22 de outubro de 2009

A ilusão de Obama

David Bromwich



Tradução / Bem antes de se tornar presidente, Barack Obama já dava sinais de prometer com facilidade e ceder com frequência. Moderado por temperamento, sempre foi claro que, uma vez eleito, ele se inclinaria para o centro. Mas havia algo de estranho na rapidez com que cunhou um slogan declarando que seu governo olharia para o futuro e não para o passado. Reduzido à prática, o slogan queria dizer que Obama preferiria não expor muitos dos atos ilegais da administração Bush. O valor da conciliação vencia o imperativo da verdade. Obama representava “as coisas que nos unem e não as que nos dividem”. Uma desagradável correção de erros passados poderia ser vista como retaliação e o novo presidente não permitiria que um equívoco dessa natureza atrapalhasse seus objetivos ecumênicos.

The message about uniting not dividing was not new. It was spoken in almost the same words by Bill Clinton in 1993; and after his midterm defeat in 1994, Clinton borrowed Republican policies in softened form – school dress codes, the repeal of welfare. The Republican response was unappreciative: they launched a three-year march towards impeachment. Os apelos de Obama pela harmonia, e seus gestos de conciliação, encontraram uma recepção uniformemente negativa. A bem da verdade, os republicanos estão tratando o sucessor de George W. Bush pior do que trataram Bill Clinton. Obama apenas parece mais estável porque a grande imprensa, que detestava Clinton de forma irracional, levantou-se em sua defesa. Mas existem inúmeras fontes de informação alternativas, capitaneadas pela Fox News Radio e Fox TV, as estações de Rupert Murdoch. Dessa fonte brotou um discurso que atingiu 20 milhões de ouvintes, no início do verão americano. A mensagem era coerente, detalhada e subvertia a ordem estabelecida. Visava atacar a legitimidade do presidente e prometia uma insurreição. Convocava-se um vago exército de furiosos e ressentidos a manifestar seu desprezo por Barack Obama e a exibir lealdade a princípios que poderiam estar ameaçados — o direito ao porte de armas, o direito de não pagar por planos de saúde. When representatives from Congress addressed town-hall meetings in the late summer, men in several states came armed with guns in leg holsters. O rancor dessa gente vinha da hostilidade ao projeto do sistema de saúde anunciado pelo presidente — projeto que detestavam sem tê-lo visto e que sequer fora explicado com clareza suficiente para compensar a desconfiança. (Clinton made the mistake of handing the construction of a national health system to his wife and a group of advisers she consulted in private. Obama, to avoid that error, left the framing and elaboration of a bill to five committees of Congress: an experiment in dissociation that rendered him blameless but also clueless beyond the broadest of rhetorical commitments.) But beneath all the accusations was a disturbance no ordinary answer could alleviate. The America these people grew up with was being taken away from them. That formulation occurred again and again on talk radio. Barack Obama passou a ser apresentado por determinados setores como o símbolo perfeito das forças que ludibriavam o povo americano, roubando-o de seus direitos de nascença. “Esse cara”— outra expressão comum — não tinha o direito de impor leis aos americanos.

When the Clinton impeachment was going forward, Obama was a young Chicago politician with other things on his mind. He could have learned something then about how the Republicans work. The most questionable of his appeals in the primary campaign against Hillary Clinton was the endlessly repeated bromide with which he dissociated himself from ‘the partisan bickering of the 1990s’ – a piece of spurious evenhandedness if there ever was one. Bill Clinton, who gained his national stature in the conservative Democratic Leadership Council, had been as much a prudent adjuster and adapter as Obama. The fury of the attack on Clinton, which started a few months into his presidency, was not the bickering of two rival parties exactly comparable in point of incivility. Yet such was Obama’s convenient picture of the recent past.

Atrasos na aprovação do “pacote de estímulo” para revigorar a economia após o colapso financeiro de 2008 e, depois, do projeto do sistema de saúde deveram-se em grande medida à espera de Obama para que os republicanos concedessem a essas medidas uma aura de unanimidade bipartidária. Alguns, de fato, votaram a favor do estímulo econômico. Nenhum encampou a proposta do novo sistema de saúde. Os republicanos se mantêm onde estavam e assistem à estatura política do presidente diminuir. Os motivos de Obama para esperar certamente têm algo a ver com o medo. Ele recebe quatro vezes mais ameaças de morte que George W. Bush. Também se vê contido por um desejo natural dos moderados — o de se manter próximo de todas as instituições ao mesmo tempo: militares, financeiras, legislativas, comerciais. Fosse o mundo ideal, ele poderia inspirar a todos e ofender a ninguém. Mas a ideia de acomodar os inimigos gradualmente para chegar ao consenso parece, em Obama, quase um delírio no sentido mais literal: uma crença estabelecida em algo que não existe. Como ela teria chegado a dominar um homem tão inteligente?

Até agora a carreira de Obama não contava com realizações singulares pelas quais ele fosse o único responsável. Sua experiência parece não ter lhe ensinado a lei da seleção natural da política, em que as maiorias se formam dos que sobraram. Qualquer ato concreto produz pequenas multidões de desiludidos. A política é feita de sentimentos feridos que só o tempo pode curar, se é que cura. Essa é uma verdade que confronta Obama em diversos campos, mas que ele não aceita com facilidade. Sua forma de pensar se aproxima do espírito do Iluminismo, que supõe que um conjunto de procedimentos corretos jamais pode ser descrito e plenamente compreendido sem ser aceito.

The Republican Party of 2009 is a powerful piece of contrary testimony. It has become the party of wars and jails, and its moral physiognomy is captured by the faces of John Boehner and Mitch McConnell, faces hard to match outside Cruikshank’s drawings of Dickens’s villains, hard as nails and mean as dirt and with an issue still up their sleeve when wars wind down and the jails are full: a sworn hostility towards immigrants and ‘aliens’. The anti-immigrant bias – from which George W. Bush and John McCain were free, but which both were powerless to counteract – is an underground stream of the party that makes it a bearer of racist sentiments no longer avowable in public. I have been studying the ante-bellum South, for a course on the career of Abraham Lincoln, and have been struck by the resemblance between the Republicans today and the pre-Civil War Democrats. The model of the Republicans today is John C. Calhoun, the political theorist of the slave South and deviser of the rationale for local nullification of federal policies.

Ele age como se fosse o líder de um partido inexistente, como se paciência e um temperamento cordato pudessem trazer à tona o melhor em todos os homens. Ele parece falar, ao mesmo tempo ou alternadamente, como um organizador e um mediador, um líder nacional e um curandeiro. Há algo de estranho nessa alternância de posturas, do ponto de vista da prudência pragmática. As grandes bandeiras que ele levantou nos primeiros meses — a decisão de fechar Guantánamo, de pressionar pelo estabelecimento de dois Estados como solução para Israel e a Palestina, e de reformar o seguro-saúde com um plano nacional — foram apresentadas com um prefácio grandioso, seguido por meses de silêncio. Deixou que seus agentes, conselheiros ou o partido — se possível, os partidos, tanto o democrata quanto o republicano — cuidassem dos detalhes. Só que, durante a longa espera, são justamente as características mais marcantes de suas intenções que acabam sendo atenuadas. Thus, a new kind of pressure on Israel and a resolve to create a Palestinian state appeared to be signalled by his Cairo speech in early June. It was a thoughtful speech, and a courageous one, even if you took it as a series of propositions uttered at a certain time in a certain place. Simply to address the Muslims of the world without condescension was sure to make him unforgiving enemies on the American right – including the considerable body of Christian Zionists in the Southern and border states – and Obama went to Cairo and delivered his speech knowing that. Yet the four months since have seemed much longer than four months. Israel has sapped and undermined the settlement freeze. Binyamin Netanyahu gambled that he could trespass against objections by Obama’s negotiators, Hillary Clinton and George Mitchell, and the gamble has worked. The American desiderata were never backed by a sanction, and the Netanyahu government approved thousands of new units for the expansion of the Israeli colonies. This the Americans called ‘not helpful’.

O sistema de saúde, por sua vez, foi sendo minado por uma agenda diferente de negligência. Primeiro houve um longo verão de doutrinação conservadora pelo rádio, que tornou a oposição à mudança tão clamorosa que muitos encontros políticos regionais explodiram em tumultos. Foi somente no dia 9 de setembro que Obama falou para uma sessão conjunta do Congresso. Ali, finalmente, fez uma defesa concatenada e impressionante de seu plano. O discurso devolveu seus índices de popularidade para mais de 50% de aprovação e foi maculado apenas pelo grito de um representante da Carolina do Sul: “O senhor está mentindo!” Violar o silêncio daquele salão monumental requer premeditação e violência tão deliberadas quanto as que seriam necessárias para gritar “Inferno!” dentro de uma catedral. Com isso, a discórdia que o discurso de 9 de setembro pretendia minorar voltou a dar as caras diante do próprio discurso. Os Estados Unidos estão cheios de cidadãos que sentem cheiro de tirania em todo e qualquer programa do governo federal. E de cidadãos não fanáticos e de poucas posses, que ficam se perguntando como seus filhos vão pagar a conta das medidas de emergência adotadas pelo governo.

