27 de abril de 2006

Povo e nação

É preciso alimentar o brasileiro vulnerável até que se recriem as condições de sua inserção econômica e social

Carlos Lessa

Folha de S.Paulo

Na ciência política clássica, "populismo" serviu para designar o movimento de pequenos fazendeiros dos EUA e uma ala radical da social-democracia revolucionária da Rússia czarista. Aqui, a expressão foi reutilizada por intelectuais da USP (Octavio Ianni, Francisco Weffort, Fernando Henrique Cardoso e outros) ao analisar lideranças como Getúlio Vargas, Perón etc. O dirigente populista combinaria a opção nacional-desenvolvimentista com sua legitimação pelas massas populares. Em outro tempo histórico, essas lideranças praticaram autoritarismo.

A Constituição de 1988, ao estabelecer a proteção social para o idoso não-contribuinte e para o portador de deficiência de família pobre, não praticou populismo. O governador Garotinho, ao lançar o "Cheque-Cidadão", e o presidente Lula, ao ampliar o Bolsa-Família, cujos embriões são de Fernando Henrique Cardoso, estão, em caráter emergencial, protegendo frações vulneráveis da sociedade brasileira. É melhor ensinar a pescar do que distribuir peixe. Porém, com a estagnação da economia, a brutal concentração de renda e riqueza e o desemprego larvar, é preciso alimentar o brasileiro vulnerável até que se recriem as condições de sua inserção econômica e social.

O neoliberalismo tenta apagar a idéia da nação, substituindo-a pela do mercado. O brasileiro é um cidadão que, entre múltiplos direitos, pode ser consumidor. A nação deve ter seu futuro pensado por todos os seus integrantes. Pelo processo político constroem seu projeto de futuro e tentam acessá-lo por uma sucessão de "hojes". Para o mercado, o futuro, como norte, inexiste; seus apetites dispensam o sonho. Qualquer consulta aos brasileiros verificará que sonham com um emprego digno para si e para seus filhos.
A economia precisa crescer e romper com a estagnação cruel da última década. A opção tucana e petista não foi com o povo. Comprometeram o Brasil com o pagamento de juros da dívida pública, que em 2006 beneficiará os donos da dívida com R$ 180 bilhões. Estima-se que 70% desse pagamento vão para 20 mil famílias. Em contraste, com o Bolsa-Família, em 2006, serão gastos pouco mais de R$ 7 bilhões para mais de 11 milhões de famílias. Isso é possível com a taxa de juros escandalosamente elevada praticada pelo Banco Central, para a felicidade do "mercado financeiro". O Brasil não cresce, e o desemprego é brutal; porém o clima para os grandes bancos é o mais favorável. Sua lucratividade é das mais elevadas do planeta.
O editorial "A aposta de Garotinho" cita meu nome como seu mentor. Sou um quadro do PMDB que, convocado pela Executiva do partido, consultei cerca de 40 mil peemedebistas sobre um projeto para o Brasil. O PMDB construiu um programa a partir de suas bases partidárias. Praticou, inovadoramente, um jogo absolutamente límpido. Os resultados foram apresentados a meus companheiros Rigotto e Garotinho. Após uma consulta aberta, Garotinho foi indicado pré-candidato à Presidência da República. O governador Rigotto, democraticamente, declarou seu apoio.
A Folha disse que a minha gestão no BNDES "não deixou saudades". Certamente que o grupo AES, que obrigamos a regularizar uma dívida aberta de US$ 1,2 bilhões -o que tornou possível a normalidade empresarial à Eletropaulo-, não deve ter saudade de minha gestão. Especuladores com o olhar virado para as ações da Companhia Vale do Rio Doce devem ter ficado frustrados ao impedirmos que a companhia deixasse de ser brasileira. Ao comprar, o BNDESPar, um lote de ações, impedimos que o grupo japonês passasse a ter poder de veto. Os grandes bancos, que se acostumaram a ganhar repassando fundos do BNDES para empresas do porte da Petrobras, perderam com nossa administração essa fatia saborosa.
O "mercado de capitais" preferia ser comprador institucional de ações de propriedade do banco em vez de um PIBB [Papéis Índice Brasil Bovespa -fundo de ações lançado pelo BNDES], que beneficiou milhares de pequenos aplicadores. Esses e outros senhores não têm saudades. Nossa administração fez o BNDES evoluir de um orçamento de R$ 37 bilhões, em 2003, para a proposta de R$ 60 bilhões, em 2005.
Com o apoio de todas as grandes centrais operárias e da CNI, pressionei o Banco Central para reduzir a TJLP, sem sucesso. Fui demitido ao denominar pesadelo a política econômica. O "vôo de galinha" de 2005, infelizmente, confirmou meu prognóstico. O editorialista está absolutamente certo quando prevê a polarização da proposta programática do PMDB apresentada pelo governador Garotinho em relação à exaurida política econômica das candidaturas do PSDB e do PT. Esta é a angulação lúcida do editorial.

Sobre o autor
Carlos Lessa, 69, economista, é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ. Foi reitor da UFRJ (2002) e presidente do BNDES.

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