14 de março de 2007

A mais espetacular jogada pela esquerda desde George Best

Por todo os EUA, hordas de comunistas e anarquistas estão começando a jogar futebol. Alguém aí pensou em "sem juízes e sem mestres"?

Steven Well

The Guardian

Tradução / Quatro anos atrás eu troquei a quebrada, paroquial e entediantemente Blair-arruinada Grã-Bretanha pela super-reluzente América. E assim como milhares de refugiados ingleses antes de mim, fiquei chocado de encontrar os americanos não nos ranchos, mas em campos de futebol. Campos que existem aos milhares, interligados, de oceano a oceano - tantos que alguém pode começar driblando em New York e terminar em Los Angeles sem ter tirado as chuteiras uma vez sequer. Ou quase.

E quem joga nesses campos? Milhares de machos sujos e bêbados de 300 libras como na Inglaterra? Não muitos. Mulheres? Sim. Crianças? Sim. Comunistas - meu deus, sim. Incontáveis hordas deles.

Em Duluth, Minnesota, você encontra a Commie Soccer League, liga comunista de futebol ("todas as regras são democraticamente votadas"). Em Chicago um time anarquista chamado Arsenal organiza anualmente um torneio de futebol chamado "Matches and Mayhem" (algo como Confrontos e Desordem). Baltimore é abençoada por um "time de futebol punk-rock" chamado CCCP FC (uma vez que a sigla significa "Charm City Cunt Punchers", algo como "Charmosos Socadores de Buceta da Cidade", as credenciais políticas do clube podem ser consideradas um pouco suspeitas por aqueles que tiverem alguma inclinação feminista).

Em Portland, há um jogo organizado pelos auto-intitulados "hippies de esquerda preguiçosos e fedidos", enquanto em Cape Cod a Socialist Saturday Morning Sandy Pond Soccer League (Liga Socialista de Sábado de Manhã de Futebol no Tanque de Areia) tem um website que toca o antigo hino nacional soviético. E eu pessoalmente joguei um futebol de salão "20 pra cada lado" entre os Philadelphia's RASH (Red Action Skinheads, os skinheads comunistas) e os SPAR (Skins and Punks Against Racism, os punks e skins contra o racismo).

Há jogos esquerdistas em Winnipeg ("sem juízes, sem mestres!"), Calgary (casa do Calgary Libre! FC), Wilmington e Austin. E em New Brunswick, Denver, Seattle, East Lansing, San Diego, Maine e Washington DC (onde há um jogo de Halloween com jogadores fantasiados todo outubro). E há um jogo anarco-comunista de domingo que acontece no New York's Tompkins Square Park há anos.

Mas é San Francisco que o futebol anarco-comunista americano realmente tomou. Desde 2002, o comunista Left Wing Futbol Club tem regularmente tido suas bundas rosas servidas em um prato pelos anarquistas do todo-negro Krondstadt FC, e mais recentemente ambos participaram do anual BADASS (Bay Area Direct Action Soccer Series, ou Liga de Futebol de Ação Direta de Bay Area), parte integrante do BASTARD (Berkeley Anarchist Students of Theory And Research & Development, ou Estudantes Anarquistas de Teoria, Pesquisa e Desenvolvimento de Berkeley), uma conferência anarquista.

O primeiro jogo da história entre Left Wing e Krondstadt foi interrompido por um policial solitário quando um mascote anarquista correu pela linha de fundo carregando uma enorme bandeira negra e entoando "Agitate! Agitate! Score a goal and smash the state!" (algo como Agite! Agite! Marque um gol e esmague o estado!"). O tipo de coisa que faz parte do conteúdo do futebol esquerdista americano.

A competição anual então se transformou em um tipo de instituição esportiva bizarro-americana. Em um jogo, a banda de marchas Brass Liberation Orchestra tocou A Internacional enquanto jogadores que pogavam socavam o ar e anarco-cheerleaders todas de negro e com botas de ciclista agitavam pompons feitos de saco de lixo e gritavam "Me dê um A! A! A de Anarquia!"

E não, isto não é o entediante futebol patriarcal do seu avô. "Eu cresci na Argentina, onde o melhor jogador faz uma dancinha com a bola e só a passa se for para outro melhor jogador por perto", disse para o West Bay Express a jogadora do Left Wing Marie Poblet. "Se nós queremos mudar o mundo, nós temos que mudar o jeito que jogamos".

Há também por lá alguns cantos de torcida engraçados, sendo o melhor: "Você diz que se espelha no Mao para a salvação? E o que me diz sobre a situação dos trabalhadores de Xinjiang?!". E substituições a todo tempo são permitidas, ao menos parcialmente, para assegurar que "mulheres, spices e pessoas de cor etc" estejam todos representados (embora essa afirmação possa ser uma brincadeira, é difícil dizer).

Porque futebol? "A natureza do jogo permite que pessoas com diferentes técnicas e habilidades joguem ao mesmo tempo", diz Paul Royal, do anarquista Detroit Riot FC. "Isso é importante porque nós da esquerda tentamos sempre ser inclusivos e apaixonados por nossos princípios políticos. E também porque não há jeito melhor de bloquear uma rua durante uma manifestação do que com um jogo de futebol instantâneo, improvisado na hora".

O curioso caso de amor entre os esquerdistas dos EUA e o futebol pode ter começado em 2000, quando a liga anarquista baseada em Washington intitulada Anarchist Soccer League desafiou o Banco Mundial para um "contra". Os cachorros fujões capitalistas não apareceram e perderam por W.O. Anti-desportivamente, eles também falharam em cancelar a dívida mundial. Desde então, jogos de futebol instantâneos passaram a pipocar em manifestações anti-capitalistas e anti-guerra por todo os EUA.

Mas você vai perceber que a maior parte deste artigo foi escrita no passado. Há uma razão para isso. Quando eu recomecei minha pesquisa sobre o futebol anarco-comunista americano (que vai fazer parte do livro A Revolução do Futebol: A Ameaça Futebolística spice, Feminina e Comunista ao "American Way of Life" - editores e agentes, peguem o caminho da minha casa agora!), eu dei de cara com uma escura, desestimuladora, selvagem explosão de links quebrados, websites desativados e esvaziadas e antigas salas de bate-papo, comunidades virtuais e proto-blogs sobre futebol anarco-comunista. A maioria não era atualizada há meses (e em alguns casos, anos).

Tinha o futebol anarco-comunista americano sido uma mera moda-de-virada-do-século da ala radical-chique? Ou essa falta de atividade era algo mais sinistro? Tinha a cena sido destruída pelo vicioso aparato neocon dirigido pela opressão estatal? Tinha o futebol anarco-comunista caído nas garras dos esquadrões sujos da CIA, dos agentes infiltrados do FBI, dos patrulheiros reformistas e dos hackers do Departamento de Segurança Nacional?

Eu telefonei. Eu mandei emails. Eu colei panfletos nos postes de luz. Eu escondi mensagens criptografadas nos buracos das árvores. E então - tão vagarosamente quanto o primeiro floco de neve trilhando seu caminho e determinando o fim da primavera - as respostas começaram a chegar. De maoístas e trotskistas e anarquistas e feministas, ativistas anti-guerra, anti-racismo, anti-imperialismo e anarquistas de todas as tendências. E todos eles diziam a mesma coisa: "Estamos aqui, camarada! E prontos pra jogar! Mas assim que estiver um pouquinho mais quente. Você saiu de casa ultimamente? O tempo lá fora ainda está congelante".

O futebol anarco-comunista americano está vivo e passa bem. Está apenas hibernando. Nesta primavera eles vão começar novamente a mudar a América - jogo democraticamente arbitrado (com substituições livres) a jogo.

9 de março de 2007

Ecossocialismo e planejamento democrático

O ecossocialismo é uma tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical ao que Marx chamou de "progresso destrutivo" do capitalismo. Ele promove uma política econômica baseada em critérios não monetários e extraeconômicos de necessidades sociais e equilíbrio ecológico. De acordo com O'Connor, o objetivo do socialismo ecológico é uma nova sociedade baseada na racionalidade ecológica, controle democrático, igualdade social e a predominância do valor de uso sobre o valor de troca. Eu acrescentaria que esses objetivos requerem: (a) propriedade coletiva dos meios de produção ("coletivo" aqui significando propriedade pública, cooperativa ou comunitária); (b) planejamento democrático, que possibilita à sociedade definir as metas de investimento e produção, e (c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Em outras palavras, uma transformação social e econômica revolucionária. Para os ecossocialistas, o problema das principais correntes da ecologia política, representadas pela maioria dos partidos verdes, é que elas parecem não levar em conta a contradição intrínseca entre a dinâmica capitalista de expansão ilimitada do capital e acumulação de lucros e a preservação do ambiente. Isso leva a uma crítica do produtivismo, que muitas vezes é relevante, mas não leva além de uma "economia de mercado" ecologicamente reformada. O resultado foi que muitos partidos Verdes se tornaram o álibi ecológico de governos social-liberais de centro-esquerda.

Michael Löwy


Vol. 43


Se for impossível aplicar reformas no capitalismo a fim de colocar os benefícios a serviço da sobrevivência humana, que outra alternativa existe senão optar por um gênero de economia planificada no nível nacional e internacional? Problemas como a mudança climática necessitam da “mão visível” do planejamento direto… No seio do capitalismo nossos dirigentes corporativistas não podem de maneira alguma evitar, sistematicamente, tomadas de decisão sobre o meio ambiente e a economia que são errôneas, irracionais e, finalmente, suicidas em nível mundial dada a tecnologia que eles têm à sua disposição. Então, que outra escolha nós temos senão vislumbrar uma verdadeira alternativa ecossocialista?

Richard Smith [1]

O ecossocialismo tem como objetivo fornecer uma alternativa de civilização radical àquilo que Marx chamava de “o progresso destrutivo” do capitalismo. [2] É uma escolha que propõe uma política econômica visando às necessidades sociais e ao equilíbrio ecológico e, portanto, fundada em critérios não-monetários e extra-econômicos. Os argumentos essenciais que o sustentam têm suas origens no movimento ecológico, assim como na crítica marxista à economia política. Essa síntese dialética – vislumbrada por um grande espectro de autores, de André Gorz a Elmar Altvater, James O’Connor, Joel Kovel e John Bellamy Foster – é ao mesmo tempo uma crítica à “ecologia de mercado” que se adapta ao sistema capitalista e ao “socialismo produtivista” que fica indiferente à questão dos limites da natureza.

