19 de setembro de 2004

O novo desenvolvimentismo

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo

Pode ter parecido surpreendente a afirmação de Antônio Ermírio de Moraes de que está na hora de o Brasil ter um plano de desenvolvimento como foi o desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek. Diante, porém, do fracasso da ortodoxia convencional em promover o desenvolvimento do país, está ficando cada vez mais claro para a sociedade brasileira, cujo sentimento o grande empresário expressa, que é preciso pensar em uma alternativa.

A ortodoxia convencional insiste em identificar o desenvolvimentismo com o populismo, o que não faz sentido. O nacional-desenvolvimentismo foi a estratégia que regeu o desenvolvimento do Brasil entre 1930 e 1980, um período de enorme crescimento e transformação da economia. A crise dos anos 80, porém, coincidiu com o início da onda ideológica globalista e neoliberal que vinha do Norte e facilitou sua penetração no Brasil. Em 1986, com o Plano Baker, a ortodoxia convencional foi transformada em "estratégia de desenvolvimento" definida pelo governo dos Estados Unidos e suas agências. Era o Consenso de Washington com sua propostas de reformas, várias delas razoáveis se fossem entendidas como visando enfrentar a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado.

Já nessa época, porém, era possível interpretar o discurso dos seus ideólogos como uma forma de debilitar os Estados nacionais dos países em desenvolvimento, que, desde os anos 70, com sua mão-de-obra barata e suas exportações de manufaturados, ameaçavam os países ricos.

Nos anos 90, depois do relativo equacionamento da crise da dívida externa, a estratégia de desenvolvimento da ortodoxia convencional assumiu caráter mais radical. Buscava-se agora, com uma "segunda geração de reformas", a eliminação dos instrumentos do Estado nacional de proteção do capital e do trabalho nacionais. A liberalização deveria ser "aprofundada" em todos os campos e, principalmente, por meio da abertura da conta-capital, com a eliminação de qualquer controle cambial.
No Brasil, depois da estabilização heterodoxa de 1994, a estratégia que nos era proposta era "crescer com poupança externa" e, portanto, com déficit em conta corrente, já que poupança externa é déficit em conta corrente. A única preocupação era manter a baixa inflação por meio de uma âncora, que poderia ser ou o câmbio fixo ou de câmbio flutuante acompanhado de sistema de metas de inflação. E controlar o déficit público, para que a capacidade do Estado de pagar a sua dívida pública interna e externa não ficasse ameaçada.

O resultado dessa política ortodoxa foi desastroso em toda a América Latina, enquanto países asiáticos, como a China, a Índia e a Malásia, que resistiram firmemente às pressões da ortodoxia convencional, continuaram a se desenvolver de forma acelerada.

Desenvolvimentismo é estratégia nacional de desenvolvimento. O Brasil precisa de um novo desenvolvimentismo não porque o antigo fosse equivocado, mas porque encontra-se em um estágio diferente de desenvolvimento, vive uma nova realidade e enfrenta novos desafios. Quais as diferenças fundamentais do novo desenvolvimentismo em relação ao antigo? E quais suas diferenças com a ortodoxia convencional?

O antigo desenvolvimentismo estava baseado no modelo de substituição de importações e, portanto, na proteção da conta comercial. Hoje, os grandes protecionistas são os países ricos. Ao Brasil, interessa continuar a abrir sua conta comercial, embora de uma forma negociada, com a devida reciprocidade, para poder exportar. Segundo, o Brasil já tem uma infra-estrutura econômica razoavelmente instalada, de forma que não há mais necessidade de o Estado investir diretamente em indústrias como a siderúrgica ou a petroquímica, que o setor privado pode conduzir melhor. Terceiro, a preocupação com a estabilidade macroeconômica é hoje mais necessária do que no passado devido à instabilidade causada pelos fluxos de capital internacionais.

Em síntese, o mercado e o setor privado têm, hoje, um papel maior do que tiveram entre 1930 e 1980: a forma do planejamento deve ser menos sistemática e mais estratégica ou oportunista, visando permitir que as empresas nacionais compitam na economia globalizada.

Já em relação à ortodoxia convencional, as diferenças são muito mais profundas. Em primeiro lugar, enquanto uma é estratégia de desenvolvimento, a outra é uma estratégia de "chutar a escada", é uma estratégia não-conspiratória mas efetiva de desorganizar os Estados nacionais dos países que concorrem na arena global com mão-de-obra barata.

