1 de março de 2006

Fixo, errante, ou fraturado: Trabalho, identidade e a divisão espacial do trabalho na cidade do século XXI

Ursula Huws

Monthly Review

A combinação de transformações tecnológicas e globalização está provocando mudanças fundamentais em relação a quem faz o quê; onde; quando; e como trabalha. Isso traz implicações profundas para a natureza dos trabalhos, para as pessoas que os executam e, em conseqüência, para a natureza das cidades.

De um lado, o trabalho que antes era geograficamente amarrado a um lugar específico tornou-se errante numa extensão historicamente sem precedentes; de outro, tem havido vasta migração de gente através do planeta em busca tanto de emprego quanto de segurança pessoal. Há portanto um duplo desenraizamento – um movimento de trabalho em direção a pessoas; e um movimento de pessoas em busca de trabalho. A combinação dessas mudanças violentas tem modificado as características das cidades tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.

Nesse processo, também se transformam as identidades e as estruturas sociais. A maioria das explicações clássicas de estratificação social dá especial importância à identidade ocupacional. A base da construção da identidade social tem sido a ocupação - normalmente uma identidade estável adquirida aos poucos seja por herança, seja através de um processo de treinamento que visa fornecer ao estudante ou aprendiz uma habilitação para toda a vida. Uma vez iniciada numa ocupação e a praticando, a pessoa habilitada adquire uma posição reconhecida na divisão social do trabalho, o que lhe dá, por toda a vida, um lugar na sociedade, a qual passa a protegê-la de algumas calamidades tais como doença, desemprego ou falência – riscos contra os quais os “Estados de Bem Estar” da maioria dos países europeus providenciam algum tipo de seguro social.

Essas identidades ocupacionais contribuíram para dar à maioria das cidades uma forma conhecida e familiar a seus habitantes: bairros que abrigam determinadas indústrias; reconhecidas instituições de mercado de trabalho; bairros residenciais; e infra-estruturas físicas e sociais que reforçam esses padrões. Estruturas sociais e convivência se desenvolvem na geografia física da cidade – espaços masculinos e femininos; guetos, onde se concentram imigrantes recentes e áreas onde prepondera a população local; espaços barulhentos onde se reúne a moçada e bairros tranquilos onde mora a população mais idosa. Esses padrões se formam por gênero e raça e se estruturam por relações de poder entre os diferentes grupos sociais. Isso diz respeito a “quem mora onde”, “quem trabalha onde” ou “quem viaja para onde”, e também de que modo cada área é vista- por exemplo, quais áreas são reconhecidas, e por quem, como “limpas”, “seguras” e “amistosas”.

O movimento sem precedentes de gente e de empregos ao redor do mundo tem coincidido com a quebra de muitas identidades ocupacionais. Habilidades específicas ligadas ao uso de determinadas ferramentas ou maquinaria têm mais e mais dado lugar a habilidades mais genéricas e rapidamente mutantes ligadas ao uso da tecnologia da informação e da comunicação (para o trabalho relativo ao processamento de informação) ou às tecnologias de economia do trabalho manual, por exemplo, na construção, manufatura, embalagem ou limpeza. Ademais, em muitos países, essa desintegração das atividades ocupacionais tem coincidido com o colapso das formas representativas dos trabalhadores, tais como os sindicatos que, no passado, bem ou mal, serviam para dar alguma forma coerente de visibilidade social a essas identidades. Fomos deixados num cenário de mudanças escorregadias e pouco definidas, nas quais empregos são criados (e desaparecem) em grande velocidade, muitas vezes sem sequer uma designação concreta – simplesmente numa mistura aleatória de “habilidades”, “aptidões”e “competências”.

Sem identidades coerentes e estáveis como alicerces da análise social, como podemos começar a mapear as mudanças que estão acontecendo hoje em nossas cidades? Uma possibilidade seria começar pelo desenraizamento espacial dos trabalhadores. Aqui uma possível tipologia seria categorizar os trabalhadores como fixos, errantes e uma categoria intermediária de trabalhadores que combinam aspectos de fixos e errantes, à qual poderíamos designar como trabalhadores “fraturados”.

