1 de maio de 2008

O que aprendemos, se é que aprendemos alguma coisa?

Tony Judt

The New York Review of Books

May 1, 2008 issue

Tradução / O século XX mal acabou e suas disputas e realizações, ideais e medos já se perderam nas sombras do esquecimento. No Ocidente, sempre que possível tivemos grande pressa em desconsiderar a bagagem econômica, intelectual e institucional do século passado, e encorajamos os outros a fazer o mesmo. A partir de 1989, com uma confiança ilimitada e uma reflexão insuficiente, deixamos o século XX para trás. Enveredamos sem medo no seu sucessor, imersos em meias verdades a serviço do que desejamos crer: o triunfo do Ocidente, o fim da História, o momento unipolar americano, a marcha inelutável da globalização e da liberdade de mercado.

A crença de que aquele tempo ficou para trás e agora tudo é diferente nos afeta bem mais do que os finados dogmas e instituições comunistas dos tempos da Guerra Fria. Durante os anos 1990, e novamente em seguida ao 11 de setembro de 2001, mais de uma vez me choquei com a perversa insistência contemporânea em não compreender o contexto dos dilemas de hoje; em não dar ouvidos a algumas das cabeças mais sensatas das últimas décadas. Com a insistência em procurar ativamente esquecer, em vez de lembrar; em negar a continuidade e proclamar o ineditismo em todas as ocasiões possíveis. Adquirimos uma estridente insistência em reafirmar que o passado pouco tem de interessante a ensinar. O nosso mundo, asseguramos, é novo; seus riscos e oportunidades não têm precedentes.

Depois de 1918, enquanto todos concordavam que as coisas nunca voltariam a ser como antes, a forma que o mundo do pós-guerra deveria assumir foi idealizada e contestada em toda parte, sob a longa sombra da experiência e do pensamento do século XIX. A economia neoclássica, o liberalismo, o marxismo (e seu enteado, o comunismo), a "revolução", a burguesia e o proletariado, o imperialismo e o "industrialismo" - os blocos usados na constituição do mundo político do século XX - eram todos artefatos do século XIX. Mesmo aqueles que, a exemplo de Virginia Woolf, acreditavam que "por volta de dezembro de 1910 o caráter humano mudou" - que as profundas mudanças culturais do fin de siècle europeu tinham transformado completamente os termos da troca intelectual - ainda assim dedicavam uma quantidade surpreendente de energia travando uma luta inglória com a sombra dos seus predecessores. O peso do passado se fazia sentir no presente.

Hoje, em contraste, tratamos o século passado com grande ligeireza. Claro que lhe erguemos memoriais em toda parte: santuários, placas, locais de visitação. Até mesmo parques temáticos de fundo histórico são monumentos públicos ao "passado". Mas o século XX que celebramos é apresentado curiosamente fora de foco. A esmagadora maioria dos sítios oficialmente dedicados à conservação da memória do século XX é ou confessadamente nostálgico-triunfalista (louvando homens famosos e celebrando grandes vitórias) ou então, e cada vez mais, oportunidade para a rememoração de um sofrimento seletivo.

O século XX, assim, está a caminho de ser transformado num palácio de memória moral: uma câmara de horrores históricos, com usos pedagógicos, cujas várias estações atendem pelos rótulos de "Munique", "Pearl Harbor", "Auschwitz", "Gulag", "Armênia", "Bósnia" ou "Ruanda". Com o 11 de Setembro figurando como uma espécie de coda suplementar, um sangrento pós-escrito é dirigido àqueles que quiseram esquecer as lições do século, ou deixaram de aprendê-las. O problema dessa representação lapidar do século passado como uma era singularmente horrenda, da qual hoje, felizmente, já emergimos, é que não é uma boa descrição. De muitas maneiras, foi de fato uma época terrível, um tempo de brutalidade e sofrimento em massa talvez sem igual em toda a história conhecida. O problema é a mensagem: que deixamos tudo isso para trás, que o significado do passado é claro e que agora podemos avançar - desembaraçados dos erros anteriores - rumo a tempos melhores e diferentes.

