15 de dezembro de 2004

O Mercosul e o futuro

O Mercosul é obra em construção. É o projeto de integração mais ambicioso entre países em desenvolvimento

Celso Amorim

Folha de São Paulo

Estamos comemorando dez anos da Cúpula de Ouro Preto, que marcou momento de particular afirmação para o Mercosul: a aprovação da Tarifa Externa Comum; a constituição da União Aduaneira e a definição da estrutura institucional. O Mercosul ganhava voz única para negociar acordos com terceiros países.

Dez anos depois, seus integrantes voltam a Ouro Preto, acompanhados dos membros associados Bolívia, Chile e Peru. Nessa ocasião será oficializado o ingresso de Venezuela, Equador e Colômbia como Estados associados.

Nos últimos anos, a União Aduaneira tem participado em bloco de negociações importantes, como as da Alca e as com a União Européia. Estão sendo finalizados os acordos com a Índia e a União Aduaneira da África Austral (Sacu), que inclui a República da África do Sul. Estão em curso negociações com parceiros tão diversos quanto o México, o Sistema de Integração Centro-Americano (Sica), o Egito e a Comunidade Caribenha (Caricom), passando por Marrocos e por membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A unidade de nossos países potencializa nosso poder de barganha e maximiza as possibilidades de ganho.

A despeito das dificuldades macroeconômicas enfrentadas pelos Estados-parte em anos recentes, a evolução do comércio apresenta hoje resultados amplamente positivos. As exportações brasileiras para os países do bloco, que somavam US$ 1,3 bilhão em 1990, deverão superar US$ 8 bilhões em 2004, num crescimento de mais de 500%. Mais importante: as exportações de produtos industrializados representam 93% do total exportado para o Mercosul. Para a indústria química brasileira, o Mercosul é o principal destino de suas exportações, com US$ 1,35 bilhão neste ano, 27% do total exportado. A indústria de máquinas e equipamentos exportou, até outubro de 2004, US$ 800 milhões.

O Mercosul tem contribuído decisivamente para a consolidação da parceria estratégica entre o Brasil e a Argentina. As exportações para o nosso vizinho alcançarão em 2004 recorde histórico, podendo chegar a US$ 7,3 bilhões. Vendemos à Argentina, no ano em curso, cerca de 28% do total de nossas exportações de veículos e 34% do total de celulares. Empresas brasileiras têm realizado investimentos importantes naquele país. A Petrobras é, hoje, a segunda maior empresa da Argentina em total de ativos, que se elevam a mais de US$ 5 bilhões.

Celebraremos o aniversário da Cúpula de Ouro Preto com os olhos postos no futuro. Desde a posse do presidente Lula, temos dado saltos qualitativos no processo de integração regional. Em Ouro Preto, os presidentes do Mercosul tratarão de temas como a criação do Parlamento do Mercosul e o estabelecimento de um fundo para o financiamento de projetos de convergência estrutural.

Estamos avançando na negociação de serviços -inclusive em setores, como o financeiro e o audiovisual, que permaneciam à margem dos esforços de integração. Em compras governamentais, estaremos regulamentando o protocolo que confere tratamento nacional às empresas do Mercosul em muitos setores.

Como em todo processo de integração, há questões que precisam ser equacionadas. Os próprios avanços geram situações que devem ser administradas dentro da ótica de que a solução para nossos problemas é "mais Mercosul". Por isso incentivamos, junto ao setor privado, a formação de joint ventures e a integração das cadeias produtivas, de modo a aumentar nosso grau de competitividade para conquistar mercados em terceiros países. Buscamos encontrar mecanismos de financiamento que criem condições para o estabelecimento de políticas industriais comuns. Um esforço especial tem sido feito para acomodar as economias menores da União Aduaneira dentro de horizontes temporais claramente definidos.

O Mercosul é obra em construção. É o projeto de integração mais ambicioso entre países em desenvolvimento. Não é e não poderia ser um processo linear.

O que chama a atenção nesta caminhada não é tanto a existência de dificuldades, mas a criatividade demonstrada para enfrentá-las. Na realidade, o Mercosul demonstrou ter flexibilidade para se adaptar e superar crises -muitas delas geradas de fora- que afetaram as vulneráveis economias da região e, ainda assim, seguir avançando.

Chegar a Ouro Preto dez anos depois, com os quatro integrantes originais acrescidos de seis Estados associados, dá-nos confiança de que estamos reforçando o Mercosul e delineando a Comunidade Sul-Americana de Nações. São ações que podem e devem, concretamente, contribuir para a melhoria do nível de vida de nossos povos, objetivo central da integração que almejamos.

Sobre o autor

Celso Luiz Nunes Amorim, 62, diplomata, é o Ministro das Relações Exteriores. Ocupou a mesma pasta no governo Itamar Franco.

21 de novembro de 2004

O maior economista foi um servidor da República

Francisco de Oliveira

Celso Furtado nos deixou na manhã de ontem, sábado, 20 de novembro. A República ficou mais escura, menor, e nós todos órfãos, humilhados e ofendidos. Privados de sua lucidez incansável, de sua visão ampla e generosa, de sua fidelidade republicana e democrática sem paralelo na vida pública brasileira.

Furtado não foi apenas o maior economista brasileiro e latino-americano de todos os tempos e um dos grandes cientistas sociais de nosso tempo. Para além disso, foi um servidor da República, um servidor do povo brasileiro, sem alardes, sem farisaísmos, sem declarações grandiloqüentes. Se sua obra teórica faz parte da própria construção nacional, sem o que não nos reconhecemos, sua obra de servidor público, talvez com menor visibilidade, é um patrimônio da nação, que convida a nos debruçarmos sobre sua figura austera, numa república plagada de vícios patrimonialistas.

Nos últimos 50 anos, a discussão sobre o Brasil, seus problemas, suas potencialidades, seus impasses e dilemas passou necessariamente pela obra de Furtado, desde que empreendeu sua cruzada oferecendo uma alternativa de interpretação e de ação contra os liberais-autoritários de sua geração e, mais recentemente, contra os novos e falsos liberais. No fundo, os liberais brasileiros foram e continuam sendo disfarces de autoritários.

Nos anos 50, forneceu as bases para um programa nacional de desenvolvimento econômico, que plasmou o Plano de Metas de Kubistchek com seu trabalho à frente do Grupo Mixto BNDE-Cepal, de que foi o arquiteto e líder insubstituível.

Ainda na mesma década, qual novo Quixote, montado no Rocinante da Razão, enfrentou os "industriais da seca" e o latifúndio, tentando trazer o Nordeste para o século 20, engatando-o no desenvolvimento nacional, que então mostrava capacidade de resgatar todas nossas pesadas dívidas. Sua obra na Sudene é de uma revolução federativa de que a ciência social no Brasil ainda não avaliou a profundidade.

Sua dignidade, que prescindia, e mais, se horrorizava com os procedimentos da auto-heroicização, é tão contundente frente aos padrões predominantes no Brasil que mal se pode acreditar.

Testemunhei de perto, nos fecundos cinco anos em que trabalhei sob sua liderança na Sudene, desde o gesto aparentemente insignificante de partilhar o mesmo quarto num hotel na Bahia, para não estimular gastos perdulários com o dinheiro público, até sua firme e decidida reprimenda ao golpista general Justino Alves Bastos.

Na tensa calma da tarde de 1º de abril, aquele obtuso soldado comandante do 4º Exército se queixou de que Furtado não havia colaborado no transe da tomada do poder pelos militares.

Ele respondeu sem bravatas que era um servidor público, e que o Exército não solicitasse sua colaboração, logo ele que foi oficial voluntário da FEB, para um golpe de Estado que havia destituído o governo legitimamente eleito, que repugnava às suas convicções republicanas.

Dali, seu nome saiu para a primeira e nefanda lista de cassações de direitos políticos.

Poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra de Furtado passou por essa dura prova da História. Contra ou a favor, ela exige que se tome posição a seu respeito.

Na sua hora final, que permanecerá indecifrável para todo o sempre, o paraibano de Pombal talvez tenha pensado com amargura no destino da nação à qual dedicou o melhor de suas forças e de seu talento. Nós, seus discípulos, continuaremos com nossa teimosia a dizer que nada foi em vão, que suas idéias continuarão a fecundar a inteligência brasileira e a ajudar nosso povo a conquistar os seus direitos. O futuro não será um amontoado de ruínas.

Sobre o autor

Francisco de Oliveira é professor titular aposentado de sociologia do Departamento de Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), da USP, e coordenador científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da faculdade

6 de novembro de 2004

O imperialismo americano, a Europa e o Oriente Médio

Samir Amin

Monthly Review Volume 56, Number 6 (November 2004)

Tradução / A análise que aqui se propõe sobre o papel da Europa e do Oriente Médio na estratégia imperialista global dos Estados Unidos baseia-se numa visão histórica geral da expansão capitalista que já desenvolvi noutro local.[1] Dentro dessa perspectiva, considera-se que a natureza do capitalismo tem sido sempre, desde o seu início, um sistema polarizador, ou seja, imperialista. Esta polarização - uma estrutura concorrente de centros dominantes e de periferias dominadas, e a sua multiplicação que se aprofunda de estágio para estágio - é própria do processo de acumulação do capital operando a uma escala global.

De acordo com esta teoria da expansão global do capitalismo, as mudanças qualitativas nos sistemas de acumulação, duma fase da sua história para outra, configuram as sucessivas formas de polarização assimétrica centros/periferias, quer dizer, as formas do verdadeiro imperialismo. O sistema mundial contemporâneo manter-se-á assim imperialista (polarizador) durante o próximo futuro, enquanto a sua lógica fundamental se mantiver dominada pelas relações de produção capitalista. Esta teoria associa o imperialismo ao processo de acumulação de capital a uma escala mundial, o que eu considero constituir uma realidade única na qual as diversas dimensões de facto não podem ser separadas. Diverge pois quer da versão popularizada da teoria leninista "o imperialismo, a fase mais alta do capitalismo" (como se as fases iniciais da expansão global do capitalismo não fossem polarizadoras), quer das teorias pós-modernas contemporâneas que descrevem a nova globalização como sendo "pós-imperialista".

1. O conflito permanente entre os imperialismo e o imperialismo coletivo 

Na sua evolução globalizada, o imperialismo foi sempre conjugado no plural, desde o seu início (no século XVI) até 1945. O conflito permanente e frequentemente violento dos imperialismos ocupou um espaço decisivo na transformação do mundo enquanto luta de classes, através da qual se exprimem as contradições fundamentais do capitalismo. Para além disso, as disputas e conflitos sociais no seio dos imperialismos estão intimamente interligadas, e é esta interligação que determina o verdadeiro curso do capitalismo existente. A análise que proponho quanto a esta tese é muitíssimo diferente da "sucessão de hegemonias."[2]

A Segunda Guerra Mundial terminou com uma importante transformação nas formas do imperialismo, substituindo a multiplicidade de imperialismos em permanente conflito por um imperialismo colectivo. Este imperialismo colectivo representa o conjunto dos centros do sistema capitalista mundial ou, para ser mais simples, uma tríade: os Estados Unidos e a sua província externa canadiana, a Europa ocidental e central, e o Japão. Esta nova forma de expansão imperialista passou por várias fases de desenvolvimento, mas esteve sempre presente desde 1945. O papel hegemónico dos Estados Unidos tem que ser situado dentro desta perspectiva, e cada fase desta hegemonia tem que ser especificada nas suas relações com o novo imperialismo colectivo. Estas questões levantam problemas, que são exactamente aqueles que eu queria aqui destacar.

Os Estados Unidos beneficiaram imenso com a Segunda Guerra Mundial, que arruinou os seus principais contendores – a Europa, a União Soviética, a China e o Japão. Ficaram assim em condições de exercer a sua hegemonia económica, tanto mais que metade da produção industrial global estava concentrada nos Estados Unidos, em especial as tecnologias que iriam dar forma ao desenvolvimento da segunda metade do século. Para além disso, só eles possuíam armas nucleares – a nova arma total.

Esta dupla vantagem contudo foi-se desvanecendo num período relativamente curto (duas décadas) face a duas recuperações, uma económica na Europa e no Japão capitalistas e outra militar na União Soviética. Não podemos esquecer que este recuo relativo do poder americano provocou uma viva especulação sobre o declínio americano, que chegou mesmo a pôr a hipótese do aparecimento de possíveis hegemonias alternativas (incluindo a Europa, o Japão e, posteriormente, a China).