Uma das ironias da atual situação é que a maioria dos empregos fixos é executada pelas mais errantes pessoas, enquanto os trabalhos mais errantes podem ser executados por pessoas com profundas raízes ancestrais no lugar em que trabalham.

Comecemos por alguns trabalhos fixos. Uma das mais óbvias características da fixidez é a necessidade da proximidade física a um ponto específico porque esse trabalho envolve fazer, emendar, limpar ou deslocar mercadorias físicas ou a execução de trabalhos pessoais efetivos a pessoas específicas num tempo determinado.

Começando com meu próprio espaço real, observo os empregos fixos que o sustentam. Vivo em uma rua de casas de três andares do século XIX em Londres, onde cerca de um terço das casas são ocupadas por famílias de classe média, tendo as demais sido convertidas em apartamentos ou ocupadas por famílias mais pobres e ampliadas. A maioria das famílias de classe média emprega uma arrumadeira durante três ou quatro horas por semana. Das arrumadeiras que conheço, uma é da Bolívia, uma da Mauritânia, uma de Uganda e outra da Colômbia. Nenhuma delas é branca, nenhuma nascida na Europa, sem falar de Londres. No final da rua, há dois restaurantes, um café, uma vendinha de peixe e batatinha frita e um ponto de venda de entrega de frango frito. Um dos restaurantes oferece pratos ao estilo europeu de várias procedências, especialmente franceses. Seu dono é um montenegrino casado com uma irlandesa. As garçonetes são brasileiras, polonesas e russas. O outro restaurante oferece um menu italiano, mas seu dono e sua equipe são turcos e a garçonete, albanesa. O dono do café também é turco. A vendinha é tocada por chineses. E o ponto de venda de frango frito, que permanece aberto quase toda a noite, atende a uma clientela grosseira e, a despeito de ter nome americano, é tocada por uma equipe transitória de trabalhadores africanos e asiáticos de aparência exausta.

A manutenção periódica das casas pertencentes à municipalidade (mais ou menos vinte por cento do total) é feita em bloco. Isso aconteceu no ano passado, quando, por várias semanas, o quarteirão encheu-se de trabalhadores da construção. Na última vez, ao que parece, todos os trabalhadores mais especializados eram poloneses; alguns dos menos categorizados eram procedentes de vários países dos Bálcãs, exceto o supervisor (um londrino negro). Não vi qualquer mulher na equipe.

Como não possuo carro, uso frequentemente o serviço de mini-táxis. Os motoristas mudam constantemente, mas, entre eles, sempre há homens oriundos do sul da Ásia e dos países africanos. Que eu saiba há apenas uma motorista mulher, uma nigeriana mal humorada, que se nega a sair do carro e buzina com força para avisar que chegou. Não me lembro da última vez em que me tocou um taxista branco.

Essa diversidade étnica não é exclusiva do trabalho manual. A pequena firma que dá assistência ao meu computador é mantida por um grego cipriota. Seu funcionário é sírio e, quando há muito serviço, um engenheiro turco cuida do meu problema. Todos eles são capazes e educados. As duas recepcionistas do nosso centro médico local são mulheres muito eficientes – uma oriunda da Nigéria; outra da Somália.

Tais exemplos poderiam multiplicar-se muitas vezes não só em Londres, mas também em muitas cidades pelo mundo afora, nas quais a manutenção da infra-estrutura fixa e as atividades de atendimento direto a clientes estão cada vez mais nas mãos de pessoas nascidas em outros países e continentes. A presença delas, como recém chegadas ou imigrantes temporários, tem múltiplos efeitos na forma e no caráter das cidades que as hospedam e que hoje são dependentes do seu trabalho, tanto nas áreas em que elas moram, quanto nas áreas em que trabalham. Como prestadoras e usuárias de serviços, essas pessoas muitas vezes estão na interface do consumo e da produção, tanto dos serviços públicos como dos serviços privados, e, nesse processo, ambos se transformam: criam-se novos mercados para novos tipos de comidas e serviços pessoais; instituições de saúde e de educação adaptam horários e linguagem para disponibilizar seu atendimento; e novos códigos de vestuário e de comportamento, tácitos ou explícitos, são introduzidos, colocando múltiplas exigências tanto aos novos quanto aos antigos residentes, cuja sobrevivência social depende de aprender a decodificá-los. A composição étnica específica de qualquer cidade é delineada por um complexo jogo de fatores, que incluem sua história colonial; suas tradições religiosa, política e cultural; a estrutura industrial; e a localização geográfica. O fator diversidade, contudo, está ficando cada vez mais universal.