Essa rememoração oficial não contribui para a nossa avaliação ou consciência do passado. Funciona como um substituto, um sucedâneo. Em vez de ensinarmos história, levamos as crianças a percorrer museus e memoriais e, o que é pior, as estimulamos a ver o passado - e as suas lições - através do vetor do sofrimento dos seus antecessores. Hoje, a interpretação "comum" do passado recente compõe-se, assim, de fragmentos múltiplos de vários passados, cada um deles (judeu, polonês, sérvio, armênio, alemão, asiático-americano, palestino, irlandês, homossexual) marcado pela condição ostensiva de vitimado.

O mosaico resultante, em vez de nos ligar a um passado comum, separa-nos dele. Por maiores que fossem os defeitos das narrativas nacionais que nos eram ensinadas, por mais que o seu foco fosse seletivo e a sua mensagem instrumental, pelo menos elas tinham a vantagem de fornecer à nação referências passadas para a experiência do presente. A história tradicional, da maneira como foi ensinada a gerações de escolares e universitários, dava um sentido ao presente por meio da referência ao passado: nomes, lugares, inscrições, idéias e alusões podiam ser organizados numa narrativa memorizada do dia de ontem. Atualmente, esse processo se inverteu. O passado só adquire sentido através da referência às nossas múltiplas, e muitas vezes contrastantes, atribulações atuais.

Esse caráter estrangeiro e desconcertante do passado deve-se, em parte, à mera velocidade das mudanças contemporâneas. A "globalização" realmente revirou a vida das pessoas de tal forma que seus pais ou avós teriam grande dificuldade em imaginar. Muito do que, por décadas e mesmo por séculos, nos parecia familiar e permanente vem caindo cada vez mais rápido no esquecimento. O passado, ao que tudo indica, é realmente um outro país: nele, as coisas eram feitas de outra maneira.

A expansão das comunicações é um caso exemplar. Até as últimas décadas do século XX, a maioria das pessoas tinha um acesso limitado à informação. Graças à educação nacional, à rádio e televisão controladas pelo Estado e a uma cultura impressa comum, todos passaram a ter a mesma probabilidade de saber praticamente as mesmas coisas dentro de um Estado, nação ou comunidade. Hoje, ocorre o contrário. A maioria das pessoas fora da África subsaariana tem acesso a uma quantidade quase infinita de dados. Na falta, porém, de uma cultura comum, as informações e idéias fragmentadas que as pessoas escolhem ou encontram são determinadas por uma multiplicidade de preferências, afinidades e interesses. Com o passar dos anos, cada um de nós tem menos pontos em comum com os mundos em rápida multiplicação dos nossos próprios contemporâneos, sem falar do mundo dos que vieram antes de nós.

Qual é a conseqüência mais funesta da nossa pressa em deixar para trás o século XX? Nos Estados Unidos, pelo menos, é termos esquecido do que a guerra significa. E por um motivo particular. Em boa parte do continente europeu, da Ásia e da África, o século XX foi vivido como uma sucessão de guerras. A guerra representou invasão, ocupação, deslocamento, privação, destruição e assassinatos em massa. Os países que perdiam as guerras muitas vezes também perderam habitantes, território, recursos naturais, segurança e independência. Mesmo os países que emergiam formalmente vitoriosos tinham experiências comparáveis, e rememoravam a guerra com uma feição semelhante à dos derrotados.

A Itália depois da I Guerra Mundial, a China depois da II Guerra e a França depois de ambas podem ser mencionadas nesse caso: todas saíram "vencedoras", mas devastadas. E houve ainda as nações que venceram uma guerra, mas "perderam a paz", desperdiçando as oportunidades proporcionadas pela vitória. Os aliados ocidentais em Versalhes, assim como Israel, nas décadas que se seguiram à sua vitória de junho de 1967, são os exemplos mais flagrantes.

Além disso, no século XX, guerra quase sempre significou guerra civil: muitas vezes encoberta pelo rótulo de ocupação ou "libertação". A guerra civil desempenhou um papel significativo na "limpeza étnica", e provocou alguns dos grandes deslocamentos forçados de populações no século XX, tanto na Índia e na Turquia como na Espanha e na Iugoslávia. Da mesma forma que a ocupação estrangeira, a guerra civil é uma das terríveis memórias "comuns" dos últimos 100 anos. Em vários países, a "superação do passado" - isto é, um acordo para ultrapassar ou esquecer (ou negar) a memória recente de conflitos entre comunidades - transformou-se em objetivo primário de governos do pós-guerra, às vezes alcançado, às vezes causador de excessos.

