14 de agosto de 2003

Os parâmetros da resistência

Amiya Kumar Bagchi

Monthly Review


Tradução / Como o imperialismo está fora de controle, e como as manifestações das suas perversidades penetram todos os poros da existência humana em toda a parte, a resistência contra ele também tem emergido de todas as células da organização social e política, assumindo formas muito diversas que desafiam uma classificação fácil. As formas de protesto tem-se multiplicado, assim o problema de escolher uma estratégia política adequada tornou-se muito mais difícil. Deve a resistência ser montada apenas globalmente? Devemos nós combater só as finanças licenciosas e a gula das corporações transnacionais dedicadas à pilhagem e deixar tudo o mais para ser resolvido depois de o combate global ter sido vencido? Ou vamos nós combater toda a pequena tirania por toda a parte — a corrupção de responsáveis municipais, a arrogância de patrões partidários que procuraram controlar a democracia local, e a insensibilidade das autoridades dos hospitais públicos? E iremos tratar como inimigos toda formação política que proporciona assistência e conforto a tais pequenos tiranos e burocratas pretensiosos?

Em grande parte do terceiro mundo, incluindo o subcontinente da Ásia do Sul, parece delinear-se uma linha que divide as lutas anti-sistêmicas ou anti-imperialistas em dois grupos. Num lado há os que acreditam na necessidade de fortalecer-se para lutar contra o capital global transnacional e combater para reverter as políticas que lhe permitiram subverter e controlar todos os principais governos. Os adeptos desta visão pensam que estratégias a longo prazo para tomar o poder do Estado têm de ser prosseguidas em direção a este objetivo. No outro lado, há outros que estão convencidos de que o combate contra tiranias que estão mutilando as vidas do povo têm de ser efetuado aqui e agora.

De fato, os ativistas políticos, se este é o nome que podemos dar ao primeiro grupo, têm de tratar com questões locais — e eles têm de provar sua sinceridade e competência no trato das mesmas. Tais compromissos construtivos são necessários, em acrescento à sua ideologia, para que possam construir sua base de apoio e fortalecer a resistência popular contra a opressão do capital e do aparelho de Estado. Entre os resistentes morais, para dar um nome ao outro grupo, também há alguns que não são relutantes em procurar a ajuda do aparelho de Estado a fim de consertar as injustiças que combatem. Mas há alguns resistentes morais que pensam que o Estado, como tal, é uma instituição perversa e o seu abraço deve ser evitado a todo custo.

Esta divisão, contudo, confunde-se nas margens. Muitas vezes tem sido difícil aos movimentos de resistência unificar os ativistas políticos e os resistentes morais. A divisão costuma ser descrita como sendo entre aqueles movimentos cujas ideologias focam o controle do poder do Estado e aquelas que muitas vezes procuram remediar males sem se incomodar com quem controla o Estado. Em geral, os chamados acadêmicos neutros têm preferido os resistentes morais àqueles que encaram como à procura do poder. A separação também tem sido descrita como um divisor de águas entre a visão de resistência dos comunistas ou socialistas e a visão foucauldiana, com o seu foco na natureza celular das estruturas opressivas e no seu surgimento inevitável sob qualquer Estado, por mais benignamente que possa tentar operar.

Nunca fui capaz de aceitar esta dicotomia como uma representação válida da resistência de hoje ao capitalismo imperialista, isto é, o capitalismo real dos séculos XX e XXI. O combate contra o imperialismo deve abarcar todos os aspectos da vida incluindo as formas de ideologia, o aparelho de Estado, e também a assim chamada sociedade civil. Tal combate tem de ser efetuado através da união de todas as formações anti-imperialistas genuínas. A imensa diversidade da existência humana, e os muitos diferentes meios de opressão que pesam sobre a sua existência, devem fazer parte da nossa compreensão dos motivos porque diferentes formas de resistência levantar-se-ão em diferentes contextos.

Divisões entre as forças anti-imperialistas, causadas em parte pela falta de uma tal apreciação, ajudaram a sustentar e apoiar o imperialismo ao longo da sua história. O maior dano ao movimento socialista internacional no século XX foi causado pela conflito sino-soviético de 1960. Uma das causas principais do conflito foi a falha da liderança soviética em apreciar que o socialismo pode desenvolver-se ao longo de diferentes caminhos em diferentes condições históricas. O congelamento da ditadura do proletariado em ditadura da burocracia do partido também tornou o socialismo realmente existente impenetrável às exigências específicas de povos com diferentes histórias e diferentes trajectórias. O combate com forças capitalistas-imperialistas exauriu o regime soviético e deu oportunidade às forças imperialistas de incitar nacionalidades e grupos étnicos contra os grupos apoiados pelo bloco soviético. Esta história deixou muitos movimentos anti-sistémicos genuínos suspeitosos de todas as formações que apoiem qualquer partido detendo poder ainda que de uma forma subordinada.