Early suspicion of the bank bail-outs found a ready target of displaced resentment in the later demand for health insurance reform. Healthcare had never seemed a main concern of Obama’s as a candidate, and this looked like one more exorbitance. O novo presidente tinha bancado uma conta imensa, perto de 1 trilhão de dólares, para pagar as corretoras e evitar uma depressão. Ele esperava uma gratidão que não recebeu. Sua escolha tática jamais seria facilmente explicável em um cenário em que tantos banqueiros sobreviveram, enquanto tantas pessoas comuns perderam casas e empregos. As medidas tomadas por Obama não tinham justificativa fácil. Ademais, alertou o presidente: “Vocês também estão perdendo a cobertura do seu seguro-saúde!” But in a country where 85 per cent have coverage of some sort, more have been worrying about their homes and their jobs. Most people’s health insurance payments are taken out of their monthly pay cheques and put into private plans offered by their employers; when an employer cuts your job you lose the insurance too; but it betrayed a planner’s conceit in Obama to imagine that people would worry first, and most acutely, about the loss of their insurance. Many without a history of political resentment, some of whom voted for Obama, are startled that they keep being asked to foot the bill. It was easier to blame ‘big government’ than to say that the bankers and brokers and the whole financial establishment, with Goldman Sachs at its core, did not deserve the bail-outs. Obama’s speech on 9 September arrived too late to work as a counter-charm. Num país em que 85% da população têm algum tipo de cobertura, a preocupação maior, porém, era com suas casas e empregos. Para a maioria desses 85%, os pagamentos pelo seguro-saúde saem de seus contracheques e vão direto para os planos privados oferecidos por seus empregadores; quando um empregador corta o seu emprego, você perde o seguro também. Só que Obama imaginou que as pessoas se preocupariam primeiro e mais agudamente com o seguro. Muitos sem histórico de ressentimento político, alguns dos quais votaram em Obama, ficam surpresos ao serem solicitados a pagar a conta. Era mais fácil culpar o "grande governo" do que dizer que os banqueiros e corretores e todo o establishment financeiro, com o Goldman Sachs no seu núcleo, não mereciam os resgates. O discurso de Obama de 9 de setembro veio tarde demais para funcionar como antídoto.

The pattern of the major announcement, the dilatory follow-up and the tardy self-defence has shown an alarming consistency in his administration. Obama ordenou o fechamento da prisão da baía de Guantánamo como o primeiro ato de sua presidência. Oito meses depois, Guantánamo continua aberta e sem solução, a data de seu fechamento foi adiada e a questão de o que fazer com os prisioneiros se tornou um dos assuntos mais candentes que confrontam a autoridade presidencial. After signing the order in January, he took a long break; and his enemies rallied. Two elements of the syndrome should be distinguished. Primeiro, Obama está tentando fazer muita coisa ao mesmo tempo, nem tudo isso é causado pelos desastres do governo anterior. It is also beginning to appear that Obama has a slower ratio to the passage of time than most politicians. When he was attacked for the Guantánamo order, on the grounds that it placed the security of Americans in jeopardy, he let it be known that the issue was undergoing reappraisal; then, on 21 May, he gave a speech on law and national security at the National Archives: the worst speech of his presidency. He said that his paramount duty was ‘to keep the American people safe’: that word, safe, which was accorded a primacy by George W. Bush it had not been given by any earlier president, Obama himself now ranked ahead of the words justice, right, liberty and constitution. The National Archives speech was, more particularly, a response to the charges made by Dick Cheney over several preceding weeks.

In a speech delivered on the same day, 21 May, the former vice president, who has never really retired, gave a digest of his own published criticisms. The decision to release photos of the victims of torture, and to rule out ‘enhanced interrogation methods’ in the future, could only ‘lead our government further away from its duty to protect the American people’. Cheney intimated that if an attack occurred in the coming years, the fault would be Obama’s for having restored an antiquarian understanding of civil liberties and obedience to international law. Obama’s answer was sober and resolute in appearance, but, in detail, the National Archives speech was a capitulation on most of the points specified by Cheney. Prisoners would now be divided into five categories: those who could be freed because they were innocent; those who could be extradited to foreign countries; those who fell under the jurisdiction of military tribunals; those who could be tried in civilian courts in the US; and then a fifth category – those whom we lacked evidence to convict but who (it had been decided) were too dangerous to set free. These prisoners would be held indefinitely under a new legal dispensation still to be devised.

Preventive detention was a step President Nixon had proposed to Congress in 1970, but he never found the support or the temerity to put the programme into effect. Yet here was a Democratic president and professor of constitutional law doing what Nixon and for that matter Cheney and his assistants had only dreamed of. We have yet to see the final result, but the lesson of the encounter would seem to be: when you announce a great change, steal a march on your opponents by clinching the declaration with the deed. In no decision of his administration has Obama followed the wisdom of that Machiavellian precept. His government is also hampered by its want of a spokesman who can hit hard with words when the president wishes not to be seen to strike. Obama’s confidant David Axelrod, who managed his campaign and is often summoned to speak to the press on his behalf, emits a pleasant porridge of upper-media demotic. Another close adviser, Valerie Jarrett, a Chicago friend, is a technocrat to the bone, genially officious but lacking in any pith and point. These people are no match for Cheney, or for the president’s antagonists in the substitute media who speak under no restraint.

What Cheney and the radio demagogues sowed, the less gifted members of the Republican minority in Congress gratefully reaped. The minority leader of the House of Representatives, John Boehner, said on 17 September on the PBS show NewsHour: ‘We’re in the middle of a modern-day political rebellion in America.’ Interviewer: ‘Rebellion?’ Boehner: ‘Rebellion’. He repeated the word without compunction, and added: ‘I’ve never seen anything like this.’ The tone of our public ‘conversation’ (he chose with malice the soft liberal word) Boehner pronounced to be healthy. He only hoped the crowds ‘would be civil’ or somehow would not become ‘too hateful’. But with Cheney at its head – a rebel against the constitution and a man above the laws since 2002 – the popular movement for nullification of the laws of the federal government has again become a force in American life.

Talk radio in the United States is a law unto itself. With the diffusion of authority that has followed wide adoption of the internet, Fox News Radio and Fox TV may be the only major outlets that still command a sizeable fraction of the audience of the old networks. The intuition of Obama and his advisers must have been that any protest in these byways of discourse was right-wing business as usual. That lazy assumption left them unequipped for the gravity of the challenge. They thought the anger would simmer and die down. It did not occur to them that it might simmer and boil. If a threat is seen to spring from a determined opponent, Obama’s inclination is generally to let it go. He will emerge (he trusts) in the long run as the man who takes long views. By the effects of these postponements, however, he is forever giving new hostages to the truckle of compromise; he is put in the position of backing away while his enemies pick up strength; and in a leader whose nature is conciliatory, this means that the declared scope of every undertaking slowly shrinks and recedes. Guantánamo will be closed but not as soon as we said. Israel must recognise the wrong of further expansion of the settlements, but Israel will not be required to stop soon. Healthcare will be passed on some terms or other, but government will not compete with the big insurers; price reductions will be conceived and executed by private consortiums; illegal immigrants will stay uninsured; and even legal immigrants will be prohibited from buying coverage.

There were plenty of people in December 2008 who nursed a prejudice against Obama but were still in search of reasons to back it. Rush Limbaugh was the radio talker who brought those people to a boil. Limbaugh’s style is a mixture of bluster, clowning and poison, in proportions hard to capture without his voice in your ear – a ‘fat’ voice, someone called it, that shifts in a beat from muttering to imprecation. It is always excited, always breathless, yet the pace is unhurried. Part of the appeal lies in a conscious and amiable egotism. ‘Rush Limbaugh,’ he will introduce himself after an ad, ‘with talent on loan from God.’ ‘El Rushbaugh, serving humanity (simply by being here).’ He tells people to believe him and believe no one else: ‘Shown by scientific study to be right 99.1 per cent of the time.’ He was capable, early, of nicknaming Obama ‘Bamster’ (to rhyme with ‘ham’), a semi-affectionate take-down in the parlance of fraternity boys. He nicknamed the health plan, with automatic sarcasm, ‘ObamaCare’. But the tone grew noticeably more bitter by late July. ‘You don’t know how difficult it is for me to say: the president of the United States is lying through his teeth.’ By 5 August it was ominous to the point of open menace: ‘The president of the United States, who is president of all of us, has decided to take aim at over half of the American people as political opponents.’

He was the scourge of Obama in the summer, a palpable challenge to his claim of legitimacy, as much as Cheney was in the spring. On his show of 27 July, Limbaugh could boast without exaggeration: ‘July is the month of horrors for Obama and the Democrats. And I am largely the reason why.’ In the absence of these accusers, the Republican Party would be adrift. With the impetus of such voices, it now stands a chance of winning the midterm elections in 2010. Limbaugh was placed on the defensive some months ago when he said that he wanted President Obama to fail. This seemed an insult to the office as well as the man. It also seemed to suggest a peculiarly self-separating definition of national loyalty. But he justified himself by remarking that Obama’s success would mean the end of America as we knew it. (The president had to fail for the country to succeed.) A link between Cheney and Limbaugh certainly exists. Limbaugh, unlike the other far right hosts, shuns the interviewing of guests, and yet Cheney, who for his part shuns interviews, was the guest of Limbaugh even when he was vice president. More recently Limbaugh has interviewed him in the role of ex officio party counsellor.

When I started taking notes for this piece at the end of the summer, violence was in the air. Has it passed? A protest march was shepherded to the Washington Mall and a monster rally of 100,000 was held on 12 September, the day after the anniversary of the World Trade Center and Pentagon attacks. One message of the demonstration was a rebuke of Obama’s supposed offence against patriotic memory by his naming of 11 September as National Day of Service and Remembrance. Service – except for military service – is heard on the American right as a codeword or moral wedge for socialism: it is to socialism as doubt is to atheism. Probably they wanted something more like Pearl Harbor Day (though that is no longer commemorated). But when was there ever a rational fit between the size of a grievance flourished by an audience like this and a single cause the crowd can name?

‘They’ve taken on too much, too fast,’ Limbaugh said of Obama’s domestic curriculum, ‘and they’re not doing it right.’ That was in late spring; and it was close to common sense. By late summer the mood on the right was reminiscent of the rage against Kennedy in 1962, which passed through November 1963 unchastened, and attained a temporary climax with the nomination of Barry Goldwater as the Republican presidential candidate in 1964. It surfaced again in the run-up to the Clinton impeachment in 1996-97; but the fury of that time was allowed to take a detour through sex mania. Given the emotions he was up against, Clinton may have got off lightly.

