31 de janeiro de 2009

Porque Cuba ainda é importante

No início dos anos 1990, havia quase unanimidade na mídia, nos círculos políticos ocidentais e até mesmo entre os acadêmicos de que o colapso da revolução cubana era iminente. Ainda hoje, muitos observadores consideram apenas uma questão de tempo para Cuba passar por uma transição para a democracia (entendida como uma poliarquia estritamente definida) e uma "economia de mercado".

Diana Raby


January 2009 (Volume 60, Number 8)

Tradução / No início dos anos 90, houve praticamente unanimidade nos meios de comunicação, dentro dos círculos políticos ocidentais e até entre os acadêmicos, de que o colapso da revolução cubana era iminente. Inclusive hoje, muitos observadores consideram que é apenas questão de tempo que Cuba experimente uma transição para a democracia (entendida como uma poliarquia estreitamente definida) e uma "economia de mercado".

Contudo, o fato do socialismo cubano ter sobrevivido aos rigores extraordinários do "Período Especial" e siga funcionando quase vinte anos depois da queda do Muro de Berlim deveria fazer-nos refletir. Inclusive o afastamento prolongado de Fidel Castro e sua posterior demissão como presidente não haverem conduzido Cuba ao caos nem à convulsão, como muitos vaticinaram. Por que então Cuba tem sobrevivido, e o que significa isto para A política progressista e socialista de hoje?

A resposta sensível é que, com todos seus problemas e deficiências, a ordem revolucionária ainda é viável. Muitos cubanos ainda acreditam nos princípios socialistas; claro que se queixam da escassez e restrições! Porém não alimentam ilusões sobre a alternativa que lhes oferece o outro lado do Estreito da Flórida.

Por que é assim? O que faz que Cuba seja diferente da União Soviética e da Europa do Leste? Para compreender esse processo é necessário voltar às origens da revolução e a notável transformação que ocorreu entre 1959 e 1963. Antes da revolução, Cuba foi um protetorado dos Estados Unidos, e uma imensa plantação de açúcar de onde governos "democráticos" venais alternavam com ditaduras brutais. A ideia de uma revolução socialista aqui - ou em qualquer outra parte do "quintal" estadunidense do Caribe e América Central - era impensável. Assim que, em 1º de janeiro de 1959, quando o ditador Batista fugia e os guerrilheiros barbudos entravam em Havana e Santiago, praticamente ninguém antecipava o alcance e a profundidade das mudanças que iam se suceder.

A transição cubana ao socialismo foi uma das mais rápidas e completas das realizadas até então em todo o mundo: a primeira e segunda leis de Reforma Agrária, a nacionalização de praticamente todas as grandes indústrias e serviços, a extraordinária campanha de alfabetização e o estabelecimento de educação pública gratuita em todos os níveis, serviços sanitários universal e gratuito, e a organização de uma milícia popular e organismos massivos disciplinados dos desde o nível mais elementar nos bairros aos mais complexos que abrange todo país, tudo no espaço de aproximadamente quatro anos.

Não há dúvidas, nos primeiros seis meses de 1959, a retórica girava em torno da democracia e o humanismo; o socialismo mal foi sequer mencionado até meados de 1960, e não foi adotado oficialmente como meta até abril de 1961, dois anos e quatro meses depois da vitória inicial (durante a invasão da Baía dos Porcos). O Movimento de 26 de Julho (M-26-7) que liderou a luta armada e tomou o poder foi um movimento heterogêneo e amplo que tinha diferenças importantes com o que era então o Partido Comunista de Cuba (PCC), o Partido Socialista Popular (PSP). A revolução foi imensamente popular, porém muitos observadores esperaram (ou temeram) que lhe esperava ao longo prazo o mesmo destino que teve a Guatemala cinco anos antes, quando o governo popular de Arbenz foi derrubado por um golpe instigado pela CIA.

A euforia impressionante que gerou a revolução em Cuba e em outras partes da América Latina, e sua flexibilidade ideológica inicial, são fundamentais para entender seu significado. Ao ocorrer em um lugar e em um momento em que a hegemonia estadunidense não se questionava, de onde a grande revolução mexicana havia sido neutralizada e os movimentos progressistas como os de Sandino em Nicarágua, Grau San Martín em Cuba em 1933, Gaitán em Colômbia, e Arbenz em Guatemala haviam sido destituídos pela intervenção estadunidense aberta ou encoberta, o triunfo cubano teve um impacto simbólico imediato. Durante sua primeira viagem ao exterior depois da vitória, a Venezuela em fins de janeiro de 1959, Fidel Castro foi recebido por uma multidão despertada. Em fevereiro, o então senador chileno Salvador Allende declarou que "A revolução cubana não pertence exclusivamente a vocês - se trata do movimento de maior transcendência que se tem realizado na América" [1], e pouco depois Gloria Gaitán, filha do dirigente popular colombiano assassinado, proclamou que a experiência cubana foi " O começo da grande libertação de Nossa América" [2]. O ex Presidente do México, Lázaro Cárdenas, autor da nacionalização do petróleo naquele país em 1938, também apoiou com entusiasmo Cuba.

O aspecto característico mais evidente da revolução cubana - e a razão primordial de sua capacidade para evitar o destino da Guatemala ao vencer a invasão contra-revolucionária de Baía dos Porcos em abril de 1961 - foi a vitória militar sem precedente da guerrilha do Exército Rebelde e a derrota das forças do ditador Batista. Foi também isto o que possibilitou posteriormente aos marxistas apresentar o processo como representativo das teses leninista da revolução armada dos trabalhadores. Contudo a força que tomou o poder não foi nem um partido comunista nem um partido marxista, foi um amplo movimento democrático com uma ideologia eclética, legado de tradições revolucionárias populares tanto de Cuba como da América Latina e noções ambíguas de justiça social e liberação nacional. Os antigos comunistas do PSP, que si tinha algumas raízes entre os trabalhadores e intelectuais, porém que havia sido comprometido devido seu anterior apoio a Batista, havia chamado inicialmente a Fidel Castro e os guerrilheiros de"aventureiros pequeno-burgueses" e só começou a apoiar o movimento em véspera da vitória em finais de 1958.