A guerra não era apenas uma calamidade em si mesma. Ela trazia outros horrores em seu rastro. A I Guerra Mundial levou à militarização sem precedentes da sociedade, à adoração da violência e a um culto de morte que durou muito mais que a guerra propriamente dita e preparou o terreno para as catástrofes políticas que se seguiram. Os Estados e as sociedades tomados durante e depois da II Guerra Mundial, por Hitler ou Stálin (ou pelos dois, em seqüência), viveram não só a ocupação e a exploração, como também a degradação e a corrosão das leis e das normas da sociedade civil. As próprias estruturas da vida civilizada - as regras, as leis, os professores, os policiais, os juízes - desapareceram ou assumiram um significado sinistro: longe de garantir a segurança, o próprio Estado transformou-se na maior fonte de insegurança.

A reciprocidade e a confiança, seja entre vizinhos, colegas, dirigentes ou comunidade, entraram em colapso. Comportamentos que seriam aberrantes em circunstâncias habituais - roubo, desonestidade, dissimulação, indiferença para com o infortúnio alheio e exploração oportunista do seu sofrimento - tornaram-se não apenas normais como, às vezes, os únicos meios de alguém salvar a família e se salvar. A divergência ou a oposição eram sufocadas pelo medo universal.

A guerra, em suma, desencadeava um comportamento que seria inconcebível, além de aberrante, em tempos de paz. É a guerra, e não o racismo, o antagonismo étnico ou o fervor religioso, que leva à atrocidade. A guerra - a guerra total - sempre foi a condição prévia crucial para a criminalidade em massa na era moderna. Os primeiros campos de concentração foram criados pelos britânicos durante a Guerra dos Bôeres, entre 1899 e 1902. Sem a I Guerra Mundial, não haveria o genocídio dos armênios e seria altamente improvável que tanto o comunismo quanto o fascismo se apoderassem de Estados modernos. Sem a II Guerra Mundial não haveria o Holocausto. Não houvesse o envolvimento forçado do Camboja na Guerra do Vietnã, jamais teríamos ouvido falar de Pol Pot. Quanto ao efeito brutalizante da guerra sobre os próprios soldados comuns, ele foi copiosamente documentado.

Os Estados Unidos conseguiram passar ao largo de quase tudo isso. Os americanos talvez sejam o único povo que viveu o século XX sob uma luz muito mais benfazeja. Os Estados Unidos nunca foram invadidos. Não perderam vastas quantidades de cidadãos, nem grandes parcelas de território. Embora humilhados em distantes guerras neocoloniais (no Vietnã e, agora, no Iraque), jamais sofreram as plenas conseqüências de uma derrota. A despeito da sua ambivalência em relação às iniciativas mais recentes, a maioria dos americanos ainda acha que as guerras travadas pelo seu país foram, em sua maioria, "guerras boas".

Os Estados Unidos aumentaram bastante seu papel entre as nações após as duas guerras mundiais - uma situação bem diferente do que aconteceu com a Grã-Bretanha, também indiscutivelmente vitoriosa nesses conflitos, mas ao preço da quase-bancarrota e da perda de um império. Além disso, em comparação com os outros principais poderes litigantes do século XX, os Estados Unidos perderam relativamente poucos soldados nos campos de batalha, e praticamente não tiveram baixas civis.

Esse contraste merece uma ênfase estatística. Na I Guerra Mundial, os Estados Unidos sofreram pouco menos de 120 mil mortes em combate. Para o Reino Unido, a França e a Alemanha, as cifras são, respectivamente, de 885 mil, 1,4 milhão e mais de 2 milhões. Na II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos perderam cerca de 420 mil homens em combate, as perdas do Japão foram de 2,1 milhões, as da China de 3,8 milhões, as da Alemanha de 5,5 milhões e as da União Soviética estimadas em 10,7 milhões. O Memorial dos Veteranos do Vietnã, em Washington, registra a morte de 58 195 americanos ao longo de uma guerra que se estendeu por quinze anos. Já o exército francês perdeu o dobro disso em apenas seis semanas de combates, entre maio e junho de 1940.