Isso a respeito dos empregos fixos. Que dizer dos errantes? A divisão internacional do trabalho não é nova. As regiões comercializaram entre si seus produtos desde o início dos tempos históricos e saquear outras partes do mundo em busca de matéria-prima ou trabalho escravo é tão velho, pelo menos quanto o colonialismo. No final do século XIX, o Império Britânico exibia um padrão altamente desenvolvido de especialização industrial regional, articulado em rede mundial de comércio. O século XX viu corporações multinacionais operarem com crescente independência em relação aos interesses dos Estados-nação que as sediavam, anunciando o período posterior à segunda guerra mundial, caracterizado por Baran e Sweezy como “capitalismo monopolista”.[1] Nos anos 1970, ficou claro que uma nova divisão internacional do trabalho estava surgindo na indústria manufatureira, com companhias fragmentando seus processos de produção em subprocessos separados e distribuindo essas atividades ao redor do globo, onde quer que as condições fossem mais favoráveis.[2] Essas tendências continuaram nos anos 1980 em relação a indústrias tão diversas quanto vestuário, eletrônica e automobilística. Unidades de produção emigraram para longe das economias desenvolvidas em razão de seus custos mais elevados de mão-de-obra e fortes controles ambientais, em busca de países em desenvolvimento e muitas vezes de “zonas de livre comércio”, onde incentivos fiscais eram oferecidos e onde as regulamentações do trabalho e do meio ambiente foram suspensas no esforço de atrair ao máximo o investimento direto estrangeiro. Os trabalhadores nessas regiões eram desproporcionalmente jovens e mulheres recebiam salários abaixo do nível de subsistência. Entretanto, apesar de serem mulheres e muito jovens, esses trabalhadores não ficaram passivos e muitos se organizaram para melhorar sua sorte.[3] Esse é um dos motivos pelos quais algumas regiões antes consideradas de baixos salários, por exemplo, o sudeste da Ásia e a América Central, são hoje vistas como de salários relativamente altos, e as companhias as deixaram para explorar forças de trabalho ainda mais baratas, como na China, na África Subsaariana e outras partes da América Latina.

Não é preciso dizer que essa mudança teve impactos dramáticos tanto nas cidades que perderam como nas que ganharam postos de trabalho fabris. Nas regiões cujas economias dependiam da manufatura para exportação, tais como as “maquiladoras” do México ou a região Metro Manila nas Filipinas, surgiram grandes bairros populares, muitas vezes em áreas altamente poluídas. Essas áreas atraem trabalhadores das proximidades rurais empobrecidas e, nesse processo, criam novos mercados urbanos para produtos e serviços e novas demandas por infra-estrutura e moradia, freqüentemente inadequadas.

Nos países desenvolvidos, cidades que haviam crescido como centros manufatureiros no século XIX e começo do XX tiveram de transformar-se em centros de serviço ou decair como verdadeiros “cinturões de ferrugem”, com alto desemprego, shopping centers vazios, criminalidade crescente e serviços públicos deteriorados. Em muitos casos, não foi do dia para a noite que essas cidades se transformaram de grandes empregadoras de trabalhadores fixos organizados em cidades cheias de terrenos baldios, de fábricas e depósitos fechados. Houve um período de transição durante o qual o trabalho foi automatizado, simplificado e barateado. Durante o período de prosperidade nos países desenvolvidos, entre 1950 e metade de 1970, essas cidades importaram força de trabalho para executar serviços que já não eram atraentes para a população local. Do meio dos anos setenta em diante, quando as fábricas começaram a fechar, foram esses trabalhadores imigrantes da Ásia do Sul, no Norte do Reino Unido; do norte da África, na França; da Turquia, na Alemanha; da América Hispânica, nos Estados Unidos; e da Coréia, no Japão, que suportaram a dureza dessa derrocada. Tensões étnicas acrescentaram-se à fermentação da decadência nas áreas do “cinturão de ferrugem”.