De fato, foi isso o que mais surpreendeu a muitos observadores: que os dirigentes revolucionários, representados sobretudo por Fidel Castro, seguiram adiante apesar dos obstáculos durante os três primeiros anos entre 1959 e 1962, varrendo a elite endinheirada cubana e a classe latifundiária, desafiando a Washington para expropriar as explorações açucareiras e as fazendas, para nacionalizar as indústrias, para purgar o aparato estatal de defensores de Batista, para firmar acordos comerciais com o bloco soviético, e logo declarar-se socialistas. Foi isto um jogo de mãos premeditado por parte de uma direção comunista encoberta como alegaram muitos comentaristas de direita nos Estados Unidos? Ou foi a reação indignada de nacionalistas populares ao encontrar-se com a hostilidade estadunidense cega e torpe, como declararam os liberais?

A verdade é mais complexa e mais interessante. Ao não conseguir a independência em princípios do século XIX como a maioria das colônias espanholas na América, Cuba desenvolveu mais tarde um movimento de libertação poderoso com uma importante personalidade radical e popular. Os ?mambíses?, a guerrilha popular que se lançou contra o domínio espanhol entre 1868 e 1898, deram importância à igualdade racial e social e formaram uma consciência anti-colonial e antiimperialista precoce. O resumiu o grande homem de letras e libertador José Martí quando declarou em sua última carta de 1895: "Tudo o que fiz até agora e tudo o que farei tem por objetivo prevenir, através da independência de Cuba, que os Estados Unidos da América se movam com mais força sobre nossa América" [3].

Este espirito antiimperialista se voltou a manifestar-se na luta contra o ditador Gerardo Machado (1925-33) e a revolução derrotada de 1933, grande precursora da de 1959. Uma repressão brutal combinada com uma situação econômica desesperada causada pela depressão mundial conduziram a um levantamento popular em que os trabalhadores tomaram as fábricas açucareiras e levantaram a bandeira vermelha, os estudantes ocuparam o palácio presidencial e os subalternos do exército se amotinaram e derrocaram ao corpo de oficiais. Um governo provisório presidido por um professor médico popular, Dr. Ramón Grau San Martín, decretou muitas medidas progressistas incluindo uma reforma agrária, a intervenção (quer dizer o controle governamental) da Companhia Elétrica Cubana propriedade dos Estados Unidos, um salário mínimo, a jornada de oito horas e o sufrágio feminino. Porém, este governo revolucionário não teve organização política em que se apoiasse, e se fez evidente rapidamente que o dirigente da tropa rebelde, o Sargento Fulgêncio Batista, era um oportunista que estava disposto a trabalhar com a Embaixada dos Estados Unidos.

Sob a nova administração de Franklin D. Roosevelt, Washington acabava de proclamar a Política de Boa Vizinhança e, portanto, estava pouco disposto a embarcar os marines a Cuba. No entanto, como os navios de guerra estadunidenses estavam posicionados muito próximos de sua costa, Havana sentiu a pressão e não chegou a ser surpresa a derrota de Grau San Martín por Batista em janeiro de 1934, o novo poder de fachada. Os próximos 25 anos seriam testemunhas de um ciclo de débeis presidentes marionetes, governos eleitos corruptos e a ditadura de Batista, com frustração e desencanto crescentes entre a maioria dos cubanos, trabalhadores, camponeses ou da classe média. Em particular, foi a falha de Grau e seus associados do Partido Autêntico da Revolução Cubana o que preparou o caminho para a ditadura de Batista em 1952-58 e a verdadeira revolução que se seguiu.

Ainda que os jovens revolucionários que se uniram ao advogado ativista Fidel Castro Ruz em princípios dos anos 50 tinham algum conhecimento das ideias socialistas, sua preparação política e intelectual era bastante variada e eclética. O mesmo Fidel foi membro do Partido Ortodoxo que havia se separado dos Autênticos uns anos antes em protesto à corrupção e o abandono dos princípios da revolução de 1933. O dirigente Ortodoxo Eduardo Chibás foi um rico dissidente que havia sido dirigente estudantil em 1933 e que ganhou as massas entre 1949 e 1951 com uma retórica apaixonada contra a corrupção que pregava em suas emissões radiofônicas semanais. Com seu lema "Vergonha contra dinheiro", Chibás ressuscitou o idealismo moral que havia sido a ideia central do radicalismo cubano desde Martí. A morte de Chibás em agosto de 1951, quando recebeu um tiro no transcurso de seu programa radiofônico, foi seguida de manifestações massivas de luto em seu funeral, e seu atrativo popular foi motivo de inspiração para os Ortodoxos, muitos dos quais se uniram al M-26-7 uns anos depois.

Outra figura chave das origens ideológicas do novo movimento revolucionário foi Antônio Guiteras, um jovem que, ainda sendo estudante na Universidade de Havana havia chegado a ser Ministro do Interior no governo de curta duração de Grau San Martín. Foi Guiteras quem estava por trás das medidas radicais decretadas nos meses impetuosos de 1933, e quando Grau foi derrotado, Guiteras se fez clandestino e formou seu próprio movimento insurgente, Jovem Cuba, com um programa explicitamente socialista. Como figura popular e ativista socialista independente do Partido Comunista, Guiteras representou uma ameaça evidente e não surpreendeu seu assassinato em 1935.