Foi nesta época que surgiu o gaullismo. Charles de Gaulle considerava que, a partir de 1945, o objectivo dos Estados Unidos era controlar todo o Velho Mundo (a Eurásia). Washington tinha-se colocado numa posição estratégica para dividir a Europa – a qual, na perspectiva de de Gaulle, se estendia desde o Atlântico até aos Urais incluindo a “Rússia soviética” – agitando o espectro da agressão de Moscovo, um espectro em que de Gaulle nunca acreditou. Esta análise era realista, mas de Gaulle encontrou-se praticamente sozinho. Contra o atlantismo promovido por Washington ele previa uma estratégia contrária baseada na reconciliação franco-germânica e na construção de uma Europa não americana, excluindo cautelosamente a Inglaterra que ele considerava, com toda a razão, ser o cavalo de Tróia do atlantismo. A Europa poderia depois abrir caminho à reconciliação com a “Rússia soviética”. A reconciliação e coligação dos três maiores povos europeus – franceses, alemães e russos – poria um fim definitivo ao projecto americano de dominação do mundo. Podemos então resumir em duas alternativas o conflito interno específico para o projecto europeu: uma Europa atlântica, na qual a Europa é um apêndice do projecto americano, ou uma Europa não atlântica (que integra a Rússia). Este conflito ainda não está resolvido. Mas os desenvolvimentos posteriores – o fim do gaulismo, a entrada da Inglaterra para a União Europeia, a expansão da Europa para leste, o colapso soviético – combinaram-se para invalidar o projecto europeu dada a sua dupla diluição numa globalização económica neo-liberal e num alinhamento político-militar com Washington. Mais ainda, esta evolução reforça a intensidade do carácter colectivo do imperialismo da tríade.

2. O projecto da classe dominante dos Estados Unidos

O actual projecto americano, arrogante, demente e mesmo criminoso nas suas implicações, não saltou da cabeça de George W. Bush para ser levado à prática por um grupo de extrema direita que se apoderou do poder através de eleições duvidosas. É um projecto que a classe dominante americana alimentou sem cessar desde 1945, mesmo apesar de a sua implementação ter passado por altos e baixos e nem sempre ter podido ser conseguida com a consistência e a violência demonstradas desde a desintegração da União Soviética.

O projecto atribuiu sempre um papel fundamental à sua dimensão militar. Os Estados Unidos cedo planearam uma estratégia militar global, dividindo o planeta em regiões e atribuindo a responsabilidade do controlo de cada uma delas a um Comando Militar americano. O objectivo era não só cercar a União Soviética (e a China), mas também assegurar a posição de Washington como administrador de última instância em todo o mundo. Por outras palavras, alargava a doutrina Monroe a todo o planeta, o que deu de facto aos Estados Unidos o direito exclusivo de gerir todo o globo de acordo com os seus interesses nacionais, conforme definido.

Este projecto implica que a soberania dos interesses nacionais dos Estados Unidos deve ser colocada acima de todos os outros princípios que controlam o legítimo comportamento político, e gera uma desconfiança sistemática para com todos os direitos supranacionais. É certo que os imperialismos do passado não se comportaram de modo diferente, e aqueles que se esforçam por minimizar e desculpar as responsabilidades – e o comportamento criminoso – dos actuais governantes dos Estados Unidos bem podem utilizar este argumento e encontram facilmente antecedentes históricos.

Mas era isso precisamente o que gostaríamos de ter visto alterar-se na história que começa após 1945. Foi por causa dos horrores da Segunda Guerra Mundial provocados pelo conflito dos imperialismos e pelo desprezo das potências fascistas pela lei internacional, que foram fundadas as Nações Unidas baseadas num princípio novo que proclamava o carácter ilegítimo do direito soberano de desencadear a guerra, até aí estabelecido. Os Estados Unidos, há que dizê-lo, não só se identificaram com este novo princípio, como estiveram entre as primeiras potências a adoptá-lo.

Esta boa iniciativa – apoiada na altura pelos povos de todo o mundo – representava de facto um salto qualitativo e abria caminho ao progresso da civilização, mas nunca convenceu a classe dominante dos Estados Unidos. As autoridades de Washington nunca se sentiram à vontade com o conceito da Nações Unidas, e hoje proclamam de forma brutal aquilo que foram forçados a esconder até agora: que nem sequer aceitam o conceito de uma lei internacional acima do que eles consideram ser as exigências da defesa do seu próprio interesse nacional. Não podemos aceitar desculpas para este regresso a uma concepção desenvolvida pelos nazis, que levou à destruição da Liga das Nações. A defesa da lei internacional, advogada com talento e elegância pelo ministro dos Estrangeiros francês Dominique de Villepin no Conselho de Segurança, não é uma olhadela nostálgica para o passado mas, pelo contrário, é um aviso para o que pode vir a ser o futuro. Nessa ocasião foram os Estados Unidos que defenderam um passado considerado definitivamente obsoleto por toda a opinião decente. A implementação do projecto americano passou necessariamente por diversas fases, modelado pelas específicas relações de poder que as definiam.

Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial a liderança americana foi aceite e até mesmo solicitada pela burguesia da Europa e do Japão. Pois, se bem que a ameaça de uma invasão soviética apenas pudesse convencer os fracos de espírito, a sua mera invocação prestava bons serviços tanto aos da direita como aos sociais democratas acossados pelos seus primos adversários comunistas. Poder-se-ia então pensar que o carácter colectivo do novo imperialismo era devido apenas a este factor político e que, quando o seu atraso em relação aos Estados Unidos fosse ultrapassado, a Europa e o Japão procurariam ver-se livres da supervisão incómoda e doravante supérflua de Washington. Isso não aconteceu. Porquê?

A minha explicação baseia-se no recrudescimento dos movimentos de libertação nacional na Ásia e em África – durante as duas décadas que se seguiram à Conferência de Bandung de 1955 que deu origem ao movimento das nações não alinhadas – e ao apoio que tiveram da União Soviética e da China (cada um deles à sua maneira). O imperialismo foi então forçado a conformar-se, não apenas aceitando a coexistência pacífica com uma enorme área que escapava muito ao seu controlo (o mundo socialista) mas também negociando as condições de participação dos países asiáticos e africanos no sistema imperialista mundial. O alinhamento colectivo da tríade sob a liderança americana parecia útil para gerir as relações Norte-Sul da época. Foi assim que as nações não alinhadas se confrontaram com um bloco ocidental praticamente indivisível.

O colapso da União Soviética e a sufocação dos regimes nacionalistas populistas nascidos dos movimentos nacionais de libertação permitiram que o projecto imperial dos Estados Unidos se desenvolvesse com extremo vigor no Médio Oriente, na África e na América Latina. Na verdade, o projecto mantém-se ao serviço do imperialismo colectivo, pelo menos até um certo ponto (que tentarei explicitar mais tarde). A expressão desse projecto acabou por ser o governo económico do mundo na base dos princípios do neoliberalismo, implementado pelo Grupo dos 7 e pelas instituições ao seu serviço (a OMC, o Banco Mundial e o FMI), e os planos de reajustamento estrutural passaram a vigorar no terceiro mundo asfixiado. Mesmo a nível político, é evidente que inicialmente os europeus e os japoneses alinharam com o projecto americano. Aceitaram a marginalização das Nações Unidas em benefício da NATO na época da Guerra do Golfo em 1991 e nas guerras na Jugoslávia e na Ásia Central em 2002. Esta fase ainda não terminou, embora a guerra em 2003 no Iraque tenha revelado algumas fendas na muralha.

A classe dominante dos Estados Unidos proclama abertamente que não tolerará a reconstituição de qualquer poder económico ou militar capaz de pôr em causa o seu monopólio de domínio sobre o planeta e, para atingir este objectivo, arroga-se o direito de desencadear guerras preventivas. Neste contexto estão debaixo de mira três principais possíveis adversários.

Em primeiro lugar está a Rússia, cujo desmembramento, a seguir ao da União Soviética, constitui de agora em diante um objectivo estratégico principal para os Estados Unidos. A classe dominante russa parece que ainda não percebeu bem isto. Parece convencida de que, depois de ter perdido a guerra, poderia ganhar a paz, como aconteceu com a Alemanha e o Japão. Esquece-se que Washington necessitava da recuperação destes dois anteriores adversários precisamente para enfrentar a ameaça soviética. A situação é agora diferente: os Estados Unidos já não têm um competidor perigoso. A sua primeira opção é portanto destruir o moribundo adversário russo duma forma permanente e total. Será que Putin percebe isto e irá iniciar o processo de tirar as ilusões à classe dominante russa? Em segundo lugar está a China, cujo crescimento e sucesso económico preocupa os Estados Unidos. O objectivo estratégico americano é desmembrar este enorme país.

A Europa vem em terceiro lugar nesta perspectiva global dos novos senhores do mundo. Mas aqui os governantes norte americanos não parecem tão inquietos, pelo menos até agora. O incondicional atlantismo de alguns (da Inglaterra, assim como dos novos poderes servis de leste), o lodaçal do projecto europeu (um assunto a que voltarei), e os interesses convergentes do capital dominante do imperialismo colectivo da tríade, tudo contribui para enfraquecer o projecto europeu. Os atlantistas constituem a ala europeia do projecto americano depois que a diplomacia de Washington conseguiu manter a Alemanha submissa. Esta aliança parece que foi mesmo reforçada com a reunificação e conquista da Europa de Leste. A Alemanha foi encorajada a repensar a sua tradição de expansão para leste e, em resultado disso, assistimos ao papel desempenhado por Berlim no desmembramento da Jugoslávia, ao apressadamente reconhecer a independência dos eslovenos e dos croatas. Em troca, a Alemanha aceitou navegar na senda de Washington. Há algumas mudanças em curso? A classe política alemã mostra-se hesitante e pode estar dividida quanto às suas escolhas estratégicas. A alternativa ao alinhamento atlantista é um reforço do antigo eixo Paris-Berlim-Moscovo, o qual se tornaria assim o mais sólido pilar dum sistema europeu independente de Washington.

Podemos agora reconsiderar a nossa principal questão, isto é, a natureza e a força potencial do imperialismo colectivo da tríade, e as contradições e fraquezas da liderança dos Estados Unidos.

3. O imperialismo coletivo da Tríade e a hegemonia dos Estados Unidos: sua articulação e contradições

O mundo dos nossos dias é unipolar do ponto de vista militar. No entanto, parece terem surgido algumas fissuras entre os Estados Unidos e alguns dos países Europeus que se identificam, pelo menos em teoria, com a gestão política de um sistema global unificado pelos princípios do liberalismo. Serão estas fissuras apenas temporárias e limitadas, ou prenunciam algumas mudanças duradouras? Será necessário analisar em toda a sua complexidade a lógica da nova fase do imperialismo colectivo (as relações Norte-Sul em linguagem corrente) e os objectivos específicos do projecto americano. Dentro deste espírito irei abordar sucinta e sucessivamente cinco conjuntos de questões:

Sobre a evolução do novo imperialismo colectivo

A formação do novo imperialismo colectivo tem a sua origem na transformação das condições de concorrência. Há apenas algumas décadas atrás, as grandes empresas travavam as suas batalhas competitivas essencialmente nos mercados nacionais, quer no dos Estados Unidos (o maior mercado nacional do mundo) quer nos dos estados europeus (apesar do seu tamanho reduzido que os inferiorizava em relação ao dos Estados Unidos). Os vencedores das competições nacionais adquiriam condições para ter êxito no mercado mundial. Nos nossos dias, para se atingir a supremacia no mercado, numa primeira fase da competição, é necessário um mercado com uma dimensão de 500 a 600 milhões de potenciais compradores. Portanto, a batalha tem que ser travada directamente no mercado global e tem que ser ganha neste terreno. E aqueles que dominarem este mercado poderão depois afirmar o seu poder nos respectivos terrenos nacionais. É através da internacionalização que as grandes firmas estabelecem a base mais importante da sua actividade. Por outras palavras, no duo nacional/global, os termos de causalidade estão invertidos: anteriormente o poder nacional comandava a presença global e hoje passa-se o contrário. Por isso, as firmas multinacionais, qualquer que seja a sua nacionalidade, têm interesses comuns na gestão do mercado mundial. Estes interesses sobrepõem-se aos diversos conflitos comerciais, que definem todas as formas da competição própria do capitalismo, independentemente de quais elas sejam.

A solidariedade dos segmentos dominantes do capital multinacional de todos os parceiros na tríade é real, e está expressa na sua adesão ao neoliberalismo globalizado. Nesta perspectiva, os Estados Unidos são vistos como os defensores (se necessário pelas armas) destes interesses comuns. Apesar disso, Washington não faz tenção de partilhar equitativamente os benefícios da sua liderança. Os Estados Unidos procuram, pelo contrário, reduzir a vassalos os seus aliados e por isso apenas dispostos a fazer concessões menores aos seus menores aliados na tríade. Será que este conflito de interesses no seio do capital dominante levará à ruptura da aliança atlântica? Não é impossível, mas é improvável.

