19 de janeiro de 2007

Capitalismo e corrupção

Sobre a economia política da vertigem

Michael R. Krätke

Analyse und Kritik


Tradução / Enriquecei-vos! Com esta palavra de ordem, a nata da burguesia, da aristocracia do dinheiro chegou pela primeira vez ao poder na França da primeira metade do século XIX. Um programa imbatível no seu genial laconismo. Quem se enriquece, mesmo que desavergonhadamente, não só trabalha em prol do seu próprio interesse, mas presta também um serviço inestimável à Pátria. Uma mensagem de alta importância, um regalo para os ouvidos de executivos e proprietários do capital.

Só que a moral foi posta de lado, porque agora tinha sentido e merecia recompensa adequada tudo o que trouxesse consigo lucro privado, independentemente do modo como foi obtido. Corrupção – comprar e vender o que não devia estar sujeito a compra-e-venda – engano e vigarice converteram-se em práticas quotidianas na luta competitiva dos possuídos pelo afã da riqueza. Tradição, reputação e honra comercial perderam a sua atracão. A leitura de Balzac e Flaubert ensina-nos como o capitalismo minou a sociedade burguesa.

Corrupção, dinheiro sujo, caixa dois, artimanha organizada e manipulações contabilísticas são práticas correntes no mundo dos negócios. Não só no exterior, nos países em vias de desenvolvimento e nos países no limiar do desenvolvimento; também nas grandes empresas alemãs. Nos últimos anos foram abertos processos por fraude e manipulação contra 18 das 30 empresas que integram o índice da bolsa alemã (DAX). As firmas mais distintas da indústria exportadora alemã de dimensão mundial como a VW, BMW e Siemens têm os seus executivos em tribunal por arguidos de corrupção.

Peter Hartz, que deu o seu nome e as suas ideias às estrondosamente fracassadas “Reformas-Hartz” [para a destruição do Estado social alemão] foi demitido por suspeita de corrupção. É apenas um dos muitos envolvidos no lodo da corrupção. Os escândalos acumulam-se e repetem-se na República Federal e no exterior capitalista. São cada vez mais frequentes; em todos os setores, em todos os países. Não se pode falar mais de casos isolados ou de “ovelhas negras”. As grandes empresas europeias, entre elas muitas alemãs, estiveram e estão, aplicadamente, na primeira linha da corrupção de funcionários governamentais e políticos estrangeiros.

Enriquecei-vos! Muito?

Não só empresas de dimensão mundial como a Henkel, a Daimler-Chrysler, Degussa, Siemens e Schering se dedicaram zelosamente ao negócio da corrupção; as empresas médias procedem da mesma forma. Para isso, contribuíram dois fatos muito simples. Em primeiro lugar, um setor inteiro de profissionais vivia e vive da prática permanente da corrupção onde quer que seja: atuam como intermediários das empresas alemãs no exterior e, na sua qualidade de intermediários das empresas alemãs no exterior e, na sua qualidade de intermediários da corrupção e por conta dos serviços prestados, recebem copiosas quantias. Em segundo lugar, até há pouco, o dinheiro pago no exterior por empresas alemãs como corrupção eram, sem qualquer problema, dedutíveis nos impostos como custos empresariais. Esta lamentável situação acabou na República Federal em 2002 por pressão da ONU, mas, antes tal como agora, o dinheiro da corrupção possibilita, em muitos países europeus, um desagravamento fiscal. A corrupção é considerada como uma prática empresarial normal, legal, desde que se pratique no exterior.

A defesa mais comum nos últimos escândalos praticados na Alemanha e noutros países é um despudor que fere o coração: mas isso toda a gente faz em todo o mundo, trata-se de prática empresarial, comum e corrente; se condenarem os meus clientes então teriam que mandar para a cadeia todos os dirigentes das grandes empresas, diziam os advogados e advogadas especialistas em direito penal econômico. É possível que essas damas e cavalheiros digam uma verdade que fariam melhor em calar: como é quotidiana a corrupção convertida em trafulhice, como agem criminosamente os e as protagonistas do capitalismo que na verdade existe hoje em todo o mundo.

No seu começo o capitalismo foi moralmente elevado; para os seus crentes continua sê-lo. A doutrina da fé neoliberal não precisa de qualquer religião, porque elevou o capitalismo à categoria de religião, convertendo os imperativos da economia capitalista em normas morais universais. Walter Benjamim viu chegar a elevação do capitalismo a religião de culto universal em que o continuado papel do mercado representa o papel do culto e o homo economicus, transfigurado na Natureza, o de Deus. Bem e corretamente, do ponto de vista moral, só atua quem pratica diariamente o culto do Mercado e todos os dias se submete à concorrência sem contemplações.

O capitalismo histórico nutriu-se de recursos religiosos e morais que o atual capitalismo parece estar a destruir, se é que já não destruiu. Adam Smith considerava eficiente a “mão invisível” do mercado, na medida em que uma moral social, fundada na empatia e na simpatia, procurava que as pessoas tivessem consideração umas pelas outras e de modo algum procurariam enriquecer-se, desinibida e ilimitadamente, à custa dos seus cidadãos. Mas essa moral social burguesa há muito que, talvez em tem passado tivesse sido.

Os apelos organizados a uma “ética empresarial” que se compadeça com o capitalismo como religião não são de desprezar. As carências advertem até as chamadas elites da sociedade civil: o capitalismo não é fundamento moral suficiente para uma vida em comunidade; o culto abstrato da riqueza não pode substituir a moral. Ocorre com o capitalismo o que acontece na natureza: uma vez esgotados, os recursos não se podem substituir.