Guiteras foi representante da tradição marxista latino-americana autônoma associada ao peruano José Carlos Mariátegui, e grande influência em vários membros destacados do M-26-7, tais como Armando Hart. Esta tradição marxista também foi a principal influência ideológica sobre o jovem revolucionário argentino Ernesto "Che" Guevara, que se encontraria com Fidel Castro e seus camaradas no México em 1955, convertendo-se numa figura central da revolução.

Contudo, a inspiração fundamental dos insurgentes do M-26-7 foi a tradição revolucionária popular dos mambíses, de José Martí e Antonio Maceo, o general mulato das forças de liberação na guerra contra o domínio espanhol, uma ideologia de igualitarismo radical, anti-imperialismo e auto-suficiência agrária. Havia muito em comum com as tradições latino-americanas mais amplas herança de Simón Bolívar e seu ideal de unidade continental e desconfiança do expansionismo gringo.

Isto não quer dizer que os revolucionários cubanos dos anos 50 foram anticomunistas ou que não lhes sensibilizavam as teorias socialistas e marxistas procedentes da Europa o do resto do mundo. Porém a maioria sim era independente do movimento comunista internacional e também de outras tendências internacionais organizadas, tais como a trotskista. Esta independência e a flexibilidade tática e ideológica que a acompanhava, foi crucial para o êxito.

Ao apoiar-se nas tradições populares nacionais, combinado com o sentido de frustração e indignação contra a corrupção, repressão e dominação estadunidense, os revolucionários foram capazes não só de conseguir a vitória militar como também o apoio e entusiasmo popular e massivo. Em janeiro de 1959, havia uma euforia enorme combinado com a percepção de que tudo era possível, e isto era recorrente nas declarações dos dirigentes:"A revolução não poderá se fazer em um dia; porém tenham a certeza que a revolução a faremos. Tenham a certeza que pela primeira vez a República será inteiramente livre e o povo terá o que merece?" (Fidel Castro, 3 de janeiro) [4]; "A Revolução é tão cubana como as palmeiras" e "Muitos não se têm dado conta da envergadura da mudança que se tem operado em nossa pátria?" (Fidel Castro, 24 de fevereiro) [5]; "Em primeiro de janeiro de 1959 não havíamos feito outra coisa que concluir a guerra de independência; a Revolução martiana começa agora" (Raúl Castro, 13 de março) [6].

Dito de outra maneira: sem nenhuma referência a Marx, ao socialismo ou a luta de classes, houve um compromisso inequívoco com uma mudança radical e com o interesse popular. Se fizeram em mudança referencias ideológicas explícitas à herança revolucionária nacional: ao defender a reforma agrária em junho de 1959, Fidel declarou que "o que estamos fazendo, senhores defensores de grandes interesses, o que estamos fazendo é cumprindo as frases e cumprindo a doutrina de nosso Apóstol, que disse que a pátria era de todos e para o bem de todos?" [7]; e em julho de 1959 citou a Antonio Maceo: "A Revolução estará em marcha quando fique uma injustiça sem reparar?" [8].

Que estas declarações não foram mera retórica se fez patente em seguida ao se levar a cabo ações decisivas em todas as áreas da política, o que serviu para incrementar o apoio popular incisivo aos dirigentes revolucionários. Com este apoio massivo e o monopólio dentro da força armada, as novas autoridades em Havana desfrutaram de uma liberdade de ação sem precedentes; a oposição interna foi praticamente paralisada e nenhum partido ou organização política pôde disputar o prestigio de Fidel e do M-26-7 que havia chegado a ser de fato o movimento de libertação nacional do povo cubano.

Nestas circunstâncias, um programa socialista a priori só haveria sido um obstáculo: a força da revolução provinha de seu caráter aglutinador e consensual. Quando se declarou o socialismo foi mais um reflexo da nova realidade, um estado de coisas inesperado que havia sucedido como resultado de um processo dialético. A fortaleza da demanda popular de auto-determinação e justiça social combinado com a estrutura monopolista da economia das plantações cubanas e a confrontação inevitável e direta com o imperialismo estadunidense fez com que, a partir de princípios dos anos 60 em diante, a solução socialista fora o único caminho viável para seguir adiante para que a revolução não se destruísse em função da divisão e incoerência. Em termos de economia política, se pôde encontrar uma boa análise desta dinâmica no estudo de 1970 de James O. Connor, The Origins of Socialism in Cuba [9] (As Origens do Socialismo em Cuba).

A validade desta análise foi confirmada nas entrevistas que dirigi em Cuba nos anos 90. Vários membros antigos do M-26-7, ao perguntar-los sobre a evolução de sua ideologia durante a luta armada e os primeiros dois ou três anos depois da vitória de 1º de janeiro de 1959, declararam que seu ponto de vista original foi democrático, antiimperialista e favorável a justiça social, porém não socialista e muito menos comunista ou marxista-leninista. Só foi num momento preciso da transformação revolucionária, que a maioria deles identificam por volta de meados ou finais de 1960 ou princípios de 1961, que chegaram ao entendimento de que o que estavam criando em Cuba era uma espécie de socialismo; e a declaração famosa de Fidel sobre este aspecto durante a invasão da Baía dos Porcos sensivelmente confirmou isto em sua cabeça: "Pois sim: somos socialistas!".

