1 de dezembro de 2005

Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado

Os teóricos da justiça política há muito consideram o estado-nação a unidade relevante para suas propostas. Nancy Fraser argumenta que o tempo para isso já passou. A necessária interconexão entre as lutas pela redistribuição econômica e o reconhecimento social agora exige que as questões de representação política sejam reapresentadas em nível global e não nacional – onde as decisões que afetam o destino de todos são cada vez mais tomadas, ou não.

Nancy Fraser



Tradução / A globalização está mudando o modo pelo qual discutimos a justiça.1 Há pouco tempo, no auge da social democracia, as disputas acerca da justiça pressupunham o que eu chamarei de “enquadramento Keynesiano-Westfaliano”. Já que normalmente aconteciam no interior dos Estados territoriais modernos, supunha-se que as discussões acerca da justiça concerniam às relações entre cidadãos, deveriam submeterse ao debate dentro dos públicos nacionais e contemplar reparações pelos Estados nacionais. Isso se aplicava para cada um dos dois grandes tipos de reivindicações por justiça – reivindicações por redistribuição socioeconômica e reivindicações por reconhecimento legal ou cultural. Em um momento em que o Sistema de Bretton Woods facilitava a aplicação do modelo econômico keynesiano em nível nacional, as reivindicações por redistribuição geralmente se focalizavam em desigualdades econômicas dentro dos Estados territoriais. Recorrendo à opinião pública para uma divisão mais justa da riqueza nacional, os reivindicantes buscavam a intervenção dos Estados nacionais nas economias domésticas. Da mesma forma, em uma era ainda impregnada pelo imaginário político Westfaliano, que distinguia fortemente o espaço “doméstico” do “internacional”, as demandas por reconhecimento geralmente se dirigiam às hierarquias de status internas. Recorrendo à consciência nacional para colocar um fim ao desrespeito institucionalizado nacionalmente, os reivindicantes pressionavam os governos nacionais a proscrever a discriminação e acomodar as diferenças entre os cidadãos. Em ambos os casos, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano era assumido sem questionamento. Representasse o problema uma questão de redistribuição ou de reconhecimento, de diferenças de classe ou de hierarquias de status, ele era tratado de um modo em que a unidade dentro da qual a justiça se aplicava era o Estado territorial moderno.2

Na verdade, sempre havia exceções. Ocasionalmente, a fome e o genocídio chocavam a opinião pública além das fronteiras. E alguns cosmopolitas e anti-imperialistas procuravam disseminar visões globalistas.3 Mas essas eram exceções que comprovavam a regra. Relegadas à esfera do “internacional”, elas eram subsumidas a uma problemática que se concentrava prioritariamente em questões de segurança, em oposição à justiça. O efeito disso foi reforçar, em vez de desafiar, o enquadramento Keynesiano-Westfaliano. De modo geral, esse enquadramento de disputas acerca da justiça prevaleceu por falta de oposição desde o fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970.

Apesar de isso não ter sido notado naquele momento, esse enquadramento conferiu um formato distinto aos argumentos sobre a justiça social. Assumindo o Estado moderno territorial como a unidade apropriada, e os cidadãos como os sujeitos concernidos, tais argumentos se dirigiam a o que precisamente esses cidadãos deviam uns aos outros. Aos olhos de alguns, era suficiente que os cidadãos fossem formalmente iguais perante a lei; para outros, a igualdade de oportunidades era também requerida; para outros, ainda, a justiça demandava que todos os cidadãos tivessem acesso aos recursos e ao respeito de que eles precisavam para serem capazes de participar em paridade com os demais, como membros integrais da comunidade política. Em outras palavras, o argumento concentrava-se precisamente no que deveria ser entendido como uma justa ordenação das relações sociais no interior da sociedade. Envolvidos na disputa sobre “o que” era a justiça, os debatedores aparentemente não sentiam nenhuma necessidade de discutir o “quem”. Com o enquadramento Keynesiano- Westfaliano firmemente estabelecido, tomava-se como certo que o “quem” correspondia aos cidadãos nacionais. 3

Hoje, entretanto, esse enquadramento vem perdendo sua feição de autoevidência. Graças à elevada preocupação com a globalização e às instabilidades geopolíticas pós- Guerra Fria, muitos observam que os processos sociais que moldam suas vidas rotineiramente transbordam as fronteiras territoriais. Eles notam, por exemplo, que as decisões tomadas em um Estado territorial frequentemente impactam as vidas dos que estão fora dele, assim como as ações das corporações transnacionais, dos especuladores financeiros internacionais e dos grandes investidores institucionais. Muitos também notam a crescente visibilidade das organizações supranacionais e internacionais, tanto governamentais como não governamentais, e da opinião pública transnacional, que se desenvolve sem nenhuma consideração às fronteiras, através dos meios de comunicação de massa globais e da cibertecnologia. O resultado é um novo tipo de vulnerabilidade perante as forças transnacionais. Confrontados pelo aquecimento global, a disseminação da aids, o terrorismo internacional e o poderoso unilateralismo, muitos acreditam que suas chances de viverem bem dependem tanto dos processos que transpassam as fronteiras dos Estados territoriais quanto daqueles contidos dentro delas.

Sob tais condições, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano não é mais aceito sem questionamentos. Para muitos, deixou de ser axiomático que o Estado territorial moderno seja a unidade apropriada para se lidar com as questões de justiça e que os cidadãos destes Estados sejam os sujeitos a serem tomados como referência. O efeito disso é a desestabilização da prévia estrutura de formulação de demandas políticas – e, portanto, a mudança do modo pelo qual discutimos a justiça social.

Isso é verdade para os dois grandes tipos de reivindicação por justiça. No mundo contemporâneo, as reivindicações por redistribuição evitam, de modo crescente, tomar como pressuposto as economias nacionais. Diante da produção transnacionalizada, da diminuição de empregos, e das pressões associadas à redução dos marcos regulatórios dos Estados nacionais em competição, os sindicatos, antes nacionalmente focalizados, agora procuram, cada vez mais, aliados estrangeiros. Enquanto isso, inspirados pelos Zapatistas, os camponeses empobrecidos e os povos indígenas associam suas lutas contra o poder despótico local e as autoridades nacionais às críticas à ação predatória das corporações transnacionais e ao neoliberalismo global. Finalmente, os oponentes da Organização Mundial do Comércio atacam diretamente as novas estruturas de governança da economia global, que têm fortalecido muito a capacidade das grandes corporações e dos investidores de escapar dos poderes regulatórios e tributários dos Estados territoriais.

Do mesmo modo, os movimentos que lutam por reconhecimento, cada vez mais, olham além do Estado territorial. Sob o slogan “os direitos das mulheres são direitos humanos”, por exemplo, as feministas estão, ao redor do mundo, vinculando as lutas contra as práticas patriarcais locais a campanhas de reforma da legislação internacional. Ao mesmo tempo, minorias religiosas e étnicas, que sofrem discriminação dentro dos Estados territoriais, estão se reconstituindo em diásporas e construindo públicos transnacionais a partir dos quais mobilizam a opinião internacional. Finalmente, coalizões transnacionais dos ativistas dos direitos humanos buscam construir novas instituições cosmopolitas, tais como a Corte Internacional de Justiça, capazes de punir violações dos Estados à dignidade humana.

Em tais casos, os debates acerca da justiça estão implodindo o enquadramento Keynesiano-Westfaliano. Uma vez que as demandas já não se endereçam exclusivamente aos Estados nacionais e também não são debatidas somente pelos públicos nacionais, os reivindicantes não se focam mais apenas nas relações entre cidadãos. Assim, a gramática do argumento se alterou. Seja uma questão de redistribuição seja de reconhecimento, as disputas, que antes se focalizavam exclusivamente sobre o que era devido aos membros da comunidade como uma questão de justiça, agora, rapidamente, se transformam em disputas acerca de quem deve contar como um membro e qual é a comunidade relevante. Não apenas o “o que”, mas também “quem” está em disputa.

Hoje, em outras palavras, as discussões acerca da justiça assumem um duplo aspecto. Por um lado, elas tratam de questões de primeira ordem relativas à substância, tal como antes. Quanta desigualdade econômica a justiça permite, quanta redistribuição é requerida, e de acordo com qual princípio da justiça distributiva? O que constitui respeito igualitário, quais tipos de diferenças merecem reconhecimento público, e por quais meios? Acima e além dessas questões de primeira ordem, as discussões sobre a justiça, hoje, também tratam de questões de segunda ordem relativas ao meta-nível. Qual é o enquadramento, que adequado para se considerarem as questões de justiça de primeira ordem? Quem são os sujeitos relevantes titulares de uma justa distribuição ou de um reconhecimento recíproco no caso em questão? Desse modo, não é apenas a substância da justiça, mas também o enquadramento que está em disputa. O resultado é um desafio maior para as nossas teorias sobre justiça social. Preocupadas em grande medida com as questões de distribuição e/ou reconhecimento de primeira ordem, estas teorias, até o momento, não conseguiram desenvolver instrumentos conceituais para refletir sobre a meta questão do enquadramento. Então, da forma como as coisas estão, de modo algum está claro que elas sejam capazes de lidar com o duplo caráter dos problemas da justiça na era globalizada.4

Neste artigo, eu proporei uma estratégia para se pensar sobre o problema do enquadramento. Argumentarei, inicialmente, que as teorias da justiça devem-se tornar tridimensionais, incorporando a dimensão política da representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão cultural do reconhecimento. Eu também sustentarei que se deve entender ser a dimensão política da representação capaz de englobar três níveis. O efeito combinado destes dois argumentos tornará visível uma terceira questão, que vai além do “o que” e do “quem”, e a qual eu chamarei de questão do “como”. Essa questão, por sua vez, inaugura uma mudança paradigmática: o que o enquadramento Keynesiano- Westfaliano fixou como a teoria da justiça social deve, agora, tornar-se a teoria da justiça democrática pós-Westfaliana.

A especificidade do político

Deixe-me começar explicando o que eu entendo por justiça em geral e por sua dimensão política em particular. De acordo com essa interpretação democrática-radical do princípio do igual valor moral, a justiça requer arranjos sociais que permitam que todos participem como pares na vida social. Superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem alguns sujeitos de participarem, em condições de paridade com os demais, como parceiros integrais da interação social. Anteriormente, eu analisei dois tipos distintos de obstáculos à participação paritária, que correspondem a duas espécies diferentes de injustiça. Por um lado, as pessoas podem ser impedidas da plena participação por estruturas econômicas que lhes negam os recursos necessários para interagirem com os demais na condição de pares; nesse caso, elas sofrem injustiça distributiva ou má distribuição. Por outro lado, as pessoas também podem ser coibidas de interagirem em termos de paridade por hierarquias institucionalizadas de valoração cultural que lhes negam o status necessário; nesse caso, elas sofrem de desigualdade de status ou falso reconhecimento.5 No primeiro caso, o problema é a estrutura de classe da sociedade, que corresponde à dimensão econômica da justiça. No segundo caso, o problema é a ordem de status, que corresponde à sua dimensão cultural. Nas sociedades capitalistas modernas, a estrutura de classe e a ordem de status não se refletem apropriadamente, apesar de interagirem de modo causal. Ao contrário, cada uma tem alguma autonomia em relação à outra. Como resultado, o falso reconhecimento não pode ser reduzido a um efeito secundário da má distribuição, como algumas teorias econômicas da justiça distributiva parecem supor. Também não pode, de modo inverso, ser a má distribuição reduzida a uma expressão epifenomenal do falso reconhecimento, como algumas teorias culturalistas do reconhecimento tendem a afirmar. Desse modo, nem a teoria do reconhecimento nem a teoria da distribuição podem, sozinhas, oferecer uma compreensão adequada da justiça para a sociedade capitalista. Apenas uma teoria bidimensional, que abarque tanto distribuição quanto reconhecimento, pode fornecer os níveis necessários de complexidade socialteórica e discernimento moral-filosófico.6

Esta, pelo menos, é a visão da justiça que eu defendi no passado. E esta compreensão bidimensional da justiça ainda me parece ser adequada até o ponto em que ela se estende. Mas agora eu acredito que ela não vai longe o suficiente. Distribuição e reconhecimento pareciam constituir as únicas dimensões da justiça apenas enquanto o enquadramento Keynesiano-Westfaliano era tomado como pressuposto. Uma vez que a questão do enquadramento se torna sujeita à contestação, o efeito disso é tornar visível uma terceira dimensão da justiça, que foi negligenciada em meu trabalho anterior – bem como no trabalho de muitos outros filósofos.7

A terceira dimensão da justiça é o político. Obviamente, distribuição e reconhecimento são políticos por natureza, no sentido de serem contestados e permeados por poder; e eles, frequentemente, têm sido tratados como elementos que demandam a tomada de decisão do Estado. Mas eu considero o político em um sentido mais específico, constitutivo, que diz respeito à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais. O político, nesse sentido, fornece o palco em que as lutas por distribuição e reconhecimento são conduzidas. Ao estabelecer o critério de pertencimento social, e, portanto, determinar quem conta como um membro, a dimensão política da justiça especifica o alcance daquelas outras dimensões: ela designa quem está incluído, e quem está excluído, do círculo daqueles que são titulares de uma justa distribuição e de reconhecimento recíproco. Ao estabelecer regras de decisão, a dimensão política também estipula os procedimentos de apresentação e resolução das disputas tanto na dimensão econômica quanto na cultural: ela revela não apenas quem pode fazer reivindicações por redistribuição e reconhecimento, mas também como tais reivindicações devem ser introduzidas no debate e julgadas.

Centrada em questões de pertencimento e procedimento, a dimensão política da justiça diz respeito prioritariamente à representação. Em um nível, pertinente ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do político, a representação é uma questão de pertencimento social. O que está em jogo aqui é a inclusão ou a exclusão da comunidade formada por aqueles legitimados a fazer reivindicações recíprocas de justiça. Em outro nível, pertinente ao aspecto da regra decisória, a representação diz respeito aos procedimentos que estruturam os processos públicos de contestação. Aqui, o que está em questão são os termos nos quais aqueles incluídos na comunidade política expressam suas reivindicações e decidem suas disputas.8 Nos dois níveis, o problema que surge é se as relações de representação são justas. Pode-se questionar: as fronteiras da comunidade política equivocadamente excluem alguns que, de fato, são titulares do direito à representação? As regras decisórias da comunidade atribuem, para todos os membros, igual capacidade de expressão nas deliberações públicas e representação justa no processo público de tomada de decisão? Tais questões de representação são especificamente políticas. Conceitualmente distintas das questões tanto econômicas quanto culturais, elas não podem ser reduzidas às últimas, apesar de, como veremos, estarem, inextricavelmente, entrelaçadas a elas.

Dizer que o político é uma dimensão conceitualmente distinta da justiça, irredutível ao econômico ou ao cultural, é também dizer que ele pode dar vazão a espécies conceitualmente distintas da injustiça. Dada a visão de justiça como paridade participativa, isso significa que pode haver obstáculos distintamente políticos à paridade, irredutíveis à má distribuição ou ao falso reconhecimento, apesar de (novamente) estarem a eles entrelaçados. Tais obstáculos surgem da constituição política da sociedade, em oposição à estrutura de classe ou à ordem de status. Baseados em um modo especificamente político de ordenação social, eles só podem ser adequadamente entendidos através de uma teoria que conceitua representação, juntamente com distribuição e reconhecimento, como uma das três dimensões fundamentais da justiça.

Três níveis de falsa representação

Se a representação é a questão definidora do político, então a característica política da injustiça é a falsa representação. A falsa representação ocorre quando as fronteiras políticas e/ou as regras decisórias funcionam de modo a negar a algumas pessoas, erroneamente, a possibilidade de participar como um par, com os demais, na interação social – inclusive, mas não apenas, nas arenas políticas. Longe de poder ser reduzida à má distribuição ou ao falso reconhecimento, a falsa representação pode ocorrer até mesmo na ausência dessas outras injustiças, apesar de estar frequentemente conectada a elas. Pelo menos dois níveis diferentes de falsa representação podem ser distinguidos. À medida que as regras de decisão política equivocadamente negam a alguns dos incluídos a chance de participar plenamente, como pares, a injustiça é o que eu chamo de falsa representação política-comum. Aqui, onde a questão é a representação dentro do enquadramento, entramos no terreno familiar dos debates da ciência política acerca dos méritos relativos de sistemas eleitorais alternativos. Os sistemas single-member- district,9 winner-take-all,10 first-past-the-post11 injustamente negam paridade a minorias numéricas? E, se o fizerem, a representação proporcional ou a votação cumulativa é a solução apropriada? Da mesma forma, as regras insensíveis ao gênero, em conjunto com a má distribuição e o falso reconhecimento baseados no gênero, funcionam de modo a negar paridade de participação política às mulheres? E se o fizerem, as cotas de gênero são a solução apropriada? Tais questões pertencem à esfera da justiça política-comum que, habitualmente, ocorriam dentro do enquadramento Keynesiano-Westfaliano.

Menos óbvio, talvez, seja o segundo nível da falsa representação, que diz respeito ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do político. Aqui, a injustiça surge quando as fronteiras da comunidade são estabelecidas de uma forma que, equivocadamente, exclui de algumas pessoas todas as chances de participarem dos debates autorizados sobre a justiça. Em tais casos, a falsa representação ganha uma forma mais severa, que eu chamarei de mau enquadramento. O problema do mau enquadramento tem um caráter mais profundo em função da importância crucial do enquadramento para todas as questões de justiça social. Longe de ter significância marginal, o estabelecimento do enquadramento está entre as decisões políticas mais consequentes. Ao constituir tanto os membros quanto os não membros de uma única vez, essa decisão efetivamente exclui os últimos do universo daqueles a serem considerados dentro da comunidade em questões de distribuição, reconhecimento e representação política-comum. O resultado pode ser uma grave injustiça. Quando questões da justiça são enquadradas de uma forma que, erroneamente, exclui alguns indivíduos do âmbito de consideração, a consequência é um tipo específico de metainjustiça, em que se negam a esses a chance de formularem reivindicações de justiça de primeira ordem em uma dada comunidade política. A injustiça permanece, além disso, até mesmo quando aqueles que são excluídos de uma comunidade política são incluídos como sujeitos da justiça em outra – uma vez que a divisão política tem o efeito de colocar algumas questões relevantes da justiça fora de seu alcance. Ainda mais sério, obviamente, é o caso em que o indivíduo é excluído do pertencimento a qualquer comunidade política. Semelhante à perda do que Hannah Arendt chamou de “direito a ter direitos”, esse tipo de mau enquadramento é uma espécie de “morte política” (Arendt, 1973, pp. 269-284).12 Aqueles que o sofrem podem se tornar objetos de caridade ou benevolência. Desprovidos da possibilidade de formular reivindicações de primeira ordem, eles se tornam não-sujeitos em relação à justiça.