Malthus’s doctrine on population and the necessity of many living in adversity, Hazlitt wrote, was a gospel ‘preached to the poor’. Equality in the United States in the early 21st century has become a gospel preached by the liberal elite to a populace who feel they have no stake in equality. Since the Reagan presidency and the dismemberment of the labour unions, America has not known a popular voice against the privilege of the large corporations. Yet without such a voice from below, all the benevolent programmes that can be theorised, lacking the ground note of genuine indignation, have turned into lumbering ‘designs’ espoused by the enlightened for moral reasons that ordinary people can hardly remember. The gambling ethic has planted itself deep in the America psyche – deeper now than it was in 1849 or 1928. Little has been inherited of the welfare-state doctrine of distributed risk and social insurance. The architects of liberal domestic policy, put in this false position, make easy prey for the generalised slander that says that all non-private plans for anything are hypocritical.

Afghanistan is the largest and the most difficult crisis Obama confronts away from home. And here the trap was fashioned largely by himself. He said, all through the presidential campaign, that Iraq was the wrong war but Afghanistan was the right one. It was ‘a war of necessity’, he said this summer. And he has implied that he would accept his generals’ definition of the proper scale of such a war. Now it appears that Afghanistan is being lost, indeed that it cannot be controlled with fewer than half a million troops on the ground for a decade or more. The generals are for adding troops, as in Vietnam, in increments of tens of thousands. Their current request was leaked to Bob Woodward, who published it in the Washington Post on 21 September, after Obama asked that it be kept from the public for a longer interval while he deliberated. The leak was an act of military politics if not insubordination; its aim was to show the president the cost of resisting the generals.

The political establishment has lined up on their side: the addition of troops is said to be the most telling way Obama can show resoluteness abroad. This verdict of the Wall Street Journal, the Post and (with more circumspection) the New York Times was taken up by John McCain and Condoleezza Rice. If Obama declined at last to oppose Netanyahu on the settlement freeze, he will be far more wary of opposing General Petraeus, the commander of Centcom. Obama is sufficiently humane and sufficiently undeceived to take no pleasure in sending soldiers to their deaths for a futile cause. He will have to convince himself that, in some way still to be defined, the mission is urgent after all. Afghanistan will become a necessary war even if we do not know what marks the necessity. Robert Dole, an elder of the Republican Party, has said he would like to see Petraeus as the Republican candidate in 2012. Better to keep him in the field (this must be at least one of Obama’s thoughts) than to have him to run against.

For Obama to do the courageous thing and withdraw would mean having deployed against him the unlimited wrath of the mainstream media, the oil interest, the Israel lobby, the weapons and security industries, all those who have reasons both avowed and unavowed for the perpetuation of American force projection in the Middle East. If he fails to satisfy the request from General McChrystal – the specialist in ‘black ops’ who now controls American forces in Afghanistan – the war brokers will fall on Obama with as finely co-ordinated a barrage as if they had met and concerted their response. Beside that prospect, the calls of betrayal from the antiwar base that gave Obama his first victories in 2008 must seem a small price to pay. The best imaginable result just now, given the tightness of the trap, may be ostensible co-operation with the generals, accompanied by a set of questions that lays the groundwork for refusal of the next escalation. But in wars there is always a deep beneath the lowest deep, and the ambushes and accidents tend towards savagery much more than conciliation.

Sobre o autor

David Bromwich teaches English at Yale. How Words Make Things Happen is out now.

10 de outubro de 2009

Guerra e prêmios da paz

O desanimador prêmio do prêmio Nobel coloca Barack Obama na lista de seus vencedores que prometeram a paz, mas prosseguiram com a guerra

Howard Zinn


Vencedor do Prêmio Nobel da Paz Henry Kissinger (à direita) com Richard Nixon. Fotografia: AP

Tradução / Fiquei consternado quando soube que Barack Obama recebeu o prémio Nobel da Paz. Um choque, realmente, pensar que um presidente que leva a cabo duas guerras receberia um prémio da paz. Até que me lembrei que Woodrow Wilson, Theodore Roosevelt e Henry Kissinger tinham, todos, recebido prémios Nobel da Paz. O comité Nobel é famoso pelas suas avaliações superficiais, por se deixar conquistar pela retórica e por gestos vazios, e ignorar óbvias violações da paz mundial.

Sim, Wilson recebe crédito pela Liga das Nações - esse corpo ineficiente que não fez nada para prevenir a guerra. Mas ele tinha bombardeado a costa mexicana, enviado tropas para ocupar o Haiti e a República Dominicana, e levado os EUA para o matadouro da Primeira Guerra Mundial na Europa, seguramente entre as mais estúpidas e mortíferas guerras.

Certo, Theodore Roosevelt negociou a paz entre o Japão e a Rússia. Mas era um amante da guerra, que participou da conquista de Cuba pelos EUA, fingindo libertá-la da Espanha, enquanto apertava os grilhões estadunidenses sobre essa pequena ilha. E, como presidente, presidiu à guerra sangrenta para subjugar os filipinos, felicitando mesmo um general estadunidenses que tinha acabado de massacrar 600 aldeões indefesos nas Filipinas. O comité não deu o prémio Nobel a Mark Twain, que denunciou Roosevelt e que criticou a guerra, nem a William James, dirigente da liga anti-imperialista.

Ah! sim, o comité achou apropriado dar um prémio da paz a Henry Kissinger, porque ele assinou o acordo final que pôs fim à guerra do Vietname, da qual fora um dos arquitetos. Kissinger, que acompanhou obsequiosamente a expansão da guerra de Nixon com o bombardeamento de aldeias camponesas no Vietname, no Laos e no Camboja. Kissinger, que se coaduna perfeitamente com a definição do criminoso de guerra, teve um prémio da paz!

As pessoas deveriam receber um prémio da paz não com base em promessas que tenham feito - tal como Obama, um eloquente fazedor de promessas -, mas com base em feitos reais no sentido de acabar com a guerra; e Obama tem prosseguido as acções militares mortíferas e desumanas no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão.

O comitê Nobel da paz deveria retirar-se e entregar os seus enormes fundos a alguma organização internacional da paz que não seja assombrada pelo estrelato e pela retórica, e que tenha alguma compreensão da história.

8 de outubro de 2009

Obituário de Giovanni Arrighi

Economista político e historiador do capitalismo global

David Harvey

The Guardian


O scholar italiano da economia política e da sociologia Giovanni Arrighi, que morreu de câncer de aos 71 anos, foi um excelente professor e mentor. Ele será melhor lembrado por sua trilogia de trabalhos que analisam o capitalismo global, O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens dos Nossos Tempos (1994); Caos e Governança no Sistema Mundial Moderno (com sua esposa, Beverly Silver, 1999); e Adam Smith em Pequim: Origens e Fundamento do Século XXI (2007).

Nessas obras, ele identificou quatro ciclos sistêmicos de acumulação na história do capitalismo global. As crises sistêmicas que produziram tais reorganizações, argumentou, foram precedidas por fases de expansão financeira. Apelando ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci, ele forneceu um relato convincente de mudanças de poder dentro do sistema interestatal das cidades-Estado italianas do século XVI para os Países Baixos do século XVII, para a Grã-Bretanha do século 19 e depois para os EUA depois de 1945. Ele abriu um debate fértil sobre uma possível mudança hegemônica futura para a China e para o Leste da Ásia e sobre a compreensão da governança chinesa e sua longa história de dissidência interna.

Giovanni nasceu em Milão no que ele descreveu como uma família "burguesa". Tanto seu pai quanto seu avô dirigiam negócios e, quando o primeiro morreu em 1956, Giovanni tentou, sem sucesso, manter o negócio à tona antes de ir trabalhar na loja em uma das empresas de seu avô. Enquanto isso, estudou economia na Bocconi University, em Milão. Sua tese sobre a eficiência da loja o convenceu de que a teoria econômica que ele havia ensinado era irrelevante para a produção e a distribuição. Esta conclusão foi reforçada quando assumiu o cargo de ensino de economia no Colégio Universitário de Rodésia e Nyasaland em 1963. Seus estudos sobre desenvolvimento e trabalho no sul da África levaram-no aos campos da economia política e da sociologia histórica comparativa. Os compromissos anti-racistas formados lá duraram o resto de sua vida.

Expulso da Rodésia, agora Zimbabwe, em 1966, passou três anos excitantes em Dar es Salaam, no que é agora a Tanzânia, onde conheceu um grupo extraordinário de estudiosos e ativistas como Samir Amin, Walter Rodney, Andre-Gunder Frank, Immanuel Wallerstein e John Saul, todos os quais, juntamente com Giovanni, deveriam fazer grandes contribuições para a compreensão do capitalismo global.

Voltando a uma posição na Itália em 1969, Giovanni ficou enredado na política. Um membro fundador do "Gruppo-Gramsci" que procurou ligar trabalhadores de lojas com intelectuais, ele também promoveu seus estudos do trabalho e desenvolvimento econômico, particularmente na Calábria, no sul da Itália. A Geometria do imperialismo, um artigo seminal sobre a teoria da crise, escrita para os trabalhadores e outra sobre o fornecimento de mão-de-obra na perspectiva histórica foram produtos deste período.

Sua mudança para a Universidade Estadual de Nova York em Binghamton no final da década de 1970 mostrou-se decisiva. Ele se juntou ao grupo da teoria do sistema-mundo no Centro Braudel, fundado por Wallerstein, e escreveu O Longo Século XX.

Em 1998, mudou-se para a Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Maryland, onde presidiu o departamento de sociologia. Ao pesquisar Adam Smith em Pequim, ele reuniu estudantes e estudantes de pós-graduação proeminentes do leste asiático com o objetivo de desafiar as imagens estereotipadas da China e colocar sua longa história em uma mais coerente perspectiva global.

Giovanni teve a extraordinária habilidade de extrair padrões claros das complexidades do redemoinho do histórico. Ele também possuía a integridade e paciência acadêmica para reunir evidências convincentes de seus argumentos, estabelecendo assim sua reputação como um dos maiores sociólogos históricos comparativos. Sua irresponsável cortesia e generosidade em relação a seus colegas (particularmente com aqueles com quem ele discordava) e, acima de tudo, para com seus muitos alunos, vai fazer falta.