Menos estudada – pelo menos até bem recentemente – tem sido a nova divisão internacional do trabalho de colarinho branco. Contudo, essa também tem se modificado, desde os anos 1970, quando tarefas mais simples, como registro de dados e digitação, começaram a ser exportadas em massa da América do Norte e da Europa para economias de custo menor como o Caribe e os países do sul e sudeste da Ásia; enquanto serviços mais qualificados, como programação de computadores, começaram a ser exportados do mundo desenvolvido para economias em desenvolvimento, tais como a Índia, as Filipinas e o Brasil.[4]

Em 2000, o primeiro projeto destinado a mapear e medir o desenvolvimento de uma nova divisão do trabalho internacional, num processo de informação tele-mediada, foi lançado sob a sigla “Emergence”, que significa Estimation and Mapping of Employement Relocation in a Global Economy and the New Comunications Environment” (Estimativa e Mapeamento do Processo de Realocação do Trabalho na Economia Global e no Novo Ambiente das Comunicações). “Emergence” foi inicialmente financiada pela Sociedade para Informação da Comissão Européia a fim de promover pesquisa em 15 Estados, então membros plenos, além dos candidatos: Hungria, Polônia e República Checa. Depois esse projeto recebeu mais fundos para levar a cabo pesquisas semelhantes na Austrália, nas América e na Ásia. A pesquisa desenhou um quadro multifacetado da nova, complexa e rapidamente cambiante divisão internacional do trabalho no serviços de informação. A primeira pergunta do questionário era: até que ponto os empregadores estão utilizando realmente as novas tecnologias para realocar o trabalho? Uma pesquisa foi feita em 7.268 estabelecimentos, com 50 ou mais empregados, em 18 países europeus; e outra semelhante em 1.031 estabelecimentos de todos os tamanhos na Austrália. A pesquisa observou sistematicamente os locais onde sete serviços genéricos de negócios se efetuavam. Esses serviços eram: atividades criativas e geradoras de criatividade, inclusive pesquisa e desenvolvimento; desenvolvimento de software; registro de dados e digitação; funções de gerenciamento (inclusive administração de recursos humanos e treinamento, assim como logística de manejo); funções financeiras; atividades de vendas; e serviços ao cliente (inclusive aconselhamento e informação ao público, assim como atendimento depois da venda). Para cada função, a pesquisa observava até que ponto ela era executada à distância, usando ferramentas eletrônicas (“e-work”), e se este serviço era realizado na própria firma ou terceirizado.

Os resultados apresentaram um quadro expressivo da extensão em que tais serviços, já no ano 2000, haviam sido realocados. Na Europa, perto da metade de todos os estabelecimentos já realizavam pelo menos uma função usando remotamente um link de telecomunicação para cumprir a tarefa; cerca de um quarto o faziam na Austrália.

Ainda mais impactante que o alcance total do e-work é a forma tomada por ele. A maioria da literatura sobre o trabalho remoto, telecommuting, teleworking, ou qualquer outro pseudônimo para e-work, pressupõe que sua forma dominante seja o trabalho interno (feito na própria firma). Contudo, esses resultados mostram que o estereótipo do empregado e-worker que trabalha exclusivamente na firma é uma das formas menos comuns. Mais ainda: o peso do e-working executado na própria firma é grandemente ultrapassado pelo trabalho terceirizado como mecanismo para organizar o trabalho à distância - 43% dos empregadores europeus e 26% de australianos adotavam essa prática.  Muito da terceirização é executada na própria região da sede da firma (34,5%), mas um número representativo (18,3%) usa firmas localizadas em outras regiões do mesmo país e 5,3%, em firmas de fora de suas fronteiras nacionais. Essas realocações de trabalho inter-regionais e internacionais (algumas vezes intercontinentais) dão a chave para a geografia da nascente divisão internacional do trabalho nos serviços eletrônicos (e-services).