Na batalha mais custosa travada pelo exército americano em todo o século - a Ofensiva das Ardenas, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945 -, morreram 19 300 soldados. Nas 24 horas iniciais da Batalha do Somme (1º de julho de 1916), o exército britânico teve mais de 20 mil baixas fatais. Na Batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho perdeu 750 mil homens e a Wehrmacht um número quase igual de combatentes.

Com isso, à exceção da geração que lutou na II Guerra Mundial, os Estados Unidos não têm memória de combate ou perda nem de longe comparável à das forças armadas de outros países. Mas são as baixas civis que deixam a marca mais duradoura na memória nacional, e aqui o contraste é ainda mais chocante. Apenas na II Guerra Mundial, os britânicos sofreram 67 mil mortes de civis. Na Europa continental, a França perdeu 270 mil civis. A Iugoslávia registrou a morte de mais de meio milhão de civis. A Alemanha, de 1,8 milhão. A Polônia, de 5,5 milhões. E se estima que a União Soviética tenha tido 11,4 milhões de mortes de civis. Essas cifras agregadas incluem cerca de 5,8 milhões de judeus mortos. Mais longe, na China, a contagem de mortos excedeu os 16 milhões. As perdas de civis americanos (excluindo a Marinha Mercante), nas duas guerras mundiais, somam menos de 2 mil mortos.

Conseqüentemente, os Estados Unidos são hoje a única democracia avançada em que figuras públicas glorificam e exaltam os militares, um sentimento comum na Europa antes de 1945, mas praticamente desconhecido nos dias de hoje. Os políticos americanos cercam-se dos símbolos e adornos da competência armada. Ainda em 2008, analistas americanos fustigam os aliados que hesitam em se envolver em conflitos armados. Acredito que seja essa disparidade nas lembranças da guerra e do seu impacto, mais que qualquer diferença estrutural entre os Estados Unidos e os países que lhe são comparáveis em outros aspectos, a responsável pelas suas distintas reações às crises internacionais de hoje.

A afirmação complacente dos neoconservadores, de que a guerra e o conflito são coisas que os americanos compreendem - em contraste com os europeus ingênuos, às voltas com suas fantasias pacifistas -, me parece totalmente equivocada: são os europeus (juntamente com os asiáticos e os africanos) que melhor entendem o que é a guerra. A maioria dos americanos tem a sorte de viver numa bem-aventurada ignorância do que ela realmente significa.

Esse mesmo contraste pode explicar a qualidade que caracteriza boa parte do que se escreve nos Estados Unidos sobre a Guerra Fria e as suas conseqüências. Nos relatos europeus sobre o fim do comunismo, dos dois lados da dita Cortina de Ferro, o sentimento predominante é de alívio diante do final de um capítulo longo e infeliz. Nos Estados Unidos, porém, essa história é normalmente registrada de forma triunfalista. E - por que não? - para muitos comentaristas e analistas políticos americanos, a mensagem do século XX é de que a guerra funciona. Daí o entusiasmo amplamente difundido pela guerra contra o Iraque. Para Washington, a guerra continua a ser uma opção - e, naquela ocasião, foi a primeira delas. Para o resto do mundo desenvolvido, ela é pensada como o último recurso.

A ignorância da história do século XX não contribui apenas para um deplorável entusiasmo pelo conflito armado. Também leva à identificação errônea do inimigo. Temos bons motivos para nos preocuparmos com o terrorismo e o desafio que ele representa. Mas antes de nos lançarmos a uma guerra de 100 anos para erradicar os terroristas da face da terra, é preciso considerar o seguinte: os terroristas nada têm de novo. Mesmo que sejam excluídos os assassinatos ou as tentativas de assassinato de presidentes e monarcas, e nos limitemos aos homens e mulheres que matam civis desarmados em busca de um objetivo político, os terroristas estão em atividade há bem mais de um século.