Segundo O’Connor, a meta do socialismo ecológico é uma nova sociedade fundada na racionalidade ecológica, no controle democrático, na igualdade social e na supremacia do valor de uso sobre o valor de troca. [3] Eu adicionaria as condições seguintes a fim de alcançar esses objetivos: a) a propriedade coletiva dos meios de produção (o termo “coletivo” aqui significa propriedade pública, comunitária ou cooperativa), b) um planejamento democrático que possa permitir à sociedade a possibilidade de definir seus objetivos no que concerne ao investimento e à produção e c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Colocando de outra forma, uma transformação revolucionária em nível social e econômico. [4]

Segundo os ecossocialistas, o problema das principais correntes da ecologia política, cujos representantes são os partidos verdes, é que estas não parecem levar em consideração a contradição intrínseca que existe entre a dinâmica capitalista – fundada sobre a expansão ilimitada do capital e a acumulação dos lucros – e a preservação do meio ambiente. O resultado disso é uma crítica ao produtivismo, muitas vezes pertinente, mas que não vai muito além das reformas ecológicas derivadas da “economia de mercado”. Consequentemente, os governos de centro-esquerda privilegiam as políticas sócio-liberais e se justificam, em matéria de ecologia, graças aos partidos verdes. [5]

Por outro lado, o problema das tendências dominantes da esquerda durante o século XX – a social-democracia e o movimento comunista de inspiração soviética – é que estas aceitavam o modelo de produção existente. Enquanto a primeira se limitava a uma versão reformada – no melhor dos casos keynesiana – do sistema capitalista, o segundo desenvolvia uma forma de produtivismo autoritária e coletivista – ou capitalismo de Estado. Nos dois casos os investimentos ambientais eram negligenciados ou, no mínimo, marginalizados.

Marx e Engels, eles próprios, tinham consciência das consequências destrutivas do modo de produção capitalista sobre o meio ambiente, como indicam diversos trechos de O capital. [6] E ainda estimavam que o objetivo do socialismo não era produzir cada vez mais bens, mas sim dar aos seres humanos o tempo livre para que pudessem desenvolver plenamente seu potencial. Nesse sentido, pouco compartilham da ideia de “produtivismo”, isto é, da ideia de que a expansão ilimitada da produção é um fim em si mesmo.

No entanto, alguns de seus escritos, nos quais a questão consiste na capacidade de o socialismo permitir o desenvolvimento das forças produtivas para além dos limites impostos pelo sistema capitalista, sugerem que a transformação socialista não concerne apenas às relações capitalistas de produção, as quais se teriam tornado um obstáculo (o termo empregado mais freqüentemente é “amarras”) ao livre desenvolvimento das forças produtivas. “Socialismo” queria dizer, sobretudo, apropriação social dessas capacidades produtivas, colocando-as a serviço dos trabalhadores. Eis aqui, por exemplo, uma passagem do Anti-Dühring de Friedrich Engels, um texto “canônico” para um grande número de gerações marxistas: sob o regime socialista “a sociedade toma posse abertamente e sem rodeios das forças produtivas que se tornaram grandes demais” no sistema existente. [7]

A ideologia do progresso

Ocaso da União Soviética ilustra os problemas que decorrem de uma apropriação coletivista do aparelho produtivo capitalista. A tese da socialização das forças produtivas existentes predominou desde o começo. Certamente, o movimento ecológico pôde se desenvolver durante os primeiros anos que se sucederam à Revolução Socialista de Outubro e o governo soviético adotou algumas medidas limitadas de proteção ambiental, mas com o processo de burocratização stalinista, a aplicação dos métodos produtivistas, tanto na agricultura quanto na indústria, foi imposta por meios totalitários, enquanto os ecologistas eram marginalizados ou eliminados. A catástrofe de Chernobyl é o exemplo final das consequências desastrosas da imitação das tecnologias ocidentais de produção. Se a mudança das formas de propriedade não for seguida por uma gestão democrática e uma reorganização ecológica do sistema de produção, tudo isso levará a um impasse.

Nos escritos de alguns dissidentes marxistas da década de 1930, como Walter Benjamin, já aparecia uma crítica à ideologia produtivista do “progresso” assim como à ideia de uma exploração “socialista” da natureza. Todavia, é sobretudo ao longo dos últimos decênios que o ecossocialismo propriamente dito se desenvolveu como desafio à tese da neutralidade das forças produtivas que tinha predominado no seio das principais tendências da esquerda durante o século XX.

Os ecossocialistas deviam se inspirar nas observações feitas por Marx a respeito da Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparelho capitalista de Estado e colocá-lo a seu serviço. Eles devem demolí-lo e substituí-lo por uma forma de poder político radicalmente diferente, democrático e não estático. A mesma idéia se aplica, mutatis mutandis, ao aparelho produtivo que, longe de ser “neutro”, traz em sua estrutura a marca de um desenvolvimento que favorece a acumulação do capital e a expansão ilimitada do mercado, o que o coloca em contradição com a necessidade de proteger o meio ambiente e a saúde da população. É por isso que devemos levar a cabo uma “revolução” do aparelho produtivo no panorama de um processo de transformação radical.

O grande valor dos avanços científicos e tecnológicos da era moderna é incontestável, mas o sistema produtivo deve ser transformado em seu conjunto e isso só é possível graças a procedimentos ecossocialistas, isto é, graças à criação de um planejamento democrático da economia que leve em conta a preservação dos equilíbrios ecológicos. O que pode desencadear a supressão de alguns ramos de produção como as centrais nucleares, algumas técnicas de pesca intensiva e industrial (responsáveis pela quase extinção de numerosas espécies marinhas), o desmatamento das áreas de floresta tropical etc. A lista é muito longa. Entretanto, a prioridade continua sendo a revolução do sistema energético que devia conduzir à substituição das fontes atuais (sobretudo a energia fóssil), responsáveis pela mudança climática e pelo envenenamento do meio ambiente, por fontes energéticas renováveis: a água, o vento, o sol. A questão da energia é capital, já que a energia fóssil é responsável pela maior parte da poluição do planeta e pelo desastre que representa o aquecimento global. A energia nuclear é uma falsa alternativa, não só em razão do risco de novos Chernobyl, mas também porque ninguém sabe o que fazer com os milhares de toneladas de resíduos radioativos – e com grande quantidade de centrais poluídas que se tornaram inúteis. Negligenciada desde sempre pelas sociedades capitalistas (por sua falta de “rentabilidade” ou de “competitividade”), a energia solar deve se tornar objeto de pesquisas e de desenvolvimento de ponta. Deve ter um papel central na construção de um sistema energético alternativo.

Planejamento democrático

Acondição necessária para alcançar esses objetivos é o pleno emprego eqüitativo (plein-emploi équitable). Essa condição é indispensável não somente para responder às exigências da justiça social, mas também para assegurar o apoio da classe operária, sem o qual o processo de transformação estrutural das forças produtivas não pode ser efetuado. O controle público dos meios de produção e um planejamento democrático são igualmente indispensáveis, isto é, decisões de ordem pública referentes ao investimento e à mudança tecnológica devem ser retiradas das mãos dos bancos e das empresas capitalistas, se quisermos que sirvam ao bem comum da sociedade.

No entanto, não basta colocar as decisões nas mãos dos trabalhadores. Em O capital, livro III, Marx define o socialismo como uma sociedade na qual “os produtores associados regulam racionalmente suas trocas (Stoffwechsel) com a natureza”. Entretanto, no primeiro livro d’O capital, deparamos com uma definição mais ampla: o socialismo é concebido como “uma associação de seres humanos (Menschen) livres que trabalham com meios comuns (gemeinschaftlichen) de produção”. [8] Trata-se de uma concepção muito mais apropriada: a produção e o consumo devem ser organizados racionalmente não somente pelos “produtores”, mas também pelos consumidores e, de fato, pelo conjunto da sociedade, seja a população produtiva ou “não produtiva”: estudantes, jovens, mulheres e homens que se dedicam aos trabalhos domésticos, aposentados etc.

Nesse sentido, o conjunto da sociedade será livre para escolher democraticamente as linhas produtivas que serão privilegiadas e o nível de recursos que devem ser investidos na educação, na saúde ou na cultura. [9] Os próprios preços dos bens de consumo não responderiam mais à lei da oferta e da procura, mas seriam determinados o quanto possível segundo os critérios sociais, políticos e ecológicos. No início, seriam aplicados apenas impostos sobre certos produtos e subvenções para outros, mas idealmente cada vez mais produtos e serviços seriam distribuídos de modo gratuito segundo a vontade dos cidadãos.

Longe de ser “despótico” em si, o planejamento democrático é o exercício da liberdade de decisão do conjunto da sociedade. Um exercício necessário para se libertar de “leis econômicas” e de “jaulas de ferro” alienantes e reificadas no seio das estruturas capitalistas e burocráticas. O planejamento democrático associado à redução do tempo de trabalho seria um progresso considerável da humanidade em direção ao que Marx chamava de “o reino da liberdade”: o aumento do tempo livre é na realidade uma condição para a participação dos trabalhadores na discussão democrática e na gestão da economia, assim como da sociedade.

Os partidários do livre mercado fazem referência ao fracasso do planejamento soviético para justificar sua oposição categórica a toda forma econômica organizada. Sabemos, sem entrar numa discussão sobre as conquistas e os fracassos do exemplo soviético, que se tratava evidentemente de uma forma de “ditadura sobre as necessidades”, para citar a expressão empregada por György Markus e seus colegas da Escola de Budapeste: um sistema não democrático e autoritário que dava o monopólio das decisões a uma oligarquia restrita de tecnoburocratas. Não foi o planejamento que levou à ditadura. Foi a limitação crescente da democracia no seio do Estado soviético e a instauração de um poder burocrático totalitário, depois da morte de Lenin, que deram lugar a um sistema de planejamento cada vez mais autoritário e não democrático. Se é verdade que o socialismo é definido pelo controle dos processos de produção pelos trabalhadores e a população em geral, a União Soviética sob Stalin e seus sucessores estava muito longe de corresponder a essa definição.