Em minha opinião, isto é algo mais que uma peculiaridade do processo cubano: confirma as implicações do argumento de Gramsci que para que a ideologia proletária ? a teoria marxista ? triunfe, deve ganhar a batalha da hegemonia e chegar a ser o "sentido comum". Ou dito de outro modo, as abstrações da teoria marxista devem fundir-se com as tradições democráticas e populares do país de que se trata antes que possam chegar a ser hegemônicas. Quiçá este seja o erro decisivo da maioria dos partidos comunistas (e também trotskistas): a ideia de que ao predicar a doutrina marxista-leninista em abstrato, podem construir um movimento revolucionário massivo, eficaz.

A euforia revolucionária cubana de 1959-1961 teve muito em comum com a ideologia popular democrática de amplo espectro dos movimentos anticapitalistas e antiglobalização de nossos tempos. O rechaço a partidos e lemas estabelecidos, a crença na ação direta, a busca de soluções originais e novas: estas foram as características do fermento criativo que varreu Cuba nos primeiros anos da revolução. É verdade que, a partir de 1962, esta originalidade começou a pôr-se em risco devido à adoção de modelos soviéticos como resultado da aliança fruto do contexto de Guerra Fria do momento. Porém, apesar disso, Cuba manteve aspectos importantes de sua autonomia e criatividade. A "heresia cubana" da busca do "Novo Homem"e a ênfase dada em incentivos morais foi um exemplo disso, assim como o apoio cubano continuado à revolução armada na América Latina e África (em contradição com o objetivo soviético de "coexistência pacífica").

Depois de 1970, o aparente fracasso da estratégia idealista de desenvolvimento associada a "incentivos morais" e a derrota de movimentos insurgentes em muitos países obrigaram Cuba a adotar políticas ao estilo soviético mais ortodoxo. Durante uns quinze anos, isto pareceu dar fruto, com altas taxas de crescimento do Produto Interno Bruto e estabilidade econômica. Porém, a meados dos anos oitenta, ficou evidente que o endividamento de Cuba tanto com a União Soviética como com os países capitalistas chegava a ser um problema, assim como a combinação do centralismo burocrático rígido e os incentivos materiais do Sistema de Direção e Planificação da Economia, SDPE [10].

Isto levou ao lançamento da "Campanha de Retificação" em 1986 e ao rechaço de Fidel as políticas soviéticas de Glasnost e Perestroika. Visto por muitos como "estalinista" ou "conservador", o rechaço das políticas de Gorbatchev foi tudo menos isso: refletiu a compreensão profética do dirigente cubano que este tipo de liberalização de cima para baixo conduziria necessariamente ao capitalismo. Também refletiu a crença que em Cuba, onde ? ao contrário da União Soviética ? a participação de base e o idealismo revolucionário não haviam sido totalmente reduzidos por décadas de autoritarismo e algumas vezes repressão brutal, o socialismo poderia revitalizar-se com uma combinação de liderança visionária e mobilização popular.

O êxito de Cuba ao superar os rigores extraordinários dos piores anos do "Período Especial" de meados dos anos 90 não pode explicar-se de algum outro modo que não seja a vitalidade continuada da revolução. A escassez e as penalidades foram tais que qualquer outro governo haveria vindo abaixo em meses. Todo aquele que visitou Cuba nesses anos ficou impressionado com o estoicismo e compromisso do povo cubano quando a eletricidade só funcionava umas poucas horas por dia, os produtos cultivados apodreciam nos campos por não poderem ser levados ao mercado, os trabalhadores andavam seis horas por dia em ir e voltar a pé ao trabalho para logo perceber que não iriam fazer nada por falta de combustível, e as prateleiras das casas comerciais se encontravam literalmente vazias. Tudo isto em um país inundado por imagens da sociedade estadunidense de consumo e propaganda contra-revolucionária, e todo mundo sabia que o Muro de Berlim havia caído e que os países socialistas da Europa do Leste haviam sido derrubados como bolos. Porém em Cuba, só houve um protesto importante, em agosto de 1994, quando alguns cruzaram o Estreito da Flórida em balsas por desespero; sem embargo, a grande maioria do povo permaneceu leal à revolução.

Um fator crucial na sobrevivência de Cuba foi o compromisso e exemplo dos dirigentes, especialmente Fidel. E outro o que a orientação socialista da política nunca foi abandonada: diferente da Nicarágua sandinista, que sob imensa pressão em finais dos anos oitenta adotou as recomendações do Fundo Monetário Internacional, liberando os preços dos artigos de primeira necessidade e privatizando os serviços sociais, Cuba manteve a saúde e a educação universais gratuitas e subvencionou a moradia e os serviços públicos. Também intensificou ? en vez de abandonar ? a consulta democrática ao povo sobre as medidas que iriam tomar. Justo quando os antigos dirigentes comunistas se pisoteavam para abraçar o capitalismo e os governos ocidentais diziam a seus povos que não havia alternativa ao neoliberalismo, os dirigentes cubanos embarcaram em um amplo processo de consultas que envolvia a uns 80.000 "parlamentos dos trabalhadores" por todo o país para discutir as medidas necessárias para resolver a crise econômica.

Apesar da noção convencional de Cuba como uma ditadura (ainda que seja, para a ?Esquerda?, uma ditadura benévola), os cubanos sempre tem mantido que tem sua própria forma de democracia socialista. Depois do que passou na União Soviética e Europa do Leste, é compreensível o ceticismo que existe sobre este tema. Porém um dos grandes erros do pensamento progressista das últimas décadas tem sido a aceitação incondicional da poliarquia liberal como a única forma válida de democracia; o rechaço do autoritarismo estalinista não deveria abandonar a crítica marxista do liberalismo burguês.