Existe um ponto comum entre as duas perspectivas: tanto o novo desenvolvimentismo como a ortodoxia convencional são favoráveis ao equilíbrio fiscal, mas a motivação é diferente. Enquanto os primeiros querem, com isso, fortalecer o Estado no plano fiscal, os segundos estão essencialmente preocupados com a possibilidade de pagamento aos credores. É por essa razão que o novo desenvolvimentismo quer minimizar o déficit público, enquanto a ortodoxia convencional visa um superávit primário que mantenha estável a relação dívida pública/PIB.

A discordância entre o novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional começa pela definição de estabilidade macroeconômica. Diferentemente da ortodoxia convencional, que se preocupa apenas com a inflação e o equilíbrio fiscal, o novo desenvolvimentismo está preocupado também com o equilíbrio do balanço de pagamentos e com um razoável pleno emprego. A ortodoxia convencional quer independência para o Banco Central, que deve ter como única responsabilidade o controle da inflação, enquanto o novo desenvolvimentismo considera a atual autonomia já suficiente e quer que a lei defina que o Banco Central, como seu congênere americano, tenha duas responsabilidades, e não uma: além do controle da inflação, a manutenção do emprego.

Em relação à inflação, a ortodoxia convencional quer combatê-la com o uso de âncoras, enquanto o novo desenvolvimentismo as rejeita, ao afirmar que elas apenas aprofundam as distorções da economia. A ortodoxia convencional usa o aumento da taxa de juros para enfrentar qualquer aceleração da inflação, o novo desenvolvimentismo afirma que isso só é legítimo se essa aceleração se dever a excesso de demanda, e não a pressões de custos causadas por depreciação cambial.

Mas, em relação aos juros, há uma diferença mais profunda. O novo desenvolvimentismo considera o nível da taxa básica (Selic) real -que não tem descido abaixo de 9% ao ano- uma aberração, já que países de igual classificação de risco adotam taxas muitíssimo menores, enquanto a ortodoxia convencional considera essa a "taxa natural de juros".

Enquanto o novo desenvolvimentismo afirma que essa é uma distorção histórica da forma de financiamento da dívida pública brasileira, cujo custo fiscal é insuportável, precisando ser enfrentada com o aprofundamento do ajuste fiscal, a desindexação da Selic à própria Selic e a criação de um mercado a termo para essa dívida, ao mesmo tempo em que se promove a baixa firme dessa taxa do nível em que se encontra para um nível civilizado, a ortodoxia convencional pretende, primeiro, realizar reformas que reduzam a "incerteza jurisdicional".

Em termos de política de desenvolvimento, enquanto a ortodoxia convencional pretende que o principal obstáculo do país é microeconômico e se resolve com reformas, o novo desenvolvimentismo afirma que o problema principal está no desequilíbrio macroeconômico, expresso na dívida pública, na taxa Selic e na dívida externa.

Enquanto a ortodoxia convencional quer desenvolver o país com o recurso à poupança externa, o novo desenvolvimentismo critica a estratégia de crescimento com poupança externa, ao afirmar que o déficit crônico em conta corrente que ela implica leva à fragilidade financeira internacional e a crises de balanço de pagamentos. Além disso, se não existirem grandes oportunidades de investimento (coisa que só ocorre em momentos raros), déficits em conta corrente resultam em consumo, e não em investimento.

Déficit em conta corrente ou poupança externa significa câmbio apreciado, que importa em salário real artificialmente elevado (dada a baixa relativa dos preços das commodities e produtos com componente importado), levando ao aumento do consumo e à queda da poupança interna. Dessa forma, o aumento da poupança externa é compensado pela redução da interna, transformada em consumo, e o país apenas se endivida.

A partir dessa crítica, o novo desenvolvimento afirma que o desenvolvimento se financia com os próprios recursos de cada nação. O capital se faz em casa. A história é insistente em demonstrar esse fato, que, recentemente, teve mais uma comprovação. Em 1998, absorvíamos 5% do PIB de poupança externa e nossa taxa de investimento era de 19%; neste ano de 2004, a taxa permanece no mesmo nível, mas a poupança tornou-se negativa graças ao superávit em conta corrente. Graças à depreciação cambial, os brasileiros estão poupando hoje muito mais do que antes e estão crescendo com despoupança externa, como fazem os países asiáticos.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia e de teoria política da Fundação Getúlio Vargas. Foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia.

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