O tipo de mau enquadramento que a globalização tornou recentemente visível é a falsa representação. Anteriormente, no auge do Estado de bem-estar pós-guerra, com o enquadramento Keynesiano-Westfaliano seguramente estabelecido, a principal preocupação, quando se pensava sobre a justiça, era a distribuição. Depois disso, com o surgimento dos novos movimentos sociais e do multiculturalismo, as atenções se voltaram para o reconhecimento. Em ambos os casos, o Estado territorial moderno foi assumido sem discussão. Como resultado, a dimensão política da justiça foi relegada a um segundo plano. Quando ela emergiu, tomou a forma política comum de disputas em torno das regras internas de decisão do país cujas fronteiras já estavam dadas. Assim, as reivindicações por cotas de gênero e direitos multiculturais procuravam remover os obstáculos políticos à participação paritária daqueles que, em princípio, já estavam incluídos na comunidade política. Tomando como pressuposto o enquadramento Keynesiano-Westfaliano, essas demandas não colocavam em questão a noção de que a unidade apropriada da justiça era o Estado territorial.

Hoje, ao contrário, a globalização tem colocado a questão do enquadramento diretamente na agenda política. Cada vez mais sujeito à contestação, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano é agora considerado, por muitos, um grande produtor de injustiça, já que ele fraciona o espaço político de tal modo que impede os pobres e os desprezados de desafiarem as forças que os oprimem. Ao direcionar as reivindicações para os espaços políticos domésticos dos relativamente desempoderados, senão totalmente falidos, Estados nacionais, esse enquadramento isola, da crítica e do controle, os poderes que estão fora dos limites nacionais.13 Entre aqueles protegidos do alcance da justiça estão os Estados predadores mais poderosos e os poderes privados transnacionais, inclusive investidores e credores estrangeiros, especuladores monetários internacionais e corporações transnacionais. Também protegidas estão as estruturas de governança da economia global, que estabelecem termos de interação abusivos e, assim, se eximem do controle democrático. Finalmente, o enquadramento Keynesiano-Westfaliano se autoisola; a arquitetura do sistema interestatal protege o mesmo fracionamento do espaço político que ela institucionaliza, excluindo, de modo efetivo, as questões sobre a justiça do processo democrático transnacional de tomada de decisão.

A partir dessa perspectiva, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano é um poderoso instrumento de injustiça, que fraciona o espaço político de modo a beneficiar determinado grupo à custa dos pobres e desprezados. Para aqueles a quem é negada a chance de formular reivindicações transnacionais de primeira ordem, as lutas contra a má distribuição e o falso reconhecimento não podem acontecer, muito menos obter êxito, a não ser que elas sejam vinculadas a lutas contra o mau enquadramento. Não é estranho, então, que alguns considerem mau enquadramento a injustiça definidora da era da globalização. Sob essas condições, a dimensão política da injustiça não pode ser ignorada. À medida que a globalização politiza a questão do enquadramento, ela também torna visível um aspecto da gramática da justiça que foi frequentemente negligenciado em um período anterior. Agora, é evidente que nenhuma reivindicação por justiça pode evitar pressupor alguma noção de representação, implícita ou explícita, uma vez que nenhuma pode evitar assumir um enquadramento. Desse modo, a representação já está sempre incorporada em todas as reivindicações por redistribuição e reconhecimento. A dimensão política está implícita na gramática do conceito de justiça e, certamente, é por ela requerida. Assim, não há redistribuição ou reconhecimento sem representação.14

Em geral, então, uma teoria da justiça adequada ao nosso tempo deve ser tridimensional. Abarcando não somente a redistribuição e o reconhecimento, mas também a representação, ela deve permitir-nos entender a questão do enquadramento como uma questão de justiça. Incorporando as dimensões econômica, cultural e política, ela deve nos capacitar a identificar as injustiças do mau enquadramento e avaliar possíveis reparações. Acima de tudo, ela deve nos permitir colocar e responder a questão política central de nossa época: como podemos integrar lutas contra a má distribuição, o falso reconhecimento e a falsa representação dentro de um enquadramento pós-Westfaliano?

Da territorialidade estatal à efetividade social?

Até aqui, eu argumentei sobre a especificidade irredutível do político como uma das três dimensões fundamentais da justiça. E também identifiquei dois níveis distintos de injustiça política: a falsa representação política comum e o mau enquadramento. Agora, quero examinar a política do enquadramento em um mundo globalizado. Distinguindo abordagens afirmativas das transformativas, eu argumentarei que uma política adequada da representação deve também dirigir-se a um terceiro nível: além de contestar a falsa representação política-comum e o mau enquadramento, tal política deve também procurar democratizar o processo de estabelecimento do enquadramento.

Eu começo explicando o que entendo pela “política do enquadramento”. Situada em meu segundo nível, onde distinções entre membros e não membros são estabelecidas, essa política diz respeito ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do político. Focalizada nas questões acerca de quem é considerado um sujeito da justiça, e qual é o enquadramento apropriado, a política do enquadramento abrange esforços para estabelecer e consolidar, contestar e revisar, a divisão oficial do espaço político. Incluídas aqui estão as lutas contra o mau enquadramento, que visam a desmantelar os obstáculos que impedem as pessoas em desvantagem de confrontar, com reivindicações por justiça, as forças que as oprimem. Centrada no estabelecimento e na contestação dos enquadramentos, a política do enquadramento concerne à questão do “quem”.

A política do enquadramento pode ganhar duas distintas formas, ambas agora presentes em nosso mundo globalizado. 15 A primeira abordagem, que chamarei de política afirmativa do enquadramento, contesta as fronteiras dos enquadramentos existentes ao mesmo tempo que aceita a gramática Westfaliana de estabelecimento do enquadramento. Nessa política, aqueles que afirmam sofrer injustiças de mau enquadramento buscam redesenhar as fronteiras dos Estados territoriais existentes ou, em alguns casos, criar novas fronteiras. Mas eles ainda assumem que o Estado territorial é a unidade apropriada para se colocar e solucionar disputas acerca da justiça. Para eles, injustiças de mau enquadramento não são uma variável do princípio geral segundo o qual a ordem Westfaliana fraciona o espaço político. Ao contrário, elas surgem como um resultado da aplicação equivocada desse princípio. Assim, aqueles que praticam a política afirmativa do enquadramento aceitam que o princípio da territorialidade estatal é a base apropriada para constituir o “quem” da justiça. Em outras palavras, eles concordam que o que torna um dado grupo de indivíduos sujeitos equivalentes da justiça é sua residência comum no território de um Estado moderno e/ou o seu pertencimento comum a uma comunidade política que corresponde a tal Estado. Desse modo, longe de desafiar a gramática subjacente à ordem Westfaliana, aqueles que praticam a política afirmativa do enquadramento aceitam o seu princípio do Estado-territorial.

Entretanto, é precisamente esse princípio que é contestado em uma segunda versão da política do enquadramento, que chamarei de abordagem transformativa. Para os seus proponentes, o princípio do Estado territorial não mais garante uma base adequada para determinar o “quem” da justiça em todas as situações. Eles concedem, obviamente, que o princípio permanece relevante por muitas razões; assim, os proponentes da transformação não sugerem a total eliminação da territorialidade estatal. Mas eles argumentam que a sua gramática não está ajustada às causas estruturais de muitas injustiças no mundo globalizado, que não são territoriais por natureza. Os exemplos incluem os mercados financeiros, empresas protegidas de regulamentação fiscal no país em que operam (offshores), regimes de investimento e estruturas de governança da economia global, que determinam quem trabalha por um salário e quem não; as redes de informação dos meios de comunicação globais e cibertecnologia, que determinam quem está incluído nos circuitos do poder comunicativo e quem não está; e a biopolítica do clima, das doenças, dos medicamentos, das armas e da biotecnologia, que determinam quem viverá muito e quem morrerá cedo. Nessas questões tão fundamentais para o ser humano, as forças que cometem injustiça pertencem não ao “espaço dos lugares”, mas ao “espaço dos fluxos”.16 Não localizadas dentro da jurisdição de qualquer Estado territorial existente ou concebível, elas não podem ser confrontadas a responder reivindicações por justiça que são enquadradas em termos do princípio do Estado territorial. Nesse caso, invocar o princípio do Estado territorial para determinar o enquadramento é, em si, cometer uma injustiça. Ao fracionar o espaço político ao longo de linhas territoriais, esse princípio isola poderes extra e não territoriais do alcance da justiça. Em um mundo globalizado, então, é menos provável que isso sirva como uma reparação para o mau enquadramento do que como um mecanismo para infligi-lo ou perpetuá-lo.

O enquadramento pós-Westfaliano

De modo geral, então, a política transformativa do enquadramento procura alterar a gramática enraizada do estabelecimento de enquadramento em um mundo globalizado. Essa abordagem visa a suplementar o princípio do Estado territorial da ordem Westfaliana com um ou mais princípios pós-Westfalianos. O objetivo é superar as injustiças decorrentes do mau enquadramento por meio da mudança não apenas das fronteiras do “quem” da justiça, mas também do modo de sua constituição, ou seja, da forma pela qual elas são desenhadas.17

Com o que o modo pós-Westfaliano de estabelecimento do enquadramento se pareceria? Obviamente, é ainda muito cedo para se ter uma visão clara disso. Entretanto, o candidato mais promissor até o momento é o “princípio de todos os afetados”. Esse princípio estabelece que todos aqueles afetados por uma dada estrutura social ou instituição têm o status moral de sujeitos da justiça com relação a ela. Nessa visão, o que transforma um coletivo de pessoas em sujeitos da justiça de uma mesma categoria não é a proximidade geográfica, mas sua coimbricação em um enquadramento estrutural ou institucional comum, que estabelece as regras fundantes que governam sua interação social, moldando, assim, suas respectivas possibilidades de vida segundo padrões de vantagem e desvantagem.

Até recentemente, o princípio de todos os afetados parecia coincidir, na visão de muitos, com o princípio do Estado territorial. Dentro da visão de mundo Westfaliana, pressupunha-se que o enquadramento comum, determinante dos padrões de vantagem e desvantagem, era precisamente a ordem constitucional do Estado moderno territorial. Como resultado, parecia que, ao se aplicar o princípio do Estado territorial, simultaneamente se capturava a força normativa do princípio de todos os afetados. De fato, isso nunca foi totalmente verdade, como a longa história do colonialismo e neocolonialismo demonstra. Todavia, da perspectiva da metrópole, a fusão da territorialidade estatal com a efetividade social pareceu ter um ímpeto emancipatório, já que servia para justificar a progressiva incorporação, como sujeitos da justiça, de classes e grupos de status subordinados que residiam no território, mas eram excluídos da cidadania ativa.

Hoje, entretanto, a ideia de que a territorialidade estatal pode servir como representante da efetividade social não é mais plausível. Sob as atuais condições, a chance de alguém viver uma boa vida não depende totalmente da constituição política interna do Estado territorial em que reside. Apesar disso ainda ser inegavelmente relevante, seus efeitos são mediados por outras estruturas, tanto extra quanto não territoriais, cujo impacto é igualmente significante. Em geral, a globalização está tornando conflituosa a relação entre a territorialidade estatal e a efetividade social. A crescente divergência entre esses dois princípios tem o efeito de demonstrar que o primeiro é inadequado para sub-rogar o segundo. E assim surge a questão: é possível aplicar o princípio de todos os afetados diretamente ao enquadramento da justiça, sem passar pelo desvio da territorialidade estatal?18

Isso é precisamente o que alguns praticantes da política transformativa tentam fazer. Procurando exercer uma influência contra as fontes externas da má distribuição e do falso reconhecimento, alguns ativistas da globalização invocam diretamente o princípio de todos os afetados de modo a se contrapor à regra do fracionamento do espaço político em Estados territoriais. Ao contestar sua exclusão pelo enquadramento Keynesiano-Westfaliano, ambientalistas e povos indígenas reivindicam o status de sujeitos da justiça em relação aos poderes extra e não territoriais que afetam suas vidas. Insistindo que a efetividade ultrapassa a territorialidade estatal, eles congregaram ativistas do desenvolvimento, feministas internacionais e outros em torno da afirmação de seu direito a fazer reivindicações contra as estruturas que os prejudicam, mesmo quando elas não podem ser localizadas em espaços físicos. Rejeitando a gramática Westfaliana de estabelecimento do enquadramento, esses reivindicantes aplicam o princípio de todos os afetados diretamente a questões de justiça em um mundo globalizado.

A justiça metapolítica

Em tais casos, a política transformativa do enquadramento ocorre simultaneamente em múltiplas dimensões e em múltiplos níveis. Em um nível, os movimentos sociais que praticam essa política buscam reparar injustiças de primeira ordem, relacionadas à má distribuição, ao falso reconhecimento e à falsa representação da política comum. Em um segundo nível, esses movimentos buscam reparar injustiças de metanível decorrentes do mau enquadramento, por meio da reconstituição do “quem” da justiça. Além disso, nesses casos em que o princípio do Estado territorial serve mais para proteger a injustiça do que para desafiá-la, movimentos sociais transformativos invocam, em contraponto, o princípio de todos os afetados. Ao recorrer ao princípio pós-Westfaliano, eles procuram alterar a própria gramática do estabelecimento do enquadramento – e, assim, reconstruir as fundações metapolíticas da justiça para um mundo globalizado.

Mas as reivindicações da política transformativa vão muito mais longe. Além de suas outras demandas, esses movimentos também reivindicam o direito de participar no processo de estabelecimento do enquadramento pós-Westfaliano. Ao rejeitar a visão corrente, que considera ser o estabelecimento do enquadramento uma prerrogativa dos Estados e elites transnacionais, eles, efetivamente, procuram democratizar o processo através do qual os enquadramentos da justiça são desenhados e revisados. Afirmando o seu direito de participar na constituição do “quem” da justiça, eles, simultaneamente, transformam o “como” – o que eu entendo corresponder aos procedimentos aceitos para determinar o “quem”. Nesse sentido, os movimentos transformativos, em sua atuação mais reflexiva e ambiciosa, demandam a criação de novas arenas democráticas para a formulação de argumentos sobre o enquadramento. Em alguns casos, além disso, eles mesmos criam tais arenas. No Fórum Social Mundial, por exemplo, alguns praticantes da política transformativa criaram uma esfera pública transnacional na qual podem participar como pares, em relação aos demais, no processo de formulação e resolução de disputas acerca do enquadramento. Desse modo, eles prefiguram a possibilidade de novas instituições da justiça democrática pós-Westfaliana.19

A dimensão democratizante da política transformativa aponta para um terceiro nível de justiça política, além dos dois já discutidos. Anteriormente, eu distingui as injustiças de primeira ordem, correspondentes à falsa representação da política-comum, das injustiças de segunda ordem, correspondentes ao mau enquadramento. Entretanto, agora podemos discernir uma espécie de injustiça política de terceira ordem, que corresponde à questão do “como”. Exemplificada pelos processos antidemocráticos de estabelecimento do enquadramento, essa injustiça consiste no fracasso de institucionalizar a paridade de participação no nível metapolítico, em deliberações e decisões que dizem respeito ao “quem”. Uma vez que o que está em jogo aqui é o processo por meio do qual o espaço político de primeira ordem é constituído, chamarei essa injustiça de falsa representação metapolítica. A falsa representação metapolítica surge quando Estados e elites transnacionais monopolizam a atividade do estabelecimento do enquadramento, negando voz àqueles que podem ser afetados no processo e impedindo a criação de arenas democráticas em que as reivindicações destes últimos possam ser avaliadas e contempladas. O efeito é a exclusão da grande maioria das pessoas da participação nos metadiscursos que determinam a divisão oficial do espaço político. Na ausência de arenas institucionais para tal participação, e submetida a um tratamento antidemocrático do “como”, é negada à maioria a chance de se envolver, em termos paritários, no processo de tomada de decisão sobre o “quem”.

Assim, em geral, as lutas contra o mau enquadramento revelam um novo tipo de déficit democrático. Da mesma forma que a globalização tornou visíveis as injustiças do mau enquadramento, assim também as lutas transformativas contra a globalização neoliberal tornam visível a injustiça da falsa representação metapolítica. Ao expor a ausência de instituições nas quais as disputas sobre o “quem” possam ser democraticamente expressas e solucionadas, essas lutas focam sua atenção no “como”. Ao demonstrar que a inexistência de tais instituições obstrui os esforços de superação da injustiça, elas revelam as profundas conexões internas entre democracia e justiça. O efeito é trazer à tona a característica estrutural da atual conjuntura: as lutas por justiça em um mundo globalizado não podem alcançar êxito se não caminharem juntamente com as lutas por democracia metapolítica. Então, nesse nível também, não há redistribuição ou reconhecimento sem representação.

Teoria monológica e diálogo democrático

Eu venho argumentando que o que distingue a atual conjuntura é a contestação intensificada tanto do “quem” quanto do “como” da justiça. Sob essas condições, a teoria da justiça está passando por uma mudança paradigmática. Anteriormente, quando o enquadramento Keynesiano- Westfaliano vigorava, a maioria dos filósofos negligenciava a dimensão política. Tratando o Estado territorial como um dado, eles esforçavam-se para determinar teoricamente as exigências da justiça, em um modelo monológico. Assim, eles não imaginavam nenhum papel na determinação dessas exigências para aqueles que estariam sujeitos a elas, muito menos para aqueles excluídos pelo enquadramento nacional. Negando-se a refletir sobre a questão do enquadramento, esses filósofos jamais imaginaram que aqueles cujos destinos seriam decisivamente impactados pelas decisões relativas ao enquadramento poderiam ser titulares do direito de participar de sua formulação. Rejeitando qualquer necessidade de um momento democrático dialógico, eles se contentavam em produzir teorias monológicas sobre a justiça social.