A democracia em sentido verdadeiro ? o governo para o povo ? começa necessariamente nas comunidades locais, aonde a gente nas vizinhanças e nos lugares de trabalho organiza e dirige seus próprios assuntos. Neste sentido, Cuba tem um poderoso sistema de democracia local. A indicação direta de candidatos nas reuniões comunitárias e sua eleição como delegados municipais do poder popular em eleições com voto secreto e vários candidatos, mais a obrigação dos eleitos prestarem contas pessoalmente a cada seis meses em várias reuniões locais (com a possibilidade real de revogação do mandato), garante um grau de participação e controle local que compara favoravelmente com muitos países que tem credenciais democráticas impecáveis [11].

É verdade que em um nível superior, há limitações, quando os delegados nacionais e provinciais são representados em listas com um só candidato por cargo, de forma que a única opção do eleitorado é aceitar ou rechaçar cada candidato. Os debates sobre os planos de ação incluem uma extensa participação popular mediante os "parlamentos dos trabalhadores" e consultas por parte de comissões da Assembléia Nacional, porém ditos debates operam claramente dentro de parâmetros "centralizados". Ultimamente, é inegável que embora os Estados Unidos esteja comprometido ativamente com a derrubada da revolução, a expressão livre e completa da democracia socialista será impossível em Cuba; no entanto, dado o modo em que as elites burguesas manipulam a poliarquia liberal para impedir qualquer desafio sério do sistema capitalista, se pode argumentar que os eleitorados de países ocidentais têm bem menos influência do que os cubanos nas decisões sobre políticas em setores cruciais como as finanças, a defesa e a política exterior.

Porém para debater a relevância de Cuba no mundo de hoje, não é suficiente defender só o sistema socialista do país ante seus críticos. No Século XXI, tem a ilha algo a oferecer que não seja só um vestígio do passado?

A resposta é que há, no mínimo, duas áreas em que Cuba tem dado contribuições vitais à emergência de uma nova alternativa anticapitalista ou socialista. Uma é sobre as temáticas ambientais. A segunda contribuição vital reside no apoio de Cuba a Venezuela, Bolívia e outros países da América Latina ocupados neste momento na luta por criar um novo modelo econômico e social para a América Latina.

No entanto, para debater a relevância de Cuba no mundo de hoje, não é suficiente defender só o sistema socialista do país ante seus críticos. No século XXI, tem a ilha algo que oferecer que não seja apenas um vestígio do passado?

A resposta é que há pelo menos duas áreas em que Cuba tem oferecido contribuições vitais à emergência de uma nova alternativa anticapitalista ou socialista. Uma é nos temas ambientais: inicialmente por necessidade, agora como modo de trabalhar, tem adotado a agricultura orgânica e práticas ecologicamente sustentáveis em toda a economia. Faz alguns anos tem fomentado o desenvolvimento da agricultura urbana, onde pequenos terraços têm se convertido em projetos organopônicos, destinados ao cultivo intensivo de uma grande variedade de fruta e verdura, mormente com métodos orgânicos. O resultado é que a cidade de Havana, para citar uma, produz atualmente 60% da fruta e verdura que consome dentro dos limites geográficos da cidade [12], e a experiência está sendo levada a cabo na Venezuela e outros países. A "Revolução Energética" tem descentralizado a geração de energia de forma que a eletricidade dependa menos das grandes obras e mais de pequenos geradores locais que são mais eficazes e menos vulneráveis durante as emergências. As lâmpadas incandescentes foram substituídas em todo o país e há investimentos em grande escala na para a geração de energia eólica e solar [13]. Agora em Cuba se constata categoricamente que tanto o modelo de desenvolvimento socialista tradicional como o capitalista, os dois baseados na utilização intensiva de energia, são insustentáveis.

A segunda contribuição vital para a emergência de uma nova alternativa reside no apoio de Cuba a Venezuela, Bolívia e outros países da América Latina ocupados nestes momentos na luta para criar um novo modelo econômico e social. Os analistas internacionais fixam sua atenção frequentemente na ajuda da Venezuela a Cuba em forma de petróleo barato, porém a importância da contribuição cubana à revolução bolivariana não deve reduzir-se. Sem a colaboração de milhares de cubanos, Chávez seguramente não haveria podido pôr em marcha a notável missão de saúde - Barrio Adentro - ou a missão de alfabetização Robinson. Assim mesmo, Evo Morales tampouco haveria podido colocar em prática programas semelhantes na Bolívia, pelo menos a curto prazo - e em vista da situação política crítica dos dois países, no curto prazo era e é crucial.

Porém também em temos políticos mais amplos, sem Cuba, Chávez na Venezuela (e Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador e Fernando Lugo no Paraguai) haveria tido muito mais dificuldade em ganhar credibilidade para projetos de dar o poder político ao povo implementados mediante a apropriação e transformação do Estado. A desorientação política da esquerda mundial foi tal que só um movimento totalmente inesperado como o de Chávez poderia oferecer um caminho à frente; e sem a inspiração de Cuba e seu apoio em momentos cruciais, quiçá Chávez haveria fracassado. Então, sem Cuba, não avança Venezuela; e sem Venezuela, não avança Bolívia, nem Equador, nem Paraguai, e tampouco voltaria a Nicarágua sandinista (por muito imperfeita que seja).

Por suposto, não é que nada haveria ocorrido nestes países; contudo, seguramente sem o exemplo da Venezuela e a inspiração e apoio prático de Cuba, os movimentos populares poderosos que existiam não haveriam podido desenhar uma estratégia adequada para alcançar o poder e utilizá-lo eficazmente para inverter as políticas neoliberais. Isto não significa que a Venezuela ou os outros países simplesmente copiam Cuba. São muito transparentes em esclarecer que estão seguindo seu próprio caminho, emprestando e apoiando-se entre si e a Cuba, porém sem cometer o antigo erro de tentar impor um padrão "ortodoxo" uniforme.