Nos nossos dias, o capitalismo anda com a corrupção diária, a fraude sistemática, tal como com o crime internacionalmente organizado, o "capitalismo de compadrio" e o capitalismo de mãos sujas. Já podem os amigos e amigas da “teoria pura” franzir o sobrolho; a crítica da economia política não pode renunciar à crítica da fraude trapaceira e da economia negra.

A economia moral do capitalismo dos nossos dias

A fraude e a corrupção tinham e têm causas estruturais e têm também o seu apogeu nos últimos anos. A valorização do capital é uma tarefa árdua e arriscada; demora tempo e exige esforço, pode levar a perdas e inclusive à ruína. Por isso os capitalistas de toda a laia sempre se viram assaltados pela “tentação maníaca de enriquecerem, não com a produção, mas com o escamoteamento da riqueza alheia já existente” (Marx in Luta de Classes em França, MEW, VII, pág. 1). O processo de produção, árduo e arriscado, não é para os capitalistas senão “um mal necessário ao efeito de fazer dinheiro”. Daí que, com impressionante regularidade, “todas as nações com modo capitalista de produção... se vejam periodicamente a braços com a fraude, querendo ganhar dinheiro sem a mediação do processo produtivo”. (Marx, MEGA II.11, 591)

Estes florescimentos da fraude experimentamo-los também hoje, o último nos anos de boom da “Nova Economia”. Apesar da parte produtiva da economia mundial se encontrar desde há muito numa situação de sobre-acumulação estrutural, a fraude acabou por chegar à produção industrial; e chegou de forma permanente. A corrupção organizada e a fraude têm por objetivo evitar as desconfianças e ganhar o controle sobre os acontecimentos do mercado: um cada vez mais custoso comportamento racional num sistema irracional de concorrência generalizada.

Nas condições de sobre-acumulação estrutural, o capital excedente flui para os mercados financeiros, e as fusões e tomadas de controle [empresarial através dos mercado de valores] e convertem-se na forma muito mais importante do investimento “real” (direto). Ambas as coisas vêm robustecer a fraude e a manipulação. O capitalismo foi desde o seu começo uma economia de expropriação. A expropriação por engano, por fraude, por ardiloso manobrar financeiro, em vez de expedita aplicação da violência.

Impera em muitos países uma forma de capitalismo em que a corrupção, o engano e as atividades criminosas se converteram em práticas empresariais institucionalizada estandardizadas, como se nada se passasse. A Rússia e os antigos países que constituíam a União Soviética, a China, o Brasil, o México ou a Indonésia são habitualmente mencionados como países de "capitalismo de compadrio". Mas os EUA, ou alguns setores da economia estadunidense como o energético, o complexo militar-industrial ou a indústria de entretenimento não o são menos. Em muitos países europeus conhecemos uma versão mitigada deste tipo em que os old-boys-networks manejam todos os cordelinhos. Trata-se, em qualquer caso, de poder organizado de mercado e de acesso ao poder público, sem esquecer a riqueza pública. Apesar de no mundo real do capitalismo os mercados não regulados serem marginais, a corrupção é um meio provado de controlar os reguladores e os controladores dos mercados a qualquer nível. Comprar funcionários, e sempre que possível sindicalistas e ONGs, é mais rápido e mais barato que combatê-los.

Ganhar dinheiro sem os riscos da produção

Graças a uma mudança de elites organizada, à contínua e fácil troca de posições entre o “privado” e o “público”, entre a “política” e a “economia”, como é frequente nas variantes russa e estadunidense do ‘capitalismo de compadrio’, converte a corrupção em sistema. Claro que com consequências: fraude eleitoral organizada, compra de políticos e partidos, influência nos meios de comunicação social, compra de jornais e cadeias de televisão, amedrontamento e corrupção sistemática de jornalistas, permanente desinformação com todos os meios e por todos os canais.

Os economistas neoclássicos consideram daninhas a corrupção e a fraude porque conduzem a "má alocação" de capital. A corrupção e a fraude são perigosas. Não só pelas perdas que originam, também pelo crescente número de vítimas que gera a “nova” economia da expropriação. Quando a corrupção e a fraude acontecem rotineiramente onde quer que seja, quando a economia criminosa se expande, mais cedo ou mais tarde, fica desvalorizado o juízo popular de que a riqueza das classes altas, dos executivos e dos empresários foi ganha digna e honradamente, como salário devido a prestações e esforços excepcionais. Até o mais sagrado, a propriedade privada burguesa, aparece debaixo de outra luz quando toda a gente sabe ou suspeita que essas fortunas privadas, mais ou menos empoladas, não se adquiriram por meios decorosos. A propriedade é um roubo; essa velha e veneranda fórmula do radicalismo burguês merece voltar a honrar-se. Nos países de "capitalismo de compadrio" é claro para todos que “política” e “economia” não são de forma nenhuma mundos separados. Fica pois minada a fé no Estado como poder protetor dos pobres e dos explorados.

Pode acabar-se com a fraude e a corrupção? Pode salvar-se o capitalismo, não da indignação dos explorados e dos oprimidos de todos os países, mas da ganância e da estupidez dos seus protagonistas? É claro que sim, se houver uma coisa como um “capitalista ideal com uma perspectiva de conjunto”, capaz de defender essa ordem econômica histórica perante a míope estupidez dos seus beneficiários. Mas isso foi completamente desmantelado na esteira da revolução neoliberal. Vorläufig scheint sich die Einsicht zu bestätigen: Der Kapitalismus geht an sich selbst, an seinen "Eliten" zu Grunde.

Nota:

[1] Walter Benjamin, “Kapitalismus als Religion” (1921), en: Gesammelte Werke, Vol. VI

Sobre o autor

Michael R. Krätke é um analista político alemão, colaborador regular da revista Analyse und Kritik.

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