Sobre a posição dos Estados Unidos na economia mundial

É senso comum que o poder militar americano constitui apenas a ponta do icebergue, e que a superioridade do país se estende também a todas as áreas, em especial à económica, mas também à política e à cultural. Daí que seja impossível evitar a submissão à hegemonia que pretendem.

Eu afirmo, pelo contrário, que, dentro do sistema do imperialismo colectivo, os Estados Unidos não têm uma superioridade económica decisiva. O sistema de produção americano está longe de ser o mais eficiente do mundo. Na verdade, muito poucos dos seus sectores teriam a certeza de bater a concorrência num mercado verdadeiramente livre como o sonhado pelos economistas liberais. O défice comercial americano, que aumenta de ano para ano, passou de 100 biliões de dólares em 1989 para 500 biliões em 2002. Mais ainda, este défice atingiu praticamente todas as áreas de produção. Mesmo os excedentes de que os Estados Unidos beneficiavam outrora na área dos artigos de alta tecnologia, os quais atingiam os 35 biliões em 1990, transformaram-se agora em défice. A competição entre os mísseis Ariane e os da NASA, entre os Airbus e os Boeings, comprova a vulnerabilidade da superioridade americana. Os Estados Unidos enfrentam a concorrência europeia e japonesa nos produtos de alta tecnologia, a chinesa, a coreana e a de outros países industrializados da Ásia e da América Latina nos produtos de fabrico comum, e a europeia e a do sul da América Latina na agricultura. Os Estados Unidos provavelmente não seriam capazes de ganhar se não fosse o seu recurso a meios extra-económicos, com a violação dos princípios do liberalismo imposto aos seus concorrentes!

O que é verdade, é que os Estados Unidos beneficiam apenas de uma superioridade comparativa no sector do armamento, precisamente porque este sector opera largamente fora das regras do mercado e beneficia de apoio estatal. Esta superioridade arrasta provavelmente alguns benefícios para a esfera civil (o exemplo mais conhecido é a Internet), mas também provoca graves distorções que prejudicam muitos sectores de produção.

A economia norte americana vive duma forma parasita em detrimento dos seus parceiros no sistema mundial. “Os Estados Unidos dependem em 10 por cento do consumo industrial de bens cujos custos de importação não estão cobertos pelas exportações dos seus próprios produtos”, como lembra Emmanuel Todd. [3] O mundo produz e os Estados Unidos (que praticamente não fazem poupança nacional) consomem. A superioridade dos Estados Unidos é a de um predador cujo défice é coberto por empréstimos dos outros, quer sejam consentidos quer sejam obtidos à força. Washington tem vindo a utilizar três formas principais de compensar esta deficiência: violações unilaterais repetidas dos princípios liberais; exportação de armamento; e procura de maiores lucros a partir do petróleo (o que pressupõe um controlo sistemático sobre os produtores – uma das verdadeiras razões para as guerras na Ásia Central e no Iraque). O que é facto é que parte essencial do défice americano é coberto pelas contribuições de capital da Europa, Japão e do Sul (dos países produtores de petróleo e das classes compradoras de todos os países do terceiro mundo, incluindo os mais pobres), às quais se juntam as somas adicionais que entram por conta da dívida que foi imposta em quase todos os países na periferia do sistema mundial.

O crescimento nos anos Clinton, apregoado como resultado de um liberalismo a que a Europa em vão tentava resistir, foi na verdade uma enorme mistificação e, de qualquer modo, não pode ser generalizado, porquanto estava dependente das transferências de capital que levavam à estagnação das economias parceiras. Em todos os sectores do verdadeiro sistema de produção, o crescimento americano não foi melhor do que o da Europa. O milagre americano foi alimentado exclusivamente por um crescimento na despesa produzido pelas crescentes desigualdades sociais (serviços financeiros e privados, legiões de advogados, e forças policiais privadas). Analisando os factos, torna-se claro que o liberalismo de Clinton preparou as condições para a onda reaccionária e posteriormente para a vitória de Bush Filho

As causas do enfraquecimento do sistema de produção americano são complexas. O que é certo é que não são conjunturais, e não podem ser corrigidas pela adopção de, por exemplo, uma taxa de câmbio correcta ou a instauração de um equilíbrio mais positivo entre salários e produtividade. Elas são estruturais. A mediocridade dos sistemas gerais de educação e de formação, e um preconceito profundamente enraizado sistematicamente em prol dos serviços privados em detrimento dos públicos, estão entre as principais razões da profunda crise por que a sociedade americana está a passar.

Devíamos, então, ficar surpreendidos pelo facto de os europeus, longe de tirarem as conclusões que se impõem da observação das deficiências das forças económicas americanas, estarem a imitá-los activamente. Também aqui o vírus liberal não explica tudo, mesmo quando desempenha algumas funções úteis ao sistema tal como a de paralisar a esquerda. A privatização desenfreada e o desmantelamento dos serviços públicos apenas terão como resultado a redução da superioridade comparativa de que goza ainda “A Velha Europa” (como Bush lhe chama). No entanto, quaisquer que sejam os danos que estas medidas venham a causar a longo prazo, elas proporcionam ao capital dominante, que vive a curto prazo, a possibilidade de obter lucros adicionais.

Sobre os objectivos específicos do projecto americano

A estratégia de hegemonia dos Estados Unidos insere-se no quadro do novo imperialismo colectivo.

Os economistas convencionais não têm as ferramentas analíticas necessárias para entender a importância suprema destes objectivos. Ouvimo-los repetir até à exaustão que na nova economia as matérias-primas vindas do terceiro mundo estão condenadas a perder a sua importância e por isso o terceiro mundo está a tornar-se cada vez mais marginal no sistema mundial. Em contradição com este discurso ingénuo e oco temos o Mein Kampfda administração Bush, [4] e temos que reconhecer que os Estados Unidos têm lutado esforçadamente pelo direito de se apropriarem de todos os recursos naturais do planeta a fim de satisfazer as suas exigências de consumo. A corrida pelas matérias-primas (primeiro que tudo o petróleo, mas também outras – principalmente a água) já se iniciou em toda a sua virulência. Tanto mais que estes recursos estão em vias de se tornarem escassos não só por causa do desperdício nocivo inerente ao consumismo ocidental, mas também por causa do desenvolvimento da nova industrialização das periferias.

Acresce que um grande número de países do Sul estão em vias de se tornar produtores industriais de importância crescente tanto a nível dos seus mercados internos como quanto ao seu papel no mercado mundial. Enquanto importadores de tecnologias, de capital, e também enquanto concorrentes na exportação, estão em vias de perturbar o equilíbrio económico global com um peso cada vez maior. E não se trata apenas de alguns países da Ásia Ocidental (como a Coreia), mas da imensa China e, futuramente, da Índia e dos grandes países da América Latina. No entanto, longe de ser um factor de estabilização, a aceleração da expansão capitalista no Sul apenas pode vir a provocar violentos conflitos – internos e internacionais. E a razão é que esta expansão não consegue absorver, nas actuais condições, a enorme reserva de força de trabalho que está concentrada na periferia. De facto, as periferias do sistema continuam a ser uma zona de tempestades. Os centros do sistema capitalista precisam pois de exercer o seu domínio sobre as periferias e submeter a população do mundo à disciplina impiedosa que a satisfação das suas prioridades requer.

Dentro desta perspectiva, a elite governante americana percebeu perfeitamente que, para alcançar a sua hegemonia, tem três vantagens absolutas sobre os competidores europeus e japoneses: o controlo sobre os recursos naturais do globo, o monopólio militar e o peso da cultura anglo-saxónica através da qual se exprime melhor o domínio ideológico do capitalismo. A manipulação sistemática destas três vantagens revela muitos aspectos da política americana: os esforços sistemáticos que Washington exerce pelo controlo militar do Médio Oriente produtor de petróleo; a sua estratégia ofensiva no que diz respeito à China e à Coreia – tirando partido da “crise financeira” desta última; e o seu jogo subtil com vista a divisões sem fim na Europa – mobilizando o seu incondicional aliado inglês ao mesmo tempo que evita qualquer aproximação séria entre a União Europeia e a Rússia. A nível do controlo global sobre os recursos do planeta, os Estados Unidos têm uma superioridade absoluta sobre a Europa e o Japão. Não só porque os Estados Unidos são a única potência militar internacional e, por isso, nenhuma intervenção forte no terceiro mundo pode ser levada a efeito sem eles, mas principalmente porque a Europa (com exclusão da ex-URSS) e o Japão estão por seu lado extremamente dependentes dos recursos essenciais para as suas economias. Por exemplo, a sua dependência no sector da energia, em especial a sua dependência do petróleo em relação ao Golfo Pérsico, irá durar um considerável período de tempo, mesmo que venha a diminuir em termos relativos. Ao assegurarem o controlo desta região, pela força das armas, através da guerra do Iraque, os governantes dos Estados Unidos demonstraram que estavam perfeitamente conscientes da utilidade deste tipo de pressão, que utilizam para refrear os seus competidores (aliados). Não há muito tempo, a União Soviética também já se tinha apercebido desta vulnerabilidade da Europa e do Japão, e algumas intervenções soviéticas no terceiro mundo tiveram o objectivo de demonstrar isso mesmo, a fim de os obrigar a negociar noutras regiões. Tornou-se evidente que as deficiências da Europa e do Japão podiam ser compensadas na sequência duma aproximação séria entre a Europa e a Rússia (a casa comum” de Gorbachev). Esta é a verdadeira razão para que o perigo da construção da Eurásia continue a ser o pesadelo de Washington.

Sobre os conflitos entre os Estados Unidos e os seus parceiros na tríade

Se bem que os parceiros na tríade partilhem interesses comuns na gestão global do imperialismo colectivo implícito no seu relacionamento com o Sul, eles mantêm no entanto um relacionamento muito grave, potencialmente conflituoso.

A superpotência americana mantém-se de pé graças ao fluxo de capital que alimenta o parasitismo da sua economia e da sua sociedade. Esta vulnerabilidade dos Estados Unidos constitui, assim, uma séria ameaça ao projecto de Washington.

A Europa em particular e o resto do mundo em geral terão que escolher uma das duas seguintes opções estratégicas: ou investem o excedente do seu capital (isto é, economias) por forma a garantir o financiamento continuado do défice americano (consumo, investimentos e despesas militares) ou conservam e investem estas economias internamente.

Os economistas convencionais mantêm-se alheados a este problema, e levantam a hipótese absurda de que, como a globalização supostamente aboliu o estado-nação, os factores básicos económicos (poupança e investimento) deixaram de poder ser geridos a nível nacional. Mas embora ridícula, a noção de identidade de poupança e investimento a nível mundial é na verdade útil para justificar e favorecer o financiamento do défice americano por terceiros. Tal absurdo é um excelente exemplo do raciocínio tautológico, em que as conclusões a que se pretende chegar estão implicadas na própria premissa.

Então porque é que se aceita um disparate destes? Sem dúvida porque as equipas de doutos economistas que enquadram quer as classes políticas europeias da direita (assim como as russas e as chinesas) quer as da esquerda eleitoral são elas próprias vítimas da sua alienação económica, a que chamo o vírus liberal. Mais ainda, o raciocínio político do grande capital multinacional exprime-se através desta opção. Este raciocínio é de que as vantagens decorrentes da gestão do sistema globalizado pelos Estados Unidos por conta do imperialismo colectivo são mais importantes do que os seus inconvenientes – é um tributo que tem que ser pago a Washington para garantir a estabilidade. O que está em jogo, afinal de contas, é um tributo e não um investimento com garantia de um bom retorno. Há alguns países classificados de países pobres endividados que estão sempre constrangidos a pagar a sua dívida a qualquer preço. Mas há também um país fortemente endividado que tem os meios para desvalorizar a sua dívida se isso for considerado necessário.

A outra opção para a Europa (e para o resto do mundo) consistiria assim em pôr fim a esta transfusão a favor dos Estados Unidos. As poupanças poderiam então ser utilizadas localmente (na Europa), e a economia poderia ser revitalizada. A transfusão exige que os europeus se submetam, na linguagem equívoca da economia convencional, a “políticas deflacionárias” a que chamo de estagnação – que provoquem um excedente de poupança para exportação. Faz com que a recuperação na Europa – sempre medíocre – fique dependente do apoio artificial dos Estados Unidos. A mobilização deste excedente para emprego local na Europa permitiria uma revitalização não só do consumo (reformulando a dimensão social da gestão económica destruída pelo vírus liberal), como do investimento (em especial nas novas tecnologias e pesquisa), e até mesmo das despesas militares (pondo fim à superioridade dos Estados Unidos nesta área). A escolha desta resposta implicaria um reequilíbrio das relações sociais em prol das classes trabalhadoras. Na Europa esta opção mantém-se possível para o capital. No fundo, o contraste entre os Estados Unidos e a Europa não resulta de interesses opostos dos segmentos dominantes dos seus respectivos capitais. Resulta sobretudo da diferença de culturas políticas.