Já vimos terroristas inspirados pelo anarquismo, terroristas russos, terroristas indianos, terroristas árabes, terroristas bascos, terroristas malaios, terroristas tâmiles e dúzias de outros. Existiram, e ainda existem, terroristas cristãos, terroristas judeus e terroristas muçulmanos. Houve terroristas iugoslavos (os partisans) acertando contas na II Guerra Mundial; terroristas sionistas explodindo mercados árabes na Palestina antes de 1948; terroristas irlandeses financiados por americanos na Londres de Margaret Thatcher; terroristas mujahedin armados pelos Estados Unidos no Afeganistão dos anos 80; e assim por diante.

Ninguém que tenha vivido na Espanha, Itália, Alemanha, Turquia, Japão, Reino Unido ou França, para não falar de países usualmente mais violentos, pode ter deixado de perceber a onipresença de terroristas ao longo do século XX - usando armas de fogo, bombas, armas químicas, carros, trens, aviões e muitas outras coisas. O único fato que mudou nos últimos anos foi a manifestação, em setembro de 2001, do terrorismo homicida dentro dos Estados Unidos. E mesmo isso não era totalmente sem precedentes: os meios foram novos e a carnificina incomparável, mas o terrorismo em solo americano se manifestou ao longo do século XX.

O que dizer do argumento de que o terrorismo de hoje é diferente, um "choque de culturas" inspirado por uma tóxica mistura de religião e autoritarismo, o "islamofascismo"? Também essa interpretação tem amplo apoio numa leitura errônea da história do século XX. E existe aqui uma tripla confusão. A primeira consiste em identificar grosseiramente os diversos fascismos nacionais da Europa entre-guerras com os ressentimentos, as demandas e as estratégias muito diferentes dos (igualmente heterogêneos) movimentos e insurreições muçulmanos do nosso tempo - e querer atribuir a credibilidade das lutas antifascistas do passado às aventuras militares de motivação bem mais dúbia.

Uma segunda confusão advém de igualar um punhado de assassinos apátridas, impelidos por motivação religiosa, à ameaça representada no século XX pelos Estados prósperos e modernos que eram controlados por partidos políticos totalitários, comprometidos com a agressão externa e o extermínio em massa. O nazismo era uma ameaça à nossa própria existência, e a União Soviética chegou a ocupar metade da Europa. Mas e a Al-Qaeda? A comparação é um insulto à nossa inteligência - para não falar da memória daqueles que lutaram contra os ditadores. Mesmo os que defendem essas semelhanças não parecem acreditar nelas. Afinal, se Osama bin Laden fosse realmente comparável a Hitler ou Stálin, teríamos realmente respondido ao 11 de Setembro com a invasão de... Bagdá?

Mas o erro mais grave consiste em confundir forma e conteúdo: a definição dos vários terroristas e terrorismos do nosso tempo apenas pelos seus atos, mesmo tendo objetivos contrastantes e por vezes conflitantes. Seria como pôr no mesmo saco as Brigadas Vermelhas italianas, o grupo alemão Baader-Meinhof, o IRA Provisório irlandês, o ETA basco, os separatistas do Jura suíço e a Frente Nacional de Libertação da Córsega. E, então, afirmar que as diferenças entre eles são insignificantes, rotular o amálgama resultante da combinação de militantes ideológicos que desferem tiros no joelho dos adversários, atiradores de bombas e assassinos políticos de "extremismo europeu" (ou "cristofascismo", talvez?), e em seguida declarar contra esse modelo uma guerra armada, sem quartel e sem meta definida.

A simplificação de inimigos e ameaças, essa facilidade em acreditar que estamos em guerra contra os "islamofascistas", "extremistas" de uma cultura estranha, de algum "Islamistão" distante, que nos odeiam por sermos quem somos, e se dedicam à destruição do nosso "modo de vida", essa simplificação é um sinal seguro de que esquecemos a grande lição do século XX: a facilidade com que a guerra, o medo e o dogma podem nos levar a demonizar os outros, negando-lhes uma humanidade como a nossa ou a proteção das nossas leis, para submetê-los a coisas indizíveis.

