21 de abril de 2003

Economista do PT faz críticas à proposta social de Palocci

Focalização de programas sociais e ênfase no ajuste fiscal, em vez do externo, são principais alvos

Gabriela Athias

Folha de S.Paulo

Depois que o ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) divulgou, no último dia 10, o documento "Política Econômica e Reformas Estruturais", a economista Maria da Conceição Tavares, 73, perdeu a calma e mandou às favas o tom moderado que vinha usando diante da imprensa. "Quase tive um ataque quando li aquilo."

"Aquilo" é o documento em que a equipe econômica, contradizendo argumentos históricos do PT, atribuiu os problemas da economia brasileira à falta de ajuste fiscal. A sigla sempre bateu na tecla de que o déficit externo era a causa das mazelas do país.

Mas o que fez com que a economista, avessa a entrevistas, falasse à Folha foi o fato de o documento propor a focalização dos programas sociais -pela qual somente os realmente pobres seriam atendidos. Embora a expressão tenha sido usada de forma genérica, para Tavares, assessores de Palocci tentam introduzir no governo a idéia de acabar com a universalização dos benefícios sociais.

Antes que a discussão começasse, ela resolveu colocar a boca no trombone. Em uma entrevista concedida na última sexta-feira, por telefone, chamou o secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, que ajudou a elaborar o documento, de "débil mental" e disse que numa reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social foram apresentadas estatísticas falsificadas. A seguir, trechos da entrevista.

Folha de S.Paulo: Por que o documento divulgado no último dia 10 pela equipe do ministro Palocci causou mal-estar entre os ministros da área social ao falar na focalização dos programas sociais?

Maria da Conceição Tavares - Causou mal estar em todo mundo. Não sou da área social e estou histérica. Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não funciona nada. Desmontaram o sistema de saúde pública do Chile, que era o melhor da América Latina, desmontaram a Previdência e fizeram fundos de pensão e deu outra cagada, desmontaram o sistema de ensino público e foi a mesma coisa.

Ainda fizeram a mesma coisa na Argentina. Chile e Argentina tinham historicamente os melhores programas de saúde e de educação e cobertura geral de políticas universais. Desmantelaram e obrigaram a fazer focalização.

Folha de S.Paulo: Causa surpresa saber que num governo de esquerda há eco para esse tipo de proposta...

Tavares - O eco foi de raiva. Dentro do programa [divulgado pelo Ministério da Fazenda] há gente infiltrada que escreveu uma porcaria chamada Agenda Perdida [documento escrito pelos economista José Alexandre Scheinkman, Ricardo Paes de Barros e Marcos Lisboa], feita por um grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro. Não são tão débeis mentais porque, além de fazer a Agenda, montaram um instituto, que é uma ONG, que recebe em torno de US$ 250 mil do Banco Mundial para fazer o tal estudo especial para focalizar.

Assim como tivemos a desgraça de, no governo Fernando Henrique Cardoso, termos os economistas da PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] no programa econômico, desta vez temos também os da Fundação Getúlio Vargas, e não apenas infiltrados na área econômica. Esse Marcos Lisboa é um garoto semi-analfabeto que está encarregado de fazer política econômica, coisa que ele jamais fez na vida. Quiseram vender a Agenda para o PMDB, que não comprou, fizeram o mesmo com o Ciro [Gomes, candidato derrotado pelo PPS à Presidência e hoje ministro da Integração Nacional].

É um espanto que esse grupo de garotos espertos faça com dinheiro público e do Banco Mundial uma nova Agenda que proponha para o Brasil -o único país que tem políticas universais em saúde, no ensino público básico e no INSS, três redes universais que nunca ninguém conseguiu desmontar- a focalização dos programas sociais.

Folha - Apesar das críticas ao Marcos Lisboa, a política econômica do governo está sendo bem-sucedida...