Sobre aspectos da teoria levantada pelas reflexões anteriores

A cumplicidade e a competição entre os parceiros no imperialismo colectivo pelo controlo do Sul – a pilhagem dos recursos naturais e a sujeição dos seus povos – podem ser analisadas sob diversos pontos de vista. Quanto a isto, farei três observações que me parecem as mais importantes.

Primeira, o sistema mundial contemporâneo que designo por imperialismo colectivo não é menos imperialista que os seus antecessores. Não é um “Império” de natureza “pós-capitalista”.

Segunda, propus uma leitura da história do capitalismo, globalizado logo desde a origem, centrada na distinção entre as diversas fases do imperialismo (de relações centro/periferia).

Terceira, a internacionalização não é sinónimo de unificação do sistema económico através da abertura selvagem dos mercados. Esta última – nas suas formas históricas sucessivas (liberdade de comércio ontem, liberdade das empresas hoje) – constituiu sempre o projecto do capital dominante da época. Na realidade este projecto foi quase sempre forçado a ajustar-se a condições que não eram do interesse da sua lógica interna exclusiva e específica. Portanto, nunca pôde ser implementado a não ser durante alguns breves momentos da história. A “livre troca” proclamada pela principal potência industrial do tempo, a Inglaterra, só funcionou durante duas décadas (1860-1880) e foi seguida por um século (1880-1980) caracterizado pelo conflito entre os países imperialistas e pelo afastamento vincado dos países socialistas e o afastamento mais moderado dos países nacionalistas populistas (na era de Bandung desde 1955 a 1975). O actual momento de reunificação do mercado mundial, instaurado pelo neoliberalismo desde 1980, e alargado a todo o planeta com o colapso soviético, não terá provavelmente um destino melhor. O caos que tem gerado comprova o seu carácter de “permanente utopia do capital”, frase com que tenho descrito este sistema desde 1990.

4. O Médio Oriente no sistema imperialista

O domínio americano da região depois da queda da União Soviética

O Médio Oriente, considerado daqui em diante em conjunto com as áreas fronteiriças do Cáucaso e da Ásia Central ex-soviética, ocupa uma posição de especial importância na geoestratégia e geopolítica do imperialismo e, em especial, do projecto de hegemonia americano. Deve esta posição a três factores: à sua riqueza em petróleo; à sua posição geográfica no coração do Velho Mundo; e ao facto de que constitui o ponto vulnerável do sistema mundial.

O acesso ao petróleo a um preço relativamente barato é vital para a economia da tríade dominante, e os melhores meios de assegurar este acesso garantido consiste em assegurar o controle político da área.

Mas a região também tem importância devido igualmente à sua posição geográfica, estando junto ao centro do Velho Mundo, a igual distância de Paris, Pequim, Singapura e Johannesburg. Nos velhos tempos o controle sobre esta inevitável encruzilhada deu ao Califado o privilégio de retirar os principais benefícios do comércio a longa distância daquela época. Após a Segunda Guerra Mundial a região, localizada ao sul da União Soviética, era crucial para a estratégia militar de sitiar o poder soviético. E a região não perdeu a sua importância com o colapso do adversário soviético. A dominância americana na região reduz a Europa, dependente do Médio Oriente para o seu abastecimento de energia, à vassalagem. Uma vez subjugada a Rússia, a China e a Índia estavam também sujeitas à chantagem energética permanente. O controle sobre o Médio Oriente permitiria portanto uma extensão da Doutrina Monroe ao Velho Mundo, o objectivo do projecto hegemonista dos Estados Unidos. Mas os contínuos e constantes esforços efectuados por Washington desde 1945 para assegurar o controle sobre a região, excluindo os britânicos e franceses ao mesmo tempo, não foram coroados pelo êxito. Pode-se recordar o fracasso da tentativa de anexar a região à NATO através do Pacto de Bagdad, e a queda de um dos seus mais fieis aliados, o Xá do Irão.

A razão é muito simplesmente porque o projecto do populismo nacionalista árabe (e iraniano) entrou logo em conflito com os objectivos do hegemonismo americano. Este projecto árabe tinha esperança de forçar as Grandes Potências a reconhecer a independência do mundo árabe. O movimento não-alinhado formado em 1955 em Bandung pelo conjunto dos movimentos de libertação dos povos asiáticos e africanos era a corrente mais forte naquele tempo. Os soviéticos entenderam isto rapidamente, dando o seu apoio a este projecto eles podiam conter os planos agressivos de Washington.

Este época chegou a um fim, em primeira instância porque o projecto populista-nacionalista do mundo árabe exauriu rapidamente o seu potencial para a transformação, e os poderes nacionalistas afundaram em ditaduras esvaziadas tanto de esperança como de planos para mudança. O vácuo criado por esta deriva abriu o caminho para o Islão político e as autocracias obscurantistas do Golfo Pérsico, os aliados preferidos de Washington. A região tornou-se uma das partes fracas (underbellies) do sistema global, vulnerável à intervenção externa (inclusive militar) que os regimes em vigor, por falta de legitimidade, são incapazes de conter ou desencorajar. A região constituiu, e continua a constituir, uma zona de alta prioridade (como a caribenha) dentro da divisão geomilitar americana do planeta — uma zona onde aos Estados Unidos é concedido o "direito" de intervenção militar. A partir de 1990 eles não se privaram de nada!

Os Estados Unidos operam no Médio Oriente em estreita cooperação com os seus dois fieis e incondicionais aliados — Turquia e Israel. A Europa é mantida longe da região, forçada a aceitar que os Estados Unidos estão a defender os interesses globais vitais da tríade, ou seja, o seu abastecimento de petróleo. Apesar dos sinais de óbvia irritação após a guerra do Iraque, nesta região os europeus de um modo geral continuam a seguir com entusiasmo o rastro de Washington.

O papel de Israel e da resistência palestina

O expansionismo colonial de Israel constitui um desafio real. Israel é o único país do mundo que se recusa a reconhecer as suas fronteiras como definidas (e por esta razão não tem o direito de ser membro das Nações Unidas). Tal como os Estados Unidos no século XIX, reivindica o direito de conquistar novas áreas para a expansão da sua colonização e de tratar o povo que ali tem vivido durante milhares de ano como "peles-vermelhas". Israel é o único país que se declara abertamente não vinculado às resoluções da ONU.

A guerra de 1967, planeada em 1965 em acordo com Washington, buscava vários objectivos: iniciar o colapso dos regimes populistas nacionalistas; romper a sua aliança com a União Soviética; forçá-los a reposicionarem-se nos termos americanos; e abrir novos territórios para a colonização sionista. Nos territórios conquistados em 1967 Israel montou um sistema de apartheid inspirado naquele da África do Sul.

É aqui que os interesses do capital dominante encontram-se com aqueles do sionismo. Um mundo árabe rico, poderoso e modernizado poria em causa o direito do Ocidente de pilhar os seus recursos petrolíferos, os quais são necessários para a continuação do desperdício associado com a acumulação capitalista. Portanto, o poderes políticos nos países da tríade — todos eles servidores fieis do capital transnacional dominante — não querem um mundo árabe modernizado e poderoso.

A aliança entre as potências ocidentais e Israel é funda-se portanto na base sólida dos seus interesses comuns. Esta aliança não é nem o produto dos sentimentos de culpa europeus pelo anti-semitismo e crimes nazis nem o da habilidade do "lobby judaico" em explorar tal sentimento. Se as Potências pensassem que o seu interesse eram prejudicado pelo expansionismo colonial sionista, elas rapidamente encontrariam o meios de ultrapassar o seu complexo de culpa de neutralizar este lobby. Não duvido disto, nem estou entre aqueles que ingenuamente acreditam que a opinião pública nos países democráticos, tal como ela é, imponha as suas visões a estas Potências. Sabemos que a opinião pública também é fabricada. Israel é incapaz de resistir por mais do que uns poucos dias mesmo da moderadas medidas de um bloqueio tal como as potências ocidentais infligem à Juguslávia, Iraque e Cuba. Não seria difícil portanto trazer Israel ao bom senso e criar as condições para uma paz verdadeira, se quisessem, o que não acontece.

Logo após a derrota na guerra de 1967, o presidente do Egipto Anwar Sadat declarou que os Estados Unidos detinham "90 por certo das cartas" (expressão sua) e portanto era necessário romper com a União Soviética e reintegrar o campo ocidental. Ele afirmou que ao fazer isso podia conseguir que Washington exercesse suficiente pressão sobre Israel para levá-lo ao bom senso. Além de tais ideias estratégicas peculiares a Sadat — cuja incoerência tem sido demonstrada pelos acontecimentos — a opinião pública árabe continuou em grande medida incapaz de compreender a dinâmica da expansão global do capitalismo, e menos ainda de identificar as suas verdadeiras contradições e fraquezas. Não se diz ainda que "Algum dia o ocidente entenderá que o seu interesse a longo prazo é manter boas relações com 200 milhões de árabes e preferirá não sacrificar estas relações para o apoio incondicional a Israel?" Implicitamente isto é o mesmo que pensar que o “Ocidente” em causa, que é o centro imperial do capital, prefere um mundo árabe moderno e desenvolvido em vez de querer manter o mundo árabe subjugado, para o que é manifestamente útil o apoio a Israel.

A escolha feita pelos governos árabes – à excepção da Síria e do Líbano – que os levaram nas negociações de Madrid e Oslo (1993) a subscrever o plano americano da então chamada paz definitiva, não podia produzir resultados diferentes daqueles que já produzira: encorajar Israel a consolidar o seu projecto expansionista. Ao rejeitar hoje abertamente as condições do contrato de Oslo, Ariel Sharon demonstra apenas o que já era claro na altura – que não se tratava de uma questão dum projecto para a paz definitiva, mas o começo duma nova fase na expansão colonial sionista.

Israel e os poderes ocidentais que apoiaram este projecto impuseram um estado de guerra permanente na região. Por seu lado, este estado de guerra permanente reforça os regimes autocráticos árabes. Este bloqueio de qualquer possível evolução democrática enfraquece as possibilidades duma revitalização do mundo árabe, e reforça assim a aliança do capital dominante com a estratégia hegemónica dos Estados Unidos. Fecha-se o círculo: a aliança israelo-americana serve perfeitamente os interesses dos dois parceiros.

Parecia inicialmente que o sistema de apartheid instaurado após 1967 seria capaz de atingir os seus objectivos – a gestão da vida quotidiana nos territórios ocupados pelas temíveis elites e pela burguesia comercial, com a aceitação aparente do povo palestino. Do seu longínquo exílio em Tunes, a OLP, afastada da região após a invasão do Líbano pelo exército israelense (1982), parecia já incapaz de questionar a anexação sionista.

A primeira Intifada explodiu em Dezembro de 1987. Expressou o repentino levantamento das classes populares e em especial dos seus segmentos mais pobres confinados aos campos de refugiados. A Intifada cortou o cordão com o poder israelense ao organizar uma desobediência civil sistemática. Israel reagiu com brutalidade, mas não conseguiu restaurar o poder da sua polícia nem voltar a dominar as temíveis classes médias palestinas. Pelo contrário, a Intifada exigia o regresso em massa das forças políticas exiladas, a constituição de novas formas locais de organização, e a adesão das classes médias a uma luta empenhada pela libertação. A Intifada foi desencadeada por adolescentes, chebab al Intifada, inicialmente não enquadrados nas organizações formais da OLP, mas nem por isso hostis a essas organizações. As quatro componentes da OLP (a Fatah, fiel ao seu chefe Yasser Arafat, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, a Frente Popular para a Libertação da Palestina e o Partido Comunista) empenharam-se na Intifada e conquistaram assim a simpatia da maior parte dos chebab. A Irmandade Muçulmana, com um papel secundário por causa da sua inactividade durante os anos precedentes, apesar de algumas acções levadas a efeito pelo Jihad Islâmico (que fez a sua aparição em 1980), refugiou-se numa nova expressão de luta – a Hamas, constituída em 1988.

Quando, ao fim de dois anos, a primeira Intifada deu sinais de esgotamento, e com uma repressão israelense cada vez mais violenta (que incluiu o uso de armas de fogo contra crianças e o fecho da linha verde para bloquear praticamente a única fonte de rendimento dos trabalhadores palestinos), o cenário para as “negociações” estava montado. A iniciativa foi tomada pelos Estados Unidos, conduzindo primeiro às conversações de Madrid (1991) e depois aos assim chamados Acordos de Paz de Oslo (1993). Estes acordos permitiram o regresso da OLP aos territórios ocupados e a sua transformação numa Autoridade palestina.