Hoje, no entanto, as teorias monológicas da justiça social se tornam cada vez mais implausíveis. Como já vimos, a globalização não pode solucionar, mas sim problematizar, a questão do “como”, uma vez que politiza a questão do “quem”. O processo acontece mais ou menos assim: uma vez que o círculo daqueles que reivindicam o direito de participação no estabelecimento do enquadramento se expande, as decisões sobre o “quem” são crescentemente vistas como questões políticas, que deveriam ser tratadas democraticamente, e não como questões técnicas, que podem ser deixadas para os especialistas e as elites. O efeito é alterar o peso do argumento, fazendo com que os defensores do privilégio dos especialistas tenham de demonstrar o seu ponto. Incapazes de se manterem distanciados da questão, eles são necessariamente envolvidos em disputas acerca do “como”. Consequentemente, eles devem lidar com demandas por democratização metapolítica.

Uma mudança análoga está atualmente acontecendo na filosofia normativa. Do mesmo modo que alguns ativistas procuram transferir as prerrogativas de estabelecer o enquadramento das elites para públicos democráticos, alguns teóricos da justiça propõem repensar a divisão de trabalho clássica entre teóricos e demos. Não mais satisfeitos em determinar as exigências da justiça em um modelo monológico, esses teóricos estão cada vez mais pensando em abordagens dialógicas, que tratam aspectos importantes da justiça como questões de tomada de decisão coletiva, a serem determinadas pelos próprios cidadãos, através da deliberação democrática. Para eles, então, a gramática da teoria da justiça está sendo transformada. O que poderia antes ser chamado de “teoria da justiça social” agora aparece como “teoria da justiça democrática”.20

Entretanto, em sua forma atual, a teoria da justiça democrática permanece incompleta. Para concluir-se a virada de uma teoria monológica para uma teoria dialógica, é necessário um passo a mais, além daqueles contemplados pela maioria dos proponentes da virada dialógica.21 Daqui em diante, os processos democráticos de determinação devem ser aplicados não apenas ao “que” da justiça, mas também ao “quem” e ao “como”. Nesse caso, ao adotar uma abordagem democrática do “como”, a teoria da justiça assume um formato apropriado para o mundo globalizado. Dialógica em todos os níveis, tanto metapolítico quanto político-comum, ela se torna uma teoria pós-Westfaliana da justiça democrática.

A visão da justiça como paridade participativa prontamente se enquadra em tal abordagem. Esse princípio tem uma dupla qualidade que expressa o caráter reflexivo da justiça democrática. Por um lado, o princípio da paridade participativa envolve a noção de resultado, que especifica o princípio substantivo da justiça pelo qual podemos avaliar arranjos sociais: estes últimos só são justificados se permitirem que todos os atores sociais relevantes participem como pares na vida social. Por outro lado, a participação paritária também envolve a noção de processo, que especifica um padrão procedimental pelo qual podemos avaliar a legitimidade democrática das normas: estas últimas só são legítimas se contarem com o assentimento de todos os concernidos em um processo de deliberação justo e aberto, em que todos possam participar como pares. Em virtude dessa dupla qualidade, a visão da justiça como paridade participativa tem uma reflexividade inerente. Capaz de problematizar tanto a substância quanto o procedimento, ela torna visível o mútuo entrelaçamento desses dois aspectos dos arranjos sociais. Assim, essa abordagem pode exibir tanto as injustas condições de fundo que distorcem o aparentemente democrático processo de tomada de decisão, quanto os procedimentos não democráticos que geram resultados substantivamente desiguais. Consequentemente, ela nos permite mudar de nível facilmente, transitando, quando necessário, entre questões de primeira ordem e questões de metanível. Por tornar manifesta a coimplicação da democracia e da justiça, a visão da justiça como paridade participativa fornece exatamente o tipo de reflexividade que é necessário em um mundo globalizado.

Dito tudo isso, então, a norma da paridade participativa ajusta-se à abordagem da justiça democrática pós-Westfaliana apresentada aqui. Ao incorporar três dimensões e níveis múltiplos, essa abordagem torna visíveis e criticáveis as injustiças características da atual conjuntura. Ao conceituar o mau enquadramento e a falsa representação metapolítica, ela revela injustiças centrais subestimadas pelas teorias tradicionais. Focada não apenas no “que” da justiça, mas também no “quem” e no “como”, ela nos permite entender a questão do enquadramento como a questão central da justiça em mundo globalizado.

Notas

1 Inicialmente apresentado, em 2004, como uma Spinoza Lecture na Universidade de Amsterdã, este texto foi revisado na Wissenschaftskolleg zu Berlin, em 2004-2005. Agradeço o apoio das duas instituições, a contribuição de James Bohman, Kristin Gissberg e Keith Haysom, e os valiosos comentários e estimulantes discussões de Amy Allen, Seyla Benhabib, Bert van der Brink, Alessandro Ferrara, Rainer Forst, John Judis, Ted Koditschek, Maria Pia Lara, David Peritz e Eli Zaretsky. * Artigo originalmente publicado na New Left Review, no 36, nov./dez. 2005, à qual agradecemos por nos ter permitido publicá-lo em nossa revista. Tradução de Ana Carolina Freitas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga Assis.

2 A expressão “enquadramento Keynesiano-Westfaliano” tem o propósito de assinalar os fundamentos nacionais-territoriais das disputas em torno da justiça no auge do Estado de bem-estar democrático do pós-guerra, entre os anos 1945 e 1970. O termo “Westfaliano” refere-se ao Tratado de 1648, que estabeleceu alguns aspectos principais do sistema estatal internacional moderno. Entretanto, não me interessam nem os desdobramentos atuais do Tratado nem o longo processo através do qual o sistema por ele inaugurado evoluiu. Ao contrário, eu utilizo “Westfália” como um imaginário político que mapeou o mundo como um sistema de Estados territoriais soberanos mutuamente reconhecidos. A minha tese é que esse imaginário informou, no pós-guerra, o cenário de debates acerca da justiça no Primeiro Mundo, ao mesmo tempo em que os primeiros sinais de um regime pós-Westfaliano de direitos humanos emergiram. Para a distinção entre Westfália como “evento”, como “ideia/ideal”, como “processo de evolução” e como “registro normativo”, veja Richard Falk (2002).

3 Pode-se admitir que, a partir da perspectiva do Terceiro Mundo, as premissas Westfalianas pareceriam patentemente contrafactuais. Contudo, é importante recordar que a grande maioria dos anticolonialistas procurou conquistar os seus próprios Estados independentes Westfalianos. Apenas uma pequena minoria defendia, consistentemente, a justiça dentro de um enquadramento global – por razões que são inteiramente compreensíveis.

4 Discuti a elisão do problema do enquadramento nas teorias da justiça em voga em minha primeira Spinoza Lecture, “Who counts? Thematizing the question of the frame”. Veja também Fraser (2005).

5 Este “modelo de status” do reconhecimento representa uma alternativa ao usual “modelo de identidade”. Para uma crítica ao segundo e uma defesa do primeiro, veja Fraser (2000).

6 Para um argumento completo, veja o meu “Social justice in the age of identity politcs”, em Nancy Fraser e Axel Honneth (2003).

7 A negligência do político é particularmente evidente no caso dos teóricos da justiça que subscrevem as premissas filosóficas liberais ou comunitaristas. Em contraste, os democratas deliberativos, os democratas agonísticos e os republicanos têm procurado teorizar o político. Mas a maioria desses teóricos tem relativamente pouco a dizer sobre a relação entre democracia e justiça; e nenhum conceituou o político como umas das três dimensões da justiça.

8 Trabalhos clássicos sobre representação lidaram amplamente com o que eu chamo de aspecto das regras de decisão, mas ignoram o aspecto do pertencimento. Veja, por exemplo, Hanna Fenichel Pitkin (1967) e Bernard Manin (1997).

9 N.T.: usualmente traduzido como “distrito eleitoral uninominal”, esse sistema é caracterizado pelo fato de que apenas uma cadeira está em disputa por distrito.

10 N.T.: é um tipo de sistema eleitoral, chamado de “pluralidade”. Está associado a resultados de soma zero, em legislativos de sistemas majoritários, em que um partido leva todas as cadeiras em disputa.

11 N.T.: esse sistema é muito semelhante ao anterior. A diferença entre eles consiste no fato de que é este utilizado em eleições para os cargos do Poder Executivo. Está vinculado à ideia de que quem tem mais votos vence o processo; ou quem passa uma determinada linha (post) ganha a disputa. Agradecemos a Felipe Nunes a contribuição na tradução desses termos.

12 “Morte política” é um termo meu e não de Arendt.

13 Veja, em particular, Thomas Pogge (2001, pp. 326-343; 1999, pp. 27-34); Rainer Forst (2001, pp. 169-187; 2005).

14 Não pretendo sugerir que o político seja a dimensão principal da justiça, mais fundamental do que o econômico e o cultural. Ao contrário, as três dimensões estão em relações de mútuo imbricamento e influência recíproca. Da mesma forma que a capacidade de demandar distribuição e reconhecimento depende das relações de representação, também a capacidade de se expressar politicamente depende das relações de classe e de status. Em outras palavras, a capacidade de influenciar o debate público e os processos autoritativos de tomada de decisão depende não apenas das regras formais de decisão, mas também das relações de poder enraizadas na estrutura econômica e na ordem de status, um fato que é insuficientemente enfatizado na maioria das teorias da democracia deliberativa. Desse modo, a má distribuição e o falso reconhecimento agem conjuntamente na subversão do princípio da igual capacidade de expressão política de todo cidadão, mesmo em comunidades políticas que se afirmam democráticas. Mas, obviamente, o contrário é também verdadeiro. Aqueles que sofrem da má representação estão vulneráveis às injustiças de status e de classe. Ausente a possibilidade de expressão política, eles se tornam incapazes de articular e defender seus interesses com respeito à distribuição e ao reconhecimento, o que, por sua vez, exacerba a sua má representação. Em tais casos, o resultado é um círculo vicioso em que as três ordens de injustiça se reforçam mutuamente, negando a algumas pessoas a chance de participar como pares com os demais na vida social. Estando essas três dimensões interligadas, os esforços para superar a injustiça não podem, exceto em raros casos, lidar apenas com uma delas. Ao contrário, lutas contra a má distribuição e o falso reconhecimento não serão bem-sucedidas a menos que se aliem com lutas contra a má representação – e vice-versa. A qual delas se confere ênfase, obviamente, é tanto uma decisão tática quanto estratégica. Dada a saliência atual das injustiças do mau enquadramento, minha preferência é pelo lema “Nenhuma redistribuição ou reconhecimento sem representação”. Mas, mesmo assim, a política da representação aparece como uma dentre as três frentes interligadas na luta por justiça social em um mundo globalizado.

15 Ao distinguir a abordagem “afirmativa” da “transformativa”, eu adoto a terminologia que utilizei no passado em relação à redistribuição e ao reconhecimento. Veja, inter alia, Nancy Fraser (1995; 1998).

16 Tomei essa terminologia emprestada de Manuel Castells (1996).

17 Devo a ideia de um “modo de diferenciação política” pós-territorial a John Ruggie. Veja seu artigo bastante sugestivo, “Territoriality and beyond: problematizing modernity in international relations” (Ruggie, 1993).

18 Tudo depende de se encontrar uma interpretação adequada do princípio de todos os afetados. A questão principal é como restringir a ideia de “afetação” ao ponto em que ela se torna um padrão operacionalizável para acessar a justiça de vários enquadramentos. O problema é que, dado o tão chamado efeito borboleta, podem-se apresentar evidências de que praticamente todos são afetados por praticamente tudo. O que é necessário, então, é um modo de distinguir aqueles níveis e tipos de efetividade que são capazes de conferir uma reputação moral daqueles que não o são. Uma proposta, sugerida por Carol Gould, é limitar tal reputação para aqueles cujos direitos humanos são violados por uma dada prática ou instituição. Outra, sugerida por David Held, é conceder reputação para aqueles cuja expectativa e chances de vida são significativamente afetadas. O meu ponto de vista é que o princípio de todos os afetados é aberto à pluralidade de interpretações razoáveis. Como resultado, sua interpretação não pode ser determinada monologicamente por um decreto filosófico. Ao contrário, análises filosóficas de afetação devem ser entendidas como contribuições a um debate público mais amplo sobre o significado do princípio. O mesmo é verdade para as abordagens empíricas sociocientíficas de quem é afetado por dadas instituições ou políticas. Em geral, o princípio de todos os afetados deve ser interpretado dialogicamente, através da troca de argumentos na deliberação democrática. Isso dito, entretanto, uma coisa é clara. Injustiças de mau enquadramento só podem ser evitadas se a reputação moral não está limitada àqueles que já são credenciados como membros oficiais de uma dada instituição ou como participantes autorizados em uma dada prática. Para evitar tais injustiças, a reputação deve também ser conferida aos não-membros e aos não participantes significantemente afetados pela instituição ou prática em questão. Assim, os africanos subsaarianos, que têm sido involuntariamente desconectados da economia global, contam como sujeitos da justiça em relação a ela, mesmo se eles atualmente dela não participam. Para a interpretação dos direitos humanos, veja Carol Gould (2004); para a interpretação da expectativa e chances de vida, David Held (2004, pp. 99 e ss.) e, para a abordagem dialógica, Nancy Fraser (2006).

19 Até o momento, os esforços para democratizar o processo de estabelecimento do enquadramento estão confinados à contestação na sociedade civil transnacional. Mesmo sendo esse nível indispensável, ele não pode ter êxito enquanto não existirem instituições formais capazes de traduzir a opinião pública transnacional em decisões vinculativas e obrigatórias. Em geral, então, a rota da sociedade civil da política democrática transnacional precisa ser complementada por uma rota formal-institucional.

20 Essa frase vem de Ian Shapiro (1999). Mas a ideia pode também ser encontrada em Jürgen Habermas (1996); Seyla Benhabib (2004) e Rainer Forst (2002). 21 Nenhum dos teóricos citados na nota anterior tentou aplicar a abordagem da “justiça democrática” ao problema do enquadramento. O pensador que chegou mais perto disso foi Rainer Forst, mas mesmo ele não considerou os processos democráticos de estabelecimento do enquadramento.

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1 de outubro de 2005

Capitalismo de desastres em Nova Orleans

Depois do Iraque, o grande negócio da reconstrução entra em ação em Nova Orleans. Desta vez, para "purificar" a cidade de sua população negra e pobre.

Mike Davis


Tradução / O furacão que destruiu Nova Orleans é produto de uma grande perturbação atmosférica que aconteceu no dia 23 de agosto, a 200 km das Bahamas. Mas, ao passar pelo golfo do México durante quatro dias, "a tempestade tropical Katrina" se transformou em um verdadeiro monstro. Absorvendo a vasta quantidade de energia acumulada pelas águas do golfo, extraordinariamente quentes - três graus centígrados acima do nível normal para o mês de agosto -, ela se transforma em um furacão de categoria cinco, com ventos de 290 km por hora, engendrando uma gigantesca onda de tempestade de 10 metros de altura.

A quantidade de calor concentrada pelo Katrina foi tal que, "depois de sua passagem, em certas zonas do Golfo, a temperatura caiu brutalmente passando de 30 para 26 graus"[1]. Horrorizados, os meteorologistas admitem ter raramente observado tal aumento de força em um furacão caribenho. E saber se o crescimento explosivo do Katrina é um indicador do efeito do aquecimento climático do planeta sobre a intensidade dos ciclones provoca um grande debate entre os pesquisadores.

Quando chega ao litoral, na manhã de segunda feira de 29 de agosto, em Plaquemines, na Louisiana, no delta do Mississipi, o Katrina já passara para a categoria quatro (ventos de 210 a 249 km/hora). Era apenas um pequeno consolo para os habitantes dos portos petrolíferos, pequenos povoados e vilas de pescadores francófonos que tiveram a infelicidade de estar no caminho do furacão. Em Plaquemines e ao longo de todo o litoral do Mississipi e do Alabama, a fúria implacável do Katrina atinge todos os cantos, deixando na sua passagem uma devastação digna de Hiroshima.

Proteção de papel

Inicialmente, Nova Orleans e seus 1,3 milhão de habitantes supostamente estariam protegidos. Porém, a trajetória do furacão desviou para a direita e seu centro se deslocou para 55 km à leste da cidade. Embora poupada por rajadas de vento mais violentas, a capital da Louisiana - que se encontra abaixo do nível do mar, bordejada por duas grandes lagunas de água salgada, o Lago Ponchartrain ao norte e o lago Borgne ao leste - sucumbiu à fúria das águas.

É destes dois lagos que a onda de tempestade impulsionada pelo furacão rompeu os diques claramente insuficientes - e menos elevados que os dos bairros ricos - que supostamente protegeriam os bairros majoritariamente negros e o leste da cidade e o subúrbio operário branco adjacente a Saint Bernard. Na ausência de alerta oficial, a subida das águas se transformou em uma armadilha mortal para centenas de habitantes surpreendidos quando dormiam. Próximo ao meio-dia, um dique claramente mais resistente da zona do canal da Rue 17 também cedeu.

A inundação poupou as zonas turísticas como o Vieux Carré e o Garden District e também certos bairros mais ricos como Audubon Park, construído em um plano mais alto. Mas, por todos os lados, o dilúvio chegou ao nível dos tetos, afetando ou destruindo cerca de 150 mil unidades de habitação. A cidade recebeu então o apelido de "Lago George" em homenagem irônica ao presidente que tinha se revelado totalmente incapaz de auxiliar os habitantes quanto de assegurar a construção de novos diques.

Marcas de classe e raça

Mesmo depois de ter aventado a possibilidade de que a "tempestade não foi discriminatória", até mesmo George W.Bush acabou admitindo: não há nenhum aspecto da catástrofe que não tenha sido marcado pelas desigualdades de classe e de raça. O furacão não só pôs a nu as promessa enganosas do Ministério da segurança interior, encarregado de proteger todos os americanos, bem como expôs de forma retumbante as conseqüências devastadoras do abandono no qual são deixadas pelo governo federal as grandes metrópoles com maioria negra e hispânica e suas infra-estruturas vitais.