Tavares - O Marcos Lisboa tem 38 anos e foi colega do meu filho na escola. Foi meu aluno, era um bom menino que adorava fazer modelos matemáticos e adora até hoje. Isso tem tanto a ver com política social quanto coisa nenhuma. É um direito do ministro levar quem quiser para a sua assessoria econômica, mas não é direito de um assessor palpitar sobre focalização e Agenda Perdida.

Folha - A sra. acredita que esse documento tenha sido feito à revelia do ministro Palocci?

Tavares - Eu não acho nada. Sei que quem escreveu o documento foi ele. O ministro Palocci escolheu para seu assessor econômico e do Tesouro [Joaquim Levy, ex-chefe da assessoria econômica do Ministério do Planejamento no governo FHC] quem bem entendeu. Não são pessoas da confiança do PT e não têm nada a ver com o partido. É gente de quem ninguém nunca tinha ouvido falar. O Marcos Lisboa não tem a menor experiência de política econômica. Já o ministro é um cara inteligente e tem experiência. Então pensei: ele colocou lá uns papalvos [patetas] sem importância nenhuma porque é esperto e não vai ouvir conversa nenhuma. Além disso, o ministro Palocci conversa com diversos economistas: do Delfim [Netto, deputado pelo PP -antigo PPB- de São Paulo e ex-ministro da Fazenda] aos tucanos e a nós. O ministro Palocci fala com todo mundo.

Folha - Defender a focalização dos programas sociais é ser liberal?

Tavares - Estive em São Paulo [depois da divulgação do documento} e tive de ouvir o dr. Delfim Netto defender a Constituinte de 1988, onde estão consagrados os direitos universais nas três áreas: saúde, assistência social e Previdência Social. Isso vinha sendo construído como políticas universais desde o tempo da ditadura, logo, não é um problema de ser conservador. É um problema de ser pateta ou de má-fé. E esse pessoal está tentando dar as rédeas da política social do governo.

É evidente que os ministros da área social estão possessos, mas não vão armar uma briga com o ministro Palocci, a quem terei o prazer de, assim que for a Brasília, ir visitar para perguntar o que é aquilo. Como um documento da Fazenda fala sobre focalização?

Folha - Há algum outro aspecto que a sra. critica no documento?

Tavares - Ele desmente o diagnóstico de todos os economistas bons desse país que colocaram no estrangulamento externo, no aumento dos passivos externos que o doutor Fernando Henrique nos deixou, os problemas da economia. Diz que não é nada disso e que o problema na verdade é que o governo passado não fez o ajuste fiscal, que tal? Um garoto falando contra o ponto de vista de todos os grandes empresários e economistas como Delfim Netto, [Luiz Carlos] Mendonça de Barros, do José Serra, do Luiz Carlos Bresser Pereira, do Yoshiaki Nakano, de Campinas inteiro... Se há unanimidade no diagnóstico econômico é que temos um problema de estrangulamento externo. É isso que nos faz tolerar a habilidade política do ministro Palocci em contornar uma situação que, em setembro, era ruinosa.

Folha - Apesar do que a senhora fala de Marcos Lisboa, a taxa de câmbio recuou, a inflação dá sinais de queda...

Tavares - O garoto não faz política econômica. Quem faz é o ministro, o presidente do Banco Central, a diretoria do BC e aquele garoto do Tesouro [Joaquim Levy], e não aquele menino [Lisboa], que não tem a menor condição de fazer política econômica por não ter experiência. O que ele faz são os documentos, aquela babaquice que o Consenso de Washington quer que a gente aplique.

Ele que faça os documentos que quiser. Diga-se de passagem que o diagnóstico [contido no documento "Política Econômica e Reformas Estruturais"] é a gargalhada do Delfim e de todo mundo porque revela a mais profunda ignorância...

Folha - A política econômica do ministro Palocci está correta?

Maria da Conceição - Até aqui, sim. Agora vai complicar por causa do câmbio.

Folha - O câmbio deve ser controlado?