Os acordos de Oslo idealizaram a transformação dos territórios ocupados em um ou mais bantustões, integrados decisivamente na região israelense. Dentro desta estrutura, a Autoridade palestina era apenas um falso estado – tal como nos bantustões – e na realidade uma mera correia de transmissão da ordem sionista.

Ao voltar para a Palestina, a OLP – agora a Autoridade palestina – conseguiu estabelecer a sua lei, mas não sem algumas ambiguidades. A autoridade absorveu na sua nova estrutura a maior parte dos chebab, que tinham coordenado a Intifada. Alcançou a legitimidade na consulta eleitoral de 1996, na qual os palestinos participaram em massa (80 por cento); uma esmagadora maioria elegeu Arafat presidente da autoridade. A autoridade manteve-se contudo numa posição ambígua: aceitaria desempenhar as funções que Israel, os Estados Unidos e a Europa lhe tinham destinado – a de serem governo dum bantustão, ou alinharia com o povo palestino que recusava submeter-se?

Como o povo palestino rejeitou o projecto bantustão, Israel decidiu denunciar o acordo de Oslo, apesar de ter ditado o seu articulado, e substitui-lo pelo uso puro e simples da violência militar. A provocação aos lugares santos de Jerusalém engendrada pelo criminoso de guerra Sharon em 1998 (mas com a ajuda do governo trabalhista que forneceu os tanques), e a eleição triunfal desse mesmo criminoso para a chefia do governo israelense (com a colaboração do “inocente” Simon Peres com este governo), foram a causa da segunda Intifada que está em curso.

Terá esta sucesso na libertação do povo palestino do jugo ao apartheid sionista? É demasiado cedo para o dizer. De qualquer modo, o povo palestino tem neste momento um verdadeiro movimento de libertação nacional. Tem as suas especificidades próprias. Não segue o modelo do estilo de homogeneidade de partido único (embora a realidade dos estados de partido único seja sempre mais complexa). Tem componentes que conservam a sua própria personalidade, as suas perspectivas quanto ao futuro, incluindo as suas ideologias, os seus militantes e clientelas, mas que parecem saber como cooperar na liderança da luta.

O projecto americano para o Médio Oriente

O desgaste dos regimes do nacionalismo populista e o desaparecimento do apoio soviético deram aos Estados Unidos a oportunidade de implementar o seu projecto para a região.

O controlo do Médio Oriente é de facto uma pedra angular do projecto de Washington para a hegemonia global. Então como é que os Estados Unidos prevêem assegurar esse controlo? Já passou uma década desde que Washington tomou a iniciativa de avançar com o estranho projecto dum “Mercado Comum do Médio Oriente” no qual alguns países do Golfo Pérsico forneciam o capital enquanto outros países árabes forneciam mão de obra barata, ficando reservado a Israel o controlo tecnológico e as funções de intermediário privilegiado e agradecido. Aceite pelos países do Golfo e pelo Egipto, o projecto foi no entanto confrontado com a recusa da Síria, do Iraque e do Irão. Era pois necessário derrubar estes três regimes para que o projecto avançasse. O que já está a ser feito no Iraque.

A questão agora é qual o tipo de regime político que deve ser instaurado por forma a dar sustentação ao projecto. O discurso propagandístico de Washington fala de “democracias.” Na realidade, Washington apressa-se a simplesmente substituir as assim chamadas autocracias obscurantistas islâmicas pelas desgastadas autocracias do populismo fora de moda (mascarando a operação com baboseiras acerca do seu respeito pela especificidade cultural das comunidades). A aliança renovada com o assim chamado Islão politicamente moderado (um que seja capaz de controlar a situação com eficácia bastante para impedir os movimentos terroristas – definindo como “terroristas” as ameaças dirigidas contra, e somente contra, os Estados Unidos) constitui agora o eixo da opção política de Washington. É nesta perspectiva que deverá ser encontrada a reconciliação com a antiquada autocracia do sistema social do Médio Oriente.

Confrontados com o desenvolvimento do projecto americano, os europeus inventaram o seu próprio projecto, baptizado de “Parceria euro-mediterrânica.” Um projecto decisivamente cobarde – atafulhado de conversa incoerente que, claro, também propunha reconciliar os países árabes com Israel. A exclusão dos países do Golfo do diálogo euro-mediterrânico reconhecia que a gestão e o controlo destes últimos países era da exclusiva responsabilidade de Washington.

O agudo contraste entre a audácia destemida do projecto americano e a debilidade do projecto europeu é um bom indicador de que não há lugar para um verdadeiro atlantismo com igualdade de responsabilidade e de associação quanto às decisões que coloquem os Estados Unidos e a Europa em pé de igualdade. Tony Blair, que se instituiu a si próprio advogado da construção de um mundo unipolar, julga que pode justificar esta opção com o argumento de que o atlantismo seria fundado nessa suposta colaboração. A arrogância de Washington revela todos os dias que esta expectativa é ilusória, se é que não foi desde o início uma tentativa de má fé para enganar a opinião europeia. O realismo da declaração de Estaline de que os nazis “não sabiam quando é que deviam parar” aplica-se exactamente aos que controlam os Estados Unidos. Blair invoca expectativas que lembram as depositadas na suposta capacidade de Mussolini para deter Hitler.

Será possível outra opção europeia? Terá já começado a ganhar forma? Será que o discurso de Chirac opondo-se ao mundo “Atlântico unipolar” (que aparentemente ele considera ser de facto sinónimo de hegemonia unilateral dos Estados Unidos) anuncia a construção de um mundo multi-polar e o fim do atlantismo? Para que esta possibilidade se torne uma realidade, é necessário que a Europa se liberte primeiro do pântano em que se debate e se afunda.

5. O projecto europeu: atolado no pântano liberal

Todos os governos dos estados europeus foram conquistados pelas teses do liberalismo. Esta arregimentação dos estados europeus traduz simplesmente o desaparecimento do projecto europeu por um duplo enfraquecimento, o económico (as vantagens da união económica europeia desfizeram-se com a globalização económica) e o político (a autonomia política e militar europeia desapareceu). Neste momento não existe qualquer projecto europeu. Foi substituído por um projecto Atlântico Norte (ou mesmo da tríade) sob o controlo americano.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa ocidental conseguiu compensar o seu atraso económico e tecnológico vis-à-vis os Estados Unidos. Depois de 1989, desapareceu a ameaça soviética tal como desapareceram as desgraças que marcaram a história da Europa durante os últimos cento e cinquenta anos: os três maiores países do continente - a França, a Alemanha e a Rússia - reconciliaram-se. Todos estes acontecimentos são, quanto a mim, positivos e ricos de ainda maior potencial. Claro que estão empilhados numa base económica reestruturada dentro dos princípios do liberalismo. No entanto este liberalismo foi moderado até à década de 80 pelo compromisso histórico social-democrata que forçou o capital a ajustar-se às exigências da justiça social expressas pelas classes trabalhadoras. Depois disso, o desenvolvimento continuou num novo quadro social inspirado pelo liberalismo anti-social, no estilo americano.

Esta última reviravolta mergulhou as sociedades europeias numa crise multidimensional. Essencialmente é uma crise económica que resulta, pura e simplesmente, da escolha liberal. A crise foi agravada pelos países europeus que alinharam com as exigências económicas da liderança americana: o consentimento da Europa em continuar a financiar o défice americano em detrimento dos seus próprios interesses. Depois há a crise social, que é acentuada pelo aumento das oposições e lutas das classes populares contra as consequências fatais da opção liberal. Finalmente, há o começo duma crise política - a recusa de alinhar, pelo menos incondicionalmente, com a exigência americana de uma guerra sem fim contra o Sul.

As guerras made-in-USA abalaram obviamente a opinião pública (a última guerra no Iraque teve esse efeito de uma forma global) e até mesmo alguns governos, inicialmente o da França e depois também os da Alemanha, da Rússia e da China. O que é verdade é que esses mesmos governos não puseram em dúvida o seu fiel alinhamento com as necessidades do liberalismo. Esta importante contradição terá que ser resolvida de uma forma ou de outra, seja pela submissão às exigências de Washington seja por uma verdadeira rotura que ponha fim ao atlantismo.

A principal conclusão política que tiro desta análise é que a Europa não pode ir além do atlantismo enquanto as alianças políticas que definem os blocos que detêm o poder se mantiverem centradas no capital multinacional dominante. Só se as lutas sociais e políticas conseguirem modificar o conteúdo destes blocos, e impor novos compromissos históricos entre o capital e o trabalho, é que a Europa conseguirá distanciar-se de Washington, permitindo uma possível revitalização dum projecto europeu. Nestas condições a Europa também poderia - deveria mesmo - envolver-se a nível internacional nas relações com o leste e o sul, seguindo um caminho diferente do que o traçado pelas exigências exclusivas do imperialismo colectivo. Um percurso assim seria o começo da sua participação na longa caminhada para lá do capitalismo. Por outras palavras, a Europa ou será de esquerda (a palavra esquerda deve ser levada a sério) ou não será nada.

Notas

[1] Samir Amin, Class and Nation (New York: NYU Press, 1981); Samir Amin, Eurocentrism, (New York: Monthly Review Press, 1989); Samir Amin, Obsolescent Capitalism (London: Zed Books, 2003); Samir Amin, The Liberal Virus (New York, Monthly Review Press, 2004).

[2] A leitura de "sucessão de hegemonias" é "ocidente-cêntrica" no sentido em que considera que as transformações que se desenrolam no coração do sistema comandam a evolução global do sistema dum modo decisivo e praticamente exclusivo. As reacções das populações das periferias ao desenvolvimento imperialista não deve ser subestimado. A independência das Américas, as grandes revoluções feitas em nome do socialismo (Rússia e China), e a reconquista da independência dos países asiáticos e africanos, constituíram provocações ao sistema feitas pelas periferias. E não acredito que se possa explicar a história do capitalismo mundial sem explicar os ajustamentos que essas transformações impuseram mesmo ao próprio capitalismo central. Também porque a história do imperialismo me parece ter sido modelada mais através do conflito de imperialismos do que pelo tipo de ordem que as sucessivas hegemonias impuseram. Os aparentes períodos de hegemonia foram sempre extremamente curtos e a dita hegemonia muito relativa.

[3] Emmanuel Todd, After the Empire: The Breakdown of the American Order (New York: Columbia University Press, 2003).

[4] Office of the White House, The National Security Strategy of the United States, Setembro 2002, http://www.whitehouse.gov/nsc/nss.html.

Samir Amin é diretor do Fórum do Terceiro Mundo em Dakar, no Senegal. Entre os seus livros mais recentes encontram-se Contemporary Politics and Global Disorder (Zed Books, 2004) e The Liberal Virus: Permanent War and the Americanization of the World (Monthly Review Press, 2004). Este artigo é um resumo de "The U.S. Imperialism and the Middle East" de Pratyush Chandra, Anuradha Ghosh, and Ravi Kumar, eds., The Politics of Imperialism and Counterstrategies (Delhi, India: Aakar Books, 2004). U.S. Imperialism, Europe, and the Middle East.

31 de outubro de 2004

Capitalismo monopolista

Paul M. Sweezy

Monthly Review

Entre economistas marxistas “capitalismo monopolista” é um termo profusamente usado para dar conta do estágio do capitalismo em curso desde, aproximadamente, o último quartel do século XIX e que atinge a sua maturidade logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. “O Capital” de Marx, tal como a economia política clássica de Adam Smith a John Stuart Mill, baseava-se na assunção de que todas as mercadorias são produzidas por indústrias consistindo em múltiplas firmas, ou capitais na terminologia de Marx, em que cada uma é responsável por uma fracção do conjunto total de capital e todas elas respondendo aos sinais dos preços e lucros gerados pelas forças impessoais do mercado. Não obstante, Marx, ao contrário dos economistas clássicos, reconheceu que tal economia era inerentemente instável e susceptível de ser ultrapassada. A via para ter sucesso no mercado competitivo é cortar nos custos e expandir a produção, um processo que requer uma acumulação incessante de capital em sempre novas formas tecnológicas e organizacionais. Nas palavras de Marx: «a batalha da competição é feita pelo embaratecimento das mercadorias. O baixo preço das mercadorias depende, ceteris paribus, da produtividade do trabalho e esta, por sua vez, da escala da produção. Assim sendo, os grandes capitais batem os pequenos». A isto acresce ainda o sistema de crédito, que «começa por ser uma modesta ajuda à acumulação», mas cedo se torna «uma nova e formidável arma no seio da luta competitiva e finalmente transforma-se num imenso mecanismo social de centralização dos capitais» (Marx, 1894, capítulo. 27).