Quanto à incrível incompetência da Agência federal de gestão das urgências, a Federal Emergency Management Agency (FEMA), ela demonstra o absurdo de confiar cargos de responsabilidade pública tão vitais aos cortesãos políticos ineptos e cegos por sua hostilidade ideológica à intervenção do Estado. Quando pensamos nos prodígios de lerdeza burocrática manifestados pela FEMA, só podemos nos admirar com a rapidez com a qual Washington agiu para suspender as normas salariais em vigor, em virtude do Davis-Bacon Act 2, e abrir as portas de Nova Orleans, para a reconstrução e a "segurança", aos predadores de colarinho branco de sociedades como a Halliburton, o Shaw Group e Blackwater Security, mantendo exatamente os mesmos lucros fáceis acumulados sobre os rios do Tigre.

Se a agonia de Nova Orleans se deve, amplamente, à incúria das autoridades federais, o governador do Estado e a Prefeitura da cidade têm, também, sua responsabilidade. É o prefeito (democrata) Ray Nagin - um rico empreiteiro afro-americano, dirigente de uma sociedade de televisão a cabo e eleito em 2002 com 87% dos votos dos eleitores brancos3 - que era responsável, em última instância, pela segurança de seus administrados, sendo que cerca de um quarto deles era muito pobre ou muito deficiente para possuir um veículo. Sua incrível incapacidade de mobilizar os recursos necessários para a evacuação dos habitantes não motorizados e dos pacientes dos hospitais - apesar do sinal de alerta que constituía a falta de preparo da municipalidade diante da ameaça do furacão Ivan em setembro de 2004 - reflete mais que uma simples incompetência pessoal: ela personifica o egoísmo de classe das elites da cidade, quer sejam brancas ou negras, perfeitamente insensíveis à sorte dos concidadãos pobres das cidades destruídas e das zonas marginais.

Catástrofe anunciada

História de uma catástrofe anunciada ? De fato, ao longo da história dos Estados Unidos nenhum desastre foi antecipado com tal grau de precisão, contrariamente às afirmações falaciosas do ministro da segurança interior, Michael Chertoff. Se for verdade que os especialistas foram surpreendidos pelo rápido aumento do poder do Katrina, eles não alimentavam nenhuma dúvida sobre as conseqüências de um furacão maior.

Desde a nefasta experiência do furacão Betsy - uma tempestade de categoria dois que já tinha inundado em setembro de 1965 boa parte dos bairros do leste da cidade devastados pelo Katrina -, a vulnerabilidade de Nova Orleans foi estudada a fundo e de maneira completa; e os resultados destes estudos foram amplamente difundidos. Em 1998, depois da passagem do felizmente benigno furacão Georges, redobraram-se os esforços de pesquisa, e uma simulação digital avançada efetuada pela Universidade da Louisiana mencionou a "destruição virtual" da cidade por um ciclone de categoria quatro vindo do sudoeste4. Os diques e os muros de contenção de Nova Orleans são preparados para resistir no máximo a um furacão de categoria três. Mas, depois de novas simulações efetuadas em 2004, pelo corpo da Engenharia do exército, mesmo este nível de proteção constatou-se ser ilusório.

A erosão permanente das ilhas costeiras e de zonas pantanosas do litoral da Louisiana (que faz com que desapareçam entre 60 e 100 quilômetros quadrados de costa por ano) se traduz por um aumento do poder das ondas de tempestade no momento em que elas atingem Nova Orleans, enquanto a própria cidade em si e seus diques afundam-se lentamente. Mesmo um furacão de categoria três, se sua trajetória é suficientemente lenta, pode inundá-la quase inteiramente[5].

Negligência federal

Para fazer com que os responsáveis políticos compreendessem estas previsões, outros estudos ofereciam uma avaliação precisa dos estragos antecipados em caso de impacto direto de um ciclone. Todas as simulações em computador reproduziam os mesmos números aterradores: ao menos 160 quilômetros quadrados de superfície urbana completamente submersa, entre 80 mil e 100 mil mortos. Em 2001, à luz destes estudos, a FEMA tinha anunciado que a inundação de Nova Orleans, depois de um ciclone, seria uma das três mega-catástrofes mais prováveis em um futuro próximo em território dos Estados Unidos (os dois outros seriam um sismo na Califórnia e um ataque terrorista em Manhattan). Em 2004, após os meteorologistas terem anunciado uma forte retomada da atividade de ciclone, as autoridades federais organizaram um exercício de simulação sofisticado, a operação "Furacão Pam", que confirmou, mais uma vez, que as vítimas poderiam ser contabilizadas em dezenas de milhares.

Em resposta, a administração Bush rejeitou as exigências urgentes do estado da Luisiana em matéria de prevenção de inundações. Ela pôs em prática um importante plano de revitalização das zonas pantanosas da costa, o projeto Coast 2050 - fruto de um decênio de pesquisa e de negociação -, e cortou por diversas vezes o orçamento de manutenção e de construção de diques, deixando inacabadas as infra-estruturas de contenção ao redor do lago Pontchartrain.

A Engenharia militar do exército foi, ela também, vítima de cortes orçamentários que refletem em boa medida as novas prioridades de Washington: forte baixa dos impostos para os ricos, financiamento da guerra no Iraque e - ironicamente - aumento das despesas de "segurança interior". Sem contar as motivações políticas: Nova Orleans é uma cidade majoritariamente negra, cujos eleitores fazem, muitas vezes, pender a balança em favor dos democratas quando das eleições na Louisiana. Por que uma administração tão descaradamente partidária deveria ser presenteada por seus adversários outorgando os 2,5 milhões de dólares necessários para construir um sistema de proteção de categoria cinco em redor de Nova Orleans[6]?

Em benefício das empresas

Na verdade, quando o chefe da Engenharia, um ex-congressista republicano, protestou em 2002 contra a asfixia orçamentária dos programas contra inundações, Bush obrigou-o a se demitir. Mas não sejamos injustos: Washington gastou imensas quantias na Louisiana... Mas essencialmente para os trabalhos de infra-estrutura beneficiando os interesses das empresas portuárias e marítimas e os distritos eleitorais sob hegemonia republicana[7].

Não contente com estas proezas orçamentárias, a Casa Branca empenhou-se também, de maneira irresponsável, em esvaziar a FEMA. Quando seu diretor (que tinha então o estatuto de ministro) era James Lee Witt, este organismo era uma das jóias da administração Clinton. Quando da enchente no Mississipi em 1993 e do tremor de terra de Los Angeles em 1994, sua eficácia na organização do socorro tinha sido saudada por unanimidade.

Entretanto, quando os Republicanos tomaram a direção da FEMA, em 2001, comportaram-se como se tivessem conquistado um país. Seu novo chefe, Joe M. Allbaugh, ex-diretor da campanha de Bush, tomou o cuidado de cancelar boa parte dos principais programas de prevenção de inundações e tempestades. Depois de ter deixado seu cargo em 2003, ele se converteu em consultor regiamente pago para assessorar empresas na busca de contratos no Iraque (dando seqüência às suas idéias, ele acaba de reaparecer na Louisiana, onde manifesta seus talentos de iniciado em benefício das empresas desejosas de conseguir sua parte nos apetitosos lucros da reconstrução). Desde que ela foi integrada ao departamento da segurança interior, em 2003 (e que perdeu o estatuto de Ministério), obras inteiras da FEMA foram desmanteladas e paralisadas. Em 2004, funcionários deste organismo escreveram ao Congresso denunciando "a troca de gestores competentes em matéria de prevenção de catástrofes por comerciantes jogando em favor de interesses políticos e de noviços sem experiência nem conhecimentos sérios[8]".

Negligência e despreparo

O sucessor de Allbaugh, Michael Brown, é a perfeita encarnação disso tudo. Uma semana após ter recebido os elogios do presidente, este advogado republicano totalmente profano em matéria de prevenção de catástrofes, que tinha falsificado seu curriculum vitae, foi despedido. Sob sua direção, a FEMA tinha continuado a ser despojada de suas competências polivalentes e de seus orçamentos, para se dobrar aos objetivos monomaníacos da luta contra o terrorismo e à construção de uma linha Marginot contra a ameaça da Al Qaida.

No dia 28 de agosto, domingo, em uma vídeo-conferência, o diretor do Observatório nacional de furacões de Miami, Max Mayfield, preveniu o presidente Bush (em férias no Texas) e os funcionários do departamento de segurança interior que o Katrina estava a ponto de devastar Nova Orleans. Brown estava pronto: "Estamos completamente preparados para enfrentar este desafio. Há anos que nos antecipamos a este tipo de desastre natural". Há muitos meses o diretor da FEMA e o Ministro da segurança interior exibia os méritos do novo plano nacional de urgência, pronto para garantir uma coordenação sem precedente entre os diversos organismos governamentais, em caso de uma catástrofe maior.

Entretanto, quando as águas começaram a submergir Nova Orleans e seus subúrbios, foi praticamente impossível conseguir contatar qualquer responsável pelo telefone. As equipes de socorro e os funcionários municipais se encontraram desprovidos de qualquer meio de comunicação funcional, sem contar a penúria de provisão vital - rações alimentares, água potável, sacos de areia, óleo, sanitários móveis, ônibus, barcos e helicópteros - que a FEMA deveria ter providenciado de maneira preventiva. Chertoff nem esperou 24 horas após a inundação para classificar o desastre como "calamidade de importância nacional" - estatuto jurídico indispensável para decretar a mobilização geral dos recursos federais.

Lentidão fatal

A infinita lentidão com a qual o cérebro de dinossauro da segurança interior registrou o tamanho do desastre foi fatal para centenas de habitantes de Nova Orleans, agonizando sobre os tetos ou num leito de hospital. No dia 2 de setembro, Chertoff ainda explicava a um repórter escandalizado da rádio pública nacional que as cenas de caos e de desespero no interior do Superdome, difundidas pelas televisões do mundo inteiro, não passavam de "boatos anedóticos"... Quanto ao senhor Brown, ele se apegava essencialmente ao fato de que as vítimas, segundo ele, se tornaram responsáveis por "não levar em conta as palavras de ordem de evacuação", como se tudo isso não tivesse nada a ver com a ausência de veículo ou à dificuldade de se dirigir ao Baton Rouge em cadeira de rodas. Simulações tinham demonstrado que ao menos um quinto da população estava incapacitada de deixar a cidade por seus próprios meios.[9]

Segundo o ministro da defesa, Donald Rumsfeld, a tragédia do Katrina não tinha nada a ver com o Iraque. Porém, desde o início da catástrofe, a ausência de mais de um terço dos membros da Guarda nacional da Louisiana e de uma boa parte de seu equipamento pesado limitou de forma grave as operações de salvamento. Socorros teriam também sido úteis nos arredores do Paço Municipal: o posto de comando de urgência ficou fora de serviço desde o início por falta de combustível para alimentar o gerador de socorro. Como nenhum telefone funcionava, o prefeito e seus colaboradores estavam desligados do mundo exterior durante dois dias. Esta paralisia do aparelho de gestão municipal é chocante porque, desde 2002, a prefeitura tinha utilizado 18 milhões de dólares de subvenção federal para treinar seu pessoal para enfrentar este tipo de situação.

Em setembro de 2004, o senhor Nagin já tinha sido severamente criticado por sua passividade diante do furacão de categoria três Ivan (cuja trajetória desviou da cidade no último momento): nesta oportunidade, nada tinha sido previsto para evacuar os pobres. Diante destas críticas, a municipalidade produziu, destinados aos bairros pobres, 30 mil vídeos (nunca distribuídos) cuja mensagem era a seguinte: "Não espere a intervenção da municipalidade, não espere a intervenção do Estado, não espere a intervenção da Cruz Vermelha, (...) parta". Como nem ônibus ou trem estavam previstos para estes casos pelas autoridades, os pobres eram, portanto, obrigados a deixar a cidade a pé; quando as condições de higiene e de segurança no interior do Superdome se tornaram insustentáveis, foram centenas que tentaram deixar a cidade a pé atravessando a ponte que ligava o subúrbio branco de Gretna, mas eles foram enxotados por policiais municipais apavorados que disparam suas armas sobre suas cabeças.

Mais branca e mais segura

Uma parte dos habitantes abandonados à mercê das águas saberá interpretar a incrível incúria de seu prefeito à luz da profunda fratura social e racial que caracteriza Nova Orleans. Ninguém ignora que as elites econômicas locais e seus aliados do Centro da cidade sonham em expulsar os habitantes mais pobres, aos quais eles atribuem a elevada taxa de delinqüência. Aqui, residências populares que compõem há muito tempo sua paisagem foram arrasadas para dar lugar a imóveis de luxo e a um supermercado. Fora daí, os habitantes das cidades podem ser expulsos se seus filhos violam o estado de emergência. O objetivo parece ser transformar Nova Orleans em um grande parque de atrações e de retirar os pobres da vista dos turistas, forçando-os a morarem na periferia, nas margens dos braços do rio Mississipi, nos parques de caravanas e penitenciárias.

Desde então, para alguns partidários de uma Nova Orleans mais branca e mais segura, o Katrina é uma divina surpresa. É isso que um líder republicano de Louisiana confiava a comerciantes de Washington: "Finalmente, as cidades de Nova Orleans foram limpas. O que nós não conseguimos, Deus se encarregou de fazer10." Da mesma forma, para o prefeito Nagin, as ruas desertas e os bairros em ruína são uma dádiva: "Pela primeira vez, nossa cidade está livre da droga e da violência e nós queremos muito conservá-la neste estado."

Na verdade, sem um esforço maciço das autoridades locais e federais, para fornecer habitações de baixo custo para as dezenas de milhares de locatários pobres, hoje refugiados nos abrigos sem nenhuma escolha, nos quatro cantos do país, Nova Orleans corre o risco de conhecer uma espécie de limpeza étnica. Já se fala em transformar alguns bairros mais desfavorecidos, situados acima do nível do mar, como o Lower Ninth Ward, em bacias de retenção destinadas a proteger os bairros mais ricos. "O que impediria alguns habitantes mais pobres da cidade de voltar a se instalarem em seus bairros", ressalta, acerca desse assunto, o Wall Street Journal[11].

Hegemonia republicana ameaçada

O prefeito Nagin já tomou o cuidado de velar pelos interesses da "alta sociedade" anunciando a designação de uma comissão especial de reconstrução de dezesseis membros: oito brancos e oito negros, enquanto que 75% da população é afro-americana. Por outro lado, os bairros brancos - base de inquietante sucesso eleitoral do neonazista David Duke, nos inícios dos anos 1990 - também têm a intenção de defender a sua causa. E o status quo republicano do Mississipi vizinho não quer deixar a estrela aos democratas da metrópole da Louisiana. Em meio a todos estes conflitos de interesse, pode-se duvidar se os bairros negros tradicionais de Nova Orleans - verdadeiro berço da sensibilidade festiva da cidade e de seu patrimônio jazzístico - consigam se safar dessa jogada.

Quanto à administração Bush, ela espera sair-se com uma espécie de mistura de cripto-keynesianismo orçamentário e de engenharia social ultraconservadora. Sabe-se que o impacto imediato do Katrina foi uma queda brutal da popularidade do presidente - e da presença americana no Iraque. A hegemonia republicana pareceu, momentaneamente, ameaçada. Pela primeira vez, desde os distúrbios raciais em Los Angeles, em 1992, os velhos temas democráticos como a pobreza, a desigualdade racial e a intervenção do Estado dominaram o debate público, a ponto de o Wall Street Journal ter exortado os Republicanos a "retomar a ofensiva no plano intelectual e político" antes que os progressistas como o senador Edward Kennedy ressuscitassem as manias do New Deal - que inclui o projeto de uma agência federal de prevenção das inundações e de revitalização ecológica do litoral do Golfo do México[12].

Em busca de uma estratégia para tirar Bush do burburinho de Louisiana, a ultraconservadora Heritage Foundation multiplicou os seminários acolhendo ideólogos reacionários, congressistas republicanos e alguns reconciliados como Edwin Meese, ex-ministro da justiça de Ronald Reagan.

Tudo para a livre iniciativa

No dia 15 de setembro, o presidente escolheu cenário deserto mas iluminado de Jackson Square, uma praça tradicional de Nova Orleans, para pronunciar seu discurso sobre a reconstrução. Radiante, prometeu aos dois milhões de vítimas do Katrina que a Casa Branca, apesar do déficit orçamentário, pagaria o essencial da fatura do desastre, ou seja, 200 bilhões de dólares (o que não o impede, de forma nenhuma, propor novas baixas de impostos maciços para as grandes fortunas)!

Depois disso, anunciou toda uma série de reformas cobiçadas por sua base ultraconservadora: um sistema de controle para a educação e o alojamento, o reforço do papel das igrejas, generosos descontos de impostos para o setor privado, a criação de uma "zona regional de oportunidade econômica" e a suspensão de toda uma série de regulamentações federais abordando, principalmente, controles de meio ambiente para as perfurações petroleiras.

Para aqueles acostumados com a linguagem presidencial, o discurso na Jackson Square tem um encantador gostinho de "já vimos este filme": já não tínhamos ouvido promessas semelhantes nas margens do rio Eufrates? Segundo o cruel comentário do colunista Paul Krugman, depois de ter frustrado a tentativa de transformar o Iraque "em um laboratório do neoliberalismo", a Casa Branca vai, a partir de então, utilizar como cobaia os habitantes traumatizados de Biloxi e do Ninth Ward[13]. Segundo o congressista Mike Pence, um dos animadores do poderoso Republican Study Group que contribuiu para a elaboração do programa de reconstrução do presidente Bush, os republicanos vão fazer surgir dos escombros da catástrofe uma verdadeira utopia capitalista: "Vamos fazer do litoral do Golfo um pólo de atração magnético para a livre iniciativa. Não se trata, absolutamente, de reconstruir uma Nova Orleans dominada pelo setor público[14]."