Por outro lado, a natureza esmagadora da investida do imperialismo em sua última encarnação convenceu muita gente nos movimentos sociais de que não basta combater tiranias e opressão local. Ao invés disso, é necessário procurar aliados que estejam preparados para combater o sistema em todas as suas ramificações atacando a raiz principal do imperialismo. O movimento ecológico na Índia, por exemplo, que principiou como um protesto contra o abate indiscriminado de árvores por comerciantes de madeira, pondo em perigo os meios de vida e os recursos de água das pessoas, em particular das mulheres, foi então assumido por todos os grupos de esquerda que resistiam à devastação do ambiente provocada pela caça ao lucro feita pelo capital. Os movimentos ecológicos estiveram presentes em força no recente Fórum Social Asiático realizado em Hyderabad, Índia.

Um dos legados infelizes do socialismo realmente existente, e dos partidos políticos a ele associados, foi uma fascinação com grandes fábricas, grandes barragens e grandes projectos em geral. Simbolizavam, para eles e para muitos nacionalistas não-comunistas, o ímpeto de todos os povos oprimidos rumo à industrialização e a sua procura da libertação de uma pobreza degradante. Jawaharlal Nehru, o primeiro-ministro da Índia independente, que partilhou alguns dos valores do movimento socialista global, denominou estas barragens e fábricas como os templos da Índia moderna. Contudo, muitas das fábricas e barragens estavam localizadas em sítios que haviam proporcionado abrigo e condições de vida para camponeses e utilizadores da floresta da Índia interior; tais pessoas foram deslocadas e receberam poucos benefícios dos projectos que destruíram os seus lares. Vários grupos deram voz ao descontentamento e desespero dos deslocados, mas havia uma tendência entre os movimentos comunistas organizados para encarar tais protestos com suspeição. Contudo, quando o Vale do Silêncio em Kerala, um dos mais ricos habitats de flora e fauna subtropical do mundo, foi ameaçado por um projecto de energia hidroeléctrica, o movimento para protegê-lo foi liderado pelo Kerala Sahitya Shastra Parishad. Este era uma frente, organizada principalmente por activistas comunistas, que procura difundir a literacia e elevar o conhecimento da ciência e dos cuidados de saúde entre pessoas comuns. Devido aos protestos, o projecto para produzir hidro-electricidade foi abandonado pelo governo e o Vale do Silêncio foi salvo.

O movimento contra grandes barragens chegou a um ponto crítico, atraindo atenção global, com o movimento contra a construção de uma barragem sobre o Rio Narmada, na Índia ocidental. O movimento ficou conhecido como Narmada Bachao Andolan (Salve o Narmada). Contudo, apesar de um movimento de protesto que perdurou mais de uma década, foi construída uma grande barragem sobre o Narmada. A obra já deslocou milhares de camponeses adivasis (ou seja, povos indígenas) e não-adivasis da área represada do rio. O projecto gigantesco é economicamente enfermiço e pode deixar de alcançar a sua lógica política: proporcionar água aos fazendeiros ricos de Gujarat. Os líderes principais do movimento de protesto, Medha Patekar e Baba Amte, construíram em torno disto a National Alliance for People's Movements (NAPM). A princípio havia suspeitas mútuas entre o a NAPM e os partidos da esquerda organizada, mas felizmente, face ao inimigo comum da globalização desenfreada dos ricos, pelos ricos e para os ricos, eles estão agora ombro a ombro contra a OMC e os programas de ajustamento estrutural e de privatização do governo central da Índia. Movimentos semelhantes foram montados contra a privatização da Bharat Aluminium Company (BALCO), localizada no território adivasi no actual Chhattisgarh na Índia central. Aquela terra foi tomada pelo governo sob o explícito entendimento de que seria utilizada só para finalidades públicas. A venda da companhia para uma empresa privada na lista negra a um preço absurdamente baixo e a colocação em perigo dos empregos dos trabalhadores conduziu a um protesto conjunto dos residentes adivasis e dos trabalhadores das companhia afectada. Os protestatários levaram a sua reclamação até ao Supremo Tribunal. Este, contudo, considerou como válida a avaliação da BALCO feita pela firma indicada pelo governo e assim encerrou o processo. Os julgamentos com viézes de classe são tão comuns na Índia como nos Estados Unidos, no fim das contas. Mais uma vez a influência ubíqua dos valores capitalistas ficou demonstrada. Entretanto, nem a Narmada Bachao Andolan nem os protestos contra a privatização da BALCO desapareceram da memória do povo e eles continuam a figurar regularmente no repertório dos movimentos ecológicos e dos movimentos orquestrados pelos partidos de esquerda. Os movimentos foucaldianos e os partidos políticos marxistas podem andar juntos apesar de tudo.