O fracasso da URSS ilustra os limites e as contradições de um planejamento burocrático cuja ineficácia e caráter arbitrário são flagrantes: não pode servir de argumento contra a aplicação de um planejamento realmente democrático. [10] A concepção socialista do planejamento não é nada mais que a democratização radical da economia: se é certo que as decisões políticas não devem caber a uma pequena elite de dirigentes, por que não aplicar o mesmo princípio às decisões de ordem econômica? A questão do equilíbrio entre os mecanismos do mercado e os do planejamento é sem dúvida um problema complexo: durante as primeiras fases da nova sociedade, os mercados ainda ocuparão, certamente, um lugar importante, mas, à medida que progredir a transição para o socialismo, o planejamento se tornará cada vez mais importante por ser oposto à lei do valor de troca. [11]

Engels insistia no fato de que uma sociedade socialista terá

que adaptar o plano de produção aos meios de produção, dos quais fazem parte especialmente as forças de trabalho. No fim das contas serão os efeitos úteis de diversos objetos de uso, comparados entre si e em relação à quantidade de trabalho necessária a sua produção, que determinarão o plano. [12]

No sistema capitalista o valor de uso é apenas um meio – e freqüentemente uma astúcia – subordinado ao valor de troca e à rentabilidade (isso explica porque há tantos produtos na nossa sociedade sem nenhuma utilidade). Na economia socialista planificada a produção dos bens e dos serviços responde somente ao critério do valor de uso, o que leva a consequências no âmbito econômico, social e ecológico cuja amplitude é espetacular. Como Joel Kovel observou:

O fortalecimento do valor de uso e as reestruturações subsequentes das necessidades tornam-se o parâmetro social da tecnologia, em vez da transformação do tempo em mais-valia e em dinheiro. [13]

O gênero de sistema de planejamento democrático considerado neste ensaio concerne às principais escolhas econômicas e não à administração de restaurantes locais, mercearias, padarias, pequenas lojas, empresas artesanais ou de serviços. Da mesma forma, é importante sublinhar que o planejamento não está em contradição com a autogestão dos trabalhadores em suas unidades de produção. Já que a decisão de transformar, por exemplo, uma fábrica de carros em unidade de produção de ônibus ou de tramways caberia ao conjunto da sociedade, a organização e o funcionamento interno da fábrica seriam geridos democraticamente pelos próprios trabalhadores. Houve um grande debate sobre o caráter “centralizado” ou “descentralizado” do planejamento, mas o importante continua sendo o controle democrático do plano em todos os níveis, local, regional, nacional, continental – e, assim esperamos, planetário, já que os temas da ecologia, como o aquecimento global, são mundiais e só podem ser tratados nesse nível. Esta proposta poderia ser chamada de “planejamento democrático global”. E, mesmo nesse nível, trata-se de um planejamento que se opõe àquilo que com freqüência é descrito como “planejamento central” porque as decisões econômicas e sociais não são tomadas por um “centro” qualquer, mas determinadas democraticamente pelas populações envolvidas.

Debate democrático e autogestão

Éclaro que haveria aí tensões e contradições entre os estabelecimentos autogeridos e as administrações democráticas locais e outros grupos sociais maiores. Os mecanismos de negociação podem ajudar a resolver numerosos conflitos desse gênero, mas, em última análise, caberia aos maiores grupos envolvidos, e somente se eles forem majoritários, exercerem seu direito de impor suas opiniões. Para dar um exemplo: uma fábrica autogerida decide descartar seus resíduos tóxicos em um rio. A população de toda uma região está ameaçada por essa poluição. Ela pode, nesse momento, depois de um debate democrático, decidir que a produção dessa unidade deve ser suspensa até que uma solução satisfatória para controlar esses resíduos seja encontrada. Idealmente, em uma sociedade ecossocialista, os próprios trabalhadores da fábrica teriam consciência ecológica suficiente para evitar decisões perigosas para o meio ambiente e para a saúde da população local. No entanto, o fato de introduzir meios que garantam o poder de decisão da população para defender os interesses mais gerais, como no exemplo precedente, não significa que as questões referentes à gestão interna não sejam submetidas aos cidadãos no nível da fábrica, da escola, do bairro, do hospital ou da cidade.

O planejamento socialista deve ser fundado no debate democrático e pluralista, em cada nível de decisão. Organizados sob a forma de partidos, de plataformas ou de qualquer outro movimento político, os delegados dos organismos de planejamento são eleitos e as diversas propostas são apresentadas a todos aqueles a quem elas concernem. Dito de outra forma, a democracia representativa deve ser enriquecida – e melhorada – pela democracia direta que permite às pessoas escolher diretamente – em nível local, nacional e, por último, internacional – entre diferentes propostas. O conjunto da população se interrogaria então a respeito da gratuidade do transporte público, de um imposto especial pago pelos proprietários de carros para subvencionar o transporte público, da subvenção da energia solar a fim de torná-la competitiva em relação à energia fóssil, da redução da jornada de trabalho para trinta ou 25 horas semanais ou menos, mesmo que isso acarretasse redução da produção. Como Ernest Mandel disse:

Os governos, os partidos políticos, os conselhos de planejamento, os cientistas, os tecnocratas ou quem quer que seja podem fazer propostas, apresentar iniciativas e tentar influenciar as pessoas… No entanto, em um sistema multipartidário tais propostas nunca serão unânimes: as pessoas farão sua escolha entre as alternativas coerentes. Assim, o direito e o poder efetivo de tomar decisões deveriam estar nas mãos da maioria dos produtores/ consumidores/ cidadãos e de mais ninguém. Há algo de paternalista ou despótico nessa postura? [14]

Uma questão se coloca: que garantia temos de que as pessoas farão as escolhas certas, as que protegem o meio ambiente, mesmo que o preço a pagar seja mudar uma parte de seus hábitos de consumo? Tal “garantia” não existe, somente a perspectiva razoável de que a racionalidade das decisões democráticas triunfará uma vez abolido o fetichismo dos bens de consumo. É certo que o povo cometerá erros fazendo más escolhas, mas os próprios especialistas não cometem erros? É impossível conceber a construção de uma nova sociedade sem que a maioria do povo tenha atingido uma grande consciência socialista e ecológica graças às suas lutas, à sua auto-educação e à sua experiência social. Então é razoável estimar que os erros graves – até mesmo as decisões incompatíveis com as necessidades relacionadas ao meio ambiente – serão corrigidos. [15] Em todo caso, podemos nos perguntar se as alternativas – o mercado impiedoso, uma ditadura ecológica dos “experts” – não são muito mais perigosas que o processo democrático, com todos os seus limites...

Certamente, para que o planejamento funcione, são necessários corpos executivos e técnicos que possam fazer funcionar as decisões, mas a autoridade deles seria limitada pelo controle permanente e democrático exercido pelos níveis inferiores, onde existe a autogestão dos trabalhadores no processo de administração democrática. Não podemos esperar, é claro, que a maioria da população empregue a integralidade de seu tempo livre na autogestão ou em reuniões participativas. Como Ernest Mandel observou:

A consequência da autogestão não é a supressão da delegação, mas uma combinação entre a tomada de decisão pelos cidadãos e um controle mais estrito dos delegados pelos seus eleitores respectivos. [16]

Economia participativa

“Aeconomia participativa” (ou parecon) concebida por Michael Albert foi objeto de debate no interior do movimento altermundialista ou Global Justice Movement (o movimento pela justiça global). Apesar de suas sérias limitações, como a ignorância da ecologia ou a oposição entre “parecon” e “socialismo”, este último reduzido ao modelo burocrático e centralista da União Soviética, o “parecon” tem algumas características comuns com o gênero de planejamento ecossocialista proposto no presente documento: a oposição ao mercado capitalista e ao planejamento burocrático, a confiança na auto-organização dos trabalhadores e no antiautoritarismo. O modelo de planejamento participativo de Albert foi fundamentado sobre uma construção institucional complexa:

Os trabalhadores e os consumidores determinam juntos a produção, avaliando de forma aprofundada todas as consequências. As instâncias de assistência decisória anunciam em seguida os índices de preços para todos os produtos, os fatores de produção, dentre os quais estão a mão-de-obra e o capital fixo. Esses índices são calculados em função do ano precedente e das mudanças ocorridas. Os consumi- dores (indivíduos, conselhos, federação de conselhos) respondem com propostas, utilizando esses preços como avaliação realista do conjunto de recursos, do material, da mão-de-obra, dos efeitos indesejáveis (tais como a poluição) e dos benefícios sociais inerentes a cada bem ou serviço. Simultaneamente, os trabalhadores individualmente, assim como seus conselhos e federações, fazem suas próprias propostas, anunciando o que eles prevêem produzir e os fatores de produção necessários, se baseando, eles também, nos preços como estimativa de valor social da produção e dos custos que ela implica. Com base nas propostas tornadas públicas pelos trabalhadores e pelos consumidores, os conselhos decisores podem calcular os excessos de oferta ou de demanda para cada produto e revisar o índice de preços segundo um método que é objeto de um acordo social. É a vez de os conselhos revisarem, então, suas propostas … Na medida em que nenhum agente tem mais influência do que outro no processo de planejamento, em que cada um avalia os custos e os benefícios sociais com um peso que corresponde a seu grau de implicação na produção e no consumo, esse processo gera simultaneamente eqüidade, eficácia e autogestão. [17]

O principal problema dessa concepção – que, na verdade, não é “muito simples” como afirma M. Albert, mas extremamente elaborada e por vezes bastante obscura – é que ela parece reduzir o “planejamento” a um gênero de negociação entre produtores e consumidores a respeito de preços, recursos, produtos finais, oferta e demanda. Por exemplo, o conselho de trabalhadores de uma indústria de automóveis se reuniria com o conselho de consumidores para discutir os preços e adaptar a oferta à demanda. O que se omite aqui é justamente o tema principal do planejamento ecossocialista: a reorganização do sistema de transporte reduzindo radicalmente o lugar do veículo individual. Já que o ecossocialismo necessita da supressão total de alguns setores industriais – as centrais nucleares, por exemplo – e o investimento maciço nos setores de tamanho reduzido ou quase inexistentes (como a energia solar), como tudo isso pode ser gerado por “negociações cooperativas” entre as unidades de produção existentes e os conselhos de consumidores a respeito dos “recursos” e dos “preços indicativos”?