História, ele gostava de comentar, nunca é um acordo feito, mais do que os quadros que planejamos para compreendê-lo. Ele tinha, ele uma vez me disse, apenas dois arrependimentos: que ele não tinha aprendido a tocar piano ou conversar em mandarim. No entanto, ele nos ensinou a pensar sobre a China de uma maneira radicalmente diferente e sua capacidade de togar requintadamente nas infinitas variações da história da acumulação capitalista ecoará em nossos ouvidos.

Giovanni deixou Beverly e Andrea, um filho de um antigo casamento.

- Giovanni Arrighi, economista político e sociólogo, nascido em 7 de julho de 1937; morreu 18 de junho de 2009

6 de outubro de 2009

O melhor ministro das relações exteriores do mundo

Este pode ter sido o melhor mês para o Brasil desde cerca de junho de 1494. Foi quando o Tratado de Tordesilhas foi assinado concedendo a Portugal tudo no novo mundo a leste de uma linha imaginária que foi declarada existir 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Isso garantiu que o que viria a ser o Brasil seria...

David Rothkopf


Juan Mabromata/ AFP Photo

Tradução / Este pode ter sido o melhor mês para o Brasil desde, aproximadamente, junho de 1494. Foi quando o Tratado de Tordesilhas foi assinado, garantindo a Portugal tudo no Novo Mundo a leste de uma linha imaginária que se declarou existir a 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde. Isso assegurou que aquilo que viria a se tornar o Brasil seria português e, portanto, desenvolveria uma cultura e uma identidade muito diferentes do resto da América Latina Hispânica. Isso garantiu que o mundo tivesse samba, churrasco, a "Garota de Ipanema" e, por uma série de eventos incrivelmente fortuita, posto que tortuosa, Gisele Bündchen.

Embora tenha levado algum tempo para o Brasil corresponder à máxima dúbia de que era "o país do futuro e sempre o seria", restam poucas dúvidas de que o amanhã chegou para o país, mesmo que ainda reste muito por fazer para superar suas sérias contingências sociais e aproveitar seu extraordinário potencial econômico.

As evidências de que algo novo e importante estava acontecendo no Brasil começaram a se acumular anos atrás, quando o então presidente Cardoso engendrou uma mudança rumo à ortodoxia econômica que estabilizou um país sacudido por ciclos de expansão e queda e assombrosa inflação. Elas ganharam vulto, entretanto, no decurso do extraordinário mandato do atual presidente do País, Luís Inácio Lula da Silva.

Parte desse vigor se deve ao compromisso de Lula com a manutenção dos fundamentos econômicos lançados por Cardoso, uma manobra política corajosa para um líder trabalhista de longa data que pertence ao Partido dos Trabalhadores, até então na oposição. Parte se deve à sorte, uma mudança global do paradigma energético que ajudou os trinta anos de investimento brasileiro em biocombustíveis a começar a valer a pena - e de novas e importantes formas -; descobertas de jazidas de petróleo de grande porte no mar territorial brasileiro; e a demanda crescente da Ásia que permitiu ao Brasil se tornar um líder nas exportações agrícolas globais e assumir o papel de "provedor da Ásia". Porém, muito dessa pujança se deve à grande tarimba dos líderes brasileiros em aproveitar uma conjuntura que muitos de seus predecessores teriam provavelmente desperdiçado.

Dentre esses líderes, muito do crédito vai para o presidente Lula, que se tornou meio que um astro do rock no cenário internacional, ao amalgamar energia, iniciativa, carisma, intuição incomum e sensatez de forma tão eficaz que sua falta de educação formal jamais foi um empecilho. Algum mérito vai para membros de seu gabinete, como sua ministra-chefe da Casa Civil Dilma Rousseff, antes titular das Minas e Energia, que se tornou uma chefe de gabinete durona e possível sucessora de Lula. Mas acredito que um bom quinhão deva caber a Celso Amorim, que orquestrou uma transformação do papel mundial do Brasil quase sem precedentes históricos. Ele é o chanceler de Lula desde 2003 (tendo ocupado o cargo nos anos noventa), mas creio ser possível demonstrar que ele é, atualmente, o ministro do exterior mais bem sucedido do planeta.

É impossível identificar apenas um momento crucial nos esforços de Amorim em metamorfosear o Brasil, de poder regional dormente de proeminência internacional questionável, em um dos mais importantes protagonistas do cenário global, reconhecido por consenso como possuidor de um papel de liderança inaudito. Pode ter sido quando o ministro teve um papel central em arquitetar a rejeição, pelos países emergentes, de uma jogada de poder do tipo "nada de novo", por parte dos Estados Unidos e da Europa, durante a rodada de tratativas comerciais de Cancun em 2003. Pode ter sido o modo arguto como os brasileiros têm usado distinções como sua liderança em biocombustíveis para estabelecer novas pontes de diálogo e influência, seja com os Estados Unidos, seja com outras potências emergentes. Certamente, esse processo envolveu a determinação de Amorim em abraçar a idéia de converter os BRICs, antes apenas um acrônimo, numa importante instância geopolítica de colaboração, trabalhando com seus colegas na Rússia, na Índia e na China para institucionalizar o diálogo entre os países e harmonizar suas declarações. (Pode-se discutir a afirmativa de que o BRIC que mais ganhou com essa aliança seja o Brasil. Rússia, China e Índia merecem lugar à mesa em função do poderio militar, do peso demográfico, da força econômica ou dos recursos naturais. O Brasil possui todos esses atributos... mas em menor grau que os outros.) Também envolveu outras incontáveis peças de estratégia diplomática, que vão dos laços aprofundados e estreitados do Brasil com países como a China e o fomento tanto do fluxo de investimentos como de uma reputação de porto comparativamente seguro na turbulência econômica global; à afinidade mútua entre o novo presidente dos Estados Unidos e seu colega brasileiro - a ponto de o primeiro incentivar o último a servir de mediador, por exemplo, com os Iranianos. Concorde-se ou não com cada um de seus lances em searas como Honduras ou a OEA na questão cubana, o Brasil continua a desempenhar um papel regional importante, ainda que seja evidente que seu foco se deslocou para a cena global.

Nada ilustra tão bem a distância percorrida pelo Brasil ou a eficácia do time Lula-Amorim do que os eventos das últimas semanas. Primeiro, a decisão pelos países do mundo de descartar o G8 e abraçar o G20, assegurando ao Brasil um lugar permanente na mais importante mesa de negociações do mundo. Depois, o Brasil se tornou o primeiro país na América Latina a ganhar o direito de sediar os Jogos Olímpicos. O Financial Times de ontem noticiou que "A Ásia e o Brasil lideram o crescimento na confiança do consumidor", um reflexo da reputação que o País tem vendido com sucesso (com a maior parte do mérito indo para o ressurgente setor privado brasileiro). Acrescente-se a isso as reportagens desta semana sobre o encontro FMI-Banco Mundial em Istambul, que demonstram, com a concordância em mudar a estrutura do Fundo Monetário Internacional, uma institucionalização ainda maior do novo papel do Brasil. Segundo o Washington Post de hoje, "As nações também concordaram, em caráter preliminar, em reformular a estrutura de votos nacionais do Fundo, prometendo um arcabouço que aumente a representatividade de gigantes emergentes como o Brasil e a China por volta de janeiro de 2011."

Nada mal para alguns dias de trabalho. E conquanto seja o Ministério da Fazenda brasileiro que tenha assento no encontro de Istambul, o arquiteto inconteste desta notável transformação do papel do Brasil é Amorim.

Muito trabalho resta por fazer, é claro. Parte dele tem a ver como o novo papel que foi moldado. O Brasil quer um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e um papel de liderança maior em outros organismos internacionais. Pode ser que os consiga, mas tem de manter seu crescimento e sua estabilidade para chegar lá. Ademais, o Brasil parece inclinado a minimizar ameaças regionais tais como a venezuelana. (Brasileiros tendem a tratar com condescendência os vizinhos ao norte quase tanto quanto os amigos argentinos ao sul... e assim eles subestimam a habilidade que têm homens como Hugo Chávez de cometer grandes estragos.) E eles terão uma eleição em breve que pode mudar o elenco de líderes e, naturalmente, mudar a atual trajetória de várias maneiras - boas e ruins.

Mas é difícil achar outro ministro das relações exteriores que tenha orquestrado com tanta eficácia uma transformação de tal magnitude do papel internacional de seu país. E é por isso que, se me pedissem hoje que depositasse meu voto para melhor chanceler do mundo, ele seria provavelmente para aquele filho nativo de Santos, Celso Amorim.

David Rothkopf é professor visitante na Escola de Relações Internacionais e Públicas da Universidade de Columbia e pesquisador visitante no Carnegie Endowment for International Peace. Seu último livro é The Great Questions of Tomorrow. Ele é colaborador de longa data da Foreign Policy e foi CEO e editor do FP Group de 2012 a maio de 2017. Twitter: @djrothkopf

1 de outubro de 2009

Jameson e forma

Identificando o estilo literário de Fredric Jameson como uma de suas realizações marcantes, Eagleton pergunta se suas ênfases formais também servem para evitar questões de conteúdo: moralidade, sexualidade, subjetividade.

Terry Eagleton

New Left Review


Tradução / Não há a menor sombra de dúvida de que Fredric Jameson é de fato não apenas um crítico eminente, mas um dos mais formidáveis, apto a ocupar seu lugar numa lista de nomes ilustres que vai de Edmund Wilson, Kenneth Burke, F. R. Leavis e Northrop Frye a I. A. Richards, William Empson e Paul de Man. Mesmo isso é limitar a apreciação a colegas anglófonos, ao passo que o verdadeiro campo de comparação tem amplitude muito maior. Nenhum acadêmico ou especialista na área dos estudos literários hoje em dia é páreo para a versatilidade de Jameson, sua erudição enciclopédica, brio imaginativo ou prodigiosa energia intelectual. Numa época em que a crítica literária, como tantas outras coisas, sofreu uma espécie de declínio e em que, de maneira desoladora, pouquíssimas figuras excepcionais ainda permanecem em campo, Jameson agiganta-se no horizonte como um bastião remanescente de uma época cultural de maneira geral mais admirável, um refugiado da era de Chklóvski e Auerbach, Jakobson e Barthes e que é, não obstante, absolutamente contemporâneo.