Quais os principais fatores que impulsionam esse movimento de buscar serviços fora das fronteiras nacionais? No alto da lista, está a procura da especialidade técnica apropriada. Somente quando ela já está disponível, fatores secundários entram em jogo, tais como confiabilidade, reputação e baixo custo. Mais que nada, é o fator competência que explica a importância da Índia como supridora de “e-services”. Com sua vasta população, ela parece oferecer um quase ilimitado suprimento de graduados em ciência da computação fluentes em inglês. Uma pesquisa em duzentas das maiores companhias do Reino Unido, encomendada em 2001 pela principal fornecedora “out-sourcer”, descobriu que a Índia era a preferida de 47% dos gerentes como centro de desenvolvimento em software no estrangeiro.[5] Já há sinais, porém, de que o mercado indiano de softwares está superaquecido, apesar da drástica queda da demanda norte-americana. Algumas companhias indianas já se transferiram para posições intermediárias na cadeia produtiva e estão, elas mesmas, destinando serviço a outros locais como Rússia, Bulgária, Hungria e Filipinas.

Para atividades de menor valor agregado, como registro de dados, países mais baratos como Sri Lanka, Madagascar e República Dominicana têm se firmado como alternativa de parceiros anteriores (Barbados e Filipinas). A China, com uma população ainda maior e custo mais baixo do que a Índia e com a determinação de conseguir um papel de liderança na “e-economy”, tem ganhado espaço.

Diferentes funções da empresa requerem diferentes tipos de trabalhadores. Funções pouco categorizadas, como registro de dados e serviços ao cliente, tendem a usar grande número de trabalhadores que costumam ser mulheres; funções mais complexas, como desenho de sistemas, geralmente empregam menor número de trabalhadores, em geral homens.

Como as companhias dispõem para escolha de opções globais, elas se tornam mais exigentes quanto para onde ir, buscando fornecedores ou lugares na base da excelência (“horses for courses basis”/cavalos de corrida). Nesse processo, algumas regiões como Bangalore (Bangalore é o exemplo clássico) desenvolvem reputação mundial de excelência em determinado campo, enquanto outras ficam completamente superadas. Grandes regiões do mundo, incluindo a maior parte da África Subsaariana e Ásia Central, foram classificadas pelo projeto Emergence como “e-perdedoras”.[6]

O que tem acontecido desde 2000? Uma segunda série de estudos de caso levados a efeito pelo projeto Emergence[7] na Ásia em 2002 e 2003 descobriu fatos significativos nos primeiros anos do século XXI. O que, na virada do milênio, ainda era uma experiência arriscada, tornou-se, três anos depois, prática normal e rotineira. Cadeias produtivas ficaram mais longas e complexas com crescente número de intermediários envolvidos. O mundo testemunha o surgimento de imensas novas companhias dedicadas ao suprimento de serviços aos negócios, as quais são, com freqüência, maiores que seus clientes, multiplicando em suas próprias estruturas a divisão internacional de trabalho. Quando uma grande organização do setor público ou privado decide contratar o fornecimento de serviços de escritório, cada vez mais não é tanto o caso escolher entre a Índia ou a Rússia, Canadá ou China, mas sim questão de decidir entre uma companhia específica (por exemplo, Accenture, EDS ou Siemens Business Service). Uma vez que a companhia ganhou o contrato, ela pode dividir o trabalho em âmbito mundial, em função de critérios de competência, idioma, custo e qualidade envolvidos. Esse tipo de trabalho pode ser considerado paradigmático do “trabalho errante”, pois desliza maciamente entre equipes através do globo, as quais se encontram ligadas pelas redes de telecomunicação e por uma cultura corporativa comum, mesmo estando fisicamente localizadas em ambientes fortemente contrastantes e ocupando posições sociais muito diferentes na estrutura social local.

A presença dessa nova classe internacional de trabalhadores nessa rede eletrônica (cyberworkers), sem dúvida, causa impacto nas cidades em que vive. Por exemplo, eles podem tornar-se canais para espalhar valores e culturas das corporações multinacionais no seio das comunidades locais; e, através das cadeias de produção, nas empresas supridoras. Se essas pessoas deixam essas firmas e vão trabalhar em companhia sediada localmente, ou se decidem começar seu próprio negócio, sua experiência internacional marcará nessa nova ocupação. Há outros efeitos mais concretos. Por exemplo, o impacto da indústria de software em Bangalore tem sido dramático em termos de pressão na infra-estrutura e aumento nos preços da propriedade imobiliária, o que afeta os outros habitantes da cidade. Habitantes das cidades vizinhas de Dublin também têm sido vitimas do sucesso internacional do fenômeno “tigre celta”, pois este tem produzido congestionamento crônico de tráfego, inflação do preço de imóveis, o que torna a aquisição de uma moradia inacessível a muitos que antes poderiam comprá-la. Do mesmo modo, o tráfego fica paralisado toda vez que há uma ligeira mudança nos florescentes “centros de atendimento” (call center sites) de Noida e Gurgeon, perto de Delhi no norte da Índia.