O modelo de Albert remete às estruturas tecnológicas e produtivas atuais e ele é por demais “economicista” para levar em conta os interesses sociopolíticos e socioecológicos da população – os interesses dos indivíduos como seres humanos e cidadãos, habitantes de um meio ambiente natural ameaçado, e que não podem ser reduzidos a seus interesses econômicos como produtores e consumidores. Em sua concepção, não só o Estado como instituição é colocado de lado – o que é uma escolha respeitável – mas também a política como confrontação de diferentes escolhas, quer sejam de ordem econômica, social, política, ecológica, cultural e civilizacional em nível local, nacional e internacional.

Esse ponto é muito importante porque a passagem do “progresso destrutivo” do sistema capitalista ao socialismo é um processo histórico, uma transformação revolucionária e constante da sociedade, da cultura e das mentalidades – e a política no sentido mais amplo, tal como definida antes, está inegavelmente no coração desse processo. É importante precisar que tal evolução não pode nascer sem uma mudança revolucionária das estruturas sociais e políticas e sem o apoio ativo da grande maioria da população ao programa ecossocialista. A tomada de consciência socialista e ecológica é um processo cujos fatores decisivos são as lutas coletivas das populações que, a partir de confrontos parciais em nível local, progridem em direção à perspectiva de uma mudança radical da sociedade. Essa transição não conduziria somente a um novo modo de produção e a uma sociedade democrática e igualitária, mas também a um modo de vida alternativo, uma verdadeira civilização ecossocialista para além do império do dinheiro com seus hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e sua produção ilimitada de bens inúteis e/ou prejudiciais ao ambiente.

Ideologia do "decrescimento"

Alguns ecologistas estimam que a única alternativa ao produtivismo é parar o crescimento em seu conjunto, ou substituí-lo por um crescimento negativo – chamado na França de “decrescimento”. Para fazer isso, é necessário reduzir drasticamente o nível excessivo de consumo da população e renunciar às casas individuais, ao aquecimento central e às máquinas de lavar, entre outros, para reduzir o consumo de energia pela metade. Como essas medidas de austeridade draconiana e outras semelhantes correm o risco de ser muito impopulares, alguns advogados do decrescimento jogam com a ideia de um tipo de “ditadura ecológica”. [18] Contra pontos de vista tão pessimistas, alguns socialistas manifestam um otimismo que os leva a pensar que o progresso técnico e a utilização de fontes de energia renováveis permitirão um crescimento ilimitado e a prosperidade, de forma que cada um receba “segundo suas necessidades”.

Parece-me que essas duas escolas partilham uma concepção puramente quantitativa do “crescimento” – positivo ou negativo – e do desenvolvimento das forças produtivas. Penso que existe uma terceira posição que me parece mais apropriada: uma verdadeira transformação qualitativa do desenvolvimento. Isso implica colocar um fim ao desperdício monstruoso de recursos provocado pelo capitalismo, o qual está fundado numa produção em grande escala de produtos inúteis e/ou danosos. A indústria de armamentos é um bom exemplo, assim como todos esses “produtos” fabricados no sistema capitalista – com obsolescência programada – que não têm outra utilidade que a de gerar lucro às grandes empresas. A questão não é o “consumo excessivo” em abstrato, mas, antes, o tipo de consumo dominante cujas características principais são: a propriedade ostensiva, o desperdício maciço, a acumulação obsessiva de bens e a aquisição compulsiva de pseudonovidades impostas pela “moda”. Uma nova sociedade orientaria a produção em direção à satisfação das necessidades autênticas, para começar por aquelas que poderíamos qualificar como “bíblicas” – água, comida, roupa e habitação – mas adicionando a elas os serviços essenciais: saúde, educação, cultura e transporte.

É evidente que nos países onde essas necessidades estão longe de ser satisfeitas, isto é, os países do hemisfério sul, deverão “se desenvolver” muito mais – construir estradas de ferro, hospitais, esgotos e outras infra-estruturas – que os países industrializados, mas isso deveria ser compatível com um sistema de produção fundado nas energias renováveis e, logo, não danosas ao meio ambiente. Esses países terão necessidade de produzir grandes quantidades de alimentos para suas populações já atingidas pela fome, mas – como sustentam há anos os movimentos camponeses organizados em nível internacional pela rede Via Campesina – trata-se de um objetivo bem mais fácil de alcançar por intermédio da agricultura biológica camponesa organizada em unidades familiares, cooperativas ou fazendas coletivas, do que pelos métodos destrutivos e anti-sociais da indústria do agronegócio cujo princípio é o uso intensivo de pesticidas, de substâncias químicas e de alimentos transgênicos. O odioso sistema atual da dívida e da exploração imperialista dos recursos do Sul pelos países capitalistas e industrializados daria lugar a um ímpeto de apoio técnico e econômico do Norte em direção ao Sul. Não haveria nenhuma necessidade – como parecem acreditar alguns ecologistas puritanos e ascéticos – de reduzir, em termos absolutos, o nível de vida das populações européias ou norte-americanas. Seria necessário simplesmente que essas populações se livrassem de produtos inúteis, aqueles que não satisfazem nenhuma necessidade real e cujo consumo obsessivo é sustentado pelo sistema capitalista. Reduzindo seu consumo, redefiniriam a noção de nível de vida para dar lugar a um modo de vida que é na realidade mais rico.

Verdadeiras e falsas necessidades

Como distinguir as necessidades autênticas das necessidades artificiais, falsas ou simuladas? A indústria da publicidade – que exerce sua influência sobre as necessidades pela manipulação mental – penetrou todas as esferas da vida humana nas sociedades capitalistas modernas. Tudo é modelado segundo suas regras, não só a alimentação e as roupas, mas também domínios tão diversos como o esporte, a cultura, a religião e a política. A publicidade invadiu nossas ruas, nossas caixas de correio, nossas telas de televisão, nossos jornais e nossas paisagens de um modo insidioso, permanente e agressivo. Esse setor contribui diretamente para os hábitos de consumo ostensivo e compulsivo. E ainda desencadeia um desperdício fenomenal de petróleo, eletricidade, tempo de trabalho, papel e substâncias químicas, entre outras matérias-primas – tudo pago pelos consumidores. Trata-se de um ramo de produção que não é somente inútil do ponto de vista humano, mas que está também em contradição com as necessidades sociais reais. Enquanto a publicidade é uma dimensão indispensável em uma economia de mercado capitalista, ela não teria espaço numa sociedade em transição para o socialismo. Seria substituída por informações sobre os produtos e serviços fornecidos pelas associações de consumidores. O critério, para distinguir uma necessidade autêntica de uma necessidade artificial, seria sua permanência depois da supressão da publicidade. Está claro que durante certo tempo os antigos hábitos de consumo persistirão porque ninguém tem o direito de dizer às pessoas do que elas precisam. A mudança dos modelos de consumo é um processo histórico e um desafio educacional.

Alguns produtos, como o automóvel particular, levantam problemas mais complexos. Os automóveis particulares representam um prejuízo público. Em escala planetária matam ou mutilam centenas de milhares de pessoas a cada ano. Poluem o ar das grandes cidades – com conseqüências nefastas à saúde das crianças e das pessoas idosas – e contribuem consideravelmente para a mudança climática. Aliás, o automóvel particular satisfaz as necessidades reais nas condições atuais do capitalismo. Nas cidades européias onde as autoridades se preocupam com o meio ambiente, experiências locais – aprovadas pela maioria da população – mostram que é possível limitar progressivamente o lugar do automóvel particular para privilegiar os ônibus e tramways. Em um processo de transição ao ecossocialismo, o transporte público seria amplamente difundido e gratuito – tanto sobre a terra como sob a terra –, ao passo que as vias seriam protegidas para os pedestres e ciclistas. Em conseqüência, o automóvel individual teria um papel muito menos importante do que na sociedade burguesa onde se tornou um produto-fetiche promovido por uma publicidade insistente e agressiva. O automóvel é um símbolo de prestígio, um signo de identidade (nos Estados Unidos, a carteira de habilitação é a carteira de identidade reconhecida). O automóvel atualmente está no coração da vida pessoal, social e erótica. [19] Nessa transição para uma nova sociedade, será mais fácil reduzir drasticamente o transporte rodoviário de mercadorias – responsável por acidentes trágicos e por níveis de poluição elevados – para substituí-lo pelo transporte ferroviário, ou o “ferroutage”. [20] Apenas a lógica absurda da “competitividade” capitalista explica o desenvolvimento do transporte por caminhão.