Mencionar o nome de Barthes, todavia, é indicar um modo pelo qual Jameson leva vantagem com relação a quase todos os seus confrères. Pois ele é certamente um dos mais requintados estilistas críticos numa era em larga medida desprovida de estilo. De acordo com a definição de Perry Anderson, Jameson é pura e simplesmente “um grande escritor”.1 Vejamos, por exemplo, este impressionante trecho de prosa de um ensaio intitulado “Towards a libidinal economy of three modern painters” [Para uma economia libidinosa de três pintores modernos], que integra a coletânea recém-publicada do autor, The Modernist Papers [Os papéis modernistas]. Jameson está examinando o que ele chama de “plano” ou “falta de relevo” nas pinturas de De Kooning, o que para ele significa “extensões de cor pintada ao longo das quais o olho desliza sem erguer sequer uma ondulação”:

É preciso imaginar, creio eu, um processo de arrombamento que se apodera da linha propriamente dita, emaranhando-a, como nos esboços a carvão, fazendo-a tremer e vibrar, despedaçando-a ritmicamente em sombreados de lápis, como tantos sobretons. Aqui alguma compulsão interna da linha, algum nervosismo primitivo, faz com que ela queira romper seus limites bidimensionais e produzir, a partir de sua própria substância interior, manchas que cooptam e se antecipam a seu adversário primal, a própria pincelada (...) Em De Kooning a linha se transforma, esparrama-se, alastrando-se em espinhaços e regatos de tinta, distintos ainda que paralelos, refratando a substância original em filamentos que têm diferentes densidades, alguns montanhosos e eriçados, outros escorrendo e gotejando tela abaixo em lágrimas que já não se parecem com as marcas e vestígios de maladresse. A linha é agora pincelada e cor; seu novo oposto estrutural, o “plano” é algo que acontece com esta última, mais do que um lugar de liberdade e de expressão particular e pessoal por seu próprio mérito.2

Alguns leitores talvez considerem isso um floreio exagerado: “literário” e extravagante demais para ter seu olho genuinamente fito no objeto visual. A minha própria sensação é a de que, como em todos os melhores momentos da escrita jamesoniana, essas linhas beiram uma consciência portentosa e pomposa demais acerca de seu próprio brilhantismo, desfraldando-se com todo o drama e entusiasmo crescentes do esplêndido período proustiano embora também com algo de seu tato e finesse, se não exatamente seu ar de singeleza e desafetação ou lucidez civilizada. O leitor sente, o que não ocorre com quem lê Proust, que está em ação aqui uma turbulenta energia linguística que, uma vez correndo desenfreada e incontrolável, poderia gerar alguns efeitos perturbadoramente frenéticos, até certo ponto como a pincelada de De Kooning ameaça explodir e transbordar seu conteúdo por toda parte. De fato, sugeri alhures que parte do perverso fascínio de Jameson por Wyndham Lewis –– o “brutal e entediante Wyndham Lewis”, nas palavras com que Leavis, de maneira bastante apropriada, se referiu a ele –– talvez se explique por detectar na agitada e convulsa prosa de Lewis uma espécie de caricatura selvagem ou horripilante versão da feição que seu próprio estilo literário poderia ter caso se desvencilhasse de todo decoro.3 No excerto que acabei de citar, todavia, a prosa de Jameson está em excelente forma, vigorosa o suficiente para arriscar o ocasional toque de inflação retórica sem o receio de perder sua formosura ou seu ímpeto. Se é que há alguma inflação em ação aqui, está no modo como a linguagem se empenha para projetar essas manchas e gotejos de tinta em alguma tela mais ampla de significado estrutural, sem prejuízo de sua especificidade sensória. A decifração das relações entre borrões de tinta está em consonância com a interpretação das relações entre certas forças e ideias conflitantes.

Veremos mais tarde como essa realização estilística, em que o sensível e o inteligível mesclam-se e confundem-se constantemente, é também na concepção de Jameson uma solução para o que ele julga ser o dilema central do modernismo. Enquanto isso, podemos observar que essa é também uma espécie de solução medíocre qualquer para o conflito entre a cultura pós-moderna com a qual segundo Jameson temos ao menos de conviver e a alta arte modernista na qual uma parte importante dele ainda se sente à vontade. O modernismo, ele comenta aqui, ainda gira em torno da linguagem, ao passo que o pós-modernismo, de modo geral, desloca o foco sensório do verbal para o visual. Ao escrever em estilo do alto modernismo –– de maneira tão indisfarçável –– acerca do pinturesco, então, o autor de Marxismo e forma4 e o deslumbrante crítico de cinema e de arquitetura que viria à tona mais tarde mostram-se, secretamente, em consonância.

Materialidade e significado

Ainda que o estilo de Jameson seja ímpar e original de uma maneira resplandecente, isso também deve significar, na opinião do próprio Jameson, que beira perigosamente uma forma de reificação –– pois é exatamente o que ele pensa do culto modernista do estilo individual, do qual o próprio Jameson é um herdeiro tardio. Mas se o estilo na escrita modernista pode tornar-se uma espécie de fetiche em seu hermetismo e falso imediatismo, bem como na forma como suga para dentro de si as energias do mundo a ponto de tornar-se por seu próprio mérito uma espécie de coisa pseudoanimada, é precisamente isso o que não ocorre com a escrita de Jameson, que busca à sua maneira dialética colocar em contato íntimo o imediatismo sensório e a reflexão conceitual.

Há no fragmento que citei anteriormente um extraordinário drama em operação, à medida que a tela de De Kooning ganha vida à guisa de uma grande guerra de forças antagônicas; e esse drama é encenado em outros termos nas próprias frases em si, que, como amiúde em Jameson, se estendem implacavelmente até que, justo no momento em que o leitor julga que sem dúvida elas devem ter ficado sem fôlego e se veem incapazes de seguir adiante e disparar uma única nova oração subordinada que seja, dão um último suspiro e, triunfantes, arrancam de suas profundezas aparentemente inexauríveis mais algumas afirmações inventivas e engenhosas. O excerto apresenta-nos também uma versão literal do modo como no próprio Jameson as ideias tornam-se materializadas, tal qual em De Kooning os conceitos se espessam e adensam em riscos de tinta, e o cabo de guerra e a tensão de ideias podem ser sentidos nas pontas dos dedos. Esse entretecimento de materialidade e significado é algo que interessa um bocado a Jameson, o materialista cultural, bem como é algo que a própria escrita de Jameson realiza. Poético na textura mas discursivo na estrutura, seu estilo torna-se, assim, uma alegoria de suas próprias preocupações.

Jameson revela, além disso, outra inesperada afinidade com Proust em seu extraordinário talento para dotar as ideias de um corpo sensório, traduzindo questões conceituais em termos visuais, dramáticos ou corpóreos. Ele não está muito interessado em análise lógica rigorosa –– que funciona numa escala por demais abstrata e maçante para o épico modo de pensar de Jameson. Há no estilo jamesoniano uma qualidade viciante, na medida em que seus períodos mal acabam de esgotar uma oração e já se põem a buscar incansavelmente a seguinte. Parte do perverso fascínio que sua escrita exerce está no fato de ter problemas em saber onde parar. Suspeita-se que parte do encanto que Jameson sente pelo marxismo, psicologicamente falando, é que a totalidade –– substituindo, entre outras coisas, o que ele vê como o absoluto perdido do modernismo –– é um limite no qual até mesmo a sua fome pantagruélica com relação a toda espécie de experiência deve finalmente se abrandar e cessar, um desejo que, em sua feição faustiana, não será satisfeito com nada menos que isso. Se a densidade semântica, as inflexões retóricas e o tom magistral da prosa jamesoniana são em geral “europeus”, o conteúdo eclético da escrita, em sua entusiasmada receptividade a quase qualquer tipo de material, é mais estereotipicamente americano.

É parte do prazer do leitor dos textos de Jameson que sua sintaxe pareça sempre manter o equilíbrio, embora perpetuamente em risco de desmoronar sob a tumultuada e febril produtividade de ideias com que tem de lidar. Em outras palavras, a forma preserva o controle e leva a melhor sobre o conteúdo, embora parte de nosso deleite diante dessas sensacionais montanhas-russas de frases é que ela mal dá conta de fazê-lo. O leitor, por assim dizer, se segura na cadeira enquanto vai sendo arrastado no íngreme aclive de uma extensa oração subordinada, depois balança precariamente em seu vértice durante um segundo antes de mergulhar no vertiginoso abismo de mais uma acidentada construção sintática, desfrutando com certo frisson de sobressalto os solavancos e a perspectiva de que pode acabar descarrilando por completo, ainda que seguro e confiante por saber que será entregue são e salvo em seu destino. O próprio Jameson considera que esse esforço para subjugar uma massa de materiais –– desajeitada e de difícil manejo –– de modo a lhe dar formato coerente é um traço característico do modernismo, escrevendo sobre a modernista “tentativa de reabsorver e reacomodar a contingência” –– “a contragosto, busca sempre transformar esse conteúdo escandaloso e irredutível em algo novamente parecido com significado”.5 Nesse sentido, também, o estilo de Jameson é alegórico dos dilemas com que lida, e propicia algo como uma solução implícita para eles.