Enquanto isso, o próprio fato de que seu trabalho pode ser alocado em outra parte do mundo freia as perspectivas dos trabalhadores de colarinho branco nas cidades que abrigam esse tipo de trabalho. A crescente instabilidade de seus empregos, muitas vezes expressada contratualmente como auto-emprego ou contrato de prazo fixo, não só lhes dificulta tentar melhoria de remuneração e de condições de trabalho, como afeta o mercado imobiliário, pois exclui uma clientela potencial da concessão de hipoteca.

Até aqui desenhei o quadro de um mundo em forte dicotomia, no qual o fixo se contrapõe ao errante tanto em relação ao emprego quanto em relação às pessoas. Para a maioria de nós, é claro, a realidade é muito mais complicada que isso e mostra aspectos complexos, ao mesmo tempo fixos e errantes. Eu chamo a essa condição de “trabalho fragmentado”. Na condição fragmentada, o fixo e o errante estão constantemente em intensa interação. As atividades de tempo real bem enraizadas (como pôr crianças para dormir ou para comer) são constantemente interrompidas por atividades virtuais (como o soar de um telefone), enquanto atividades virtuais (como consultar um e-mail) são perturbadas pelas realidades físicas da situação vivida (um torcicolo ou o impacto de uma queda de energia elétrica). Os tradicionais ritmos da vida diária são interrompidos pelas exigências de respostas às solicitações globais. A interpenetração das ondas de tempo na esfera da vida de uma pessoa leva inexoravelmente ao desenvolvimento de uma economia de 24 horas. As pessoas são forçadas a trabalhar em horas tradicionalmente de descanso ou lazer e precisam, para satisfazer suas necessidades como consumidora, trabalhar em horários anormais, o que, por sua vez, obriga outro grupo a estar a postos para atender tal demanda, desencadeando assim uma engrenagem em que os horários de funcionamento pouco a pouco vão se ampliando e, com eles, a expectativa de que é normal que tudo esteja sempre aberto. Esse processo de “normalização” se acelera pela existência em toda a cidade de um número crescente de novos residentes cujo marco de referência é espacial, e não temporal. Em vez de comparar os horários de abertura de lojas numa cidade européia com os que costumavam ocorrer no passado, eles tendem a compará-los com os de Nairobi, Nova York ou Nova Delhi. Pouco provavelmente se dão conta da solidariedade social que amparava muitas das estruturas tradicionais de horários ou, caso se deem, a consideram não mais que anomalias (ou mesmo práticas racistas que visam prejudicá-los). Por exemplo, nos anos 1950 a 1980, no Reino Unido, a maioria das lojas, na maioria das cidades, fechava ao meio dia um dia na semana, o que era conhecido como dia de fechar cedo. Ainda que isso significasse algum inconveniente para os lojistas, o hábito era aceito como algo bom, uma vez que os comerciários tinham de trabalhar na manhã do sábado e, portanto, tinham direito a uma manhã de folga para compensar esse tempo. Tais atitudes são quase inconcebíveis no século XXI.

Essa experiência fraturada de espaço e de tempo se espelha nas fraturas das identidades ocupacionais. Ainda que algumas especificações de trabalho mantenham um misto de características de fixas ou de errantes, cada vez mais essas características se volatilizam. Tem havido erosão das claras fronteiras do local do trabalho e do dia do trabalho, com o respingar de muitas atividades para dentro de casa ou outros locais. Inclusive, há uma expectativa de que é preciso continuar produtivo enquanto se viaja, quer você seja um motorista de caminhão recebendo ordem pelo celular, durante sua parada para almoço, quer seja um executivo trabalhando numa tabela na sala de espera de um aeroporto. No mundo em que as responsabilidades pela casa e pelos filhos são distribuídas desigualmente entre os sexos, essas intrusões estão bem longe de serem neutras quanto ao gênero e têm contribuído para um redesenho das fronteiras entre os serviços que podem ser feitos com segurança por mulheres e os que se anunciam subliminarmente como masculinos.