Tavares - Não acho nada. Se nem o presidente do FED [banco central norte-americano], Alan Greenspan, sabe o que fazer com a taxa de câmbio dele, como, diabo, você quer que eu diga o que vai acontecer com o câmbio? Acho apenas que deixar entrar capital morte súbita [especulativo e de curto prazo], como diz o Delfim, ou capital pirata, os US$ 5 bilhões, ajuda a revalorizar. Mas depois teremos outro ataque, que foi o que aconteceu no governo Fernando Henrique. Nesse sentido, essa política econômica é a mesma que a anterior e não deu bom resultado. Política cambial é a coisa mais difícil porque o BC, não tendo reservas, não tem raio de manobra para fazer política cambial. Logo, eu não estou criticando. Apenas digo que, se essa política durar muito, como diz o próprio presidente Lula, é ruim porque prejudica a retomada do crescimento, a substituição de importações, as exportações. Não tenho atacado nem o ministro Palocci nem o presidente do BC. Agora, os débeis mentais que ele tem de assessor, se não escrevessem nada ou ficassem calados, eu também não atacaria.

Folha - Há pontos corretos no documento: até hoje não reduzimos a desigualdade de renda, e nossos programas sociais não combateram a pobreza.

Tavares - Não é verdade. A Previdência e a Loas [Lei Orgânica de Assistência Social, que prevê o pagamento de aposentadoria a deficientes e para idosos com mais de 65 anos com renda per capita da família até R$ 25] são os maiores programas de transferência de renda da América Latina. Move não apenas a economia das pequenas cidades do Nordeste, como as de São Paulo e as do Rio de Janeiro.

Folha - Isso não muda o fato de que hoje o Brasil investe mais nos velhos do que nas crianças.

Tavares - Isso é porque o programa de leite e de nutrição do SUS foi abandonado pelo governo Fernando Henrique.

Folha - Não há programa de leite que faça com que um menino que nasceu na periferia de São Paulo quebre o ciclo de pobreza da sua família...

Tavares - A redução da mortalidade infantil deve-se à distribuição de leite do governo José Sarney. Gozado: cai a mortalidade, aumenta a alfabetização, os velhos recebem renda e não está funcionando? As estatísticas sociais apresentadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social foram falsificadas. São essas coisas que fazem com que a sociedade diga, há uma década, que o serviço público não funciona, que o Estado é ineficiente e que tem de focalizar.

Estou discutindo a universalização dos indicadores sociais. Para melhorar a distribuição de renda vai ser preciso fazer tudo: uma reforma tributária progressista, reforma agrária, que os donos de banco paguem imposto etc, etc.

2 de abril de 2003

Mesopotâmia. Babilônia. O Tigre e o Eufrates

Quantas crianças, em quantas salas de aula, no decorrer de quantos séculos, foram transportadas ao passado, pelas asas dessas palavras? E agora as bombas estão caindo, incinerando e humilhando aquela antiga civilização.

Arundhati Roy

The Guardian

Tradução / Nos torsos de aço de seus mísseis, soldados adolescentes americanos rabiscam mensagens coloridas numa caligrafia infantil: Pra Sadam, Do Grupo do Gordinho. Um edifício desmorona. Um mercado. Uma residência. Uma menina que ama um menino. Uma criança que tudo o que queria era estar brincando com as bolinhas de gude de seu irmão mais velho.

Em 21 de março, o dia depois que as tropas americanas e britânicas começaram sua invasão e ocupação ilegais do Iraque, um correspondente da CNN "incorporado" entrevistou um soldado americano. "Quero ir pra lá e meter a cara, botar pra quebrar", disse o soldado raso AJ. "Quero me vingar pelo 11 de setembro".

Para ser justa com o correspondente, embora se tratasse de um jornalista "incorporado", ele sugeriu de leve que até agora não havia qualquer evidência concreta que ligasse o governo do Iraque aos ataques do 11 de setembro. O soldado esticou sua língua de adolescente até a base do queixo. "Sei lá, disso eu tô por fora", respondeu.

Segundo uma sondagem do New York Times/CBS News, 42 por cento do público americano acredita que Sadam Hussein seja diretamente responsável pelos ataques do 11 de setembro ao World Trade Center e ao Pentágono. E uma sondagem da ABC news revela que 55 por cento dos americanos acredita que Sadam Hussein apoia diretamente a al-Qaida. Qual é a porcentagem das forças armadas dos EUA que acreditam nessas mentiras ninguém sabe.