A essas propostas os pessimistas responderão: sim, mas os indivíduos são motivados por aspirações e desejos infinitos que devem ser controlados, analisados, inibidos e mesmo reprimidos, se necessário. A democracia poderia então sofrer algumas restrições. Ora, o ecossocialismo está fundamentado sobre uma hipótese razoável, já sustentada por Marx: a predominância do “ser” sobre o “ter” em uma sociedade sem classes sociais nem alienação capitalista, isto é, a prioridade do tempo livre sobre o desejo de possuir inumeráveis objetos: a realização pessoal por meio de verdadeiras atividades culturais, esportivas, lúdicas, científicas, eróticas, artísticas e políticas. O fetichismo da mercadoria incita à compra compulsiva através da ideologia e da publicidade, próprias ao sistema capitalista. Nada prova que isso faz parte da “eterna natureza humana”. Como Ernest Mandel sublinhou:

A acumulação permanente de bens cada vez mais numerosos (cuja “utilidade marginal” está em baixa) não é de nenhuma forma um traço universal ou permanente do comportamento humano. Uma vez que as necessidades de base foram satisfeitas, as motivações principais evoluem: desenvolvimento de talentos e de propensões gratificantes por si mesmas, preservação da saúde e da vida, proteção das crianças, desenvolvimento de relações sociais enriquecedoras. ... [21]

Como foi abordado anteriormente, isso não significa, sobretudo durante o período de transição, que os conflitos seriam inexistentes – conflitos entre as necessidades de proteção ambiental e as necessidades sociais, entre as obrigações relacionadas à ecologia e a necessidade de desenvolver as infra-estruturas de base, notoriamente nos países pobres, entre os hábitos populares de consumo e a falta de recursos. Uma sociedade sem classes sociais não é uma sociedade sem contradições nem conflitos. Esses últimos são inevitáveis, e o papel do planejamento democrático será, em uma perspectiva ecossocialista livre da pressão do capital e do lucro, resolvê-los graças a discussões abertas e pluralistas conduzindo a própria sociedade à tomada de decisões. Tal democracia, comum e participativa, é o único meio, não de evitar erros, mas de corrigi-los pela própria coletividade social.

Comunismo solar

Trata-se de uma utopia? No sentido etimológico – “alguma coisa que não existe em lugar nenhum” –, certamente. No entanto, as utopias, isto é, as visões de um mundo alternativo, as imagens ideais de uma sociedade diferente, não são uma característica necessária a todo movimento que visa a desafiar a ordem estabelecida? Como explica Daniel Singer em seu testamento literário e político, A qui appartient l’avenir? em um potente capítulo intitulado “Une utopie realiste”:

Se o establishement parece tão sólido apesar das circunstâncias, e se o movimento dos trabalhadores – ou a esquerda em geral – está tão débil e paralisado, é porque em nenhum lugar se apresenta um projeto alternativo radical. ... A regra do jogo consiste em não colocar em questão nem os princípios de raciocínio nem os fundamentos da sociedade. Apenas uma alternativa global, rompendo essa resignação e essa capitulação, poderá dar ao movimento de emancipação uma real envergadura. [22]

A utopia socialista e ecológica é apenas uma possibilidade objetiva. Não é o resultado inevitável das contradições do capitalismo nem das “leis de ferro da história”. Só se pode prever o futuro sob forma condicional: a lógica capitalista levará a desastres ecológicos dramáticos, ameaçando a saúde e a vida de milhões de seres humanos e até mesmo a sobrevivência da nossa espécie, se não assistirmos a uma mudança radical do paradigma civilizacional e a uma transformação ecossocialista.

Sonhar com um socialismo verde ou, ainda, nas palavras de alguns, com um comunismo solar, e lutar por esse sonho, não quer dizer que não nos esforcemos para aplicar reformas concretas e urgentes. Se não devemos nutrir ilusões sobre um “capitalismo limpo”, devemos, entretanto, tentar ganhar tempo e impor aos poderes públicos algumas mudanças elementares: a proibição dos gases CFC que estão destruindo a camada de ozônio, uma moratória geral da produção de organismos geneticamente modificados, uma redução drástica da emissão de gases que causam o efeito estufa, uma regulamentação estrita da pesca industrial e da utilização de pesticidas como substâncias químicas na produção agroindustrial, uma taxa sobre os automóveis poluentes, um desenvolvimento muito maior do transporte público, a substituição progressiva de caminhões por trens. Essas questões, entre tantas outras, estão no coração da ordem do dia do movimento altermundialista e do Fórum Social Mundial. Trata-se de um progresso no âmbito da política, que permitiu, desde a manifestação de Seattle em 1999, a convergência de movimentos sociais e ecológicos em um combate comum contra o sistema. Essas reivindicações ecossociais urgentes podem conduzir a um processo de radicalização com a condição de que não sejam adaptadas às exigências da “competitividade”. Segundo a lógica do que os marxistas chamam de “programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial conduz a uma reivindicação mais importante, a um objetivo mais radical. Essas lutas em torno de questões concretas são importantes não somente porque as vitórias parciais são úteis elas mesmas, mas também porque contribuem para uma tomada de consciência ecológica e socialista. Além disso, essas vitórias favorecem a atividade e a auto-organização a partir de baixo: são duas pré-condições necessárias e decisivas para alcançar uma transformação radical, isto é, revolucionária, do mundo.

As experiências no nível local, como as zonas sem automóveis em diversas cidades européias, as cooperativas de agricultura orgânica lançadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil (MST) ou o orçamento participativo de Porto Alegre são exemplos limitados, mas não desinteressantes de uma mudança social e ecológica. Com suas assembléias locais que decidiam as prioridades do orçamento, Porto Alegre era talvez, apesar de seus limites e até a derrota da esquerda nas eleições municipais em 2002, o exemplo mais interessante de um “planejamento a partir de baixo”. [23] Devemos, entretanto, admitir que mesmo que alguns governos tenham adotado algumas medidas progressistas, as coalizões de centro-esquerda ou “vermelhos/verdes” na Europa e na América Latina foram decepcionantes porque ajustadas aos limites das políticas socioliberais de adaptação à globalização capitalista.

Não haverá transformação radical enquanto as forças engajadas em um programa radical socialista e ecológico não forem hegemônicas, no sentido em que o entendia Antonio Gramsci. Num certo sentido, o tempo é nosso aliado, porque trabalhamos para a única mudança capaz de resolver os problemas do meio ambiente, cuja situação apenas se agrava com ameaças – como a mudança climática – que estão cada vez mais próximas. Por outro lado, o tempo está contado, e em alguns anos – ninguém saberá dizer quantos – os estragos poderão ser irreversíveis. Não há razão para otimismo: o poder das elites atuais no comando do sistema é imenso e as forças de oposição radical são ainda modestas. No entanto, elas são a única esperança que temos para colocar um freio ao “progresso destrutivo” do capitalismo. Walter Benjamin propunha definir a revolução não como “locomotiva da história”, mas como ação salvadora da humanidade que puxa os freios de emergência antes que o trem mergulhe no abismo… [24]

Notas

[1] R. Smith. “The engine of ecocollapse”. Capitalism, Nature and Socialism, v.16, n.4, 2005, p.35.

[2] Ibidem.

[3] J. O’Connor. Natural Causes. Essays in ecological marxism. New York: The Guilford Press, 1998, p.278, 331.

[4] John Bellamy Foster emprega o conceito de “revolução ecológica”, mas explica: “Uma revolução ecológica em escala planetária, digna desse nome, só pode ter lugar no quadro de uma revolução social – e eu reitero, socialista – mais ampla. Uma tal revolução… necessitaria, como Marx sublinhava, que a associação dos produtores pudesse regular racionalmente a relação metabólica entre o homem e a natureza… Ele deve ter se inspirado nas idéias de William Morris, um dos mais originais ecologistas dos herdeiros de Karl Marx, nas de Gandhi e de outras figuras radicais, revolucionárias e materialistas, entre os quais o próprio Marx, chegando até Epicuro.” (J. B. Foster. Organizing ecological revolution, Monthly Review, v.57, n.5, 2005, p.9-10).

[5] Ver o cap. VII de The enemy of nature, de Joel Kovel, para uma crítica ecossocialista da “ecopolítica realmente existente” – a economia verde, a ecologia radical, o biorregionalismo etc.

[6] Ver J. B. Foster. Marx’s ecology. Materialism and nature, Monthly Review Press, New York, 2000.

[7] F. Engels. Anti-Dühring. Paris: Éditions Sociales, 1950, p.318.

[8] K. Marx. Das Kapital, v.3, Berlin: Dietz Verlag, 1968, p.828 e v.1, p.92. Encontramos uma problemática semelhante no marxismo contemporâneo. Ernest Mandel, por exemplo, defendia um “planejamento centralista mais democrático sob a autoridade de um congresso nacional constituído por diversos conselhos de trabalhadores cujos membros seriam em grande parte trabalhadores reais.” (E. Mandel. “Economics of transition period”. In: E. Mandel (Org.). 50 years of world revolution. New York: Pathfinder Press, 1971, p.286.) Em escritos mais recentes, ele faz preferencialmente referência aos “produtores e consumidores”. Seremos levados a citar alguns trechos dos escritos de Ernest Mandel, pois ele é o mais esclarecido teórico socialista do planejamento democrático. Entretanto, devemos mencionar que ele não havia incluído o tema da ecologia como um aspecto central de seus argumentos referentes à economia.

[9] Ernest Mandel definia o planejamento da seguinte maneira: “Uma economia planificada significa (…) para os recursos relativamente raros na sociedade, que eles não sejam repartidos cegamente (sem que o produtor consumidor se dê conta) pela ação da lei do valor, mas que eles sejam conscientemente atribuídos segundo as prioridades estabelecidas previamente. Em uma economia de transição, onde a economia socialista reina, o conjunto de trabalhadores determina democraticamente a escolha dessas prioridades.” (E. Mandel, op. cit., p.282).

[10] “Do ponto de vista da massa salarial, os sacrifícios impostos pela burocracia arbitrária não são nem mais nem menos ‘aceitáveis’ do que aqueles que são impostos pelos mecanismos do mercado. Os dois tipos de sacrifícios são apenas duas formas diferentes de alienação” (ibidem, p.285).

[11] Em seu notável livro lançado recentemente sobre o socialismo, o economista marxista argentino Claudio Katz sublinha que o planejamento democrático supervisionado a partir dos níveis locais pela maioria da população “difere conforme se trata de uma centralização absoluta, de uma estatização absoluta, de um comunismo de guerra ou de uma economia planificada. A supremacia do planejamento sobre o mercado é necessária para a transição, mas não seria necessário suprimir as variáveis do mercado. A associação das duas instâncias deveria ser adaptada a cada situação e a cada país.” Entretanto, “o objetivo do processo socialista não é manter um equilíbrio imobilizado entre o plano e o mercado, mas promover uma supressão progressiva do lugar do mercado.” (C. Katz. El porvenir del Socialismo. Buenos Aires: Herramienta/Imago Mundi, 2004, p.47-8).