É muito sintomático que o corpo da Engenharia de Nova Orleans seja, a partir de então, comandado pelo mesmo oficial que era encarregado da supervisão dos trabalhos públicos no Iraque[15]. Não importa que o Lower Ninth Ward tenha desaparecido sob as ondas; os proprietários de tabernas do Vieux Carré já esfreguem as mãos, ansiosos: não está longe o dia em que os trabalhadores de Halliburton, os mercenários de Blackwater e os engenheiros de Bechtel virão despejar seus dólares federais na Bourbon Street. Como dizem as populações francófonos na Louisiana e certamente, também, na Casa Branca: "Deixe o bom tempo passar!"

Notas:

1. Quirin Schiermeier, "The power of Katrina", Nature, n. 437, Londres, 8 de setembro de 2005.
3. Se a Louisiana votou majoritariamente em Bush em 2004 (56,7%), entretanto Nova Orleans é tradicionalmente democrata.
4. Estudo realizado por Joseph Suhayda e descrito no Richard Campanella, Time and Place em Nova Orleans: Past Geographies in the Present Day, Gretna, Los Angeles, 2002, p.58.
5. Travis, op. cit., p. 1657.
6. Alfred C. Naomi, do corpo de engenheiros do exército, citado por Andrew Revkin e Christopher Drew, "Intricate Flood Protection Long a Foocus of Dispute", The New York Times, 1º de setembro de 2005.
7. Editorial, "Katrina’s Message on the Corps", The New York Times, 13 de setembro de 2005.
8. Ken Silverstein, "Top FEMA jobs: No Experience Required", Los Angeles Times, 9 de setembro de 2005.
9. Tony Reichhardt, Erika Check e Emma Morris, "After the flood", Nature, n. 437, 8 de setembro de 2005.
10. Conceito do congressista Richard Baker (Baton Rouge), citado pelo Wall Street Journal, Nova York, 9 de setembro de 2005.
11. Jackie Calmes, Ann Carrns e Jeff Opdyke, “As Gulf Prepares to Rebuild, Tensions Mount Over Control”, Wall Street Journal, 15 de setembro de 2005.
12. Editorial, “Hurricane Bush”, Wall Street Journal, 15 de setembro de 2005.
13. “Not the New Deal”, The New York Times, 16 de setembro de 2005.
14. John Wilke e Brody Mullins, “After Katrina, Republicans Back a Sea of Conservatrice Ideas”, Wall Street Journal, 15 de setembro de 2005.
15. Editorial, “M. Bush in New Orleans”, The New York Times, 16 de setembro de 2005.

A visão de Marx de desenvolvimento humano sustentável

Uma versão anterior deste artigo foi apresentada na Conferência sobre a Obra de Karl Marx e os Desafios para o Século 21, Havana, Cuba, 6 de maio de 2003.

Paul Burkett



Tradução / Nos países capitalistas desenvolvidos, os debates sobre a economia do socialismo têm se concentrado principalmente nas questões de informação, incentivos e eficiência na alocação de recursos. Esse foco no “cálculo socialista” reflete o contexto principalmente acadêmico dessas discussões. Em contraste, para movimentos anticapitalistas e regimes pós-revolucionários na periferia capitalista, o socialismo como uma forma de desenvolvimento humano tem sido uma preocupação primordial. Um exemplo notável é o trabalho de Ernesto “Che” Guevara sobre “O Homem e o Socialismo em Cuba”, que refutou o argumento de que “o período de construção do socialismo... é caracterizado pela extinção do indivíduo em prol do estado”. Para Che, a revolução socialista é um processo em que “um grande número de pessoas está se desenvolvendo” e “as possibilidades materiais de desenvolvimento integral de cada um de seus membros tornam a tarefa cada vez mais frutífera1”.

Com o agravamento da pobreza e das crises ambientais pelo capitalismo global, o desenvolvimento humano sustentável vem à tona como a questão principal que deve ser engajada por todos os socialistas do século XXI tanto no centro quanto na periferia. É nessa conexão de desenvolvimento humano, argumentarei, que a visão de Marx do comunismo ou socialismo (dois termos que ele usou de forma intercambiável) pode ser mais útil2.

A sugestão de que o comunismo de Marx pode alimentar a luta por formas mais saudáveis, sustentáveis e libertadoras de desenvolvimento humano pode parecer paradoxal à luz de várias críticas ecológicas a Marx que se tornaram tão populares nas últimas décadas. A visão de Marx foi considerada ecologicamente insustentável e indesejável devido ao seu suposto tratamento das condições naturais como efetivamente ilimitadas, e sua suposta adoção, tanto prática quanto ética, do otimismo tecnológico e da dominação humana sobre a natureza.

O conhecido economista ecológico Herman Daly, por exemplo, argumenta que para Marx, “o crescimento econômico determinista materialista é crucial para fornecer a abundância material esmagadora que é a condição objetiva para o surgimento do novo homem socialista. Os limites ambientais para o crescimento seriam contraditórios à ‘necessidade histórica’...”. O problema, diz o teórico político ambiental Robyn Eckersley, é que “Marx endossou totalmente as realizações ‘civilizatórias’ e técnicas das forças de produção capitalistas e absorveu completamente a fé vitoriana no progresso científico e tecnológico como o meio pelo qual os humanos poderiam superar e conquistar a natureza.” Evidentemente, Marx “viu consistentemente a liberdade humana como inversamente relacionada à dependência da humanidade da natureza”. O culturalista ambiental Victor Ferkiss afirma que “Marx e Engels e seus seguidores modernos” compartilhavam uma “adoração virtual da tecnologia moderna”, o que explica por que “eles se juntaram aos liberais na recusa de criticar a constituição tecnológica básica da sociedade moderna”. Outro cientista político ambiental, K. J. Walker, afirma que a visão de Marx da produção comunista não reconhece nenhuma “escassez de recursos naturais” real ou potencial, sendo a “suposição implícita” “que os recursos naturais são efetivamente ilimitados”. O filósofo ambiental Val Routley descreve a visão de Marx do comunismo como um “paraíso automatizado” antiecológico de produção e consumo intensivos em energia e “ambientalmente prejudiciais”, que “parece derivar do pressuposto de dominação da natureza [de Marx]3.”

Um engajamento com essas visões é importante porque elas se tornaram influentes mesmo entre marxistas de mentalidade ecológica, muitos dos quais buscaram paradigmas não marxistas, especialmente o de Karl Polanyi, em busca da orientação ecológica supostamente ausente no marxismo. A subutilização dos elementos de desenvolvimento humano e ecológico da visão comunista de Marx também se reflete na decisão de alguns marxistas de apostar no “esverdeamento” do capitalismo como uma alternativa prática à luta pelo socialismo4.

Consequentemente, interpretarei os vários contornos de Marx da economia e da sociedade pós-capitalistas como uma visão de desenvolvimento humano sustentável. Visto que não há divergências importantes entre Marx e Engels nessa área, também me referirei aos escritos de Engels e às suas obras em coautoria, conforme apropriado. Depois de esboçar as dimensões de desenvolvimento humano na propriedade comunal e na produção associada (não mercantil) na visão de Marx, extraio o aspecto de sustentabilidade desses princípios respondendo às críticas ecológicas mais comuns da projeção de Marx. Concluo reconsiderando brevemente as conexões entre a visão de Marx do comunismo e sua análise do capitalismo, enfocando aquela forma importante de desenvolvimento humano: a luta de classes.

1. Os princípios básicos da organização do comunismo de Marx

Há uma sabedoria convencional de que Marx e Engels, evitando toda “especulação sobre… utopias socialistas”, pensaram muito pouco sobre o sistema que sucederia o capitalismo, e que todo o seu corpo de escritos sobre o assunto é representado pela “Crítica do Programa de Gotha, algumas páginas e não muito mais5”.

Na realidade, as relações econômicas e políticas pós-capitalistas são uma temática recorrente em todas as obras principais, e em muitas das menores, dos fundadores do marxismo e, apesar da natureza dispersa dessas discussões, pode-se facilmente extrair delas uma visão coerente com base em um conjunto claro de princípios de organização. A característica mais básica do comunismo na projeção de Marx é a superação da separação social entre produtores e as condições necessárias de produção no capitalismo. Esta nova união social implica uma “desmercantilização” completa da força de trabalho, junto com um novo conjunto de direitos de propriedade comunal. A produção comunista ou “associada” é planejada e realizada pelos próprios produtores e comunidades, sem os intermediários de classe do trabalho assalariado, do mercado e do Estado. Marx frequentemente motiva e ilustra essas características básicas em termos dos meios e fins primários da produção associada: o desenvolvimento humano livre.

A. A nova união e a propriedade comunal

Para Marx, o capitalismo envolve a “decomposição da união original existente entre o homem trabalhador e seus meios de trabalho”, enquanto o comunismo “restaurará a união original em uma nova forma histórica”. O comunismo é a “reversão histórica” ​​da “separação do trabalho e do trabalhador das condições de trabalho que o confrontam como forças independentes”. Sob o sistema salarial do capitalismo, “os meios de produção empregam os trabalhadores” sob o comunismo, “os trabalhadores, como sujeitos, empregam os meios de produção… a fim de produzir riqueza para si próprios”6.

Esta nova união entre produtores e as condições de produção, como Engels o expressa, “irá emancipar a força de trabalho humana de sua posição como uma mercadoria”. Naturalmente, tal emancipação, na qual os trabalhadores realizam a produção como “trabalhadores unidos” (veja abaixo), “só é possível onde os trabalhadores são os proprietários de seus meios de produção”. Essa propriedade do trabalhador não acarreta, entretanto, os direitos individuais de posse e alienabilidade característicos da propriedade capitalista. Em vez disso, a propriedade comunal dos trabalhadores codifica e impõe a nova união dos produtores coletivos e suas comunidades com as condições de produção. Consequentemente, Marx descreve o comunismo como “substituir a produção capitalista pela produção cooperativa, e a propriedade capitalista por uma forma superior do tipo arcaico de propriedade, ou seja, propriedade comunista7”.

Uma razão pela qual a propriedade comunista em condições de produção não pode ser propriedade privada individual é que esta última “exclui a cooperação, a divisão do trabalho dentro de cada processo separado de produção, o controle e a aplicação produtiva das forças da Natureza pela sociedade, e o livre desenvolvimento dos poderes produtivos sociais”. Em outras palavras, “o trabalhador individual só poderia ser restaurado como um indivíduo à propriedade nas condições de produção, divorciando-se da força produtiva do desenvolvimento do trabalho [alienado] em grande escala.” Conforme afirmado n’A Ideologia Alemã, “a apropriação pelos proletários” é tal que “uma massa de instrumentos de produção deve ser sujeita a cada indivíduo e a propriedade de todos. Uma relação universal moderna não pode ser controlada por indivíduos, a menos que seja controlada por todos... Com a apropriação de todas as forças produtivas pelos indivíduos unidos, a propriedade privada chega ao fim8”.

Além disso, dada a socialização anterior da produção do capitalismo, a propriedade “privada” dos meios de produção já é um tipo de propriedade social, embora seu caráter social seja explorador de classes. Do caráter do capital como “não um poder pessoal, [mas] social” segue-se que, quando “o capital é convertido em propriedade comum, na propriedade de todos os membros da sociedade, a propriedade pessoal não é assim transformada em propriedade social. É apenas o caráter social da propriedade que é alterado. Ele perde seu caráter de classe9”.

A visão de Marx, portanto, envolve uma “reconversão do capital em propriedade dos produtores, embora não mais como propriedade privada dos produtores individuais, mas sim como propriedade de produtores associados, como propriedade social total”. A propriedade comunista é coletiva na medida em que “as condições materiais de produção são propriedade cooperativa dos trabalhadores” como um todo, não de indivíduos particulares ou subgrupos de indivíduos. Como afirma Engels: “Os ‘trabalhadores’ continuam a ser os proprietários coletivos das casas, fábricas e instrumentos de trabalho e dificilmente permitirão a sua utilização… por indivíduos ou associações sem compensação pelos custos”. O planejamento coletivo e a administração da produção social requerem que não apenas os meios de produção, mas também a distribuição do produto total, estejam sujeitos ao controle social explícito. Com a produção associada, “é possível assegurar a cada pessoa ‘todos os rendimentos de seu trabalho’… somente se [esta frase] não signifique que cada trabalhador individual se torne o possuidor de ‘todos os rendimentos de seu trabalho’, mas que toda a sociedade, consistindo inteiramente de trabalhadores, torna-se possuidora do produto total de seu trabalho, produto esse que é parcialmente distribuído entre seus membros para consumo, parcialmente usado para substituir e aumentar seus meios de produção e parcialmente armazenado como um fundo de reserva para produção e consumo”. As duas últimas “deduções dos… rendimentos do trabalho são uma necessidade econômica”, elas representam “formas de trabalho excedente e produto excedente… que são comuns a todos os modos sociais de produção”. Outras deduções são necessárias para “custos gerais de administração”, para “a satisfação comum das necessidades, como escolas, serviços de saúde, etc.” e para “fundos que servirão para os que não podem trabalhar”. Só então “chegamos… àquela parte dos meios de consumo que é dividida entre os produtores individuais da sociedade cooperativa10”.

No entanto, a socialização explícita das condições e resultados da produção do comunismo não deve ser confundida com uma ausência completa de direitos de propriedade individuais. Embora a propriedade comunal “não restabeleça a propriedade privada para o produtor”, ainda assim “dá a ele propriedade individual com base nas aquisições da era capitalista: isto é, na cooperação e na posse comum da terra e dos meios de produção”. Marx postula que “a propriedade alienada do capitalista… só pode ser abolida pela conversão de sua propriedade em propriedade… do indivíduo social associado.” Ele até sugere que o comunismo “fará da propriedade individual uma verdade, transformando os meios de produção… agora principalmente os meios de escravizar e explorar o trabalho, em meros instrumentos de trabalho livre e associado11”.

Essas declarações são frequentemente interpretadas como meros floreios retóricos, mas se tornam mais explicáveis ​​quando vistas no contexto do imperativo primordial do comunismo: o livre desenvolvimento dos seres humanos individuais como indivíduos sociais. Marx e Engels descrevem “a comunidade de proletários revolucionários” como uma “associação de indivíduos… que coloca as condições de livre desenvolvimento e movimento dos indivíduos sob seu controle — condições que antes eram deixadas ao acaso e adquiriram uma existência independente em oposição aos indivíduos separados”. Em outras palavras, “a realização integral do indivíduo só deixará de ser concebida como um ideal… quando o impacto do mundo que estimula o real desenvolvimento das habilidades do indivíduo estiver sob o controle dos próprios indivíduos, como é o desejo dos comunistas”. Em sociedades de exploração de classes, “a liberdade pessoal existe apenas para os indivíduos que se desenvolveram sob as condições da classe dominante”, mas sob a “comunidade real” do comunismo, “os indivíduos obtêm sua liberdade em e por meio de sua associação”. Em vez de oportunidades para o desenvolvimento individual serem obtidas principalmente às custas dos outros, como nas sociedades de classes, a futura “comunidade” fornecerá “cada indivíduo [com] os meios para cultivar seus dons em todas as direções; portanto, a liberdade pessoal só se torna possível dentro da comunidade”12.

Em suma, a propriedade comunal é individual na medida em que afirma a reivindicação de cada pessoa, como membro da sociedade, de acesso às condições e resultados da produção como um canal para seu desenvolvimento como um indivíduo “a quem as diferentes funções sociais que desempenha são apenas muitos modos de dar livre alcance aos seus próprios poderes naturais e adquiridos”. Só assim o comunismo pode substituir “a velha sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe”, por “uma associação, na qual o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos13”.

A maneira mais básica pela qual o comunismo de Marx promove o desenvolvimento humano individual é protegendo o direito do indivíduo a uma participação no produto total (líquido das deduções acima mencionadas) para seu consumo privado. O Manifesto é inequívoco neste ponto: “O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar dos produtos da sociedade; tudo o que ele faz é privá-lo do poder de subjugar o trabalho de outros por meio da tal apropriação”. Nesse sentido, observa Engels, “a propriedade social se estende à terra e aos demais meios de produção, e a propriedade privada aos produtos, ou seja, aos artigos de produção”. Uma descrição equivalente da “comunidade de indivíduos livres” é dada no volume 1 d’O Capital: “O produto total de nossa comunidade é um produto social. Uma parte serve como novo meio de produção e permanece social. Mas outra parte é consumida pelos membros da sociedade como meio de subsistência” 14.

Tudo isso, é claro, levanta a questão de como a distribuição das reivindicações de consumo individual dos trabalhadores será determinada. N’O Capital, Marx prevê que “o modo dessa distribuição variará segundo a organização produtiva da comunidade e com o grau de desenvolvimento histórico alcançado pelos produtores”. Ele sugere (“apenas por uma questão de paralelo com a produção de mercadorias”) que uma possibilidade seria “a participação de cada produtor individual nos meios de subsistência” a ser “determinada por seu tempo de trabalho”. Na Crítica do Programa de Gotha, a concepção do tempo de trabalho como determinante dos direitos individuais de consumo é menos ambígua, pelo menos para “a primeira fase da sociedade comunista como é quando ela acaba de emergir após prolongadas dores de parto da sociedade capitalista”. Aqui, Marx francamente afirma que:

o produtor individual recebe de volta da sociedade — após as deduções terem sido feitas — exatamente o que ele lhe dá. O que ele lhe deu é a sua quantidade individual de trabalho… O tempo de trabalho individual do produtor individual é a parte da jornada social de trabalho com que ele contribuiu, é sua parte nele. Ele recebe um certificado da sociedade que forneceu tal e tal quantidade de trabalho (depois de deduzir seu trabalho para o fundo comum), e com este certificado ele tira do estoque social dos meios de consumo tanto quanto a mesma quantidade do custo do trabalho. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade de uma forma, ele recebe de volta em outra.

O raciocínio básico por trás das reivindicações de consumo baseado no trabalho é que “a distribuição dos meios de consumo em qualquer momento é apenas uma consequência da distribuição das próprias condições de produção”15. Dado que as condições de produção são propriedade dos produtores, é lógico que a distribuição das reivindicações de consumo estará mais intimamente ligada ao tempo de trabalho do que sob o capitalismo, onde é o dinheiro que governa. Este padrão de tempo de trabalho levanta questões sociais e técnicas importantes que não podem ser tratadas aqui — especialmente se e como os diferenciais na intensidade do trabalho, condições de trabalho e habilidades seriam medidos e compensados16.