É improvável que as tropas britânicas e americanas lutando no Iraque estejam cientes de que seus respectivos governos apoiaram Sadam Hussein, seja politicamente seja financeiramente, em seus piores excessos.

Mas porque sobrecarregar o pobre AJ e seus colegas soldados com detalhes desse tipo? Não interessa mais, não é mesmo? Milhares de homens, tanques, navios, helicópteros, munição, máscaras anti-gás, comida altamente proteica, aeronaves inteiras com papel-higiênico, repelentes contra insetos, vitaminas e garrafas de água mineral estão sendo transportadas. A logística fenomenal da Operação Iraqi Freedom a torna um universo em si mesmo. Ela não precisa mais justificar sua existência. Ela existe. Ela está aí.

O presidente George W Bush, o comandante-supremo do exército, da marinha de guerra e da força aérea emitiu instruções claras: "O Iraque. Vai. Ser. Liberado." (Talvez ele queira dizer que mesmo que os corpos físicos dos iraquianos sejam assassinados, suas almas serão liberadas.) Os cidadãos americanos e britânicos devem renunciar de ter pensamentos próprios e apoiar as tropas. Seus países estão em guerra. E que guerra essa está sendo!

Depois de usar os "bons ofícios" da diplomacia da ONU (sanções econômicas e inspeções de armamentos) para garantir que o Iraque esteja mesmo de joelhos, seu povo esfomeado, meio milhão de suas crianças assassinadas, sua infra-estrutura severamente danificada, depois de se certificar de que a maioria de suas armas tenha sido destruídas, num ato de covardia sem paralelos na história, a "Coalizão dos Aliados Voluntariosos" (mais conhecida como a Coalizão dos Abusados e Vendidos) — enviaram um exército invasor!

Operação de liberade para o Iraque? Iraqi Freedom? Discordo. Para mim é mais do tipo Operação Vamos Competir numa Corrida, mas Antes Vou Quebrar os Seus Joelhos.

Até agora, o exército iraquiano, com seus soldados famintos e mal-equipados, seus velhos fuzis e tanques obsoletos, tem conseguido temporariamente confundir e ocasionalmente superar os "Aliados". Enfrentando as forças armadas mais ricas, melhor equipadas e mais poderosas jamais vistas no mundo, o Iraque demonstrou uma coragem espetacular e até conseguiu exibir uma certa capacidade de defesa. Uma defesa que o par Bush/Blair imediatamente denunciaram como astuciosa, desonesta e covarde. (Mas a astúcia é uma velha tradição entre nós, os nativos. Quando somos invadidos/colonizados/ocupados e destituídos de toda a dignidade, voltamo-nos para a astúcia e o oportunismo.)

Mesmo fazendo uma concessão para o fato de que o Iraque e os "Aliados" estejam em guerra, o grau de preparação dos "Aliados" e seus coortes da mídia é inacreditável, a ponto de ser contraproducente para seus próprios objetivos.

Quando Sadam Hussein apareceu na TV nacional, dirigindo-se ao povo iraquiano depois do fiasco da mais elaborada tentativa de assassinato da história — a "Operação Decapitação" — Geoff Hoon, o ministro da defesa britânico teve a coragem de ridicularizá-lo por não ter tido a coragem de aparecer para ser assassinado, chamando-o de covarde que se esconde entre as trincheiras. Em seguida, tivemos uma fúria de especulações pela Coalizão — Era o Sadam mesmo, ou seu sósia? Ou será que era Osama barbeado? Foi tudo pré-gravado? Foi só um discurso? Foi magia negra? Será que vai virar uma abóbora, se assim o desejarmos mesmo, de verdade?

Depois de lançar, não centenas, mas milhares de bombas sobre Bagdá, quando um mercado foi erroneamente detonado e civis assassinados — um porta-voz do exército dos EUA insinuou que os iraquianos estavam se detonando a si mesmos! "Eles estão usando um estoque obsoleto. Seus mísseis sobem e depois descem."