A Ásia do Sul, juntamente com a Ásia Ocidental e vários países do Leste e Sudeste Asiático, continuam a ser bastiões do chauvinismo machista. Uma característica importante dos fundamentalismos étnicos e religiosos é a sua tendência para reverenciar as mulheres como ícones e oprimi-las como seres humanos. Um dos mais esperançosos sinais de abertura da consciência popular para os seus direitos como seres humanos na Ásia do Sul durante as últimas décadas do século XX foi o crescimento do movimento das mulheres contra a opressão de género, classe e estado, e a exploração com base no isolamento da mulher dentro de casa. O movimento feminino tem estado activo na exigência de medidas estritas contra a violência doméstica, contra a enorme incidência de feticídio (homicídio de fetos) feminino executada com a ajuda da moderna tecnologia reprodutiva, e contra os assassínios de mulheres por dotes na busca de esposas mais lucrativas. As mulheres também têm protestado contra a utilização de muitas tecnologias de controle de nascimento que põem em perigo a saúde da mulher mas são lucrativas para companhias transnacionais e agências de ajuda com elas coniventes. O movimento exigiu que fossem reservados postos para mulheres em governos locais, em assembleias de estado e no parlamento central.

Em Gujarat, talvez o mais desenvolvido estado capitalista da Índia, desde Fevereiro de 2002 o Hindutva fascista utilizou o aparelho de Estado para orquestrar um genocídio de muçulmanos. Estas forças fascistas perpetraram brutalidades inéditas contra homens, mulheres e crianças (inclusive aquelas ainda no útero). Foram organizados protestos contra aquele genocídio por toda a Índia; organizações de mulheres e organizações dirigidas por mulheres difundiram as actividades de protesto a nível nacional, regional e internacional. É sabido que o fascismo na Índia, tal como na Bósnia e no Kosovo, utiliza os corpos da mulheres como sinalizadores da "honra" etnizada e como altos de ataques sobre o território inimigo. Na Índia, mesmo que a maior parte das formações políticas de esquerda ainda sejam dominadas pelos homens, elas tiveram de reconhecer a luta pela igualdade de direitos das mulheres como uma parte integral da luta do povo pela igualdade de justiça.

Por todo o terceiro mundo, as pessoas estão a combater pelos seus direitos sobre a água, terra, florestas e meios de vida, e as organizações locais muitas vezes nasceram da sua necessidade de levarem adiante o combate. Em Cochabamba, na Bolívia, os trabalhadores venceram um famoso combate para impedir uma corporação transnacional de usurpar todos os direitos dos residentes locais à água — água para irrigação, água para saneamento e água para beber. Na Índia, pescadores ganharam o direito de pescar no Ganges contra os que tentavam monopolizar as instalações pesqueiras naquele rio. Em lutas disseminadas por toda a Índia, muitos grupos locais exigiram e obtiveram o direito de se governarem na maior parte das áreas da vida. Na Índia, uma estrutura de governação local tem estado em operação parcial através de um sistema de corporações municipais e aldeias panchayat. Mas na maior parte dos estado, com excepção de Kerala, Tripura e Bengala Ocidental em que partidos de esquerda têm continuamente ou intermitentemente constituído o governo, as eleições para os panchayats e outras estruturas locais de autogovernação foram realizadas muito irregularmente. Na verdade, em alguns estado elas nunca foram feitas, sendo as estruturas administradas por pessoas nomeadas pelos governos dos estados. A 73ª e 74ª emendas à Constituição indiana determinaram eleições para aquelas estruturas e dotaram-nas com extensos poderes de administração local, incluindo o planeamento e a implementação de projectos de desenvolvimento. Em Kerala, Tripura e Bengala Ocidental estas estruturas deram um novo sentimento de autogoverno aos povos locais.

Contudo, assim como a maior parte dos Estados do terceiro mundo foram tornados impotentes pois ataram-nos à prisão da dívida, ao ajustamento estrutural e aos programas de privatização, também estas estruturas locais estão a ser penetradas pelas forças do imperialismo. A arquitectura da dominação financeira pelo grande capital erigida pelas corporações transnacionais, FMI, Banco Mundial, OMC e potência do G7 muitas vezes permanece invisível para o grosso dos trabalhadores, até que sejam atingidos pelas bombas de quilotoneladas dos bombardeiros furtivos e suas vidas sejam totalmente destruídas. Há uma ilusão entre alguns activistas de que o desmonte do Estado nacional é sempre uma coisa boa. Mas nos países pobres, em última análise, é apenas o Estado que pode proporcionar educação primária universal, cuidados básicos de saúde, saneamento básico, segurança alimentar para os pobres e protecção à propriedade dos recursos comuns. Conseguir que o Estado proporcione estas coisas faz parte da luta democráticas em todo o mundo.