A par da dissolução dessas antigas unidades de espaço e tempo, tem também havido, em muitos locais, uma reconfiguração de muitos processos de trabalho que envolvem uma outra sutil, ou não tão sutil, transferência de responsabilidade para determinadas tarefas em muitos lugares de trabalho. Algumas dessas mudanças têm o efeito cumulativo de fazer o equilíbrio oscilar entre o emprego fixo e o errante. Por exemplo, uma ocupação que antes combinava a abordagem e recepção de um cliente com mais atividades nos bastidores pode tornar-se totalmente baseada no computador, tornando fácil realocar o empregado total ou parcialmente para outro lugar. Se este outro lugar é o já existente lar do empregado, isto pode ser considerado uma liberalidade. Mas, se a atividade não é a única do empregado, a probabilidade é de que o outro local seja a mesa de alguém em outro canto do mundo; então, longe de ser uma liberação, constituirá nova fonte de precariedade. Por outro lado, outras tarefas que eram previamente ligadas à escrivaninha (e, portanto, fáceis de mover) podem ser redefinidas para mais atividades de maior contato com o cliente, e se tornarem espacialmente amarradas, ainda que não necessariamente estejam presas a um só local, e sim a múltiplos - quando se espera do empregado aventurar-se para encontrá-los.
Mais revoltante é a lenta erosão das fronteiras ocupacionais e a consequente erosão das identidades. É fácil taxar como rígido e hierárquico o velho mundo em que cada qual sabia “essa é a tarefa que faço”; “esta é a que você faz”; “aquela está reservada para jovens aprendizes”; “aquela outra é feita só por antigos e experientes empregados que sabem o que pode não funcionar”. Essa rigidez leva facilmente a um conjunto de regras não enunciadas, que atribui certas tarefas a mulheres, ou a membros de um grupo étnico especial, ou a pessoas com determinada escolaridade, o que coloca barreiras inaceitáveis à mobilidade social e à igualdade de oportunidades. Porém, agora que essas hierarquias foram abolidas, o que temos? Um mundo em que você é sempre tão bom quanto sua performance da semana passada; para manter seu emprego, você deve estar sempre preparado para aprender uma nova habilidade e mudar o antigo modo no qual foi capacitado (e do qual você poderia se orgulhar no passado); você não pode conhecer de antemão quando estará de folga ou quando terá de trabalhar; você jamais poderá dizer: “não, isso não é da minha responsabilidade”, sem temor de represália. Um mundo sem fronteiras ocupacionais poderia facilmente tornar-se um mundo no qual a solidariedade social é quase impossível, porque você já não tem qualquer meio de definir quais são seus companheiros de trabalho ou quais são os seus vizinhos; um mundo em que tantas de suas interações são com desconhecidos que você terá dificuldade em discernir entre um amigo ou aliado de um inimigo e ou ameaça.

O futuro de nossas cidades dependerá em grande parte de como reintegraremos personalidades fraturadas, lugares fraturados e vizinhanças fraturadas.

Notas

1. Paul Baran and Paul Sweezy, Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order (New York: Monthly Review Press, 1966).

2. F. Froebel, J. Heinrichs, & O. Krey, The New International Division of Labor (Cambridge: Cambridge University Press, 1979).

3. Ver, por exemplo Women Working Worldwide, Common Interests: Women Organising in Global Electronics (London: Women Working Worldwide, 1991).

4. Ursula Huws, The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World (New York: Monthly Review Press & London: Merlin Books, 2003).

5. Citado em silicon.com, May 31, 2001.

6. Ursula Huws, ed., When Work Takes Flight: Research Results from the EMERGENCE Project, IES Report 397, Brighton: Institute for Employment Studies, Brighton, 2003.

7. Ursula Huws and J. Flecker, eds., Asian EMERGENCE: The World’s Back Office?, IES Report 409, Institute for Employment Studies, Brighton, 2004.

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