Se isso for verdade, então podemos nos perguntar como é que podemos conciliar tudo isso com a acusação de que o regime iraquiano é um membro do Eixo do Mail e uma ameaça à paz mundial.

Quando o canal de TV árabe al-Jazeera mostra as mortes entre a população civil, o fato é denunciado como propaganda "emocional" árabe, tendo como alvo a orquestração de hostilidades contra os "Aliados", como se os iraquianos estivessem morrendo só para tentar deixar sem jeito os "Aliados". Até mesmo a televisão francesa entrou na jogada, por razões similares. Mas as imagens incessantes e aterrorizantes das aeronaves, dos caças-bombardeiros e dos mísseis cruise arqueando pelos céus do deserto, na televisão americana e britânica são descritas como a "terrível beleza" da guerra.

Quando os soldados americanos invasores (do exército "que está aqui só para ajudar") são levados como prisioneiros de guerra e mostrados na televisão iraquiana, George Bush diz que isso viola a convenção de Genebra e "expõe o mal que está no cerne do regime". Mas é inteiramente aceitável para os canais de televisão dos EUA mostrar as centenas de prisioneiros detidos pelo governo dos EUA na Baía de Guantânamo, ajoelhados no chão e com as mãos atadas atrás das costas, olhos e ouvidos completamente tapados para garantir uma total privação visual e auditiva. Quando questionados sobre o tratamento dispensado a esses prisioneiros, os funcionários do governo dos EUA não negam que eles estejam sendo mal-tratados. Negam que se trate de "prisioneiros de guerra"! Chamando-os de "combatentes ilegais", sugerindo que o mau tratamento é legítimo! (Então, qual é a linha do partido sobre o massacre dos prisioneiros de Mazar-e-Sharif, Afganistão? Perdoar e esquecer? E o que dizer do priosioneiro torturado até morrer pelas forças especiais na base aérea de Bagram? Médicos qualificaram o fato, formalmente, de homicídio.)

Quando os "Aliados" bombardearam o canal de televisão iraquiano (também, incidentalmente, uma contravenção da convenção de Genebra), houve um júbilo vulgar na mídia estadunidense. Efetivamente, a Fox TV estava exercendo um forte lobby já fazia um certo tempo. Era considerado um golpe justo contra a propaganda árabe. Mas os principais canais da TV americana e britânica continuam a se propagandar como "equilibrados", quando sua propaganda tem atingido níveis alucinantes.

Porque a propaganda deveria ser uma reserva exclusiva da mídia ocidental? Só porque eles sabem como fazê-la melhor? Os jornalistas ocidentais "incorporados" com as tropas recebem o status de heróis, reportando das linhas de frente da guerra. Jornalistas "não-incorporados" (como Rageh Omaar, da BBC, reportando da Bagdá sitiada e bombardeada, testemunhando e estando claramente afetado pela visão dos corpos de crianças queimadas e das pessoas feridas) são desqualificados antes mesmo de começar a reportagem: "Precisamos informá-los de que ele está sendo monitorado pelas autoridades iraquianas".

Cada vez mais, a TV americana e britânica se refere aos soldados iraquianos como a "milícia" (ou seja, a horda). Um correspondente da BBC se referiu a eles, portentosamente, como "quase-terroristas". A defesa iraquiana é "resistência" ou pior ainda, "bolsos de resistência", a estratégia militar iraquiana é "trapaça". (O governo dos EUA, grampeando as linhas telefônicas dos delegados do Conselho de Segurança, conforme reportou o Observer faz, por outro lado, um pragmatismo obstinado.) Claramente, para os "Aliados", a única estratégia moralmente aceitável que o exército iraquiano poderia perseguir é a de marchar em direção ao deserto e ser bombardeado pelos B-52s ou deixar-se desmembrar pelo fogo dos fuzis. Qualquer outra estratégia é trapaça.