[12] F. Engels. Anti-Dühring, op. cit., p.349.

[13] J. Kovel. The enemy of nature, op. cit., p.215.

[14] E. Mandel. Power and money. London: Verso, 1991, p.209

[15] Mandel observou: “Nós não pensamos que a ‘maioria tem sempre razão’ (…) Todo mundo comete erros. Isso é verdade para a maioria dos cidadãos, para a maioria dos produtores e para a maioria dos consumidores. No entanto, haverá uma diferença essencial entre eles e seus predecessores. Em todo sistema em que o poder é desigual (…) aqueles que tomam más decisões sobre a atribuição de recursos são raramente aqueles que pagam as conseqüências de seus erros (…) Considerando o fato de que exista uma real democracia política, escolhas culturais reais e informação, é difícil acreditar que a maioria prefira ver seus bosques desaparecerem (…) ou seus hospitais com poucos funcionários, em vez de corrigir os erros de atribuição.” (E. Mandel, In defense of socialist planning, New Left Review, n.1, v.159, 1986, p.31).

[16] E. Mandel. Power and money, op. cit., p.204.

[17] M. Albert. Après le capitalisme. Éléments d’économie participaliste. Agone: Marseille, 2003, p.121-2. Col. Contre-feux.

[18] Sobre o “decrescimento” ver: M. Rahnema (com V. Bawtree) (Org.). The post-development reader, Zed Books, Atlantic Highlands, 1997, e M. Bernard et al. (Org.). Objectif Décroissance. Vers une société harmonieuse. Lyon: Parangon, 2004. O principal teórico francês do decrescimento é Serge Latouche, autor de La planète des naufragés. Essai sur l’après-développement. Paris: La Découverte, 1991.

[19] Ernest Mandel mostrava-se cético quanto à rapidez das mudanças nos hábitos de consumo, como o veículo individual, por exemplo: “Se, apesar dos argumentos de peso tais como a defesa do meio ambiente dentre tantos outros, eles (os produtores e os consumidores) quiserem perpetuar a dominação do veículo individual a carburador e continuar a poluir suas cidades, isso seria direito deles. Quanto às orientações de consumo enraizado, as mudanças são freqüentemente lentas. Poucos são aqueles que pensam que os trabalhadores americanos renunciariam a seus carros no dia seguinte ao de uma revolução socialista” (E. Mandel, “In defense of socialist planning”, op. cit., p.30). Certamente, Mandel tem razão em insistir na idéia de que a mudança dos modelos de consumo não deveria ser imposta, mas ele subestima muito o impacto que teria um sistema de transporte público generalizado e gratuito, assim como a adesão da maioria dos cidadãos – é já o caso em muitas cidades européias grandes – à aplicação de medidas capazes de reduzir a circulação de automóveis.

[20] Transporte de carga que combina trechos em estradas de ferro e trechos em rodovias. (N.T.)

[21] E. Mandel. Power and money, op. cit., p.206.

[22] D. Singer. À qui appartient l’avenir? Pour une utopie réaliste. Bruxelles: Complexe, 2004, p.304-5.

[23] Ver S. Baierle. The Porto Alegre Thermidor, Socialist Register, 2003.

[24] W. Benjamin. Gesammelte Schriften. Suhrkamp: Frankfurt, 1980, v. I/3, p.1232.

6 de março de 2007

Dar voz à barbárie?

Em vez de valorizar uma sociedade democrática e pacífica, o autor dá vazão ao que há de pior, cooperando para sua reprodução

Wolfgang Leo Maar

Folha de S.Paulo

DIZER O INDIZÍVEL é ser porta-voz da barbárie? O mais preocupante em relação ao artigos "Razão e sensibilidade", publicado no dia 18 de fevereiro, e "Dizer o indizível", de 4 de março [ambos de autoria de Renato Janine Ribeiro e publicados no caderno Mais! desta Folha], é existir um contingente grande de pessoas que podem ser iludidas com a falsa argumentação em prol da violência. Isso exige que se tome partido de público. Urge criticar a instrumentalização conservadora de intelectuais pelo status quo, esta, sim, irmã do fascismo.

Todos nós, sensíveis em relação aos outros, partilhamos o sentimento de horror em relação a crimes bárbaros.

Mas isso não significa contrapor sensibilidade e razão. Ao contrário, precisamos de mais, e não menos razão.

Há que dizer, por mais que isso contrarie relações privadas, que os dois artigos se rendem voluntariamente ao existente em sua face mais desumana e aterrorizante, que é justamente o objeto da intervenção transformadora das políticas públicas democráticas.

Os textos nem sequer tomam como objeto da experiência de seu autor a impotência a que se vê reduzido, mas embarcam ideologicamente na esfera hiperindividualizante de uma realidade desprovida de direitos humanos. Em vez de valorizarem o que deveria ser uma sociedade democrática e pacífica, dão vazão ao que há de pior no presente e, assim, contribuem para a sua reprodução.

O autor sucumbe completamente ao autoritarismo vigente em sua apresentação mais cruel, construção de uma ideologia sustentada no terror, centrada no discurso da segurança, que arrasa com os direitos construídos ao longo do processo civilizatório para impor à força uma ordem injusta. A sensibilidade é aparente: é aceitação insensível da violência.

O autor, em vez de se posicionar como intelectual, diz só o que agrada: "sentimentos". Procura "razões" para uma pretensa "sensibilidade", mas só expressa com insensibilidade o mais rasteiro lugar-comum imediato do revide. Os artigos referidos apagam a distinção entre a terrível situação em que se vive e a experiência política, ética, civil de uma formação social que, ao fazer valer a liberdade, não se curva às imposições do comportamento vigente.

Impressiona que alguém, publicamente, ceda tanto à realidade em vigor que não consiga sequer imaginar, quanto mais propor, nada diferente, em termos de sociedade, do que o que se impõe como vigente. Ele se curva a uma realidade cuja aparência de civilização tem pés de barro. Ao mesmo tempo, atribui pés de barro à experiência de emancipação efetiva!

O quadro vigente é conseqüência do descaso prolongado do poder público com a valorização da vida individual e da educação pública. Mais: é o que convém a interesses que exigem um contexto de terror para se impor. Vide a política do terror travestida de "segurança" que resultou na Guerra do Iraque.

Uma posição digna diante desse quadro é realçar criticamente a experiência da distância que separa a realidade do horror do cotidiano de uma esfera pública centrada na liberdade e na paz. É contribuir para realizar o que está ausente, em vez de reforçar manifestações dignas de Talião.

Precisamente do intelectual se espera que não se renda ao vigente. Seu compromisso ético reside em tornar o conflito com o vigente objeto de experiência crítica e elaboração progressiva. Que não aja apenas regido pelo estabelecido em seus padrões de punição, mas saiba diferenciar entre o que ocorre sob o controle da violência e as possibilidades de uma organização social pautada em reconhecimento mútuo, solidariedade e aspiração da igualdade. Ter sensibilidade pelo outro é tomar partido a favor dos direitos da liberdade e da igualdade.

Em vez disso, o autor manifesta uma adesão comportada a pedir aplausos (seria esse o objetivo principal?) a padrões coletivizados de comportamentos de massa que prosperam na penumbra de uma cultura da violência e do autoritarismo e que favorecem a ausência de controles político-sociais e democráticos.

Estes últimos representam a lenta aquisição de uma ética pública de igualdade e liberdade, jogada pelo autor dos dois artigos na lata de lixo.

Não seria essa conquista gradual e coletivamente mediatizada de hábitos de convívio democrático no plano da reprodução material da sociedade, para além do pseudo-sentimento belicista do agrado das massas em sua hiperindividualização, o que se chama de educação?

Sobre o autor

WOLFGANG LEO MAAR, 61, doutor em filosofia pela USP, é professor titular de filosofia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). É autor, entre outras obras, de "O que É Política".

1 de março de 2007

Arthur Schlesinger, historiador do poder, morre aos 89 anos

Douglas Martin

The New York Times

Tradução / Arthur M. Schlesinger Jr., historiador cujos mais de 20 livros moldaram, ao longo de duas gerações, as discussões sobre o passado dos Estados Unidos e que foi, ele próprio, um liberal declarado e provocativo, tendo mais notadamente trabalhado para a Casa Branca de Kennedy, morreu na noite de ontem em Manhattan, aos 89 anos de idade.

Seu filho Stephen anunciou que a causa da morte foi um ataque cardíaco. Schlesinger morreu no hospital New York Downtown, depois de sofrer um infarto num restaurante.

Duas vezes premiado com o Pulitzer e o National Book Award, Schlesinger estudou exaustivamente as administrações de dois presidentes destacados, Andrew Jackson e Franklin Delano Roosevelt, contra um vasto pano de fundo formado por rivalidades regionais e econômicas. Ele argumentou que indivíduos como Jackson e Roosevelt são capazes de moldar a história.

As anotações que Schlesinger fez para o presidente John F. Kennedy usar para redigir sua própria história serviram de base, após o assassinato do presidente, para seu próprio livro "A Thousand Days: John F. Kennedy in the White House" (Mil dias - John F. Kennedy na Casa Branca), vencedor tanto de um Pulitzer quanto do National Book Award em 1966.

Seu livro de 1978 sobre o irmão do presidente, "Robert Kennedy and His Times" (Robert Kennedy e seu tempo), saudou Robert Kennedy como o homem mais politicamente criativo de seu tempo, mas reconheceu que ele exerceu um papel maior na tentativa de derrubar o presidente cubano, Fidel Castro, do que Schlesinger tinha reconhecido em "A Thousand Days".

Schlesinger trabalhou nas campanhas eleitorais dos dois irmãos Kennedy, e alguns críticos sugeriram que ele teria tido dificuldade em separar a história de seus próprios sentimentos. Gore Vidal descreveu "A Thousand Days" como romance político, e muitos observadores comentaram que o livro deixou de mencionar os deslizes sexuais do presidente. Outros lamentaram o fato de o autor ter revelado tanto, especialmente por ele ter tomado a iniciativa incomum de afirmar que o presidente estava insatisfeito com seu secretário de Estado, Dean Rusk.