Não há, assim, dúvidas que Marx e Engels acreditavam que o capitalismo teria chegado a um ponto de mudança. Nesta forma de ver, apesar de tudo, o fim do capitalismo concorrencial marcava não o início de uma nova fase do capitalismo, mas antes o início da transição para um novo modo de produção que iria suplantar o capitalismo. Só mais tarde - quando se tornou claro que o capitalismo estava longe ainda de dar o seu último suspiro - é que os seguidores de Marx, reconhecendo que se tinha chegado a um novo estágio, começaram a analisar as suas principais características e o que isso poderia dar a entender sobre quais seriam as “leis do movimento” do capitalismo.

Um dos pioneiros desta empresa foi o Austro-Marxista Rudolf Hilferding cuja obra principal “O Capital Financeiro” apareceu em 1910. Um antepassado foi o economista americano Thorstein Veblen, cujo livro “A Teoria do Negócio Empresarial” (1904) lidava com muitos dos problemas comuns à obra de Hilferding: a alta finança, o papel dos bancos na concentração do capital, etc. O trabalho de Veblen, pelos vistos, era aparentemente desconhecido para Hilferding e nenhum destes autores teve um impacto significativo nas principais correntes econômicas presentes no mundo de língua inglesa, onde a emergência das grandes corporações e de novas formas de organização e atividade empresarial, apesar de objeto de uma vasta literatura descritiva, era quase por completo ignorada pela ortodoxia neoclássica dominante.

Nos círculos marxistas, pelo contrário, a obra de Hilferding foi aclamada como um avanço e um lugar de destaque foi-lhe assegurado pelo forte apoio que teve da parte de Lenin. Logo no início do seu “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, Lenin escreveu que "em 1910 apareceu em Viena a obra de um marxista austríaco, Rudolf Hilferding, 'O Capital Financeiro' (...) este trabalho dá uma análise teórica muito valiosa da 'última fase do desenvolvimento capitalista', subtítulo da obra".

No que diz respeito à teoria econômica em sentido estrito, Lenin acrescentou pouco ao “Capital Financeiro”, e em retrospectiva é evidente que o próprio Hilferding não foi bem sucedido na integração dos novos fenômenos do desenvolvimento capitalista no esquema teórico de Marx (valor, mais-valia e acima de tudo o processo de acumulação de capital). No capítulo 15 do seu livro (“Determinação do preço no monopólio capitalista, tendência histórica do capital financeiro”), Hilferding, ao procurar tratar de alguns destes problemas, chegou a uma conclusão impressionante que a partir daí seria sempre associada ao seu nome. Os preços nas condições de monopólio, pensou ele, são indeterminados e instáveis. Sempre que a concentração permite aos capitalistas chegarem a lucros superiores à média, os fornecedores e clientes são colocados sob pressão para criarem também combinações que lhes assegurarem uma parte desses sobre-lucros para si próprios. Assim o monopólio expande-se em todas as direções, a partir de um qualquer ponto de partida original. A questão que se levanta é, portanto, o limite da cartelização (o termo é aqui sinônimo de monopolização). Hilferding responde:

"a resposta a esta questão deve ser que não há um limite absoluto para a cartelização. O que existe, pelo contrário, é a tendência contínua para a sua expansão. As indústrias independentes, como temos visto, caem cada vez mais nas garras das cartelizadas, acabando por ser anexadas por estes. O resultado desse processo é então a formação de um cartel geral. Toda a produção capitalista é conscientemente controlada por um centro, que determina a quantidade de produção em todas as esferas. É a sociedade conscientemente controlada, na sua forma antagonística".

Haveria mais a dizer acerca desta visão de uma sociedade futura totalmente monopolizada, mas ficamo-nos por aqui. Três quartos de século de história do capitalismo monopolista demonstraram que a tendência para a concentração é forte e persistente, se bem que não nos moldes ubíquos e esmagadores que Hilferding tinha imaginado. Existem poderosas contra-tendências – a pulverização de empresas existentes e o aparecimento de outras novas – que contribuem fortemente para prevenir a formação de algo que, mesmo remotamente, se aproximasse do cartel global de Hilferding.

Os primeiros traços de novos desenvolvimentos no pensamento econômico marxista começam a aparecer no decurso dos anos do pós-guerra, isto é, nos anos 1920 e 1930; mas no geral este é um período em que o “Imperialismo...” de Lenin foi aceito como a palavra definitiva sobre o capitalismo monopolista e a rígida ortodoxia estalinista desencorajou todas as tentativas de investigação das mudanças na estrutura e funcionamento das economias capitalistas contemporâneas. Entretanto, economistas acadêmicos no ocidente começaram a analisar os monopólios e os mercados de concorrência imperfeita (especialmente Edward Chamberlin e Joan Robinson), mas por muito tempo estes esforços estiveram confinados ao estudo de empresas e indústrias individuais. A chamada revolução keynesiana, que transformou a teoria macro-econômica nos anos 1930, não foi praticamente tocada por estes avanços na teoria dos mercados, continuando a assentar na velha assunção da competição atomística.

Os anos 1940 e 1950 testemunharam o surgimento de novas tendências de pensamento dentro da estrutura geral da economia marxista. Aquelas tinham as suas raízes, por um lado, na teoria de Marx da concentração e da centralização que, como vimos, foi desenvolvida por Hilferding e por Lenin; por outro lado, nos famosos esquemas de reprodução de Marx, apresentados no volume 2 d'"O Capital", que eram, no fundo, o ponto fulcral de um debate prolongado sobre a natureza da crise capitalista, envolvendo muitos dos principais teóricos do período entre a morte de Engels (1895) e a Primeira Guerra Mundial. A primeira tentativa para fazer a ligação entre estes dois filões, numa versão elaborada da teoria da acumulação de Marx, foi de Michal Kalecki, cujos trabalhos publicados em polaco no início dos anos 1930 articularam, de acordo com Joan Robinson e outros, os princípios centrais da revolução keynesiana no ocidente. Kalecki tomou contato com a economia a partir das obras de Marx e da grande marxista polaca Rosa Luxemburg e, por conseguinte, viu-se livre das inibições e preconceitos imanentes à teoria neoclássica. Mudou-se para Inglaterra em meados da década de 30, entrando nas intensas discussões e debates da época e mostrando as suas marcas distintivas no seguimento das suas obras anteriores e da de Keynes e seguidores em Cambridge, Oxford e na London School of Economics. Em abril de 1938 Kalecki publicou um artigo na Econometrica (“A distribuição do rendimento nacional”) que sublinhou as suas diferenças relativamente a Keynes, especialmente no que dizia respeito a dois temas crucialmente importantes e muito próximos: o carácter de classe da distribuição do rendimento e o lugar do monopólio. Sobre o monopólio, Kalecki chama a atenção para uma posição que tem raízes profundas no seu pensamento e seria, doravante, central ao seu trabalho teórico:

"Os resultados a que cheguei neste ensaio têm um aspecto mais geral e abrangente. Um mundo em que o grau de monopólio determina a distribuição do rendimento nacional é um mundo definitivamente longe dos padrões da competição livre. O monopólio aparece alicerçado na natureza do sistema capitalista: a competição livre, como postulado, pode ser útil no primeiro estágio de algumas investigações, mas como descrição do estado normal da economia capitalista é certamente um mito".

Um passo subsequente na integração dos dois filões atrás focadas do pensamento de Marx – concentração e centralização, de um lado, e teoria da crise, por outro – foi dado com a publicação em 1942 da “Teoria do Desenvolvimento Capitalista” de Paul M. Sweezy, que contém uma resenha da história da economia marxista de antes da II Guerra, e ao mesmo tempo explana alguns dos conceitos introduzidos nas correntes dominantes do monopólio e do oligopólio nas décadas anteriores. Esta obra, cedo traduzido em várias línguas, teve um efeito significativo na sistematização do estudo e interpretação da teoria econômica marxista.

Todavia não se deve considerar estes novos desenvolvimentos como matéria de simples especulação teórica. De igual, senão superior, importância foram as mudanças na estrutura e modo de funcionamento do capitalismo que surgiram nos anos 20 e 30. Por um lado, o declínio da competição que começara no passado século XIX prosseguiu a um ritmo acelerado – como referido no estudo clássico de Arthur R. Burns “O Declínio da Competição: um Estudo da Evolução da Indústria Americana” (1936) – e, por outro lado, a severidade sem precedentes da depressão dos anos 30 providenciou uma prova dramática da inadequação das teorias convencionais dos ciclos econômicos. A revolução keynesiana foi uma resposta parcial a este novo desafio, mas a renovada expansão das economias capitalistas mais avançadas durante e depois da guerra tolheu o desenvolvimento das análises críticas no seio das correntes dominantes. Coube apenas aos marxistas continuar o caminho iniciado pioneiramente por Kalecki antes da guerra.

Kalecki passou os anos da guerra no Instituto de Estatística de Oxford, cujo diretor. A. L. Bowley, reuniu um grupo de valorosos intelectuais, a maioria deles emigrados da Europa ocupada. Entre estes estava Josef Steindl, um jovem economista austríaco influenciado por Kalecki e seguidor das suas pistas de investigação. Mais tarde (1985) Steindl deu conta do seguinte:

"numa ocasião eu tive uma conversa com Kalecki acerca da crise do capitalismo. Ambos, tal como a maioria dos socialistas, tínhamos como dado adquirido que o capitalismo estava ameaçado por uma crise letal, e víamos a estagnação dos anos 30 como um sintoma dessa crise maior. Mas Kalecki achava inconvincentes as razões dadas por Marx para a ocorrência dessa crise; ao mesmo tempo ele não tinha uma resposta própria articulada. 'Eu continuo sem saber – dizia ele – porque deve haver uma crise do capitalismo'. E acrescentava: 'será que tem alguma coisa que ver com o monopólio?'. Posteriormente, sugeriu-me e ao Instituto, antes de deixar a Inglaterra, que eu deveria trabalhar nesta questão. Era um problema iminentemente marxiano, mas os meus métodos para trabalhá-lo eram kaleckianos".

A obra de Steindl sobre este assunto foi finalizada em 1949 e publicada em 1952 com o título “Maturidade e Estagnação do Capitalismo Americano”. Se bem que tenha passado despercebida por grande parte da ciência econômica aquando da sua publicação, esta obra providenciou um elo crucial entre as experiências – tanto empíricas como teóricas - dos anos 30 e o desenvolvimento de uma teoria do capitalismo monopolista relativamente acabada nas décadas de 1950 e 1960. Esse processo científico recebeu depois um novo ímpeto com o regresso da estagnação à economia estadunidense (e global) nos anos 1970 e 1980.

A seguinte grande obra, na continuação direta do legado de Marx, passando por Kalecki e Steindl, foi “A Economia Política do Crescimento” de Paul Baran (1957), que apresentou uma teoria da dinâmica do capitalismo monopolista e abriu uma nova perspectiva sobre a natureza da interação entre sociedades capitalistas desenvolvidas e subdesenvolvidas. Seguiu-se o trabalho conjunto de Baran e Sweezy em “Capital Monopolista: um Ensaio sobre a Ordem Económica e Social Americana” (1966), que incorporou ideias anteriores de ambos os autores e tentou elucidar, nas palavras da sua introdução, "o mecanismo que liga a base da sociedade (no capitalismo monopolista) com o que os marxistas chamam a sua superestrutura cultural, política e ideológica". O seu esforço conjunto, contudo, continuou a ficar aquém de uma teoria completa do capitalismo monopolista, pois não contemplou algo "que ocupa um lugar central no estudo de Marx sobre o capitalismo", isto é, um estudo sistemático das "consequências que as formas particulares de mudança tecnológica, característica do período do capitalismo monopolista, têm para a natureza do trabalho, para a composição (e diferenciação) da classe trabalhadora, para a psicologia dos trabalhadores, para as formas de organização e luta da classe operária". Um esforço pioneiro para preencher esta lacuna de “Capital Monopolista...” foi desenvolvido por Harry Braverman uns anos mais tarde (Braverman, 1974), o qual por sua vez deu um forte estímulo para uma investigação renovada acerca das tendências de mudança nos processos de trabalho e nas relações laborais do final do século XX.

Marx escreveu no prefácio da primeira edição do volume I d’O Capital que "o objectivo maior deste trabalho é descobrir a lei econômica onde assenta a sociedade moderna". O que apareceu nesse trabalho foi o que poderíamos chamar, em bom rigor, uma teoria da acumulação capitalista. Até que ponto poderemos dizer que as posteriores teorias do capitalismo monopolista modificaram ou acrescentaram algo de novo às análises de Marx do processo de acumulação?

No que diz respeito à forma, a sua teoria mantém-se basicamente inalterada, e as modificações no seu conteúdo vão na direcção de acentuar determinadas tendências já demonstradas por Marx como sendo inerentes ao processo de acumulação. Isto é verdade para a concentração e centralização, mas ainda mais espectacularmente para o papel do sistema de crédito, elevado agora a proporções monstruosas, se comparadas com os modestos inícios no seu tempo. Em paralelo, e até provavelmente mais importante, as novas teorias procuram demonstrar que o capitalismo monopolista é mais propenso que o capitalismo concorrencial a gerar taxas de acumulação insustentáveis, as quais levam a crises, depressões e prolongados períodos de estagnação.