No entanto, o que Marx enfatiza é que, na medida em que o padrão de tempo de trabalho individual meramente codifica a ética da troca igual, independentemente das conotações para o desenvolvimento individual, ele ainda está infectado pelo “horizonte estreito do direito burguês”. Marx, portanto, sugere que “em uma fase superior da sociedade comunista”, as reivindicações de consumo individual baseadas no trabalho podem e devem “ser totalmente deixadas para trás e a sociedade escreva em suas bandeiras: de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade!” É nesta fase superior que o “modo de distribuição do comunismo… permite que todos os membros da sociedade desenvolvam, mantenham e exerçam suas capacidades em todas as direções possíveis”. Aqui, “o consumo individual do trabalhador” torna-se aquilo que “exige o pleno desenvolvimento da individualidade” 17.

Mesmo na fase inferior do comunismo, os meios de desenvolvimento individual assegurados pela propriedade comunal não se limitam às reivindicações de consumo privado dos indivíduos. O desenvolvimento humano também se beneficiará da expansão dos serviços sociais (educação, saúde, serviços públicos e pensões para idosos) que são financiados por deduções do produto total antes de sua distribuição entre os indivíduos. Portanto, “aquilo de que o produtor é privado na sua qualidade de indivíduo privado o beneficia direta ou indiretamente na sua qualidade de membro da sociedade.” Tal consumo social será, na opinião de Marx, “consideravelmente aumentado em comparação com a sociedade atual e aumenta na proporção que a nova sociedade se desenvolve”18.

Por exemplo, Marx prevê uma expansão das “escolas técnicas (teóricas e práticas) em combinação com o ensino fundamental”. Ele projeta que “quando a classe trabalhadora chegar ao poder, como inevitavelmente deve acontecer, a instrução técnica, tanto teórica quanto prática, terá seu devido lugar nas escolas da classe trabalhadora”. Marx até sugere que os membros mais jovens da sociedade comunista experimentarão “uma combinação precoce de trabalho produtivo com educação” — presumindo, é claro, “uma regulamentação estrita do tempo de trabalho de acordo com os diferentes grupos de idade e outras medidas de segurança para a proteção de crianças.” A ideia básica aqui é que “o fato de o grupo coletivo de trabalho ser composto por indivíduos de ambos os sexos e idades, deve necessariamente, em condições adequadas, tornar-se uma fonte de desenvolvimento humano”. Outra função relacionada da educação teórica e prática “na República do Trabalho” será “converter a ciência de um instrumento de governo de classe em uma força popular” e, assim, “converter os próprios homens de ciência, de bajuladores do preconceito de classe, parasitas do estado e aliados do capital, em agentes livres do pensamento”19.

Junto com a expansão do consumo social, a “redução da jornada de trabalho” do comunismo facilitará o desenvolvimento humano, dando aos indivíduos mais tempo livre para desfrutar das “vantagens materiais e intelectuais … do desenvolvimento social.” O tempo livre é “tempo … para o desenvolvimento livre, intelectual e social, do indivíduo.” Como tal, “o tempo livre, tempo disponível, é a própria riqueza, em parte para o desfrute do produto, em parte para a atividade livre que — ao contrário do trabalho — não é dominada pela pressão de um propósito externo que deve ser cumprido, e o cumprimento de que é considerada uma necessidade natural ou um dever social”. Assim, com o comunismo “a medida da riqueza … não é mais, de forma alguma, o tempo de trabalho, mas sim o tempo disponível”. No entanto, uma vez que o trabalho é sempre, junto com a natureza, uma “substância de riqueza” fundamental, o tempo de trabalho é uma “medida importante do custo de produção [da riqueza] … mesmo se o valor de troca for eliminado20”.

Naturalmente, a sociedade comunista atribuirá certas responsabilidades aos indivíduos. Mesmo que o tempo livre vá se expandir, os indivíduos ainda terão a responsabilidade de se envolver em trabalho produtivo (incluindo criação de filhos e outras atividades de cuidado), desde que sejam física e mentalmente capazes de fazê-lo. Sob o capitalismo e outras sociedades de classes, “uma classe específica” tem “o poder de transferir a carga natural de trabalho de seus próprios ombros para os de outra camada da sociedade”. Mas sob o comunismo, “com o trabalho emancipado, todo homem se torna um homem trabalhador, e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe”. O autodesenvolvimento individual também não é apenas um direito, mas uma responsabilidade sob o comunismo. Consequentemente, “os trabalhadores afirmam em sua propaganda comunista que a vocação, o chamado, a tarefa de cada pessoa é alcançar o desenvolvimento integral de suas habilidades, incluindo, por exemplo, a capacidade de pensar21.”

É importante reconhecer a conexão bidirecional entre o desenvolvimento humano e as forças produtivas, na visão de Marx. Essa conexão não é surpreendente, visto que Marx sempre tratou “o próprio ser humano” como “a principal força de produção”. E ele sempre viu “forças de produção e relações sociais” como “dois lados diferentes do desenvolvimento do indivíduo social.” Consequentemente, o comunismo pode representar uma união real de todos os produtores individuais com as condições de produção apenas se garantir o direito de cada indivíduo de participar ao máximo de sua capacidade na utilização cooperativa e no desenvolvimento dessas condições. O caráter altamente socializado da produção significa que “os indivíduos devem se apropriar da totalidade existente das forças produtivas, não apenas para alcançar a atividade própria, mas, também, apenas para salvaguardar sua própria existência.” Para ser um veículo eficaz de desenvolvimento humano, esta apropriação não deve reduzir os indivíduos a engrenagens minúsculas e intercambiáveis ​​em uma máquina de produção coletiva gigante operando fora de seu controle em uma busca alienada da “produção pela produção”. Em vez disso, deve aumentar “o desenvolvimento das forças produtivas humanas” capazes de compreender e controlar a produção social no nível humano em linha com “o desenvolvimento da riqueza da natureza humana como um fim em si mesma”. Embora a “apropriação comunista [tenha] um caráter universal correspondendo… às forças produtivas”, ela também promove “o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção”. Porque esses instrumentos “foram desenvolvidos para uma totalidade e… só existem dentro de uma relação universal”, sua apropriação efetiva requer “o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos.” Em suma, “o desenvolvimento genuíno e livre dos indivíduos” sob o comunismo é tanto possibilitado como contribui para “o caráter universal da atividade dos indivíduos com base nas forças produtivas existentes22.”

B. Produção planejada, não comercial

Na visão de Marx, um sistema administrado por produtores livremente associados e suas comunidades, socialmente unificado com as condições necessárias de produção, por definição exclui a troca de mercadorias e o dinheiro como formas primárias de reprodução social. Junto com a descomoditização da força de trabalho vem uma “produção socializada” explicitamente, na qual a “sociedade” — não os capitalistas e trabalhadores assalariados respondendo aos sinais do mercado — “distribui a força de trabalho e os meios de produção aos diferentes ramos de produção.” Como resultado, “o capital monetário” (incluindo o pagamento de salários) “é eliminado.” Durante a fase inferior do comunismo, “os produtores podem… receber vouchers de papel que lhes dão direito a retirar do fornecimento social de bens de consumo uma quantidade correspondente ao seu tempo de trabalho”, mas “esses vouchers não são dinheiro. Eles não circulam”. Em outras palavras, “a futura distribuição do necessário para a vida” não pode ser tratada “como uma espécie de salário mais elevado23”.

Para Marx, o domínio da produção social pelo mercado é específico de uma situação em que a produção é realizada em unidades de produção organizadas de forma independente com base na separação social dos produtores das condições necessárias de produção. Aqui, o trabalho despendido nas empresas mutuamente autônomas (capitais concorrentes, como Marx os chama) só pode ser validado como parte da divisão reprodutiva do trabalho da sociedade ex post, de acordo com os preços que seus produtos alcançam no mercado. Em suma, “as mercadorias são produtos diretos de tipos de trabalho individuais independentes e isolados” e não podem ser diretamente “comparadas entre si como produtos do trabalho social”, portanto, “por meio de sua alienação no curso da troca individual, eles devem provar que são trabalho social geral24”.

Em contraste, “tempo de trabalho comunitário ou tempo de trabalho de indivíduos diretamente associados… é imediatamente tempo de trabalho social”. E “onde o trabalho é comunitário, as relações dos homens em sua produção social não se manifestam como ‘valores ’ das ‘coisas ’”:

Numa sociedade cooperativa baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; tão pouco o trabalho empregado nos produtos aparece aqui como o valor desses produtos, como uma qualidade material possuída por eles, visto que agora, em contraste com a sociedade capitalista, o trabalho individual não existe mais de forma indireta, mas diretamente como uma parte componente do trabalho total25.

O livro Grundrisse traça um contraste mais amplo entre o estabelecimento indireto ex post do trabalho como trabalho social sob o capitalismo, e a socialização direta ex ante do trabalho “com base na apropriação e controle comuns dos meios de produção”:

O caráter comunal da produção transformaria o produto em um produto comum e geral desde o início. A troca que ocorre originalmente na produção — que não seria uma troca de valores de troca, mas de atividades, determinadas pelas necessidades comunitárias e objetivos comunitários — incluiria desde o início a participação do indivíduo no mundo comunal dos produtos. Com base nos valores de troca, o trabalho é considerado geral apenas por meio da troca. Mas, com base nisso, ele seria posto como tal antes da troca; isto é, a troca de produtos não seria de forma alguma o meio pelo qual a participação do indivíduo na produção geral é mediada. É claro que a mediação deve ocorrer. No primeiro caso, que vem da produção independente dos indivíduos… as mediações acontecem pela troca de mercadorias, pelos valores de troca e pelo dinheiro… No segundo caso, o próprio pressuposto é mediado; ou seja, uma produção comunal, comunalidade, é pressuposta como a base da produção. O trabalho do indivíduo é posto desde o início como trabalho social… O produto não precisa primeiro ser transposto para uma forma particular a fim de atingir um caráter geral para o indivíduo. Em vez de uma divisão do trabalho, tal como é necessariamente criada com a troca de valores de troca, haveria uma organização do trabalho cuja consequência seria a participação do indivíduo no consumo comunal26.

O caráter imediatamente social do trabalho e dos produtos é, portanto, uma consequência lógica da nova união comunal entre os produtores e as condições necessárias de produção. Essa desalienação da produção nega a necessidade de os produtores se envolverem em trocas monetárias como meio de estabelecer uma alocação reprodutiva de seu trabalho:

A própria necessidade de primeiro transformar produtos ou atividades individuais em valor de troca, em dinheiro, para que obtenham e demonstrem seu poder social nesta forma objetiva, prova duas coisas: (1) que os indivíduos agora produzem apenas para a sociedade e na sociedade; (2) que a produção não é diretamente social, não é “fruto da associação”, que distribui trabalho internamente. Os indivíduos são incluídos na produção social; a produção social existe fora deles como seu destino; mas a produção social não está subsumida aos indivíduos, administrável por eles como sua riqueza comum27.

Que contornar as trocas de mercado e superar a alienação dos trabalhadores da produção são dois aspectos do mesmo fenômeno, explica por que, pelo menos em uma instância, Marx define o comunismo simplesmente como “dissolução do modo de produção e da forma de sociedade baseada no valor de troca. Posicionamento real do trabalho individual como social e vice-versa”. O “trabalho diretamente associado...” no comunismo, “é totalmente inconsistente com a produção de mercadorias28”.

Conforme observado anteriormente, os debates acadêmicos sobre a “economia do socialismo” tendem a se concentrar em questões técnicas de eficiência alocativa (“cálculo socialista”). Os próprios Marx e Engels frequentemente argumentaram que a economia pós-capitalista desfrutaria de planejamento e capacidades de alocação superiores em comparação com o capitalismo. N’O Capital, Marx descreve a produção “livremente associada” como “regulada conscientemente… de acordo com um plano estabelecido.” Com “os meios de produção em comum…, a força de trabalho de todos os diferentes indivíduos é conscientemente aplicada como a força de trabalho combinada da comunidade… de acordo com um plano social definido [que] mantém a proporção adequada entre os diferentes tipos de trabalho a ser feito e as várias necessidades da comunidade”. N’A Guerra Civil na França , Marx projeta que as “sociedades cooperativas unidas” irão “regular a produção nacional sob um plano comum, tomando-a assim sob seu próprio controle e pondo fim à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a fatalidade da produção capitalista29”.

No entanto, Marx e Engels não trataram a alocação planejada de recursos como o fator mais fundamental para distinguir o comunismo do capitalismo. Para eles, a característica mais básica do comunismo é sua desalienação das condições de produção vis-à-vis os produtores e o efeito capacitador que essa nova união teria sobre o desenvolvimento humano livre. Dito de outra forma, eles trataram o planejamento do comunismo e as capacidades de alocação como sintomas e instrumentos dos impulsos de desenvolvimento humano desencadeados pela nova comunalidade dos produtores e suas condições de existência. A descomoditização da produção pelo comunismo é, como discutido acima, o outro lado da desalienação das condições de produção. O planejamento da produção é apenas a forma alocativa dessa redução das capacidades humanas devido às suas condições materiais e sociais de existência. Como diz Marx, a troca de mercadorias é apenas “o vínculo natural para os indivíduos dentro de relações de produção limitadas específicas” e o “caráter alienado e independente” em que esse vínculo “existe vis-à-vis os indivíduos prova apenas que estes ainda estão engajados na criação das condições de sua vida social, e que ainda não começaram, com base nessas condições, a vivê-la”. Portanto, a razão do comunismo ser “uma sociedade organizada para um trabalho cooperativo em uma base planejada” não é para buscar a eficiência produtiva para si mesmo, mas sim “para garantir a todos os membros da sociedade os meios de existência e o pleno desenvolvimento de suas capacidades”. Essa dimensão do desenvolvimento humano também ajuda a explicar por que o “trabalho cooperativo… desenvolvido para dimensões nacionais” do comunismo não é, na projeção de Marx, governado por qualquer poder estatal centralizado; em vez disso, “o sistema começa com o autogoverno das comunidades”. Nesse sentido, o comunismo pode ser definido como “o povo agindo para si e por si mesmo” ou “a reabsorção do poder do Estado pela sociedade como suas próprias forças vivas, em vez de forças que a controlam e a subjugam30”.

2. Comunismo, Ecologia e Sustentabilidade de Marx

Muitos questionaram a praticidade econômica do comunismo como projetado por Marx. Poucos abordaram a dimensão do desenvolvimento humano da visão de Marx, sendo uma grande exceção aqueles críticos que argumentam que ela ancora o desenvolvimento humano livre na dominação tecnológica humana e no abuso da natureza, com os recursos naturais vistos como efetivamente ilimitados. É útil abordar essa dimensão ambiental em três níveis: (1) a responsabilidade do comunismo em administrar o uso das condições naturais; (2) a importância ecológica do tempo livre expandido; (3) o crescimento da riqueza e o uso do tempo de trabalho como medida do custo de produção.

A. Gerenciando os Comuns Comunalmente

Que a sociedade comunista possa ter um forte compromisso de proteger e melhorar as condições naturais pode parecer surpreendente, dada a sabedoria convencional de que Marx presumia que os “recursos naturais” eram “inesgotáveis” e, portanto, não via necessidade de “um socialismo que preservasse o meio ambiente, ecologicamente consciente, e com compartilhamento de emprego [employment-sharing]”. Marx evidentemente presumiu que “recursos escassos (petróleo, peixe, minério de ferro, meias, ou o que quer que seja)… não seriam escassos” sob o comunismo. A sabedoria convencional argumenta ainda que a “fé de Marx na capacidade de um modo de produção aprimorado para erradicar a escassez indefinidamente” significa que sua visão comunista não fornece “nenhuma base para reconhecer qualquer interesse na libertação da natureza” da “dominação humana” antiecológica. É dito que o otimismo tecnológico de Marx — sua “fé na dialética criativa” — descarta qualquer preocupação com a possibilidade de que “a tecnologia moderna interagindo com o ambiente físico da terra possa desequilibrar toda a base da civilização industrial moderna.”

Na realidade, Marx estava profundamente preocupado com a tendência do capitalismo de “minar as fontes originais de toda a riqueza: o solo e o trabalhador”. E ele enfatizou repetidamente o imperativo para a sociedade pós-capitalista de administrar seu uso das condições naturais de forma responsável. Isso ajuda a explicar sua insistência na extensão da propriedade comunal à terra e outras “fontes de vida”. Na verdade, Marx criticou fortemente o Programa de Gotha por não deixar “suficientemente claro que a terra está incluída nos instrumentos de trabalho” neste contexto. Na visão de Marx, a “Associação, aplicada à terra,… restabelece, agora de forma racional, não mais mediada pela servidão, soberania e o tolo misticismo da propriedade [privada], os laços íntimos do homem com a terra, já que a terra deixa de ser objeto de barganha”. Tal como acontece com outros meios de produção, esta “propriedade comum” da terra “não significa a restauração da antiga propriedade comum original, mas a instituição de uma forma de posse em comum muito mais elevada e desenvolvida32”.

Marx não vê essa propriedade comunal conferindo o direito de superexplorar a terra e outras condições naturais para atender às necessidades de produção e consumo dos produtores associados. Em vez disso, ele prevê um eclipse das noções capitalistas de propriedade da terra por um sistema comunitário de direitos e responsabilidades do usuário:

Do ponto de vista de uma forma econômica superior de sociedade, a propriedade privada do globo por indivíduos únicos parecerá tão absurda quanto a propriedade privada de um homem por outro. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes simultaneamente em conjunto, não são os donos do globo. Eles são apenas seus possuidores, seus usufrutuários e, como boni patres famílias, devem transmiti-lo às gerações seguintes em uma condição melhor23.

A projeção de Marx da propriedade fundiária comunal claramente não conota um direito dos “proprietários” (tanto os indivíduos quanto a sociedade como um todo) ao uso irrestrito com base na “posse”. Em vez disso, como toda propriedade comunal na nova união, confere o direito de utilizar responsavelmente a terra como uma condição de desenvolvimento humano livre e, na verdade, como uma fonte básica (junto com o trabalho) de “toda a gama de necessidades permanentes de vida exigidas pela cadeia de gerações sucessivas”. Como diz Marx, a associação trata “o solo como propriedade comunal eterna, condição inalienável para a existência e reprodução de uma cadeia de gerações sucessivas da raça humana34”.