Ademais, os cubanos têm sido explícitos ao manifestar que não consideram seu socialismo como modelo a copiar. O que Cuba proporcionou foi um exemplo vivo, uma demonstração que indo ao encontro da sabedoria convencional da "Nova Ordem Mundial", o Estado não necessita de poder para construir e manter uma alternativa não capitalista. O que não foi possível foi reproduzir a estratégia cubana de revolução armada, e isto foi a grande contribuição de Chávez e dos venezuelanos: desenhar uma nova estratégia que nem foi puramente militar nem puramente eleitoral, e sim uma combinação de mobilização popular, eleições e apoio militar.

À medida que se desenvolve o novo projeto do "Socialismo do Século XXI" e a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), Cuba também se une à inspiração ideológica e cultural da tradição antiimperialista popular da América Latina. Como temos observado, a ideologia cubana original recebeu tanto de Martí e dos mambíses como da teoria socialista internacional, e neste sentido se funde perfeitamente com o "Bolivarianismo" de Chávez. Pode-se argumentar que, embora a relação com a União Soviética tenha sido necessária dentro do contexto da Guerra Fria, produziu distorções indesejáveis dentro do socialismo cubano, e que hoje, Cuba, liberada da camisa de força soviética e apoiada por seus vizinhos latinos, está redescobrindo sua originalidade.

Neste contexto, as atuais reformas cubanas não devem ser vistas como se encaminhando para o capitalismo (ou pelo menos não necessariamente), e sim se adaptando ao projeto mais dinâmico e flexível do "Socialismo do Século XXI", que com o tempo encontrará sua expressão similar (porém não idêntica) na Venezuela, Bolívia e outros países. Se baseará no reconhecimento que o socialismo nunca pode ser perfeito, nem completamente estável ou seguro em um mundo imperialista, e que sua sobrevivência e renovação dependerão sempre do apoio e participação populares [14]. O papel do Estado ainda será importante, porém permitirá mais campo de ação para a iniciativa popular e local, e até o que previamente se condenava como incentivos materiais capitalistas. Contudo isto se baseia no reconhecimento que o igualitarismo não se pode impor por decreto, e que a melhor garantia contra uma volta ao capitalismo se encontra numa cultura enérgica de participação coletiva mais do que em controles burocráticos. Onde o Estado central é e seguirá sendo crucial em proporcionar uma direção geral coerente, reduzindo ao máximo a intromissão do capital internacional e assegurando a defesa militar, política e diplomática contra o imperialismo.

Certamente no transcurso desses anos, Cuba tem cometido erros, não podendo ser atribuídos todos à influência soviética. A estratégia econômica inicial de industrialização de emergência foi pouco eficiente e se substituiu pelas exportações açucareiras a grande escala como fonte de acumulação para uma diversificação mais gradual. Logo em 1970, o voluntarismo praticamente levou Cuba ao desastre ao falhar no objetivo de 10 milhões de toneladas na colheta de cana. A "Grande Ofensiva Revolucionária" de 1968 conduziu à nacionalização precipitada dos pequenos negócios, com graves consequências para a disponibilidade de bens de consumo e serviços. Também houve graves erros na política cultural, extensamente criticadas. Porém o que salvou o socialismo de Cuba foi uma participação popular difícil de encontrar em qualquer outra parte, e a sensibilidade dos dirigentes para as inquietudes e necessidades populares. Apesar de ofensivas importantes e frequentemente justificadas, a maioria do povo cubano tem continuado sentindo que é revolução sua e não apenas um projeto paternalista de um aparato distante protecionista/estatal, e o resultado é que hoje o país continua exibindo aspectos objetivos e subjetivos de uma alternativa anticapitalista.

Os meios de comunicação ocidentais têm induzido a interpretar que as recentes reformas na agricultura, nas escalas de incentivos e salários, e a disponibilidade de bens de consumo, como a prova de que Cuba se encaminha para uma transição capitalista [15]. Porém não há nenhuma indicação objetiva que se esteja contemplando a criação do emprego privado a grande escala de mão de obra, nem um mercado de capitais que inclua uma bolsa, nem instituições capitalistas similares. O governo tem reiterado seu compromisso com a educação e a saúde universais e gratuitas e outros serviços sociais. Cuba tem firmado recentemente novos acordos importantes com vários países, a destacar Brasil e a União Européia, que melhoram sua capacidade de resistir ao bloqueio estadunidense sem abandonar suas prioridades socialistas.

Finalmente, a generosidade e compromisso extraordinários de milhares de internacionalistas cubanos, proporcionando serviços médicos e de outro tipo em condições que poucos aceitariam, constituem o testemunho vivo da realidade do projeto socialista do país. O veterano periodista britânico Hugh O' Shaughnesse apresentou recentemente um relato emocionante sobre as missões cubanas na Bolívia. Citou Maria dos Anjos, médica cubana que trabalha como Diretora de um hospital oftalmológico em El Alto, a cerca de 4.000 metros de altitude e em condições duríssimas: "Eu creio que sempre há algo de amor por trás de tudo", disse: "Antes de ir-me de Cuba para Guatemala ou Bolívia, não sabia o que era ser realmente pobre" [16]. Embora Cuba continua praticando a solidariedade dessa maneira, sua relevância para o movimento anti-capitalista mundial praticamente não pode questionar-se. Porém também, sua presença nos países da ALBA é outra prova de que Cuba não pode separar-se dos novos acontecimentos edificantes que estão tendo lugar na Venezuela, Bolívia e outros lugares: a América Latina é a demonstração hoje de que outro mundo é possível, e Cuba é essencial na criação desse mundo.