Schlesinger enxergava a vida como um passeio pela história. Ele escreveu que não podia caminhar pela Quinta Avenida sem se perguntar como teriam parecido a rua e as pessoas que andavam nela, cem anos antes.

"Ele se dispõe a argumentar que a busca pela compreensão do passado não é simplesmente um exercício estético, mas um caminho para o entendimento de nosso próprio tempo", escreveu o historiador Alan Brinkley.

Arthur Schlesinger era conhecido por sempre usar uma gravata-borboleta com bolinhas, por seu humor ácido e seu andar magnificamente animado. Entre maratonas de escrever até 5.000 palavras por dia, ele era presença constante nos salões literários de Georgetown, numa época em que Washington era mais elitista. Durante toda sua vida ele foi aficionado dos martinis perfeitamente misturados e foi presença constante no mundo social de Nova York, quer fosse nas célebres festas de Truman Capote ou acompanhando Jacqueline Kennedy ao cinema.

Na era do macartismo e depois dela, ele liderou os liberais anticomunistas e foi partidário ferrenho das vozes que pediram o impeachment de Richard M. Nixon, que nunca se concretizou, tendo criticado com igual paixão o processo de impeachment do presidente Bill Clinton, quando aconteceu.

Em seu último livro, "War and the American Presidency" (A guerra e a presidência americana), publicado em 2004, Schlesinger contestou os fundamentos da política externa do presidente Bush, descrevendo a invasão do Iraque e o que se seguiu a ela como "confusão medonha". Disse que os limites impostos pelo presidente às liberdades civis teriam o mesmo resultado que ações semelhantes adotadas ao longo da história americana. "Nós nos odiamos na manhã seguinte", escreveu.

Por mais que fosse liberal, Schlesinger não era escravo daquilo que acabaria por ser conhecido como a correção política. Ele defendia com vigor o caldeirão de culturas americano antigo contra os proponentes do multiculturalismo _a idéia de que as etnias devem conservar suas identidades distintas e até mesmo celebrá-las. Suscitou inúmeras críticas por comparar o afrocentrismo à Ku Klux Klan.

A história e sua narrativa estavam literalmente no sangue de Schlesinger. Um de seus antepassados distintos foi George Bancroft, que ao longo de 40 anos, começando em 1834, escreveu a monumental "History of the United States from the Discovery of the Continent" (História dos Estados Unidos a partir da descoberta do continente), em 12 volumes. Seu pai, Arthur M. Schlesinger, foi um historiador imensamente influente, pioneiro em fazer da história social uma disciplina genuína.

Na adolescência, o filho mudou seu nome do meio de Bancroft para Meier, o nome do meio de seu pai, e começou a acrescentar o "Jr." a seu nome. Mais tarde, adaptaria e desenvolveria muitas das idéias de seu pai sobre a história, incluindo a teoria de que a história se move em ciclos, alternando períodos liberais e conservadores. Seu pai lhe deu a idéia para sua tese de Harvard, aprovada com honra.

Entretanto, apesar de toda a tradição que encarnava, Arthur Schlesinger, filho, possuía um viés instigante de informalidade. Enquanto trabalhava na Casa Branca de Kennedy, encontrou tempo para escrever resenhas de filmes para a revista "Show". Ele reconhecia seus próprios erros. Um deles, falou, foi ter deixado de mencionar o tratamento brutal dado pelo presidente Jackson aos índios em seu livro premiado com o Pulitzer "The Age of Jackson". A obra foi publicada quando Schlesinger tinha 27 anos, e ainda é leitura padrão.

O livro rejeitou as interpretações anteriores que vinculavam a ascensão da democracia jacksoniana à expansão para o oeste. Em lugar disso, atribuía importância maior a uma coalizão de intelectuais e trabalhadores no nordeste do país que estavam determinados a refrear o poder crescente das empresas. "The Age of Jackson" vendeu mais de 90 mil exemplares em seu primeiro ano de publicação e valeu a Schlesinger o Prêmio Pulitzer de história em 1946.

Sua história em vários volumes do New Deal, "The Age of Roosevelt", começou em 1957 com "The Crisis of the Old Order, 1919-1933" (A crise da ordem antiga, 1919-1933), continuou em 1959 com "The Coming of the New Deal" (A chegada do New Deal) e culminou em 1960 com "The Politics of Upheaval" (A política da convulsão). O primeiro volume recebeu dois prêmios de prestígio por escritos históricos, o prêmio Francis Parkman da Sociedade de Historiadores Americanos e o prêmio Frederic Bancroft da Universidade Columbia. O livro foi elogiado por captar a interação entre idéias e ação, enfatizando tensões semelhantes às que Schlesinger descrevera na era de Jackson. "Este livro claramente lança um dos empreendimentos históricos importantes de nosso tempo", escreveu o historiador C. Vann Woodward na "The Saturday Review".

Schlesinger nunca deixou de parecer o aluno mais inteligente da classe. Ele não possuía diplomas de nível avançado, mas sua produção acadêmica, sem falar em seus inúmeros artigos escritos para publicações populares como "TV Guide" e "Ladies' Home Journal", superava de longe a de outros que os possuíam. Mesmo quando criança ele se sentia no dever de conduzir conversas, para não dizer monopolizá-las.

Um artigo publicado na revista "The New York Times" em 1965 mencionou sua mãe pedindo a ele que ficasse quieto para que ela conseguisse concluir seu argumento. "Mãe, como posso ficar quieto se você insiste em fazer afirmações que não são factualmente exatas", respondeu o garoto, então com 11 ou 12 anos.

Arthur Bancroft Schlesinger nasceu em Columbus, Ohio, em 15 de outubro de 1917, o mais velho dos dois filhos de Arthur Meier Schlesinger e Elizabeth Bancroft. O jovem Schlesinger escreveu em tom de aprovação que o historiador Bancroft, antepassado de sua mãe, foi "ghostwriter" presidencial e bon vivant, além de ser descrito como o pai da história americana.

Era seu pai que o "jovem Arthur", como era conhecido, idolatrava. O argumento de Arthur Schlesinger, pai, de que os trabalhadores urbanos estiveram por trás de boa parte da convulsão social da era de Jackson foi retomado e ampliado com brilhantismo por seu filho.

No primeiro volume de suas memórias, "A Life in the Twentieth Century: Innocent Beginnings, 1917-1950" (2000) (Uma vida no século 21: Primórdios Inocentes, 1917-1950), Schlesinger, filho, descreveu sua infância como "ensolarada". Ele passou sua primeira infância em Iowa City, onde seu pai era membro do corpo docente da Universidade do Iowa. A família se mudou para Cambridge, Massachusetts, em 1924, quando seu pai se tornou professor em Harvard. Mais tarde, Arthur pai tornou-se diretor do departamento de história de Harvard.

O jovem Arthur primeiro estudou em escolas públicas de Cambridge, mas seus pais se tornaram descrentes do ensino público em seu segundo ano de escola, quando um professor de educação cívica disse à classe de Arthur que os habitantes da Albânia eram conhecidos como albinos e tinham cabelos brancos e olhos rosados. Arthur Jr. foi matriculado na Academia Phillips Exeter, em New Hampshire.

Ele se formou na escola secundária aos 15 anos, mas a família achou que ele era jovem demais para ir a Harvard. Assim, enquanto seu pai gozava uma licença sabática, a família inteira fez uma longa viagem em volta do mundo. Em seguida, Schlesinger ingressou em Harvard e formou-se com honra "summa cum laude" em 1938.

Desde sua infância ele vivia na companhia dos amigos intelectualmente poderosos de seu pai, desde o humorista James Thurber até o escritor John Dos Passos. Aos 14 anos de idade, conheceu H.L. Mencken, com quem iria manter uma correspondência mais tarde. Em Harvard, Schlesinger conheceu figuras intelectuais de destaque como o historiador Samuel Eliot Morison.

Mais tarde, Schlesinger se tornou parte do círculo poderoso que cercava o jornalista Joseph Alsop, um grupo que incluía Philip Graham, publisher do "The Washington Post", o ex-governador de Nova York W. Averill Harriman e o advogado Clark Clifford. Schlesinger conheceu John Kennedy, na época senador, numa "soirée" na casa de Alsop. Sua impressão: "Kennedy me pareceu muito sincero e não destituído de inteligência, mas mais ou menos conservador".

Arthur M. Schlesinger Jr. em seu escritório na City University of New York. Créditos: Jack Manning/The New York Times

Em parte devido a sua apreciação da história, Schlesinger se dava conta plenamente de sua boa sorte. "Vivi em tempos interessantes e tive a sorte de conhecer algumas pessoas interessantes", escreveu.

Uma parte muito grande de sua sorte foi seu pai, que orientou boa parte de suas primeiras pesquisas e chegou a sugerir o tema de sua tese que lhe valeu menção com honra: Orestes A. Brownson, jornalista, romancista e teólogo do século 19. A tese foi publicada em 1938 pela Little, Brown como "Orestes A. Brownson: A Pilgrim's Progress". Henry Steele Commager, na "The New York Times Book Review", disse que o livro introduziu "um talento novo e distinto no campo do retrato histórico".

Schlesinger passou um ano no Peterhouse College da Universidade Cambridge, numa "fellowship", e retornou a Harvard, onde tinha sido selecionado para ser um dos integrantes do primeiro grupo de "junior fellows". A pesquisa deles foi financiada por três anos, mas eles não foram autorizados a fazer seus doutorados. A intenção era mantê-los fora da rotina acadêmica habitual.

Enquanto era "fellow", Schlesinger se casou com Marian Cannon, a quem conhecera durante seu primeiro ano em Harvard. A irmã dela era casada com o eminente sinólogo John King Fairbank. Os Schlesinger tiveram gêmeos, Stephen e Katharine, e outros dois filhos, Christina e Andrew. Katharine morreu em 2004. O casal se divorciou em 1970.