Por que os críticos ecológicos perderam esse elemento crucial da visão de Marx? A resposta pode estar na influência contínua dos chamados modelos de “tragédia dos comuns”, que (erroneamente) identificam a propriedade comum com o “acesso aberto” descontrolado aos recursos naturais por usuários independentes. Na realidade, a dinâmica postulada por esses modelos tem mais em comum com a anarquia da competição capitalista do que com a visão de Marx dos direitos e responsabilidades comunais em relação ao uso das condições naturais. De fato, a capacidade dos sistemas tradicionais de propriedade comunal de utilizar de forma sustentável os recursos de uso comum tem sido objeto de um crescente corpo de pesquisas nos últimos anos. Esta pesquisa, sem dúvida, apoia o potencial de gestão ecológica por meio de uma “comunalização” das condições naturais na sociedade pós-capitalista35.

A ênfase de Marx na responsabilidade da sociedade futura para com a terra segue de sua projeção da unidade inerente da humanidade e da natureza sendo realizada tanto consciente quanto socialmente sob o comunismo. Para Marx e Engels, as pessoas e a natureza não são “duas ‘coisas’ separadas”, portanto, eles falam da humanidade tendo “uma natureza histórica e uma história natural”. Eles observam como a natureza extra-humana foi grandemente alterada pela produção e desenvolvimento humanos, de modo que “a natureza que precedeu a história humana… hoje não existe mais”, mas também reconhecem a importância contínua dos “instrumentos naturais de produção” por cujo uso “os indivíduos são subservientes à natureza”. O comunismo, longe de romper ou tentar superar a unidade necessária das pessoas e da natureza, torna esta unidade mais transparente e a coloca a serviço de um desenvolvimento sustentável das pessoas como seres naturais e sociais. Engels, portanto, visualiza a sociedade futura como uma na qual as pessoas “não apenas sentirão, mas também conhecerão sua unidade com a natureza”. Marx chega a definir o comunismo como “a unidade do ser do homem com a natureza36”.

Naturalmente, ainda será necessário para a sociedade comunista “lutar com a Natureza para satisfazer [seus] desejos, para manter e reproduzir a vida”. Marx, portanto, se refere “aos produtores associados regulando racionalmente seu intercâmbio com a natureza, colocando-a sob seu controle comum”. Tal regulação racional ou “real domínio consciente da Natureza” presume que os produtores “se tornaram donos de sua própria organização social37”. Mas não presume que a humanidade superou todos os limites naturais; nem presume que os produtores tenham alcançado o controle tecnológico completo sobre as forças naturais.

Por exemplo, Marx vê os produtores associados reservando uma parte do produto excedente como uma “reserva ou fundo de seguro para fornecer contra desventuras, distúrbios por meio de eventos naturais, etc.” especialmente na agricultura. As incertezas relacionadas com as condições naturais de produção (“destruição causada por fenômenos extraordinários da natureza, incêndio, inundação, etc.”) devem ser tratadas por meio de “uma superprodução relativa contínua”, ou seja, “produção em maior escala do que o necessário para a simples substituição e reprodução da riqueza existente”. Mais especificamente, “Deve haver, por um lado, uma certa quantidade de capital fixo produzido além do que é diretamente necessário; por outro lado, e particularmente, deve haver um suprimento de matérias-primas, etc., além das necessidades anuais diretas (isso se aplica especialmente aos meios de subsistência)”. Marx também prevê um “cálculo de probabilidades” para ajudar a garantir que a sociedade “esteja de posse dos meios de produção necessários para compensar a destruição extraordinária causada por acidentes e forças naturais38”.

Obviamente, “esse tipo de superprodução equivale ao controle da sociedade sobre os meios materiais de sua própria reprodução” apenas no sentido de uma regulação previdente dos intercâmbios produtivos entre a sociedade e as condições naturais incontroláveis. É nesse sentido prudencial que Marx prevê que os produtores associados “dirijam a produção desde o início, de modo que o suprimento anual de grãos dependa apenas minimamente das variações do clima; a esfera da produção — os aspectos de fornecimento e uso — é racionalmente regulada.” É simplesmente sensato que “os próprios produtores… gastem uma parte de seu trabalho, ou dos produtos de seu trabalho, para assegurar seus produtos, sua riqueza ou os elementos de sua riqueza, contra acidentes, etc.” “Dentro da sociedade capitalista”, ao contrário, as condições naturais incontroláveis ​​conferem um “elemento de anarquia” desnecessário à reprodução social39.

Contradizendo seus críticos ecológicos, Marx e Engels simplesmente não identificam o desenvolvimento humano livre com uma dominação humana unilateral ou controle da natureza. De acordo com Engels,

A liberdade não consiste no sonho da independência das leis naturais, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade que isso dá de fazê-las sistematicamente trabalharem para fins definidos. Isso é válido tanto em relação às leis da natureza externa quanto àquelas que governam a existência física e mental dos próprios homens — duas classes de leis que podemos separar uma da outra, no máximo, apenas em pensamento, mas não na realidade... Liberdade, portanto consiste no controle sobre nós mesmos e sobre a natureza externa que se baseia na necessidade natural.

Em suma, Marx e Engels imaginam uma “verdadeira liberdade humana” baseada em “uma existência em harmonia com as leis estabelecidas da natureza40”.

B. Tempo Livre Expandido e Desenvolvimento Humano Sustentável

Os críticos ecológicos de Marx frequentemente argumentam que sua visão de tempo livre expandido sob o comunismo é antiecológica porque incorpora uma ética de autorrealização humana por meio da superação de restrições naturais. Routley, por exemplo, sugere que Marx adota “a visão do trabalho de subsistência [bread labor] como necessariamente alienado e, portanto, como algo a ser reduzido a um mínimo absoluto por meio da automação. O resultado deve ser altamente intensivo em energia e, portanto, dado qualquer cenário de energia realista e previsível, prejudicial ao meio ambiente”. Para Marx, evidentemente, “é o fato de que o trabalho de subsistência vincula o homem à natureza que torna impossível que ele expresse o que é verdadeira e plenamente humano; assim, é apenas quando o homem supera a necessidade de gastar tempo com trabalho de subsistência que ele ou ela pode ser considerado como tendo dominado a natureza e se tornado totalmente humano”. Menos dramaticamente, Walker aponta para uma tensão entre a visão de Marx de expandir o tempo livre, que “claramente implica que deve haver recursos além daqueles necessários para um mínimo de sobrevivência”, e a suposta falha de Marx em “mencionar… limitações na disponibilidade natural recursos41”.

A discussão anterior já fez muito para dissipar as noções de que Marx e Engels não estavam preocupados com o manejo dos recursos naturais sob o comunismo e que previram uma separação progressiva do desenvolvimento humano da natureza como tal. No entanto, também deve ser apontado que os críticos ecológicos caracterizaram erroneamente a relação entre tempo livre e tempo de trabalho no comunismo. É verdade que, para Marx, o “desenvolvimento da energia humana que é um fim em si mesmo… está além da esfera real da produção material”, isto é, além do “trabalho que é determinado pela necessidade e por considerações mundanas”. Mas para Marx, este “verdadeiro reino da liberdade… pode florescer apenas com [o] reino da necessidade como sua base,” e a relação entre os dois reinos não é de forma alguma uma simples oposição, como alegado pelos críticos ecológicos. Como diz Marx, o “caráter bastante diferente… livre” do trabalho diretamente associado, onde “o tempo de trabalho é reduzido a uma duração normal e, além disso, o trabalho não é mais [do ponto de vista dos produtores como um todo] realizado para um outro alguém”, significa que “o próprio tempo de trabalho não pode permanecer na antítese abstrata do tempo livre em que aparece da perspectiva da economia burguesa”:

O tempo livre — que é tanto tempo ocioso quanto tempo para atividades superiores — naturalmente transformou seu possuidor em um sujeito diferente, e ele então entra no processo de produção direta como esse sujeito diferente. Esse processo é, então, ao mesmo tempo, disciplina, no que diz respeito ao ser humano em processo de devir; e, ao mesmo tempo, prática, ciência experimental, ciência materialmente criativa e objetivadora, no que diz respeito ao ser humano que se tornou, em cuja cabeça está o conhecimento acumulado da sociedade42.

Na visão de Marx, o aumento do desenvolvimento humano livre por meio de reduções no tempo de trabalho ressoa positivamente com o desenvolvimento das capacidades humanas no reino da produção, que ainda aparece como um “metabolismo” da sociedade e da natureza. As ênfases de Marx na educação “teórica e prática” e na desalienação da ciência vis-à-vis os produtores são bastante relevantes neste contexto. Marx vê a difusão e o desenvolvimento do conhecimento científico pelo comunismo tomando a forma de novas combinações das ciências naturais e sociais, observando que

a ciência natural... se tornará a base da ciência humana, como já se tornou a base da vida humana real, embora de forma afastada. Uma base para a vida e outra base para a ciência são, a priori, uma mentira... A ciência natural, com o tempo, incorporará em si a ciência do homem, assim como a ciência do homem incorporará em si a ciência natural: haverá uma única ciência43.

Essa unidade intrínseca das ciências sociais e naturais é, naturalmente, um corolário lógico da unidade intrínseca da humanidade e da natureza. Consequentemente, Marx e Engels “conhecem apenas uma única ciência, a ciência da história. Pode-se olhar a história por dois lados e dividi-la em história da natureza e história dos homens. Os dois lados são, no entanto, inseparáveis; a história da natureza e a história dos homens dependem uma da outra enquanto os homens existirem44”.

Em suma, os fundadores do Marxismo não previram a redução do tempo de trabalho do comunismo em termos de uma separação progressiva do desenvolvimento humano da natureza. Eles também não viram o tempo livre expandido sendo preenchido por orgias de consumo pelo consumo. Em vez disso, a redução do tempo de trabalho é vista como uma condição necessária para o desenvolvimento intelectual de indivíduos sociais capazes de dominar as forças cientificamente desenvolvidas da natureza e do trabalho social de maneira ambientalmente e também humanamente racional. O “aumento do tempo livre” aparece aqui como “tempo de pleno desenvolvimento do indivíduo” capaz de “a apreensão de sua própria história como processo, e o reconhecimento da natureza (igualmente presente como poder prático sobre a natureza) como seu real corpo.” O desenvolvimento intelectual dos produtores durante o tempo livre e o tempo de trabalho é claramente central para o processo pelo qual o “caráter social [do trabalho comunista] é posto… no processo de produção não de uma forma meramente natural e espontânea, mas como uma atividade que regula todas as forças da natureza45”. Longe de ser antiecológico, nesse processo os produtores e suas comunidades passam a ter uma consciência mais teórica e prática da riqueza natural como condição eterna de produção, tempo livre e da própria vida humana.

Os críticos ecológicos também parecem ter perdido de vista o potencial de aumento do tempo livre como meio de reduzir a pressão da produção sobre o ambiente natural. Especificamente, o aumento da produtividade do trabalho social não precisa aumentar o rendimento de material e energia, na medida em que os produtores são compensados ​​por reduções no tempo de trabalho em vez de pelo maior consumo de materiais. No entanto, este aspecto do tempo livre como uma medida de riqueza é melhor localizado no contexto da transformação das necessidades humanas pelo comunismo.

C. Riqueza, necessidades humanas e custo da força de trabalho

Alguns argumentariam que, na medida em que Marx imagina o comunismo encorajando um senso compartilhado de responsabilidade para com a natureza, essa responsabilidade permanece ligada a uma concepção antiecológica da natureza como primariamente um instrumento ou material do trabalho humano. Alfred Schmidt, por exemplo, sugere que “quando Marx e Engels reclamam do roubo profano da natureza, eles não estão preocupados com a própria natureza, mas com considerações de utilidade econômica”. Routley afirma que, para Marx, “a natureza deve ser aparentemente respeitada na medida, e apenas na medida, que se torna obra do homem, seu artefato e autoexpressão, e é, portanto, um reflexo do homem e parte da identidade do homem46”.

Deve ficar claro a partir de nossa discussão anterior que qualquer dicotomia entre “utilidade econômica” e “a própria natureza” é completamente estranha ao materialismo de Marx. Um ponto relacionado é que a concepção de Marx de riqueza ou valor de uso abrange “a variedade multifacetada de necessidades humanas”, sejam essas necessidades físicas, culturais ou estéticas. Neste sentido amplo de desenvolvimento humano, “valor de uso… pode geralmente ser caracterizado como o meio de vida”. David Pepper conclui acertadamente que “Marx realmente via o papel da natureza como ‘instrumental’ para os humanos, mas para ele o valor instrumental… incluía a natureza como uma fonte de valor estético, científico e moral47”.

Por “obra do homem”, Marx não emprega uma concepção oposicionista de trabalho e natureza em que o primeiro apenas inclui a última. Ele insiste que a capacidade humana de trabalhar, ou força de trabalho, é em si “um objeto natural, uma coisa, embora uma coisa viva e consciente”, portanto, o trabalho é um processo no qual o trabalhador “se opõe à Natureza sendo uma de suas próprias forças” e “se apropria das produções da Natureza de uma forma adaptada aos seus próprios desejos”. Marx vê o trabalho como “um processo do qual o homem e a Natureza participam… a condição necessária para efetuar a troca de matéria entre o homem e a Natureza” na produção. Como uma “condição universal para a interação metabólica entre a natureza e o homem”, o trabalho é “uma condição natural da vida humana… independente de, igualmente comum a, todas as formas sociais particulares de vida humana”. O trabalho é, obviamente, apenas parte do “metabolismo universal da natureza” e, como um materialista, Marx insiste que “a terra… existe independentemente do homem”. Nesse sentido ontológico, “a prioridade da natureza externa permanece incontestável”, embora Marx insista na importância das relações sociais na estruturação do “metabolismo” produtivo entre a humanidade e a natureza48.

Mas o que dizer das notórias referências de Marx e Engels ao crescimento contínuo da produção de riqueza sob o comunismo? Não são imanentemente antiecológicos? Aqui deve ser enfatizado que essas projeções de crescimento são sempre feitas em estreita conexão com a visão de Marx de um desenvolvimento humano livre e completo, não com o crescimento da produção e do consumo materiais para seu próprio bem. Assim, sempre se referem ao crescimento da riqueza em um sentido geral, abrangendo a satisfação de necessidades outras que não aquelas que requerem o processamento industrial de recursos naturais (produção de matéria e energia). Ao discutir a “fase superior da sociedade comunista”, por exemplo, Marx torna a frase “a cada um de acordo com suas necessidades” critério condicional a uma situação em que “a subordinação escravizante de indivíduos sob divisão de trabalho e, com isso, também a antítese entre o trabalho mental e físico desapareceu; depois que o trabalho, de um mero meio de vida, tornou-se ele mesmo a necessidade primária da vida; depois que as forças produtivas também aumentaram com o desenvolvimento integral do indivíduo”. Da mesma forma, Engels se refere a “um crescimento praticamente ilimitado da produção”, mas então preenche sua concepção de “prático” em termos da prioridade “de garantir para cada membro da sociedade… uma existência que não é apenas totalmente suficiente a partir de um ponto de vista material… mas também lhes garante o desenvolvimento totalmente irrestrito de suas faculdades físicas e mentais49”. Esse desenvolvimento humano não precisa envolver um crescimento ilimitado do consumo material.

Para Marx, a “expansão progressiva do processo de reprodução” do comunismo abrange todo o “processo vivo da sociedade de produtores” e, como discutido anteriormente, ele especifica as “vantagens materiais e intelectuais” deste “desenvolvimento social” em termos de desenvolvimento humano holístico. Quando Marx e Engels concebem o comunismo como “uma organização de produção e intercâmbio que tornará possível a satisfação normal das necessidades… limitada apenas pelas próprias necessidades”, eles não significam uma saciedade completa de necessidades em expansão ilimitada de todos os tipos:

A organização comunista tem um efeito duplo sobre os desejos produzidos no indivíduo pelas relações atuais; alguns desses desejos — a saber, os desejos que existem sob todas as relações e apenas mudam sua forma e direção sob diferentes relações sociais — são meramente alterados pelo sistema social comunista, pois têm a oportunidade de se desenvolverem normalmente; mas outros — a saber, aqueles originários unicamente de uma sociedade particular, sob condições particulares de produção e intercâmbio — estão totalmente privados de suas condições de existência. O que será meramente mudado e o que será eliminado em uma sociedade comunista só pode ser determinado de maneira prática50.

Como Ernest Mandel aponta, esta abordagem de desenvolvimento social e humano para a satisfação de necessidades é bastante diferente da “noção absurda” de “abundância” irrestrita muitas vezes atribuída a Marx, isto é, “um regime de acesso ilimitado a um suprimento ilimitado de todos os bens e serviços.” Embora a satisfação das necessidades comunistas seja consistente com uma “definição de abundância [como] saturação da demanda”, isso deve ser localizado no contexto de uma hierarquia de “necessidades básicas, necessidades secundárias, que se tornam indispensáveis ​​com o crescimento da civilização, e luxo, necessidades não essenciais ou mesmo prejudiciais”. A visão do desenvolvimento humano de Marx prevê basicamente uma saciedade das necessidades básicas e uma extensão gradual dessa saciedade às necessidades secundárias à medida que elas se desenvolvem socialmente por meio do tempo livre expandido e do controle cooperativo da comunidade de trabalhadores sobre a produção — não uma saciedade completa de todas as necessidades concebíveis51.

Aqui, começa-se a ver todo o significado ecológico do tempo livre como medida da riqueza comunista. Especificamente, se as necessidades secundárias desenvolvidas e satisfeitas durante o tempo livre são menos intensivas em material e energia, seu peso crescente nas necessidades totais deve reduzir a pressão da produção em condições naturais limitadas. Isso é crucial na medida em que a visão de Marx faz com que os produtores usem sua segurança material recém-descoberta e tempo livre expandido para se envolver em uma variedade de formas intelectuais e estéticas de autodesenvolvimento52. Tal desenvolvimento de necessidades secundárias deve ser ampliado pelas maiores oportunidades que o controle verdadeiramente exercido pelo trabalhador e pelacomunidade oferece às pessoas para que se tornem participantes informados da vida econômica, política e cultural.