Seria difícil imaginar Jameson escrevendo um extenso ensaio de análise política ou econômica, direto e convencional. O que o fascina, como uma espécie de fenomenologista da mente, é a empreitada de reinventar imaginativamente ideias, à medida que a prosa jamesoniana demora-se sobre seu sabor e textura. Na escrita de Jameson as ideias vêm saturadas de sensibilidade, e a sensibilidade em questão é tão marcante e notável quanto a de um poeta ou romancista excepcional. Jameson não é, como George Steiner, um hedonista do intelecto: o valor de verdade e a força prática das ideias não são de forma alguma irrelevantes para ele. A força de Jameson, contudo, não está em forjar novos conceitos –– embora ele o tenha feito, é claro ––, mas sim em nos propiciar correlatos objetivos imaginativos para o nosso conhecimento. Na primorosa expressão de Shelley acerca da tarefa do poeta, Jameson nos possibilita “imaginar aquilo que sabemos”. Um exemplo disso pode ser encontrado no último capítulo de Marxismo e forma, em que ele descreve o pensamento dialético como

pensamento à segunda potência: uma intensificação dos processos de pensamento normais de modo que uma renovação de luz arrebata o objeto de sua exasperação, como se em meio a suas perplexidades imediatas a mente tivesse tentado por pura força de vontade, por decreto arbitrário, erguer-se vigorosamente a si mesma por meio das alças de suas próprias botas (...) Esse é de fato o momento mais delicado no processo dialético: aquele em que todo um complexo de pensamento é alçado por meio de uma espécie de alavanca interior a um patamar mais elevado, em que a mente, numa espécie de troca de marchas, agora se vê disposta a tomar como resposta o que tinha sido uma pergunta, posicionando-se do lado de fora de seu esforços prévios de tal forma a considerar-se dentro do problema.6

Estilo como solução

Um dos temas centrais de The Modernist Papers é a ruptura entre ser e significado, existência e significação, que o livro enxerga, corretamente, como o aspecto que caracteriza o modernismo como um todo. Outrora os significados eram inerentes às coisas, feito unha e carne; agora, como o Ulisses de Joyce, o mundo parece cindido entre pedaços de matéria puramente contingentes e esquemas abstratos mas vazios. A síntese kantiana, em suma, deixou de fazer seu trabalho. O suspeito de sempre, a mercadoria, a um só tempo um fetichizado naco de material e uma forma de troca puramente imaterial, pode ser entrevisto à espreita na raiz do grande cisma. Embora o livro não o diga exatamente com todas as letras, é como se a sociedade capitalista fosse uma tosca obra de arte, sendo “ruim” universalmente e particularidade “ruim” juntas. O mercado é composto tanto por apetite como por abstração –– daquilo que não é capaz de ir além do brutalmente sensual e específico, e daquilo que não é capaz de tolerar em sua constituição nenhuma partícula de matéria. Pode-se alegar que o que permite a Marx rejeitar essa dualidade é o fato de que ele é ao mesmo tempo um humanista romântico, com paixão pelo sensório particular, e um filho do Iluminismo universalista.

Na concepção de Jameson, o absoluto que o modernismo consegue apenas vislumbrar pelo canto do olho é precisamente essa extinta unidade de forma e conteúdo; todavia, seria igualmente plausível afirmar que uma parte da arte modernista não busca tal unidade, mas sim a forma pura. Jameson considera acertadamente o símbolo romântico como uma solução duvidosa e desonrosa para esse problema. Quanto ao realismo literário, que em sua versão hegeliana ou lukácsiana também era capaz de discernir o inteligível dentro do sensível, apreendendo o típico no individual, essa fusão particular dos dois domínios Jameson vê, com rara perspicácia, como algo historicamente solapado pelo (entre outras coisas) imperialismo, à medida que a vida da nação metropolitana é cada vez mais determinada por forças que estão além do alcance de seu escopo cognitivo, e que portanto já não podem ser totalizadas em estilo realista clássico. A tradução que o próprio Jameson realiza de conceitos em imagens materiais é uma outra maneira de reconciliar o sensível e o inteligível. A escrita em sua forma mais flexível, como Adorno também sabia, resgata a contingência de significado sem que por meio disso acabe exaurindo suas forças até matá-la. Se recruta o particular para o geral, o faz de maneira tal que lhe permite oferecer alguma resistência. Ademais, propicia esse retorno da alienação não apenas como uma imagem ou epifania, mas como prática e processo, na faina material e no prazer da escrita em si. Escrever, aqui, é uma imagem de labuta não alienada; mas pode também proporcionar um antegozo de emancipação na medida em que é “uma figura simbólica da pura atividade e da produção como tal”.7 É, por assim dizer, uma imagem da libertação das forças produtivas, uma vez que o próprio estilo de Jameson torna-se alegórico de uma futura abundância material em sua quase inesgotável profusão.

Corporificações

Como tal, o próprio estilo torna-se utopia política. No registro mais antigo e coletivo de retórica, o corpo já é um significante: a sensação física, argumenta Jameson, “é secretamente transparente, e sempre significa alguma outra coisa”.8 Ele poderia ter acrescentado que o que a era moderna conhece como estética surge como uma derradeira tentativa de codificar a sensação desse modo, a fim de tornála inteligível. Como uma espécie de lógica dos sentidos, busca alguma ordem racional na existência sensória.9 O modernismo surge então das ruínas desse sistema semiótico, à medida que a percepção deixa de significar conforme certas convenções compartilhadas e o corpo torna-se, por conseguinte e em conformidade, opaco. O nascimento do “estilo” é, portanto, a emergência do corpo privatizado, e ambos são, de diferentes maneiras, reificações. Seria possível, pois, completar essa narrativa sugerindo que a escrita, pelo menos a da variedade poética e jamesoniana, é signo e corpo juntos, e por isso pode figurar como uma transcendência do que Jameson vê como as várias soluções falsas do modernismo para o divórcio entre ambos.

Roland Barthes, em O grau zero da escrita, comenta que o estilo literário é uma empreitada corpórea, que mergulha diretamente nas profundezas viscerais do corpo; e Jameson também associa o estilo ao corpo. De fato, numa extraordinária metáfora vampiresca, ele fala ao longo de algumas páginas (frustrantemente obscuras) sobre A montanha mágica de Thomas Mann, com seu retrato do corpo enfermo, do modo pelo qual a leitura “pode beber o sangue do corpo, por assim dizer (...) e tomar emprestada a concretude deste último de modo a dotar-se de densidade”.10 O lugar disso, entretanto, é junto ao que Jameson vê como o corpo monádico, narcisista e egocêntrico do leitor moderno, afastado do mundo como a obra de arte modernista e recolhido a uma certa distância privada e contemplativa. Contudo, da mesma forma como o estilo é tanto uma linguagem pública como um idioma pessoal, também Jameson prefere considerar o corpo menos como um interior vedado do que como uma espécie de metáfora para o espacial. Jameson está, portanto, apto a vinculá-lo a outros sistemas espaciais, por exemplo os geopolíticos, que, dado seu status abstrato, são inteligíveis em vez de sensíveis. Em The Modernist Papers, Jameson faz isso acima de tudo no caso de Rimbaud, formulando uma ousada analogia entre a “fermentação” de todo um sistema geopolítico e a do corpo adolescente. O corpo deixa, assim, de ser um dos dois polos de um mundo dividido –– a parte material, privada ou invididual, em comparação com a geral e conceitual –– e se torna, em vez disso, um meio de reduzir essa diferença, preencher essa lacuna. Como tal, resiste ao que Jameson vê como redutibilidade somática do modernismo, com seus inefáveis fragmentos de sensação dos quais o significado foi expulso. O modernismo apresenta um problema para o qual corpo e estilo são, ambos, soluções.

Na obra de Michael Foucault, o corpo e seu prazeres acabam por fazer as vezes da categoria do sujeito, pelo qual Foucault nutre particular aversão. Tal deslocamento não é exatamente o que se dá no caso de Jameson, que não considera o sujeito uma forma de autoencarceramento; entretanto, por vezes sua repugnância pela “interioridade” não difere muito da do próprio Foucault. Jameson, também, revela uma curiosa hostilidade com relação à subjetividade “profunda”, embora ele mesmo demonstre uma razoável quantidade dela. Com uma intensidade moral atípica desse flagelo da moralidade, sem falar num vago eco da estética soviética da década de 1930, ele menospreza e rejeita por “pernicioso” todo o projeto modernista de obstruir a objetividade bloqueando-a “contra uma agora morta e inerte objetividade: gerando todo um novo campo em que toda uma nova literatura de interioridade e introspecção pode florescer”.11 Em outra parte de The Modernist Papers, Jameson chega a tachar de puramente ideológica toda a problemática do sujeito e do objeto, posição estranha para um autor cuja obra invoca com tanta frequência o conceito de reificação. A ideia do sujeito expressivo, ele pondera, já é arcaica no tempo de Baudelaire.

Ainda assim o modernismo é tanto uma fuga do sujeito quanto um chafurdar em suas profundezas, e há um sentido em que isso, também, é encenado no estilo literário de Jameson. A esse respeito, o que é impressionante em sua escrita é a maneira como combina uma intensa vida dramática e afetiva com uma curiosa espécie de impessoalidade, até mesmo anonimato, em que essas guinadas retóricas e gestos emotivos parecem pertencer antes à escrita propriamente dita e não a algum sujeito expressivo por trás dela. Esse sujeito está tão morto para Jameson como para Baudelaire, o que pode ser parte do que atrai Jameson para um modernismo isento de sujeito. Todavia ele não está, como certo pós-modernismo, pronto para prescindir do “afeto”, que se separa do sujeito e em vez disso se transfere para a linguagem em si. Vem à mente a distinção de Eliot entre “emoção” –– a matéria crua na raiz do poema –– e “sentimento”: as qualidades puramente textuais dentro das quais ela é refinada. Também vem à lembrança a visão bradleyana de Eliot de um mundo no qual fervilham sensações que, todavia, não pertencem à consciência de alguém em particular. Há em ação aqui, em outras palavras, uma espécie de afetividade desprovida de sujeito, que permite ao autor levar uma existência vicária dramática e emocional em sua escrita, enquanto permanece, em termos psicológicos, em larga medida oculto. Pode-se alegar que ele é modernista na medida em que emprega um estilo elevado, singularmente individuante, mas seu estilo é entre outras coisas um modo de automascaramento; e que ele é um pós-modernista porque é fascinado pela ideia de ver-se livre da tirania da subjetividade profunda. O que ambos os objetivos assumidos têm em comum é a perspectiva de uma fuga do sujeito –– seja camuflando-o ou abolindo-o.