As argumentação aqui segue uma linha de pensamento recorrente nos escritos de Marx, nomeadamente nos volumes finais inacabados d’ O Capital (incluindo “Teorias Sobre a Mais-Valia”); os capitalistas individuais esforçam-se sempre por aumentar a sua acumulação na máxima extensão possível, sem ter em consideração o efeito geral que isso causa na procura de bens, resultante de uma sempre crescente capacidade produtiva. Marx resumiu isso na célebre fórmula de que “a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital”. O resultado final a que chegaram as novas teorias é que a expansão generalizada do monopólio acarreta a elevação desta barreira a níveis mais elevados que nunca. E isso passa-se de três maneiras:


  1. (1) A organização monopolista dá uma vantagem ao capital na sua luta com o trabalho, logo tende a aumentar a taxa de mais-valia e a tornar possível um aumento da taxa de acumulação.

  2. (2) Com a substituição dos preços resultantes da concorrência, por preços de monopólio (ou oligopólio), acaba-se com a taxa uniforme de lucro, abrindo espaço a uma hierarquia de taxas de lucro – maiores nas indústrias mais concentradas, menores nos ramos onde reina ainda a compertição. Isto significa que a distribuição de mais-valia é desviada em favor das unidades mais extensas de capital, que normalmente já acumulam uma proporção maior de lucros do que as unidades mais pequenas, o que lhes possibilita uma ainda maior taxa de acumulação.

  3. (3) Do lado da procura na equação da acumulação, as indústrias monopolísticas adoptam uma política de suave desaceleração e regulação da expansão da capacidade produtiva, de modo a conseguirem manter as suas mais altas taxas de lucro.

  4. Traduzido para a linguagem da teoria macro-económica keynesiana, estas consequências do monopólio significam que o potencial de poupança do sistema aumenta, enquanto que as oportunidades de realização de investimentos lucrativos se reduzem. Mantendo tudo o resto constante, o nível de rendimentos e de emprego no capitalismo monopolista é assim menor do que o seria num ambiente mais concorrencial.


Para transformar estas conclusões numa teoria dinâmica, é necessário ver a monopolização (concentração e centralização do capital) como um processo histórico em curso. Nos alvores da transição da fase concorrencial para a monopolista, o processo de acumulação é afectado apenas minimamente. Mas com o passar do tempo o impacto aumenta e tende, a prazo, a tornar-se um factor crucial no funcionamento do sistema. De acordo com a teoria do capitalismo monopolista, é esse factor o responsável pela prolongada estagnação nos anos 1930, bem como pelo regresso da estagnação nos anos 1970 e 1980, na sequência da exaustão do longo boom que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e suas sequelas multifacetadas.

Nem as teorias económicas dominantes, nem o marxismo tradicional têm conseguido oferecer uma explicação satisfatória do fenómeno de estagnação que foi dominando cada vez mais a história do capitalismo no século XX. É pois um traço distintivo da teoria do capitalismo monopolista ter encarado de frente este problema e ter desse modo gerado um rico e vasto corpo de literatura, que se baseia no trabalho de alguns dos grandes economistas dos últimos 150 anos, acrescentando-lhe algo de novo. Uma amostra representativa dessa literatura, em conjunto com introduções editoriais e interpretações, está contida no volume de Foster e Szlajfer (1984).

Bibliografia

Baran, P. A.The Political Economy of Growth. New York: Monthly Review Press, 1957.

Baran, P. A. and Sweezy, P. M. Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order. New York: Monthly Review Press, 1966.

Braverman, H. Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work In the Twentieth Century. New York: Monthly Review Press, 1974.

Burns, A. R. The Decline of Competition: A Study of the Evolution of American Industry. New York: McGraw-Hill, 1936.

Foster, J. B. and Szlajfer, H., eds. The Faltering Economy: The Problem of Accumulation Under Monopoly Capitalism. New York: Monthly Review Press, 1984.

Hilferding, R. Das Finanzkapital (1910) Trans. M. Watnick and S. Gordon as Finance Capital, ed. T. Bottomore. London: Routledge & Kegan Paul, 1981.

Kalecki, M. “The Distribution of the National Income,” Econometrica, April 1938.

Lenin, V. I. Imperialism, The Highest State of Capitalism. 1917.

Marx, K. Capital. Vol. 1. Moscow: Progress Publishers, 1867.

Marx, K. Capital. Vol. 2. Moscow: Progress Publishers, 1885.

Marx, K. Capital. Vol. 3. Moscow: Progress Publishers, 1894.

Steindl, J. Maturity and Stagnation in American Capitalism. Oxford: Blackwell, 1952.

Steindl, J. “The Present State of Economics,” Monthly Review, February 1985.

Sweezy, P. M. The Theory of Capitalist Development. New York: Monthly Review Press, 1942.

Sweezy, P. M., 1966. See Baran and Sweezy, 1966.

Veblen, T. The Theory of Business Enterprise. New York: Charles Scribners’ Sons, 1904.

This essay is from The New Palgrave Dictionary of Economics, edited by John Eatwell, Murray Milgate, and Peter Newman, copyright © 1987 by Palgrave Macmillan and reprinted with their permission.

1 de outubro de 2004

Capitalismo e o meio ambiente

Esta é uma versão ligeiramente modificada de um artigo preparado para a mesa redonda “Socialismo no Mundo” realizada em Cavtat, Iugoslávia, em outubro de 1988. Ele apareceu pela primeira vez na edição de junho de 1989 da Monthly Review.

Paul M. Sweezy



Tradução / É óbvio que a humanidade chegou a um ponto crucial em sua longa história. Uma guerra nuclear poderia encerrar toda a empreitada humana. Mas mesmo que esse final catastrófico possa ser evitado, não é de forma alguma certo que as condições essenciais para a sobrevivência e o desenvolvimento da sociedade civilizada como a conhecemos hoje continuarão a existir.

Vivemos em e dependemos de um ambiente material que consiste em terra, água e ar e que, historicamente, sempre foi considerado e tratado como infinitamente durável e utilizável. Isso não significa indestrutível. A história registra muitos casos de destruição (ou seja, tornando-se inutilizável para fins humanos) de partes do meio ambiente por processos naturais ou ação humana.1 No que diz respeito aos processos naturais, eles têm operado desde muito antes de haver vida humana e presumivelmente continuarão a operar muito tempo depois, e não há razão para supor qualquer mudança incomum num futuro próximo.

Quando se trata de destruição por ação humana, entretanto, as coisas são diferentes. A destruição em pequena escala de partes do meio ambiente ocorreu ao longo da história e, por vezes, a escala cresceu para proporções bastante impressionantes (por exemplo, através da desertificação). Mas mesmo o maior desses processos destrutivos permaneceu pequeno em comparação com o tamanho do meio ambiente como um todo. Tribos ou sociedades ainda mais complexas foram exterminadas ou forçadas a se mudar para novos locais, mas esses desastres sempre foram locais, não globais. E ao longo do tempo — na verdade, até a época em que vivemos atualmente — sempre se presumiu que isso continuaria a ser assim. O motivo era a crença, talvez raramente ponderada ou articulada, de que os meios possuídos pelos seres humanos eram muito insignificantes para ameaçar a magnitude e os poderes de recuperação inerentes ao meio ambiente.

Tudo isso começou a mudar com a explosão da primeira bomba atômica em agosto de 1944. No início, a nova bomba foi percebida como essencialmente um aprimoramento das armas já existentes, mas uma cadeia inter-relacionada de eventos gradualmente levou a uma alteração radical da percepção das pessoas. Os soviéticos obtiveram a bomba muito antes do que se esperava, destruindo assim a noção de que a nova força poderia de alguma forma ser monopolizada e controlada. Então veio a bomba H com seu potencial destrutivo muito maior; e isso, por sua vez, foi seguido pela escalada da corrida armamentista entre as superpotências que, apesar de muita conversa e alguns tratados amplamente simbólicos, continua até hoje. Agora é lugar-comum que cada superpotência tenha a capacidade de exterminar seu rival várias vezes, e pesquisas em andamento sobre as consequências de uma guerra nuclear tem demonstrado, sem sombra de dúvida, que a catástrofe não poderia ser confinada aos beligerantes, mas se espalharia inexoravelmente, em formas horríveis como envenenamento radioativo e inverno nuclear, para todo o globo. Assim, no tempo incrivelmente curto de menos de meio século, a humanidade passou da feliz confiança na segurança de seu habitat para a certeza de que sua própria sobrevivência, bem como a capacidade de seu ambiente natural de sustentar a vida como a conhecemos, poderiam ser interrompidas em um paroxismo instantâneo de violência nuclear.

As implicações completas desta mudança sem precedentes na percepção humana obviamente levarão muito tempo para se tornar claras. Mas já é evidente que a sensibilidade às ameaças ao habitat humano se espalhou rapidamente desde suas origens no esmagador poder destrutivo das armas nucleares para englobar uma variedade de processos e tendências ecológicas, a maioria dos quais são conhecidos e até estudados há um século ou mais, mas que têm sido cada vez mais vistos sob uma nova luz desde o início da era nuclear.2 Uma vez que você sabe com certeza que a ação humana pode tornar o planeta impróprio para a habitação humana, você dificilmente pode deixar de se perguntar se as armas nucleares são a única fonte possível de tal catástrofe. Visto deste ângulo, muito do que costumava ser considerado como meramente o lado negativo inevitável do progresso é agora visto como parte de uma ameaça iminente à continuação da vida na Terra. É difícil imaginar uma mudança mais fundamental de percepção e é verdadeiramente impressionante refletir sobre a rapidez com que ela se deu.

Dentro da estrutura dessa percepção, existem, é claro, posições diferentes. Em um extremo estão aqueles que acreditam que o perigo é muito exagerado — talvez um reflexo do espírito pessimista da época, em grande parte um produto do medo nuclear. Uma vez que a corrida armamentista nuclear seja controlada, o que agora parece cada vez mais possível, a deterioração ambiental será vista em suas verdadeiras dimensões, não como um prelúdio para o dia do juízo final, mas como uma série de problemas que foram criados pela ação humana e podem ser resolvidos da mesma maneira. No outro extremo estão aqueles que argumentam que as coisas realmente pioraram na última metade do século e que agora estamos perto o suficiente do ponto sem volta para justificar os pressentimentos mais sombrios.

Da maneira como os argumentos pró e contra são apresentados, essas duas posições frequentemente parecem estar em extremos opostos. Mas isso é uma ilusão: na verdade, elas têm uma base comum na crença de que, se as tendências atuais continuarem a operar, é apenas uma questão de tempo até que a espécie humana danifique irremediavelmente seu próprio ninho.

Neste contexto, parece claro que todos que compartilham a crença nas implicações fatais das tendências atuais têm a obrigação moral de, por um lado, tentar entender os processos que estão por trás dessas tendências e, por outro lado, tirar conclusões apropriadas sobre o que deve ser feito para revertê-las antes que seja tarde demais.

Os processos de deterioração ambiental

Existe uma vasta literatura sobre o assunto, grande parte dela de alta qualidade, e obviamente este não é o lugar para tentar descrevê-la ou resumi-la. Para os presentes fins, basta assinalar que, de longe, a maior parte do problema tem a sua origem em como se desenvolveu o funcionamento da economia mundial nos últimos três ou quatro séculos. É claro que este foi o período do surgimento do capitalismo e das revoluções burguesa e industrial, do carvão e do vapor e das ferrovias, do aço e da eletricidade e dos produtos químicos, do petróleo e do automóvel, da agricultura mecanizada e quimicalizada — e da rápida expansão e urbanização da população mundial em resposta ao crescimento massivo das forças de produção à disposição da humanidade. Todos esses desenvolvimentos, e outros direta e indiretamente relacionados a eles, envolveram colocar uma pressão crescente sobre os recursos da Terra, introduzindo novos métodos e substâncias nos processos de produção, uso e eliminação dos restos de coisas que pessoas, grupos, e sociedades exigem para sua reprodução e expansão. Talvez tenha havido casos em que essas atividades foram planejadas e realizadas com o objetivo de respeitar e preservar os ciclos naturais que, ao longo dos tempos, permitiram aos seres vivos, inclusive os humanos, se ajustarem e atingirem um equilíbrio aproximado com o meio ambiente. Mas, se houveram tais casos, eles foram tão raros e distantes que deixaram pouco ou nenhum vestígio no registro histórico. As novas saídas que se combinaram para revolucionar a economia humana sempre se originaram com indivíduos ou, em relação ao todo, com pequenos grupos com a expectativa de alcançar benefícios específicos para si próprios. Os efeitos indiretos sobre o meio ambiente não os preocuparam; ou, se eles pensaram sobre isso, presumiram que quaisquer efeitos adversos que suas ações pudessem ter seriam facilmente absorvidos ou compensados ​​pela resiliência aparentemente ilimitada da natureza.