Claro, o trabalho (junto com a natureza) continua sendo uma fonte fundamental de riqueza sob o comunismo. Isso, junto com a prioridade da ampliação do tempo livre, significa que as quantidades de trabalho social despendidas na produção de diferentes bens e serviços ainda serão uma medida importante de seu custo. Como Marx explica no Grundrisse:

Com base na produção comunal, a determinação do tempo permanece, é claro, essencial. Quanto menos tempo a sociedade necessita para produzir trigo, gado etc., mais tempo ela ganha para outra produção, material ou mental. Assim como no caso de um indivíduo, a multiplicidade de seu desenvolvimento, seu gozo e sua atividade dependem da economia do tempo. Economia de tempo, a isso toda economia se reduz em última instância. Da mesma forma, a sociedade deve distribuir seu tempo de maneira proposital, a fim de alcançar uma produção adequada às suas necessidades globais; assim como o indivíduo deve distribuir seu tempo corretamente para adquirir conhecimentos em proporções adequadas ou para satisfazer as diversas demandas de sua atividade. Assim, a economia de tempo, junto com a distribuição planejada do tempo de trabalho entre os vários ramos de produção, continua sendo a primeira lei econômica na base na produção comunal. Lá se torna lei em um grau ainda mais alto.

Marx adiciona imediatamente, no entanto, que a economia de tempo do comunismo “é essencialmente diferente de uma medição dos valores de troca (trabalho ou produtos) pelo tempo de trabalho.” Em primeiro lugar, o uso do tempo de trabalho pelo comunismo como uma medida de custo “é realizado… pelo controle direto e consciente da sociedade sobre seu tempo de trabalho — o que só é possível com propriedade comum”, ao contrário da situação sob o capitalismo, onde a “regulação” do tempo de trabalho social só é realizada indiretamente, “pelo movimento dos preços das mercadorias”. Mais importante ainda, a economia de tempo de trabalho do comunismo serve ao valor de uso, especialmente a expansão do tempo livre, enquanto a economia de tempo do capitalismo é voltada para aumentar o tempo de mais-trabalho despendido pelos produtores53.

Além disso, Marx e Engels não projetam o tempo de trabalho como o único guia para as decisões de alocação de recursos no comunismo: eles apenas indicam que deve ser uma medida importante dos custos sociais de diferentes tipos de produção. Que “a produção… sob o controle real e predeterminante da sociedade... estabeleça uma relação entre o volume de trabalho social aplicado na produção de artigos definidos e o volume do desejo social a ser satisfeito por esses artigos” de forma alguma implica que os custos ambientais são deixados de fora da conta. Da mesma forma, não impede que a manutenção e a melhoria das condições naturais sejam incluídas nas “necessidades sociais a serem satisfeitas” pela produção e pelo consumo54.

Para fortes evidências de que Marx e Engels não viam o comunismo priorizando o custo mínimo do trabalho em relação às metas ecológicas, basta apontar a sua insistência na “abolição da antítese entre cidade e campo” como “uma necessidade direta de... produção e, além disso, da saúde pública”. Observando as concentrações urbanas ecologicamente perturbadoras das indústrias e população no capitalismo, a agricultura industrializada e a falha em reciclar resíduos humanos e de animais da pecuária, Marx e Engels apontaram desde o início a “abolição da contradição entre a cidade e o campo” como “uma das primeiras condições da vida comunal”. Como Engels disse mais tarde: “O atual envenenamento do ar, da água e da terra só pode ser eliminado pela fusão da cidade e do campo” sob “um único plano vasto”. Apesar de seu custo potencial para a sociedade em termos de aumento do tempo de trabalho, ele via essa fusão como “nem mais e nem menos utópica do que a abolição da antítese entre capitalista e trabalhadores assalariados”. Era até mesmo “uma demanda prática da produção industrial e agrícola”. Em sua magnum opus, Marx previu o comunismo forjando uma “síntese superior” do “antigo vínculo de união que mantinha unidas a agricultura e a manufatura em sua infância”. Essa nova união trabalharia para uma “restauração” das “condições naturalmente cultivadas para a manutenção de [a] circulação da matéria... sob uma forma apropriada para o pleno desenvolvimento da raça humana.” Consequentemente, Engels ridicularizou a projeção de Dühring “de que a união entre a agricultura e a indústria será realizada mesmo contra considerações econômicas, como se isso fosse algum sacrifício econômico!55” É óbvio que Marx e Engels aceitariam de bom grado aumentos no tempo de trabalho social em troca de uma produção ecologicamente mais sólida.

Ainda assim, não é necessário aceitar a noção, repetida ad nauseam pelos críticos ecológicos de Marx, de uma oposição inerente entre reduções de custos do trabalho e respeito ao meio ambiente. O comunismo de Marx dispensaria o desperdício de recursos naturais e também de trabalho associado ao “sistema anárquico de competição” e “grande número de empregos… em si supérfluos” do capitalismo. Muitos valores de uso antiecológicos poderiam ser eliminados ou largamente reduzidos sob um sistema planejado de alocação de trabalho e uso da terra, entre eles publicidade, processamento e acondicionamento excessivos de alimentos e outros bens, obsolescência planejada de produtos e automóveis. Todos esses valores de uso destrutivos são “indispensáveis” para o capitalismo; mas do ponto de vista da sustentabilidade ambiental representam “o mais ultrajante desperdício da força de trabalho e dos meios sociais de produção56”.

Notas

1. Oskar Lange and Fred M. Taylor, On the Economic Theory of Socialism (New York: McGraw-Hill, 1964); “Socialism: Alternative Views and Models,” simpósio em Science & Society 56, no. 4 (Spring 1992); “Building Socialism Theoretically: Alternatives to Capitalism and the Invisible Hand,” simpósio em Science & Society 66, no. 1 (Spring 2002); Ernesto Che Guevara, “Man and Socialism in Cuba,” em Man and Socialism in Cuba: The Great Debate, ed. Bertram Silverman (New York: Atheneum, 1973), 337, 350.
2. Para mais discussões da visão de Marx sobre o comunismo, ver Paresh Chattopadhyay, “Socialism: Utopian and Feasible,” Monthly Review 37, no. 10 (March 1986); Bertell Ollman, “Marx’s Vision of Communism,” in Social and Sexual Revolution: Essays on Marx and Reich (Boston: South End Press, 1979).
3. Herman E. Daly, Steady-State Economics, 2nd ed. (London: Earthscan, 1992), 196; Robyn Eckersley, Environmentalism and Political Theory (Albany: State University of New York Press, 1992), 80; Victor Ferkiss, Nature, Technology, and Society (New York: New York University Press, 1993), 110; K. J. Walker, “Ecological Limits and Marxian Thought,” Politics 14, no. 1 (May 1979), 35–6; Val Routley, “On Karl Marx as an Environmental Hero,” Environmental Ethics 3, no. 3 (Fall 1981), 242. Para referências adicionais às críticas ecológicas ao comunismo de Marx, ver John Bellamy Foster, “Marx and the Environment,” Monthly Review 47, no. 3 (July–August 1995), 108–9; Paul Burkett, Marx and Nature: A Red and Green Perspective (New York: St. Martin’s Press, 1999), 147–8, 223.
4. Karl Polanyi, The Great Transformation (New York: Farrar & Rinehart, 1944); Thomas E. Weisskopf, “Marxian Crisis Theory and the Contradictions of Late Twentieth-Century Capitalism,” Rethinking Marxism 4, no. 4 (Winter 1991); Blair Sandler, “Grow or Die: Marxist Theories of Capitalism and the Environment,” Rethinking Marxism 7, no. 2 (Summer 1994); Andriana Vlachou, “Nature and Value Theory,” Science & Society 66, no. 2 (Summer 2002).
5. Paul Auerbach and Peter Skott, “Capitalist Trends and Socialist Priorities,” Science & Society 57, no. 2 (Summer 1993), 195.
6. Karl Marx, Value, Price and Profit (New York: International Publishers, 1976), 39; Theories of Surplus Value, part 3 (Moscow: Progress Publishers, 1971), 271–2; Theories of Surplus Value, part 2 (Moscow: Progress Publishers, 1968), 580 (emphasis in original).
7. Frederick Engels, Anti-Dühring (New York: International Publishers, 1939), 221 (emphasis in original); Marx, Theories of Surplus Value, part 3, 525; “Drafts of the Letter to Vera Zasulich, March 8, 1881,” in Collected Works, Karl Marx and Frederick Engels, vol. 24 (New York: International Publishers, 1989), 362 (emphasis in original).
8. Marx, Capital, vol. I (New York: International Publishers, 1967), 762; “Economic Manuscript of 1861–63, Conclusion,” in Collected Works, Karl Marx and Frederick Engels, vol. 34 (New York: International Publishers, 1994), 109 (emphasis in original); Karl Marx and Frederick Engels, The German Ideology (Moscow: Progress Publishers, 1976), 97.
9. Karl Marx and Frederick Engels, “Manifesto of the Communist Party,’ in Selected Works (London: Lawrence & Wishart, 1968), 47. See also Marx, Capital, 3:437–40; “Economic Manuscript of 1861–63, Conclusion,” 108.
10. Marx, Capital, 3:437, 876; Critique of the Gotha Programme (New York: International Publishers, 1966), 7–8, 11; Frederick Engels, The Housing Question (Moscow: Progress Publishers, 1979), 28, 94. See also Marx, Theories of Surplus Value, part 1 (Moscow: Progress Publishers, 1963), 107; Capital, 1:530 and 2:819, 847.
11. Marx, Capital, 1:763; “Economic Manuscript of 1861–63, Conclusion,” 109 (emphases in original); “The Civil War in France,” in On the Paris Commune, by Karl Marx and Frederick Engels (Moscow: Progress Publishers, 1985), 75.
12. Marx and Engels, The German Ideology, 86–9, 309.
13. Marx, Capital, 1:488; Marx and Engels, “Manifesto of the Communist Party,” 53.
14. Marx and Engels, “Manifesto of the Communist Party,” 49; Engels, Anti-Dühring, 144; Marx, Capital, 1:78.
15. Marx, Capital, 1:78; Critique of the Gotha Programme, 8, 10.
16. Engels, Anti-Dühring, 220–2.
17. Marx, Critique of the Gotha Programme, 10; Engels, Anti-Dühring, 221 (ênfase no original); Marx, Capital, 3:876. See also Marx and Engels, The German Ideology, 566.
18. Marx, Critique of the Gotha Programme, 7–8.
19. Marx, Critique of the Gotha Programme, 20, 22; Capital, 1:488, 490; “The Civil War in France,” 162.
20. Marx, Capital, 1:530 and 2:819–20; Theories of Surplus Value, part 3, 257 (ênfase no original); Grundrisse (New York: Vintage, 1973), 708.
21. Marx, Capital, 1:530; “The Civil War in France,” 75; Marx and Engels, The German Ideology, 309.
22. Marx, Grundrisse, 190, 706; Theories of Surplus Value, part 2, 117–8 (ênfase no original); Marx and Engels, The German Ideology, 96, 465.
23. Marx, Capital, 2:358; Engels, Anti-Dühring, 221.
24. Marx, A Contribution to the Critique of Political Economy (New York: International Publishers, 1970), 84–5.
25. Marx, A Contribution to the Critique of Political Economy, 85 (ênfase no original); Theories of Surplus Value, part 3, 129; Critique of the Gotha Programme, 8 (eênfase no original).
26. Marx, Grundrisse, 159, 171–2 (ênfase no original).
27. Marx, Grundrisse, 158 (ênfase no original).
28. Marx, Grundrisse, 264; Capital, 1:94. Ver também Engels, Anti-Dühring, 337–8.
29. Marx, Capital, 1:78–80; “The Civil War in France,” 76.
30. Marx, Grundrisse, 162; Engels, Anti-Dühring, 167; Marx, “Inaugural Address of the International Working Men’s Association,” em The First International and After, ed. David Fernbach (New York: Random House, 1974), 80; “Notes on Bakunin’s Book Statehood and Anarchy,” em Collected Works, Karl Marx and Frederick Engels, 24:519; “The Civil War in France,” 130, 153.
31. Alec Nove, “Socialism,” em The New Palgrave: Problems of the Planned Economy, ed. John Eatwell, Murray Milgate e Peter Newman (New York: Norton, 1990), 230, 237; Alec Nove, The Economics of Feasible Socialism (London: Allen & Unwin, 1983), 15–6; Geoffrey Carpenter, “Redefining Scarcity: Marxism and Ecology Reconciled,” Democracy & Nature 3, no. 3 (1997), 140; Andrew McLaughlin, “Ecology, Capitalism, and Socialism,” Socialism and Democracy, no. 10 (Spring–Summer 1990), 95; Lewis S. Feuer, “Introduction,” em Karl Marx and Frederick Engels: Basic Writings on Politics and Philosophy, ed. Lewis Feuer (Garden City, N.Y.: Anchor Books, 1989), xii.
32. Marx, Capital, 1:507; Critique of the Gotha Programme, 5–6; Economic and Philosophical Manuscripts of 1844 (New York: International Publishers, 1964), 103; Engels, Anti-Dühring, 151.
33. Marx, Capital, 3:776.
34. Marx, Capital, 617, 812 (ênfase adicionada).
35. H. Scott Gordon, “The Economic Theory of a Common Property Resource: The Fishery,” Journal of Political Economy 62, no. 2 (Abril 1954); Garrett Hardin, “The Tragedy of the Commons,” Science 162 (Dezembro 1968); S. V. Ciriacy-Wantrup e Richard C. Bishop, “‘Common Property’ as a Concept in Natural Resource Policy,” Natural Resources Journal 15, no. 4 (Outubro 1975); James A. Swaney, “Common Property, Reciprocity, and Community,” Journal of Economic Issues 24, no. 2 (Junho 1990); Elinor Ostrom, Governing the Commons (Cambridge: Cambridge University Press, 1990); Peter Usher, “Aboriginal Property Systems in Land and Resources,” em Green On Red: Evolving Ecological Socialism, ed. Jesse Vorst, Ross Dobson e Ron Fletcher (Winnipeg: Fernwood Publishing, 1993); Burkett, Marx and Nature, 246–8; Robert Biel, The New Imperialism (London: Zed Books, 2000), 15–8, 98–101.
36. Marx e Engels, The German Ideology, 45–6, 71; Frederick Engels, Dialectics of Nature (Moscow: Progress Publishers, 1964), 183; Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844, 137.
37. Marx, Capital, 3:820; Engels, Anti-Dühring, 309.
38. Marx, Critique of the Gotha Programme, 7; Capital, 2:177, 469.
39. Marx, Capital, 2:469; “Notes on Wagner,” in Texts on Method, ed. Terrell Carver (Oxford, UK: Blackwell, 1975), 188; Theories of Surplus Value, part 3, 357–8.
40. Engels, Anti-Dühring, pp. 125–6.
41. Routley, “On Karl Marx as an Environmental Hero,” 242; Walker, “Ecological Limits and Marxian Thought,” 242–3.
42. Marx, Capital, 3:820; Theories of Surplus Value, parte 3, 257; Grundrisse, 712.
43. Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844, 143 (ênfase no original).
44. Marx e Engels, The German Ideology, 34. Ver também Ollman, “Marx’s Vision of Communism,” 76.
45. Marx, Grundrisse, 542, 612 (ênfase no original).
46. Alfred Schmidt, The Concept of Nature in Marx (London: New Left Books, 1971), 155; Routley, “On Karl Marx as an Environmental Hero,” 243 (ênfase no original).
47. Marx, Grundrisse, 527; “Economic Manuscript of 1861–63, Third Chapter,” em Collected Works, Karl Marx e Frederick Engels, vol. 30 (New York: International Publishers, 1988), 40 (ênfase no original); David Pepper, Eco-Socialism (London: Routledge, 1993), 64.
48. Marx, Capital, 1:177, 183–4, 202 (ênfase adicionada); “Economic Manuscript of 1861–63, Third Chapter,” 63; Marx and Engels, The German Ideology, 46. Para detalhes sobre a concepção dialética de Marx do trabalho humano e da natureza, ver Burkett, capítulos 2–4 em Marx and Nature; John Bellamy Foster, Marx’s Ecology: Materialism and Nature (New York: Monthly Review Press, 2000); John Bellamy Foster ePaul Burkett, “The Dialectic of Organic/Inorganic Relations: Marx and the Hegelian Philosophy of Nature,” Organization & Environment 13, no. 4 (Dezembro 2000).
49. Marx, Critique of the Gotha Programme, 10; Engels, Anti-Dühring, 309.
50. Capital, 3:250, 819 (ênfase no original); Marx and Engels, The German Ideology, 273.
51. Ernest Mandel, Power and Money: A Marxist Theory of Bureaucracy (London: Verso, 1992), 205–7 (emphasis in original); Howard J. Sherman, “The Economics of Pure Communism,” Review of Radical Political Economics 2, no. 4 (Inverno 1970).
52. Marx, Grundrisse, 287; Marx and Engels, The German Ideology, 53.
53. Marx, Grundrisse, 172–3, 708; Marx to Engels, Janeiro 8, 1868, in Selected Correspondence, Karl Marx and Frederick Engels (Moscow: Progress Publishers, 1975), 187; Marx, Capital, 1:71 and 3:264.
54. Marx, Capital, 3:187.
55. Engels, Anti-Dühring, 323–4 (ênfase no original); The Housing Question, 92; Marx e Engels, The German Ideology, 72; Marx, Capital, 1:505–6.
56. Marx, Capital, 1:530. Para maiores discussões sobre planejamento socialista, tecnologia e eficiência ecológica, ver Victor Wallis, “Socialism, Ecology, and Democracy: Toward A Strategy of Conversion,” Monthly Review 44, no. 2 (Junho 1992); “Technology, Ecology, and Socialist Renewal,” Capitalism, Nature, Socialism 12, no. 1 (Março 2004).

Sobre o autor

Paul Burkett ensina economia na Indiana State University, Terre Haute. Com Martin Hart-Landsberg, ele foi co-autor de China and Socialism: Market Reforms and Class Struggle (Monthly Review Press, 2005).

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