estava se fragmentando. Ele explicou: “O Movimento Verde era composto por diferentes tipos de pessoas: aqueles que odiavam o regime, aqueles que ficaram ofendidos com a fraude eleitoral e os que aderiram porque se sentiram ofendidos pelo tratamento dado aos prisioneiros. Com o tempo, eles começaram a se separar.”

Um iraniano que prefere permanecer anônimo descreveu a situação do movimento: “O despotismo funciona. É isso que esta situação mostra. O movimento reformista acabou. A classe média não está disposta a morrer em massa, e o regime sabe disso. Ele matou e puniu apenas o número suficiente de pessoas para que se saiba do que é capaz. Os líderes reformistas e o regime têm uma espécie de pacto não declarado: ‘Não organizem mais manifestações nem façam pronunciamentos e os deixaremos em paz. Se fizerem qualquer coisa, os prenderemos’. Está acabado.”

Ainda assim, os membros do movimento com quem falei não mudaram suas convicções. Em Teerã, fui convidado a assistir a uma partida de futebol na televisão, na casa de uma família iraniana. Durante um intervalo do jogo, alguém mencionou que eu havia entrevistado o presidente Ahmadinejad naquela semana. Uma das anfitriãs, uma profissional liberal na casa dos 30 anos, imediatamente enfiou dois dedos na boca e inclinou-se numa mímica de vômito. “Ah, como eu o odeio”, disse ela. “Ele me dá calafrios. É o pior tipo de iraniano; ele ofende nossa dignidade e nosso senso de ética, e o pior é que se acha muito inteligente.” A simples menção de seu nome a deixa deprimida. Na repressão que se seguiu aos distúrbios do ano passado, acrescentou ela, muitos de seus amigos e conhecidos – na maioria jovens profissionais liberais, do tipo que apoiava maciçamente o Movimento Verde – haviam fugido do país, ou estavam planejando fugir. Ela não pretendia emigrar, mas entendia o desejo de fazê-lo. “A frustração é quase grande demais para suportar. As pessoas se sentem tão roubadas, e suas dignidade e esperança estão tão feridas. O dia a dia é tão doloroso. Dói. Esse sentimento não vai embora. O Movimento Verde representa esse sentimento, e não pode simplesmente desaparecer. De algum modo, talvez de uma outra forma, ele precisa ressurgir.”

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