Esta função de proporcionar serviços públicos exige que o Estado tenha recursos financeiros e administrativos adequados. A maior parte das nações-Estado foi privada de qualquer autoridade financeira devido ao seu endividamento. Os seus poderes de recuperação foram destruído porque criar empresas estatais, interferir em mercados ou lançar impostos sobre os ricos são acções consideradas, pelo capital global e os seus cúmplices, para além dos limites da sua autoridade legítima. Em países nos quais os Estados ainda têm recursos financeiros adequados para atender os serviços públicos necessários, as autoridades monetárias e fiscais tratam tais empreendimentos como desperdício criminoso, de modo que as estruturas locais são cada vez mais privadas dos fundos necessários para cuidar das necessidades humanas básicas das pessoas sob sua jurisdição. Com o crescimento dos fardos da dívida e o esgotamento das receitas disponíveis, eles têm então de voltar-se para agências de ajuda como o Banco Mundial e as suas muitas satrápias, a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA ou Departamento para Desenvolvimento Internacional britânico para o financiamento de projectos. Ao empreenderem tais projectos acabam inevitavelmente por ficar enredados nas suas condicionalidades e então muitas autoridades políticas orientadas para a esquerda começam inevitavelmente a actuar como simples agentes de corporações transnacionais. A proliferação de ONGs financiadas pelo estrangeiro também precipita este desenvolvimento.

Portanto, a resistência contra as forças do capital global e do imperialismo precisa ser tanto a nível local como global. O povo deve agitar-se contra as actividades das transnacionais e do grande capital interno, contra o fortalecimento da repressão e da deliberada exacerbação de conflitos armados regionais em nome da defesa, e contra as operações de organizações antidemocráticas como o FMI, Banco Mundial e OMC. Ao mesmo tempo, os trabalhadores anti-imperialistas deve lutar por estabelecer o direito dos pescadores a pescarem em rios e águas costeiras, dos adivasis a utilizarem a água, as plantas e os recursos animais das suas localidades, dos habitantes das cidades a disporem de água e ar limpos, e das crianças a desenvolverem-se como cidadãos capazes.

O genocídio patrocinado pelo Estado em Gujarat e a criminosa agressão não provocada contra o Iraque pelas forças americanas e britânicas demonstraram que o capital não hesitará em utilizar todo o arsenal do fascismo para atingir os seus fins e que levantar o slogan dos "mercados livres" não é melhor do que chamar a agressão contra o povo do Iraque "Operação Liberdade Iraquiana". Estes ataques do capitalismo tornado fascista também demonstraram que a batalha, como sempre, é pelas mentes de homens e mulheres, bem como pelo controle dos meios de coerção. Bush e Blair usaram a falta de coordenação entre os governos da Ásia Ocidental e da África do Norte para montar a sua guerra. Em Gujarat, o enfraquecimento das lutas dos trabalhadores nas cidades e locais de trabalho deu uma oportunidade às formações Hindutva de recrutar os trabalhadores mais pobre e em pior situação económica para a sua campanha de extermínio dos muçulmanos. Não só os erros cometidos há mais de mil anos por um invasor que professava fé no Islão foram invocados pelas forças Hindutva. Também os eventos reais naquele antigo feudo foram adornados, manipulados e falsificados a fim de envenenar as cabeças dos adivasis assim como daqueles da casta hindus e dalitas. Analogamente, na publicidade aos actos criminosos dos governos americano e britânico no Afeganistão e no Iraque havia ecos da cruzadas dos cristãos contra os muçulmanos e o agitar de todos os muçulmanos como terroristas.

Na Índia, felizmente, embora alguns dos media estabelecidos tenham papagaiado a propaganda de Bush-Blair e as mentiras do Hindutva, houve outros grandes canais que tentaram retractar a realidade camuflada por aquela propaganda. Juntamente com a cacofonia dos media, protestos contra o genocídio de Gujarat e a carnificina no Afeganistão e no Iraque retumbaram na maior parte das cidades e regiões da Índia e também de outros países da Ásia do Sul. Mais pessoas do que nunca estão conscientes de que a liberdade está a ser posta em perigo pelas forças fascistas nos Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha e pelos seus apoiantes em velhos países imperialistas como Portugal e Espanha, assim como por aquelas a operarem na própria Índia, e de que temos de trabalhar duramente para impedir a vitória destas forças e preservar a dignidade dos seres humanos como criaturas com a capacidade de raciocinar e escolher. A resistência vive! Como dizemos na Índia, Inqilab Zindabad!

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