Sujeitos anônimos

Jameson encontra algo da ideia eliotiana de impessoalidade em Baudelaire, observando que “à medida que o putativo ‘sentimento’ ou ‘emoção’ vai sendo lentamente apresentado em palavras e expressões, mostrado em versos e estrofes, passa por uma transformação a ponto de ficar irreconhecível, torna-se perdido para o léxico psicológico mais antigo”; “conforme é transmutado em um texto verbal, deixa de ser psicológico ou afetivo em qualquer acepção da palavra, e agora existe como outra coisa”.12 Pode-se detectar tanto um toque de alívio como de inadequada precipitação na frase com que Jameson arremata o comentário: “Desse modo, com essa menção, agora deixaremos para trás a psicologia”. Supomos que não é algo a ser despachado na lata de lixo da história de maneira tão sumária assim.

O problema é chegar além do estilo fetichizado ou frase de arte do modernismo sem tombar em algum vazio anonimato pós-moderno. Em outros termos (ainda que não tenham sido os usados pelo próprio Jameson): o vívido fragmento sensório ou o estilo extremamente trabalhado e ornamentado do modernismo são resistências à reificação –– a um mundo de forças impessoais, determinantes ––, mas também são reificações em si mesmas. É exatamente isso que Jameson registra de forma tão magnífica em sua análise da ficção de Conrad em O inconsciente político – a narrativa como ato socialmente simbólico –– o fato de que o impressionismo subjetivo do estilo do autor é simplesmente a outra face de uma espécie de positivismo, para o qual a realidade é fixa e inerte. O papel do primeiro é propiciar um grau de compensação utópica para as degradações do último, cobrindo com uma camada de brilho superficial um reino de objetos mortos e sem sentido. Essa é, então, uma falsa solução para um dilema para o qual o estilo de Jameson fornece uma solução verdadeira, buscando, o que de fato ocorre, ser tanto afetivo quanto impessoal. Raras vezes uma forma de escrita crítica foi ao mesmo tempo tão impertinente e importuna e inexpressiva –– tão repleta de floreios teatrais e emotivos, ainda que revelando tão pouco do sujeito. Pode-se objetar que essa reticência pertence simplesmente aos protocolos da escrita acadêmica, sem nenhum outro significado além desse. O que é diferente do funcionamento desse tipo de escrita, contudo, é o senso de uma paixão fortemente subjetiva deslocada dentro da própria linguagem. Também é verdade, como veremos mais tarde, que o sujeito da escrita raramente se revela na forma de juízos pessoais. Na obra de Jameson –– como em, digamos, Edward Said –– há pouco do senso de uma voz defendendo de forma passional uma posição pessoal.

Um fetichismo de estilo deve claramente ser evitado; mas também deve ser evitado o seu oposto, uma espécie de escrita automática que parece ter sido inteiramente desatrelada de qualquer sujeito e que simplesmente rodopia sozinha num vazio. É assim que Jameson vê a linguagem de Ulisses –– como palavras que ninguém está falando tampouco pensando, mas que numa espécie de “textualização autística” existem simplesmente como unidades impressas numa página. Não é acidente que o estupendo romance de Joyce está repleto de fofocas e boatos, que também são declarações sem fonte de origem. Mas há também o tipo de voz anônima coletiva que Jameson encontra no povo dos camundongos de Kafka, testemunhas “objetivas sem a menor falta de empatia”, que portanto combinam impessoalidade e afeto, e cujo anonimato não é de ordem despersonalizada, mas sim comunal.13

Há, contudo, algo da espécie “ruim” de anonimato no próprio Jameson, nos momentos menos impressionantes de sua escrita. Em sua melhor forma, o estilo de Jameson tem a agilidade de um pugilista peso-pesado capaz de mover seu corpanzil com extraordinária desenvoltura. Em seus momentos mais fracos, há um surpreendente contraste entre a sensibilidade das percepções individuais e o movimento implacável e elefantino das frases em si. De certo modo Jameson está aprisionado dentro dos limites de seu estilo bem como corporificado nele, incapaz de escapar de sua imponente mas por vezes bastante enfadonha postura retórica para redigir uma frase mordaz, contar uma piada, mudar de registro ou adotar um tom coloquial. Falta a seu estilo margem de manobra. Jameson seria um excelente romancista, mas um pavoroso dramaturgo. Se a sua escrita é inexpressiva em um sentido positivo, refutando o mito de dar voz a uma experiência pessoal direta e não mediada, pode também ser inexpressivo em um sentido mais pejorativo, tanto uma camisa de força retórica quanto um meio sinuoso. Mais tarde veremos que, como uma forma de defesa psíquica, pode também ser uma armadura e uma carapaça.

Amoralidade?

Em um determinado momento de The Modernist Papers, Jameson registra sua crença de que as categorias com as quais vem lidando (subjetivo e objetivo, psicanalítico e social e assim por diante) são, em todo caso, artificiais. De certa forma isso é como afirmar que as guerras por territórios possuem somente um grau ínfimo de realidade, uma vez que o planeta propriamente dito não reconhece fronteiras. Mesmo que sejam teoricamente infundadas, tais distinções são bastante reais. Mas a bem da verdade não são teoricamente infundadas, e não podem ser amalgamadas da maneira tão suave como Jameson imagina. De fato, a afirmação em si pode ser lida como um gesto defensivo, parte de sua aversão pelo fenômeno todo da subjetividade. O sujeito não é simplesmente a outra face do objeto.

Conforme aprendemos com a obra de Slavoj Žižek, é precisamente isso que desestrutura e desfaz a disposição objetiva das coisas, é isso que está deficiente, torto, importuno, deslocado e descojuntado. É a negação dessa dualidade que é ideológica, não sua asserção.

A suspeita de Jameson com relação ao “profundo” sujeito individual do modernismo anda de mãos dadas com sua animosidade para com a moralidade. Há em The Modernist Papers uma inesperada referência a Vice [vício, imoralidade], mas no fim das contas fica claro que é um erro de impressão para Vico. Subjetividade, moralidade, a vida pessoal ou interpessoal: em Jameson esses conceitos são pontos nevrálgicos, lugares onde a temperatura emocional da prosa é momentaneamente elevada e, como tal, suspeita-se, sintomática de algo a ser evitado a todo custo. Sem dúvida essa é uma das razões da afeição e inclinação de Jameson por alguns dos produtos mais impessoais do pós-modernismo, a despeito de sua convicção de que tal cultura representa o tardio florescimento de um sistema político a que ele se opõe. Já que em outro livro divergi da aversão de Jameson pela moral, não tenciono ensaiar esse argumento aqui.14 Quero, pelo contrário, sugerir a relevância dessa alergia à ética para questões de forma e estilo em sua obra. O ponto essencial em jogo aqui é uma questão de prática crítica, não de perspectiva filosófica. Pode-se afirmar que a forma opera na obra de Jameson entre outras coisas como uma espécie de defesa psíquica contra o ético, no sentido do conteúdo emocional, psicológico e comportamental.

Mas o problema crucial não é apenas se Jameson deveria dar mais crédito ao ético; é, antes, que sua recusa em fazê-lo resulta em uma inadequada e desmedida rejeição do aspecto empírico ou fenomenal da obra literária. De maneira semiestruturalista, a presença empírica da obra é agrupada e classificada com excessiva rapidez. Quem lê os ensaios sobre Thomas Mann em The Modernist Papers, com suas maravilhosamente inovadoras investigações sobre ironia, alegoria, mimese, polifonia, gênero, estrutura narrativa e assim por diante, fica perplexo diante da constatação de que Jameson diz muito pouco sobre o que o leitor comum, mesmo o leitor comum de esquerda, vai de fato levar de A montanha mágica e Doutor Fausto. O que aconteceu com o conteúdo explícito desses romances –– com os temas de doença, sofrimento, amor, mal, insensatez e absurdo, humanismo, Eros, mortalidade, barbárie, sacrifício? Por que Jameson parece tão avesso e relutante em atacar de frente essa temática tão trivial, dizendo-nos o que pensa acerca de questões tão importantes, qual sua posição, que juízos ele mesmo faria sobre os vários temas urgentes que vêm à baila? Ao longo de The Modernist Papers, bem como em outras partes de sua obra, Jameson lida com essas questões de maneira algo esnobe e soberba, referindo-se com certo desdém às interpretações-padrão de Kafka (grosso modo, edipismo, burocracia e religião) e propenso, já em O inconsciente político, a descartar, com presunçosa petulância, noções como personagem, evento, enredo e significado narrativo, que desprezou como uma porção de “falsos problemas”.15

Limites do historicismo

O modo esquivo como Jameson contorna esses fenômenos é duplo: é formalizar de um lado e, de outro, historicizar. Essas duas operações podem em seguida ser conciliadas, em teoria e de maneira ideal, no que Jameson, imitando o exemplo do linguista Louis Hjelmslev, chama de “conteúdo da forma”. Se é possível revelar que a forma por si só secreta conteúdo histórico ou ideológico –– e mostrar como isso se dá talvez seja a maior façanha de Jameson ––, então pode-se abrir uma passagem desde a forma ou estrutura até a história ou política que não tenha de percorrer o “conteúdo” compreendido em seu sentido moral, empírico ou psicológico. Em sua feição menos louvável, esse método resulta em algo como o paradoxo que o próprio Jameson detecta na poesia de Wallace Stevens: “uma espantosa riqueza linguística por um lado e, por outro, um empobrecimento ou oco de conteúdo”. Tal método pode também resultar menos em historicizar o conteúdo do que relegar o conteúdo a um mero momento histórico passageiro. Pode envolver um deslocamento ou supressão do conteúdo empírico em vez de uma reescrita do conteúdo –– uma reescrita que envolveria dar-lhe mais crédito do que Jameson geralmente está preparado para fazer. Como a maioria dos historicistas marxistas, Jameson imagina que devolver traços permanentes da condição humana, tais como doença ou mortalidade, a seus contextos históricos é sempre e em todo lugar a manobra mais iluminadora a ser posta em prática. Mas por que deveria ser assim? O lendário visitante de Alfa Centauro não ficaria mais perplexo com o fato de que todos os seres humanos sem exceção têm de morrer do que com o fato de que a morte não era para os antigos romanos o que é para os californianos de hoje em dia? Jameson tem uma característica reserva com relação a tudo que não pode ser prontamente disposto em termos estruturais, esquemáticos, históricos ou impessoais. É, talvez, o equivalente esquerdista do vigoroso medo que o burguês tem do sentimento pessoal. Ainda assim, um dos poucos benefícios de uma era de derrota política para a esquerda é que os limites do político, bem como sua continuada relevância vital, podem ser reconhecidos de maneira mais franca e sem rodeios.