Notas:

1. Revolução (La Habana), 28 de febrero de 1959.

2. Revolução, 24 de abril de 1959.

3. José Martí, Inside the Monster, Philip S. Foner, ed. (Nueva Eork: Monthle Review, 1975), 3.

4. Revolução, 4 de janeiro de 1959.

5. Revolução, 25 de febrero de 1959.

6. Revolução, 14 de marzo de 1959.

7. Revolução, 8 de junio de 1959.

8. La Calle (La Habana), 1 de agosto de 1959.

9. Ithaca: Cornell Universite Press, 1970.

10. Uno de los mejores debates sobre este tema se encuentra en Cuba de Ken Cole (Londres: Pinter, 1998), capítulo 3.

11. Sobre este tema, Arnold August, Democrace in Cuba and the 1997-98Elections (La Habana: Editorial José Martí, 1999), e Peter Roman, PeopleÂ?s Power (Lanham, MD: Roman & Littlefield, 2003).

12. Simon Butler, "Cuba carries out new land reform", Green Left Online, 16 de agosto de 2008, www.greenleft.org.au/2008/763/39410

13. "Cuban agriculture" (entrevista con Roberto Pérez), Fight Racism! Fight Imperialism! (UK), nº 205 (Octubre/Noviembre 2008): 10

14. Michael A. Lebowitz, Build It Now (Nueva Eork: Monthle Review Press, 2006), e D.L. Rabe, Democrace and Revolution (Londres: Pluto Press, 2006), especialmente capítulo 3.

15. "Cuban workers to get bonuses for extra effort", The Guardian (UK), 13 de junio de 2008, e "CubaÂ?s wage changes have nothing to do with a return to capitalism", Helen Eaffe, The Guardian , 20 de junio de 2008.

16. Hugh O'Shaughnesse, Misiones cubanas en Bolivia, 4 de abril de 2008.

Diana Raby é pesquisadora sênior do Instituto de Pesquisa de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Liverpool (Reino Unido) e também é professora emérita de história da Universidade de Toronto. Ela escreveu extensivamente sobre a América Latina e também é ativa em movimentos de solidariedade, como a Campanha de Solidariedade a Cuba e o Centro de Informações da Venezuela (Reino Unido). Seu último livro, Democracy and Revolution: Latin America and Socialism Today (Londres: Pluto Press, 2006), defende a importância crucial da Venezuela, juntamente com Cuba e os países da ALBA, na renovação da esquerda internacional neste século.

12 de janeiro de 2009

Cortinas de fumaça

Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que é óbvio a qualquer aluno de direito: Israel viola diversas normas internacionais

Salem H. Nasser


É possível ver, aqui e ali, os corpos que se acumulam e fazer as contas: mais de 750 mortos, um terço deles crianças, e mais de 3.000 feridos, metade deles mulheres e crianças. Somos, no entanto, os que estamos fora de Gaza, bombardeados com discursos que pretendem essencialmente nos fazer esquecer que os cadáveres existem e se multiplicam.

Uma após a outra, são desfraldadas as cortinas que, se não fizerem desaparecer os mortos, nos farão vê-los com outras cores e, eventualmente, justificar o massacre.

A afirmação de que os ataques israelenses são uma resposta aos foguetes palestinos e constituem o único remédio possível é tão falsa que não deveria resistir a um instante de reflexão. No entanto, o mantra é repetido com tamanha calma e com tamanha insistência que se transforma tanto em discurso oficial da imprensa, dos diplomatas e dos estadistas quanto em ponto de partida para qualquer leitura dos fatos.

O simples fato de que esse discurso encontra um lugar e as pessoas se permitem sustentá-lo com ares de grande seriedade é suficiente para embaçar a visão de quem porventura pensasse questionar a legalidade das ações israelenses e as de seus líderes.

Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que se faz evidente a qualquer estudante de direito internacional: que Israel viola inúmeras normas internacionais e que os líderes israelenses e seus comandantes militares estão cometendo diariamente crimes de guerra e crimes contra a humanidade e que, num mundo em que o direito fosse menos refém da política, seriam todos julgados pelo Tribunal Penal Internacional.

O direito internacional avançou muito durante o último século, ao longo do qual manteve em seu cerne a preocupação com a paz e com a segurança internacionais. Suas normas incorporaram valores tais como a proteção dos inocentes e o combate à impunidade. Instituições foram criadas para preservar a paz e para julgar os criminosos.

Mas esse mesmo direito traz em si os traços de sua própria fraqueza e, nestes dias, se faz pequeno, se faz ausente, junto com suas instituições.

Acompanhar a crônica dos eventos e contar os mortos e as tragédias tampouco basta para enxergar claramente. É preciso levantar o olhar e lembrar o contexto em que se inscrevem os ataques do momento.

Israel há muito trabalha para tornar impossível um Estado palestino viável e para forçar os palestinos a renunciarem a seus direitos históricos e legítimos. Ao longo do tempo, com o apoio incondicional dos EUA, com a aceitação complacente da Europa, adquiriu o apoio dos líderes do Fatah e de vários governos árabes. Resta agora impor aos palestinos uma liderança e um caminho diferentes daqueles que eles elegeram, derrubar o Hamas e extinguir a resistência ao esvaziamento dos direitos palestinos.

O que está em jogo agora é mais do que a capacidade dos palestinos de lançar foguetes contra Israel. O que se está desenrolando é um capítulo decisivo do jogo geopolítico no Oriente Médio. Israel precisa dar uma demonstração cabal de sua força e de sua capacidade militar e pretende eliminar um dos últimos obstáculos à capitulação palestina. Se, ao final dessa campanha, os palestinos ainda tiverem a capacidade de resistir, Israel terá sofrido uma derrota relativa.