Schlesinger se casou com Alexandra Emmet no ano seguinte. Eles tiveram um filho, Robert, assim batizado em homenagem a Robert F. Kennedy. Emmet já tinha um filho de um casamento anterior, Peter Allan. Schlesinger deixou vivos os três, além de sua primeira mulher e os três filhos sobreviventes de seu primeiro casamento.

Como "fellow", Schlesinger conseguia escrever entre 4.000 e 5.000 palavras por dia da obra sobre Jackson, enquanto seus gêmeos de 1 ano de idade brincavam em volta de sua mesa. Seu trabalho sobre o livro foi interrompido pela 2a Guerra Mundial. Sua vista deficiente o impediu de cumprir o serviço militar, então ele obteve um trabalho escrevendo para o Escritório de Informação sobre a Guerra. Uma das tarefas das quais foi encarregado foi redigir uma mensagem do presidente Roosevelt à organização Filhas da Revolução Americana. Schlesinger duvidava que o presidente chegasse a ver tais obras-primas.

Em seguida ele trabalhou no Escritório de Planejamento Estratégico, precursor da Agência Central de Inteligência (CIA), em Washington, Londres e Paris. Imediatamente após a guerra, Schlesinger foi a Washington trabalhar como jornalista freelancer da "Fortune" e outras revistas. Após 15 meses, em 1946, aceitou um cargo de professor associado em Harvard. Ele disse que lecionar lhe provocava tanto nervosismo que vomitava antes de cada aula; com o tempo, porém, tornou-se tão hábil na profissão que seu curso História 169 passou a ser o mais procurado do departamento.

Schlesinger começou a moldar uma identidade política própria, a de alguém comprometido com as metas sociais do New Deal e decididamente anticomunista. Em 1947 ele foi um dos fundadores da organização Americanos pela Ação Democrática, o mais conhecido grupo de pressão liberal.

Em 1949 Schlesinger consolidou sua posição de porta-voz do liberalismo do pós-guerra com seu livro "The Vital Center: The Politics of Freedom" (O centro vital – a política da liberdade). Inspirado no teólogo protestante Reinhold Niebuhr, argumentou que o liberalismo pragmático e reformista, de âmbito limitado, era o melhor pelo qual o homem pode esperar em termos políticos.

"Sempre haverá problemas a nos atormentar", escreveu, "porque os problemas de importância maior são insolúveis _essa é a razão de sua importância. O bem vem da luta constante para procurar resolvê-los, e não da esperança vã de sua solução."

Começando por redigir discursos para Adlai Stevenson em suas duas campanhas presidenciais, Schlesinger tornou-se participante na política democrata de alto nível. Embora o senador Barry Goldwater tivesse tentado fazer com que ele fosse demitido da Casa Branca de Kennedy devido a seu viés liberal, um dos colegas do senador fez uma espécie de elogio a Schlesinger. Conforme citado anonimamente em "The Making of the President, 1964", de Theodore H. White, o associado de Goldwater teria dito: "Uma coisa pelo menos se pode dizer em favor de um f.d.p. liberal como Schlesinger _quando seus candidatos entram em ação, ele está ali presente, escrevendo discursos para eles".

E ele também estava presente, escrevendo livros. Uma de suas maiores contribuições para a campanha de Kennedy foi um livro, "Kennedy or Nixon: Does It Make Any Difference?" (Kennedy ou Nixon – Isso faz alguma diferença?). O livro concluiu que, sob Nixon, o país "mergulharia na mediocridade, hipocrisia, corrupção e tédio". Já Kennedy representa a elevação para "o esplendor de nossos ideais".

Em 9 de janeiro de 1961, uma tarde cinzenta e fria, o presidente eleito Kennedy foi à casa de Schlesinger em Irving Street, em Cambridge. Convidou o professor a ser assistente especial na Casa Branca. Schlesinger respondeu: "Se o sr. acha que posso ajudar, eu gostaria de ir".

Em "Johnny, We Hardly Knew Ye" (1970) (Johnny, mal o conhecíamos), Kenneth P. O'Donnell e David F. Powers sugerem que o novo presidente identificou certo grau de risco político na contratação de um liberal tão declarado. Ele decidiu manter a indicação escondida até que outro liberal, Chester Bowles, foi confirmado no cargo de subsecretário de Estado.

Os autores, ambos assessores de Kennedy, disseram que perguntaram a Kennedy se ele contratara Schlesinger para que este escrevesse a história oficial da administração. Kennedy respondeu que a escreveria ele mesmo. "Mas Arthur provavelmente vai escrever sua própria história", disse o presidente, "e será melhor para nós se ele estiver dentro da Casa Branca, vendo de perto o que se passa, em lugar de ler sobre isso no 'The New York Times' ou na revista 'Time'."

Mais tarde, a "Time" descreveria o papel de Schlesinger na administração Kennedy como o de uma ponte com a intelligentsia, e também com a ala Adlai Stevenson-Eleanor Roosevelt do Partido Democrata. Se o presidente queria encontrar o intelectual Isaiah Berlin ou o compositor Gian Carlo Menotti, Schlesinger organizava o encontro. Consta que o presidente curtia bate-papos informais com Schlesinger nos almoços semanas deles, embora raramente assistisse aos seminários intelectuais que Robert Kennedy pedia a Schlesinger para organizar.

Arthur Schlesinger distinguiu-se já no início da administração Kennedy por ser uma das poucas vozes na Casa Branca a questionar a invasão de Cuba planejada pela administração Eisenhower. Mas depois se converteu em seguidor leal de Kennedy, contando a repórteres uma história enganosa segundo a qual os exilados cubanos que desembarcaram na Baía dos Porcos não teriam sido em número maior do que 400, quando, na realidade, seu número era maior de 1.400.

Numa discussão posterior desse ato malfadado, o assessor de segurança nacional McGeorge Bundy lembrou ao presidente que Schlesinger tinha escrito um memorando expressando sua oposição à invasão. "Isso vai ficar bonito para ele quando ele escrever seu livro sobre minha administração", respondeu Kennedy. "Ou, então, será melhor ele não divulgar esse memorando enquanto eu estiver vivo."

Após o assassinato de Kennedy, o presidente Lyndon B. Johnson manteve Schlesinger na Casa Branca, mas não lhe deu virtualmente nada para fazer. Schlesinger renunciou ao cargo em janeiro de 1964. Pouco depois, escreveu um artigo dizendo que John Kennedy não quisera realmente Johnson como seu candidato a vice, mas o escolhera por razões políticas.

Schlesinger, que pediu demissão de Harvard quando sua licença para ausentar-se da universidade chegou ao fim, em 1962, passou a trabalhar sobre seu livro sobre Kennedy e, nos primeiros meses de 1966, trabalhou no Instituto de Estudos Avançados em Princeton, Nova Jersey. Em seguida, ingressou no corpo docente da City University de Nova York, ocupando a cadeira Albert Schweitzer de Humanidades.

Ele se mudou para Manhattan, onde continuou a viver até sua morte. Sua visibilidade era grande _desde as páginas sociais até a coluna que escrevia na página de editoriais do "The Wall Street Journal", passando por participações na televisão. Ele continuou a proteger a imagem de Kennedy, apesar do fluxo contínuo de revelações que a maculavam. Em 1996, revoltou conservadores ao selecionar historiadores para uma pesquisa que concluiu que Kennedy e Johnson tinham sido presidentes "de nível médio alto" e que Ronald Reagan tinha sido de "nível médio baixo".

Schlesinger escreveu constantemente, incluindo o livro e os artigos em que criticou a guerra do Iraque. Em "The Imperial Presidency" (1973) (A presidência imperial), argumentou que Richard M. Nixon tinha ampliado os poderes presidenciais a tal ponto que precisava sofrer impeachment. Numa resenha do livro, Jeane Kirkpatrick, ex-embaixadora dos EUA à ONU no governo Reagan, retrucou que Schlesinger empregara pesos e medidas diferentes para avaliar os presidentes democratas.

Em 1978 Schlesinger teve um triunfo literário e comercial com "Robert Kennedy and His Times". Na "The New York Times Book Review", Garry Wills, que no passado chegara a chamar Schlesinger de "cortesão de Kennedy", descreveu o livro como "erudito e completo". O livro valeu a Schlesinger um prêmio National Book Award. Nele, Schlesinger comparou os irmãos: "John Kennedy foi um realista brilhantemente disfarçado de romântico; Robert Kennedy, um romântico obstinadamente disfarçado de realista".

Schlesinger esperava que Robert fosse incentivar o surgimento de um novo espírito de liberalismo, mas decepcionou-se quando Jimmy Carter ascendeu à liderança do partido, em 1976. Ele considerava Carter lamentavelmente conservador e não votou por ele em nenhuma de suas campanhas. Trabalhou para o senador Edward M. Kennedy em sua breve campanha presidencial em 1980.

Em 1991, Schlesinger provocou uma reação negativa com "The Disuniting of America" (A desunião da América), um ataque à "sociedade multicultural" emergente no qual disse que os afrocentristas afirmavam sua superioridade e exigiam que sua identidade separada fosse reconhecida por escolas e outras instituições.

O romancista Ishmael Reed criticou Schlesinger, tachando-o de "seguidor de David Duke", o ex-líder da Ku Klux Klan. O professor de Harvard Henry Louis Gates Jr. ironizou os argumentos de Schlesinger, descrevendo-os como defesa de "um rosto cultural branco". Schlesinger ficou espantado. Ele se descreveu frequentemente como defensor não modernizado do New Deal cujo pensamento básico mudara pouco em meio século.

"Que diabos", respondeu quando questionado pelo "The Washington Post" sobre sua crítica ao multiculturalismo. "É preciso dizer o que se pensa. Também isto vai ficar para trás."

Schlesinger continuou a escrever artigos e assinar petições, e em 2006 recebeu um prêmio da Galeria Nacional de Retratos por serviços prestados à presidência. Sua saúde debilitada o impediu de comparecer ao funeral de seu bom amigo John Kenneth Galbraith em maio do ano passado. Seu filho Stephen leu algumas palavras que Schlesinger escrevera sobre Galbraith: "Por baixo de sua alegria em travar combate, ele era um fazedor do bem na calada da noite".

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