Seria demorado demais mostrar em detalhes que o que Jameson chama de seu “historicismo absoluto” é uma concepção equivocada.16 Alguns breves tópicos terão de ser suficientes. Em primeiro lugar, qualquer historicismo deve incluir pelo menos um preceito –– “historicizar sempre!” ––, que é axiomático e, como tal, isento de sua própria injunção historicizante. Nenhum historicismo pode, portanto, ser absoluto. De qualquer modo, se um historicismo supostamente absoluto abarca tudo, isso inclui as leis da geometria? Ademais, o historicismo não é de forma alguma uma atividade inerentemente radical, como Jameson parece supor; de Burke a Oakeshott, boa parte do historicismo esteve politicamente à direita. São os adversários esquerdistas desses ideólogos que via de regra recorreram a valores universais contra valores desenvolvidos historicamente. Nem todos aqueles que colocam obras de arte em seu contexto histórico são radicais; nem todos os antirradicais são formalistas. A discussão fundamental não é entre os que contextualizam historicamente e os que não o fazem, mas entre leituras mutuamente antagônicas da história em si –– entre, digamos, a história como a narrativa de um gradual processo de iluminação e a história como um conto de luta e escassez.

Há muitas continuidades importantes na história humana, juntamente com muitas transformações perniciosas. A julgar pelo que os registros históricos contam do que aconteceu até o momento, os seres humanos parecem considerar que a sujeição a uma lastimável exploração é um estado de coisas um tanto desagradável e ofensivo, continuidade que os esquerdistas deveriam valorizar em vez de demolir. O historicismo é geralmente mais atento à diferença do que à repetição, e por isso fracassa no que tange a tirar proveito desses fatos. Além disso, há muitos aspectos na nossa composição material ou ser-espécie que são relativamente inalterados, e compete a qualquer materialismo autêntico reconhecer esse fato. Os materialistas históricos não bancam os ingênuos para fazer o jogo dos conservadores aceitando o fato de que, digamos, embora o pesar pela morte de alguém assuma uma variedade de formas históricas, há um sem-número de fatores que um enlutado moderno tem em comum com um lamuriento antigo. A noção de que há algo politicamente perigoso em tal reconhecimento –– de que deixa entrar sub-repticiamente pela porta dos fundos o espectro de uma invariável natureza humana –– é simplesmente um infundado fantasma historicista ou um bicho-papão culturalista.

A obra de Jameson é rápida demais para substituir explicação histórica por julgamento moral e político, como se ambos fossem mutuamente excludentes. Do começo ao fim de Ideologies of Theory [Ideologias da teoria], por exemplo, ele se mostra particularmente nervoso com relação às reivindicações de verdade envolvidas em tais julgamentos, e a certa altura chega a sugerir que as categorias de correção e incorreção teórica devem ser abandonadas em favor de uma preocupação com a força pragmática e a função ideológica de uma posição intelectual. Ele realmente gostaria de dizer isso categoricamente acerca do racismo ou fascismo? Jameson é, em suma, historicista de todas as maneiras que Althusser abominava, ao passo que é anti-humanista em todos os sentidos que Althusser admirava. Escrevendo no mesmo volume sobre versões rivais da obra de Gramsci, Jameson rejeita, porque “frívola”, a tentativa de determinar qual das interpretações conflitantes é verdadeira, e inclusive decora com aspas a palavra “verdadeiro”, à maneira de um crítico cultural principiante. Em outra parte do livro, sugere que não existe um “corpo humano pretederminado” como tal, mas sim “toda uma gama histórica de experiências sociais do corpo”.17 Entretanto, segundo quais critérios decidimos que essas experiências são todas de um fenômeno chamado corpo, e não de alguma outra coisa?

Outro hábito de Jameson é formalizar conteúdo moral a partir do nada, do inexistente, o que ele faz em diversos capítulos de The Modernist Papers. Ele o faz, também, em seu formidável ensaio sobre Lorde Jim de Conrad em O inconsciente político, no qual arranca do estilo impressionista do romance toda uma história de reificação e racionalização capitalistas. Obras de arte modernistas, que por vezes são bastante pobres em conteúdo, são portanto especialmente hospitaleiras ao método de Jameson, por mais negativo que ele possa sentir-se acerca da carga ideológica dessas obras. De fato, elas podem tornar-se alegóricas do próprio procedimento crítico de Jameson, como quando ele escreve sobre uma narrativa de Kafka que “não é de fato para ser compreendida como um drama interpessoal”, mas como “ela mesma somente uma projeção do sistema lógico”.18

Ausências eloquentes

Essa atenção ao “conteúdo da forma”, como já sugeri, talvez seja a mais notável contribuição de Jameson à crítica. O título do livro que primeiro colocou Jameson em evidência, Marxismo e forma, parece deliberadamente provocativo e programático a esse respeito –– um calculado semioxímoro, similar a, digamos, Positivsmo lógico e angústia, no contexto de uma crítica marxista muito pouco afeita a tratar a forma artística com alguma dose de sensibilidade. A noção de conteúdo da forma é uma outra maneira por meio da qual Jameson consegue conciliar significado e materialidade, como (por exemplo) no ensaio sobre três pintores modernos, em que trata o uso que Cézanne faz do ocre como uma espécie de ideologia por seu próprio mérito. A forma –– a organização sensória da obra, o jogo de seus significantes ou a largura de suas pinceladas –– tem um estofo abstrato ou conceitual conhecido como conteúdo histórico; e ambos são tão indissociáveis quanto razão e sentimento no estilo literário do próprio Jameson.

No entanto, assim como Jameson distingue uma forma de repressão no âmago de uma tela de Cézanne, também suas próprias e assombrosamente ousadas reescritas de obras de arte em termos de forma, estrutura e história –– em que tais obras são apartadas quase ao ponto de ficar irreconhecíveis –– pareceriam baseadas numa repressão do objetivo, do empírico e do psicológico, todos os quais precisam ser banidos, com rigor e quase com desdém, por esse pensador de resto muitíssimo generoso e inclusivo. Há, por exemplo, muito pouco sobre sexualidade na oeuvre.19 A crítica de Jameson, portanto, produz um objeto revigorantemente descontínuo vis-à-vis os textos conhecidos do humanismo liberal; contudo, ao fazê-lo, esse hegeliano devoto arrisca-se a abandonar sua própria injunção característica, que é não simplesmente cancelar ou negar, mas preservar e negar ao mesmo tempo. O modernismo em particular suscita em Jameson uma veemente veia de anti-humanismo, e isso em um devoto de Lukács que jamais foi muito afetado pelos althusserianos. Os interiores herméticos e superaquecidos do modernismo são rejeitados com uma sintomática intensidade de afeto, num estilo de prosa que de resto parece construído para afastar qualquer sentimento muito pessoal.

É em grande medida por causa da reticência de Jameson com relação à existência ética ou subjetiva que “sabedoria” não é um termo que associaríamos de imediato a ele, como faríamos com Bloch, Benjamin e Adorno. É preciso lembrar, entretanto, que a repressão é o que nos permite falar –– que a cegueira é muitas vezes o que produz o discernimento. São, entre outras coisas, os silêncios de Jameson, seus pontos fracos, cegueiras de entendimento e omissões que lhe possibilitaram produzir a mais extraordinária e original obra de análise cultural de nosso tempo. Para nós leitores, pelo menos, é um preço pequeno a pagar.

Notas

1 Perry Anderson, The Origins of Postmodernity, Londres 1998. No Brasil: As origens da pósmodernidade. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
2 Fredric Jameson, The Modernist Papers. Londres e Nova York 2007, pp. 256 e 257. Doravante MP.
3 Eagleton, Against the Grain, Londres e Nova York 1986, p. 67.
4 Publicado em 1971 nos Estados Unidos (Marxism and Form: Twentieth Century Dialectical Theories of Literature, Princeton: Princeton University Press) e lançado no Brasil com o título Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século 20. Tradução de lumna Maria Simon, Ismail Xavier e Fernando Oliboni. São Paulo, Hucitec, 1985. (N. T.)
5 MP, p. 229.
6 Marxism and Form, Princeton, 1971, pp. 307, 308.
7 MP, p. 186.
8 MP, p. 229.
9 Ver Eagleton, The Ideology of the Aesthetic, Oxford 1990, capítulo 1.
10 MP, p. 62.
11 MP, p. 241.
12 MP, p. 225.
13 MP, pp. 111-2.
14 Ver Eagleton, After Theory, Londres 2003, p. 143n. No Brasil: Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Tradução de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
15 Jameson, The Political Unconscious, Londres e Nova York 1981, p. 242. Edição brasileira: O inconsciente político – a narrativa como ato socialmente simbólico. Tradução de Valter Lellis Siqueira. Revisão de tradução: Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 1992.
16 MP, p. xiii.
17 Jameson, Ideologies of Theory, pp. 652, 358, 344.
18 MP, pp. 103-4.
19 Ver, porém, o ensaio “On the Sexual Production of Western Subjectivity” [Sobre a produção sexual da subjetividade ocidental], em Ideologies of Theory.

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