Para enxergar, é preciso também decifrar e não se deixar hipnotizar pelo circo da diplomacia oficial. Para entender, é preciso aceitar que discursos vazios nas cúpulas ensaiadas e abortadas, nas discussões do Conselho de Segurança e nas entrevistas são apenas isto: discursos vazios.

As posições dos Estados e das instituições se fazem conhecer pelos atos e omissões e pelas suas consequências. Para além da encenação, deve-se perceber que, na prática, a comunidade internacional está dando a Israel tempo para levar a cabo a missão.

Assim como o direito se apequena porque a política o remete a um canto escondido, falta à diplomacia uma coluna vertebral moral.

A verdade, inconfessada, é que a comunidade internacional há muito desistiu de encontrar uma solução justa para a questão palestina e busca agora apenas um fim para essa questão. E, ao que parece, se esse fim vier pela via dos massacres e dos crimes, então que assim seja.

É preciso não se deixar anestesiar nem aceitar os véus como uma bem-vinda cegueira. É preciso não se render à opressiva sensação de impotência diante dos números que contam as massas ensanguentadas e inertes.

É preciso enxergar os cadáveres e, para além deles, os seres humanos.

SALEM H. NASSER, 41, é doutor em direito pela USP, coordenador do Centro de Direito Global da Direito GV e professor de direito internacional da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.

9 de janeiro de 2009

É positiva eventual revisão da Lei da Anistia? SIM

Justiça não é revanchismo

Kenarik Boujikian

Folha de S.Paulo

É GROTESCO falar em "revanchismo", ato pessoal de desforra por ofensa recebida, em referência à responsabilização dos atos inumanos, catalogados como crimes de lesa-humanidade, praticados por agentes do Estado ou pessoas que atuaram com sua autorização, apoio ou consentimento no período da ditadura instaurada em 1964. Trata-se de tema de Estado, e sua correspondência é justiça.

Acolhido o pleito social e político de necessidade de construção da democracia, sobreveio a Lei da Anistia, que reconheceu a injustiça da situação de fato e da aplicação das leis penais vigentes para os que se opuseram ao regime militar e é exclusiva para aqueles que cometeram crimes políticos e conexos. Mas ainda não resgatamos a verdade e a memória nem fizemos justiça, o que se choca com o ideário de consolidação do Estado democrático de Direito.

O Programa Nacional de Direitos Humanos estabelece a modernização da legislação para a promoção do direito à memória e à verdade, como diretriz. Revisão imprescindível, pois há muito entulho autoritário, atinente à lei de segurança nacional, aos arquivos secretos etc. No tocante à impunidade dos torturadores, desnecessária a alteração da lei de anistia.

A OAB ingressou em 2008 com ação para que o STF interprete a lei e declare que ela não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, na medida em que aqueles delitos não são considerados políticos, tampouco conexos. O processo está com o procurador-geral da República desde fevereiro de 2009 e, devolvido, o ministro relator, Eros Grau, poderá colocá-lo em julgamento.

A sociedade clama ao Supremo a resposta necessária para a construção da paz. Não aceita a impunidade e não almeja vindita. Encaminha apelo, lançado pelo Comitê contra a Anistia aos Torturadores, assinado, entre outros, por Antonio Candido, Chico Buarque de Holanda, Aloysio Nunes Ferreira, Chico Whitaker, Alberto Silva Franco, Marilena Chaui, Leandro Konder, Hélio Bicudo, Boaventura de Sousa Santos e mais 11 mil pessoas (www.ajd.org.br).

Quer justiça, dentro dos parâmetros da dignidade humana, estabelecidos na Constituição, em convenções e em tratados internacionais.

Os regimes ditatoriais da América Latina adotaram um sistema penal paralelo e subterrâneo. Impuseram penas sem processo, cometeram homicídios, desaparecimentos forçados, torturas, suplícios, sequestros, crimes sexuais, tudo com requintes de crueldade.

Para enfrentar esse legado de violência, vários países já compreenderam o sentido do direito penal internacional. Revelam a verdade, resgatam a memória e examinam as violações ocorridas no período ditatorial à luz da Justiça, e o fazem na perspectiva de que os crimes contra a humanidade protegem bens jurídicos que extrapolam os limites do direito penal nacional e atinge a comunidade internacional. Atinge a humanidade.

É necessário que o passado de violação e impunidade não continue a ser o parâmetro do presente para que possamos consolidar a democracia e, no futuro, viver em um Brasil que não abrace a cultura autoritária de violência no seu dia a dia.

Hitler dizia que ninguém se lembrava mais do genocídio de 1,5 milhão de armênios. Assim tivemos o genocídio dos judeus. Crimes que não atingiram apenas aquelas pessoas e povos, mas toda a humanidade.

Sobre a dor e o sangue deles é que foram forjadas as normas internacionais que não admitem a impunidade dos crimes contra a humanidade, que protegem direitos inderrogáveis acolhidos pelo direito internacional, tratando-se de "ius cogens", normas que vinculam independentemente da vontade dos sujeitos da relação jurídica e que todos os países signatários, como o Brasil, têm a obrigação internacional de investigar e punir -e para os quais não há anistia ou prescrição.

Afirmar que houve anistia para os torturadores é ética e juridicamente insustentável. Fere o patamar civilizatório em que a humanidade se encontra. Justiça! Já não é sem tempo.

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE , juíza de direito em São Paulo, é co-fundadora e secretária da Associação Juízes para a Democracia.

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