De que outra maneira podemos explicar nossa indulgência atual para com a tortura? Porque não há dúvida de que a toleramos. O século XX começou com a Convenção de Haia sobre as leis da guerra. Ainda em 2008, o século XXI tem em seu passivo o campo de prisioneiros de Guantánamo. Ali, e em outras prisões secretas, os Estados Unidos submetem terroristas ou suspeitos de terrorismo a torturas rotineiras. Existem muitos precedentes para isso no século XX, claro, e não apenas em ditaduras. Os britânicos torturavam os terroristas em suas colônias da África oriental até a década de 50. Os franceses torturavam terroristas argelinos que capturavam na "guerra suja" para manter seu domínio sobre o país.

No auge da Guerra da Argélia, Raymond Aron publicou dois ensaios vigorosos, instando a França a sair da colônia e a conceder-lhe a independência. Aquela guerra, insistia ele, não tinha sentido, e a França não tinha como vencê-la. Anos mais tarde, perguntaram a Aron por que também não se juntou aos que combatiam o uso da tortura, ao mesmo tempo que se opunha ao domínio da França sobre a Argélia. "Mas o que eu teria obtido, proclamando a minha oposição à tortura?", respondeu ele. "Nunca encontrei ninguém que fosse a seu favor."

Pois os tempos mudaram. Nos Estados de hoje, existem muitas pessoas racionais e respeitáveis que defendem a tortura - nas circunstâncias corretas e quando aplicadas por quem tem méritos. O professor Alan Dershowitz, da Faculdade de Direito de Harvard, escreve que "a mera análise da relação custo-benefício do emprego dessas torturas não-letais [para extrair a tempo informações perecíveis de um prisioneiro] parece mais que convincente". A professora Jean Bethke Elshtain, da Faculdade de Teologia da Universidade de Chicago, admite que a tortura continua a ser um horror e é "em geral [sic]... interdita". Entretanto, no caso do interrogatório de "prisioneiros no contexto de uma guerra letal e perigosa contra inimigos que não conhecem limites, há momentos em que essa regra pode ser desobedecida".

Essas afirmações terríveis são ecoadas pelo senador Charles Schumer (democrata de Nova York), que, numa audiência de 2004 no Senado, afirmou que "deve haver poucas pessoas nesta sala ou nos Estados Unidos que digam que a tortura nunca deva ser usada". Certamente não o juiz da Suprema Corte Antonin Scalia, que declarou, em fevereiro de 2008, que seria um absurdo dizer que a tortura não pode ser usada. Nas palavras dele: "Depois que isto é reconhecido, o jogo muda de figura. E o quanto a ameaça precisa ser iminente? E o quanto pode ser intensa a dor infligida? Acho que essas questões não são nem um pouco fáceis. Mas sei que ninguém pode se apresentar em toda confiança, satisfeito consigo mesmo, e dizer: 'Ah, é tortura, e portanto é uma coisa ruim.'"

Foi precisamente por essa decisão, de que "é tortura e, portanto, uma coisa ruim", que até pouco tempo atrás se distinguia a democracia das ditaduras. Nós nos orgulhamos de ter derrotado o "Império do Mal" dos soviéticos. De fato. Mas talvez devamos ler de novo as memórias dos que sofreram nas mãos desse império - as memórias de Eugen Loebl, Artur London, Jo Langer, Lena Constante e incontáveis outros - e então comparar os tormentos degradantes que sofreram com os tratamentos aprovados e autorizados pelo presidente Bush e o Congresso. Serão tão diferentes assim?

Escorregamos ladeira abaixo. As distinções mais sofisticadas que fazemos hoje na guerra contra o terror - entre o império da lei e circunstâncias "excepcionais", entre cidadãos e não-cidadãos, aos quais tudo pode ser feito; entre as pessoas normais e os "terroristas"; entre "nós" e "eles" - não são novas. Todas foram invocadas ao longo do século XX. São as mesmíssimas distinções que autorizaram os piores horrores do passado recente: campos de internação, deportação, tortura e assassínio - os crimes em resposta aos quais sempre murmuramos "nunca mais". Então, o que julgamos ter aprendido com o passado? De que serve o nosso culto moralista da memória e dos memoriais?

Tony Judt (1948-2010) foi o fundador e diretor do Remarque Institute da NYU e autor de Postwar: A History of Europe Since 1945, Ill Fares the Land, e The Burden of Responsibility: Blum, Camus, Aron, and the French Twentieth Century, entre outros livros.

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