Agora sabemos que essas formas de pensar sobre os processos em questão eram e são ilusórias. Atividades prejudiciais ao meio ambiente podem ser relativamente inofensivas quando introduzidas em pequena escala; mas quando elas entram em uso geral e se espalham de seus pontos de origem para permear economias inteiras em uma escala global, o problema é radicalmente transformado. Isso é precisamente o que aconteceu caso após caso, especialmente no meio século após a Segunda Guerra Mundial, e o resultado cumulativo é o que se tornou geralmente percebido como a crise ambiental.

Os principais elementos dessa crise são bem conhecidos e não requerem elaboração aqui: o efeito estufa decorrente da queima massiva de combustíveis fósseis, combinado com a destruição acelerada de florestas tropicais que absorvem dióxido de carbono; chuva ácida que destrói lagos e florestas e outras formas de vegetação, também causada pela combustão de combustíveis fósseis; o enfraquecimento da camada de ozônio na atmosfera superior que protege os seres humanos e outras formas de vida dos raios ultravioleta potencialmente mortais do sol; destruição de parte superior de solos e expansão de desertos por métodos agrícolas predatórios; poluição de terras e águas superficiais por meio de descarte industrial e uso excessivo de fertilizantes químicos e pesticidas; poluição crescente dos oceanos que se pensava serem um repositório infinito de todos os tipos de resíduos, mas agora, no que se tornou um dos aspectos mais visíveis da crise ambiental, são vistos como frágeis e vulneráveis como todo o resto.

Esta lista está longe de ser completa e pouco mais do que uma alusão às interconexões de longo alcance e muitas vezes sutis dos vários componentes da crise ambiental.3 Mas é o suficiente para indicar a natureza geral da crise como uma radical (e crescente) disjunção entre, por um lado, as demandas colocadas ao meio ambiente pela economia global moderna e, por outro, a capacidade das forças naturais integradas ao meio ambiente em atender a essas demandas.

O que tem que ser feito?

Visto que não há como aumentar a capacidade do meio ambiente de suportar os fardos colocados sobre ele, segue-se que o ajuste deve vir inteiramente do outro lado da equação. E uma vez que o desequilíbrio já atingiu proporções perigosas, segue-se também que o que é essencial para o sucesso é uma inversão, não apenas uma desaceleração, das tendências subjacentes dos últimos séculos.

Vimos que no cerne dessas tendências está um sistema econômico impulsionado pela energia e inventividade de entidades — indivíduos, parcerias e, nos últimos cem anos corporações, — empenhados em promover seus próprios interesses econômicos com pouca reflexão e menos preocupação com os efeitos na sociedade como um todo ou no ambiente natural do qual ela se baseia para o essencial de sua existência. Há já um século e meio, Marx e Engels, numa passagem memorável do Manifesto Comunista, prestaram uma notável homenagem à energia e às realizações do então jovem modo de produção capitalista:

A burguesia, durante seu domínio de escassos cem anos, criou forças produtivas mais massivas e colossais do que todas as gerações anteriores juntas. Sujeição das forças da natureza à maquinaria do homem, aplicação da química a indústria e agricultura, navegação a vapor, ferrovias, telégrafos elétricos, limpeza de continentes inteiros para cultivo, canalização de rios, populações inteiras conjuradas do solo — qual século anterior teria um mero pressentimento de que tais forças estavam adormecidas no colo do trabalho social?

Na verdade, quando isso foi escrito em 1847, o domínio da burguesia se estendia a apenas uma pequena parte da superfície da Terra, e as novas ciências e tecnologias que aproveitam as forças da natureza para fins humanos ainda estavam em sua infância. Desde então, o capitalismo se espalhou para se tornar um sistema verdadeiramente global, e o desenvolvimento e a aplicação da ciência e tecnologia a indústria e agricultura progrediram além dos sonhos mais selvagens de qualquer pessoa há cento e cinquenta anos. Apesar de todas as mudanças dramáticas, no entanto, o sistema permanece em essência o que era em seu nascimento, um rolo compressor impulsionado pela energia concentrada de indivíduos e pequenos grupos que buscam obstinadamente seus próprios interesses, regulados apenas por sua competição mútua e controlados, no curto prazo, pelas forças impessoais do mercado e, no longo prazo, quando o mercado falha, por crises devastadoras. Implícitos no próprio conceito desse sistema estão impulsos interligados e enormemente poderosos para a criação e a destruição. Do lado positivo, o impulso criativo se relaciona com o que a humanidade pode obter da natureza para seu próprio uso; do lado negativo, o impulso destrutivo afeta mais fortemente a capacidade da natureza de responder às demandas colocadas sobre ela.4

Cedo ou tarde, é claro, esses dois impulsos se tornam contraditórios e incompatíveis. E uma vez que, como argumentado acima, o ajuste deve vir do lado das demandas impostas à natureza, e não do lado da capacidade da natureza de responder a essas demandas, temos que nos perguntar se há algo sobre o capitalismo da forma com que ele se desenvolveu nos últimos séculos para nos fazer acreditar que o sistema poderia conter seu impulso destrutivo e, ao mesmo tempo, transformar seu impulso criativo em uma força ambiental benigna.

A resposta, infelizmente, é que não há absolutamente nada no registro histórico que encoraje tal crença. O propósito da empreitada capitalista sempre foi maximizar o lucro, nunca servir a fins sociais. A teoria econômica dominante, desde Adam Smith, insiste que, ao maximizar diretamente o lucro, o capitalista (ou empresário) está indiretamente servindo à comunidade. Todos os capitalistas juntos, maximizando seus lucros individuais, produzem o que a comunidade precisa enquanto se mantêm sob controle por meio de sua competição mútua. Tudo isso é verdade, mas está longe de ser a história toda. Os capitalistas não limitam suas atividades à produção de alimentos, roupas, abrigo e amenidades de que a sociedade precisa para sua existência e reprodução. Em sua busca obstinada pelo lucro, na qual ninguém pode se recusar a aderir sob pena de eliminação, os capitalistas são levados a acumular cada vez mais capital, e isso se torna tanto sua meta subjetiva quanto a força motriz de todo o sistema econômico.

É essa obsessão com a acumulação de capital que distingue o capitalismo do sistema simples de satisfação das necessidades humanas, que é retratado na teoria econômica dominante. E um sistema movido pela acumulação de capital é aquele que nunca fica parado, que está sempre mudando, adotando novos e descartando velhos métodos de produção e distribuição, abrindo novos territórios, submetendo a seus propósitos sociedades fracas demais para se protegerem. Preso nesse processo de inovação e expansão incansáveis, o sistema atropela até mesmo seus próprios beneficiários, se eles atrapalharem ou caírem na beira da estrada. No que diz respeito ao ambiente natural, o capitalismo o percebe não como algo a ser apreciado e desfrutado, mas como um meio para os fins supremos de obtenção de lucro e ainda mais acumulação de capital.

Essa é a natureza interna, o motor essencial do sistema econômico que gerou a atual crise ambiental. Naturalmente, ele não funciona sem oposição. Sempre foram feitos esforços para conter seus excessos, não apenas por suas vítimas, mas também, em casos extremos, por seus líderes mais visionários. Marx, n’O Capital, escreveu comovidamente sobre os movimentos do século XIX pela legislação da fábrica e a lei das dez horas, descrevendo esta última como uma grande vitória para a economia política da classe trabalhadora. E durante o século atual [século XX], movimentos conservacionistas surgiram em todos os principais países capitalistas e conseguiram impor certos limites às depredações mais destrutivas do capital descontrolado. Não é exagero dizer que, sem restrições desse tipo surgindo dentro do sistema, o capitalismo já teria destruído o meio ambiente e a si mesmo.

Não é de surpreender que tais restrições, embora às vezes interfiram nas operações de capitalistas individuais, nunca vão tão longe a ponto de ameaçar o sistema como um todo. Muito antes que esse ponto seja alcançado, a classe capitalista, incluindo o estado que ela controla, mobiliza suas defesas para repelir medidas de proteção ambiental percebidas como perigosamente extremas. Assim, apesar do desenvolvimento de uma crescente consciência ambiental e dos movimentos a que deu origem no século passado, a crise ambiental continua a se aprofundar. Não há nada no registro histórico ou no horizonte que possa nos levar a acreditar que a situação mudará significativamente num futuro próximo.

Se essa conclusão for aceita — e é difícil ver como alguém que estudou a história de nosso tempo pode recusar a, no mínimo, levá-la a sério — segue-se que o que deve ser feito para resolver a crise ambiental, portanto também para garantir que a humanidade tenha um futuro, é substituir o capitalismo por uma ordem social baseada em uma economia voltada não para maximizar o lucro privado e acumular cada vez mais capital, mas sim para atender às necessidades humanas reais e restaurar o meio ambiente a uma condição saudável e sustentável.

Este é, em poucas palavras, o significado da mudança revolucionária hoje. Medidas menores de reforma, por mais desejáveis que sejam, podem, na melhor das hipóteses, desacelerar o processo fatal de declínio e queda que já está tão avançado.

A posição assumida aqui é de fato uma reafirmação da defesa marxista tradicional de uma revolução socialista? Sim, mas com uma condição crucial: o socialismo a ser alcançado deve ser concebido, como Marx e Engels sempre o conceberam, como a negação quintessencial do capitalismo — não como uma sociedade que elimina as características mais objetáveis do capitalismo, como a grande desigualdade de renda, desemprego em massa, depressões cíclicas, pânico financeiro e assim por diante. É o próprio capitalismo, com sua atitude inerente em relação aos seres humanos e à natureza como meios para um fim alheio que deve ser erradicado e substituído. A humanidade, tendo aprendido a realizar milagres de produção, deve finalmente aprender a usar seus poderes milagrosos não para se degradar e destruir seu lar, mas para tornar o mundo um lugar melhor para se viver para si e sua descendência por milênios vindouros.

Uma nota final. Chamamos a sociedade com esses objetivos revolucionários de socialismo. Mas certamente não será e não pode ser a utopia de ninguém. Sem dúvida, fará muitas coisas mal, pelo menos por muito tempo, provavelmente pior do que o capitalismo. As questões relevantes são diferentes: se ela parou de uma vez por todas de emular o capitalismo, se estabeleceu os objetivos certos e se está genuinamente se esforçando para alcançá-los. Se e quando essas perguntas puderem ser respondidas afirmativamente, estaremos no caminho da salvação.

Notas:

1. A distinção não deve ser feita com demasiada nitidez: Muitas mudanças ambientais são o resultado combinado de processos naturais e ação humana. Mas existem algumas como as grandes transformações geológicas nas quais a ação humana não desempenha nenhum papel, e outras, como os efeitos do desmatamento causado pelo corte excessivo, pelas quais a ação humana pode ser considerada a única responsável.

2. A conexão entre as preocupações ambientais e o início da era nuclear foi bem expressa por Barry Commoner, um dos pioneiros de uma abordagem genuinamente científica dos problemas ecológicos, quando escreveu em seu trabalho pioneiro, The Closing Circle (O Círculo que se Fecha, 1971): “Eu aprendi sobre o meio ambiente com a Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos em 1953. Até então, como a maioria das pessoas, eu considerava o ar, a água, o solo e nosso ambiente natural mais ou menos como garantidos … Em 1946, a Comissão de Energia Atômica (AEC) foi criada para assumir o comando de um grande programa dos EUA para desenvolver o potencial militar, científico e industrial da energia atômica e nuclear. Em 1951, os Estados Unidos explodiram dezesseis bombas de teste e a União Soviética treze, e no ano seguinte a Grã-Bretanha juntou-se a eles com o seu primeiro teste.” (páginas 49-50)

3. Para uma análise sofisticada que enfatiza o elemento de interconexão, consulte o trabalho citado de Barry Commoner, The Closing Circle.

4. Uma análise mais abrangente teria que lidar com os impulsos criativos / destrutivos do “socialismo realmente existente”. Em sua maior parte, entretanto, os países em questão se sentiram obrigados a emular e, nesse processo, tentar alcançar os países capitalistas líderes mais desenvolvidos. Nessas circunstâncias, o impacto do “socialismo realmente existente” sobre o meio ambiente dificilmente pode ser distinguido do impacto do capitalismo. Se uma sociedade deste tipo em um contexto global diferente — um no qual se sentisse segura e capaz de buscar alcançar seus próprios objetivos sem pressão externa — teria um impacto qualitativamente diferente sobre o meio ambiente, é uma questão interessante, mas que está fora do âmbito deste ensaio.

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