E agora temos o assédio de Basra. Cerca de um milhão e meio de pessoas, 40 por cento das quais crianças. Sem água potável, e com pouquíssima comida. Estamos ainda esperando a legendária "revolta" xiita, com as hordas felizes saindo da cidade e acolhendo com rosas e hosanas o exército "libertador". Onde estão as hordas? Essas pessoas não sabem que os produtores de televisão têm agendas muito lotadas? (É bem provável que com a queda do regime de Sadam, haverá muita dança nas ruas de Basra. Mas, e daí? Se o regime do Bush caísse, não haveria dança em todas as ruas do mundo?)

Depois de dias de fome e sede impostas aos habitantes de Basra, os "Aliados" trouxeram-lhes comida e água em alguns poucos caminhões, posicionando-os bem na periferia da cidade. Pessoas desesperadas correram em bando em direção aos caminhões e lutaram por um pouco de comida. (Ouvi dizer que a água está sendo vendida. Para revitalizar a economia moribunda, você entende…) No topo dos caminhões, fotógrafos desesperados brigam entre si para obter imagens de pessoas desesperadas brigando entre si por um pouco de comida. Essas fotos serão enviadas através das agências fotográficas para jornais e lustrosas revistas que pagam extremamente bem. Os messias estão ao alcance da mão, distribuindo peixes e pães.

Conforme o mês de julho do ano passado, uma entrega de suprimentos para o Iraque valendo US $5.4 bilhões foi bloqueada pelo par Bush/Blair. O fato nem chegou a ser noticiado. Mas agora, sob as carícias afetivas da TV ao vivo, 450 toneladas de ajuda humanitária — uma minúscula fração do que é realmente necessário (um adendo ao roteiro?) — chegaram num navio britânico, o "Sir Galahad". Sua chegada, no porto de Umm Qasr, mereceu um dia inteiro de transmissão ao vivo pela televisão. Alguém está precisando de um saquinho para vomitar?

Nick Guttmann, diretor para emergências do Christian Aid, escreveu para o Independent no domingo dizendo que seriam necessários 32 Sir Galahads por dia para igualar a quantidade de comida que o Iraque estava recebendo antes do início dos bombardeios.

No entanto, não deveríamos ficar surpresos. É uma velha tática. São anos que fazem isso. Considere essa modesta proposta feita por John McNaughton, do Pentagon Papers, publicada durante a guerra do Vietnã: "Atacar alvos da população (per se), provavelmente, não só criará uma contraproducente onda de repulsa, no exterior e dentro do país, como aumentará muito o risco de expansão da guerra para a China ou a União Soviética. A destruição de comportas e represas, entretanto, - se feita corretamente — poderia… ser promissora. Deveria ser estudada. Tal destruição não mata ou afoga as pessoas. Mas alagando os campos de arroz, depois de pouco tempo haverá uma inanição generalizada (mais de um milhão?), a menos que a comida seja providenciada — o que poderíamos oferecer na "mesa de conferência".

Os tempos não mudaram tanto. A técnica evoluiu e se tornou uma doutrina. Chama-se "Conquistando Corações e Mentes".

Assim, eis aqui a matemática moral, até agora: estima-se que 200.000 iraquianos tenham sido mortos durante a primeira guerra do Golfo. Milhares e milhares de mortos em consequência das sanções econômicas. (Pelo menos aquele lote foi salvo do Sadam Hussein.) Mais mortos a cada dia. Dezenas de milhares de soldados dos EUA que lutaram na guerra de 1991 oficialmente declarados "incapacitados ou inválidos" por uma doença chamada de síndrome da guerra do Golfo, provocada, em parte, acredita-se, pela exposição ao urânio enfraquecido. Mas isso não parou os "Aliados" de continuar a usar urânio enfraquecido.

E agora esse papo de trazer a ONU de volta no quadro. Mas aquela velha senhora ONU — na realidade, ela ainda não se tornou aquilo que foi talhada para ser. Ela foi degradada (embora mantenha seus altos salários). Agora, ela é a porteira do mundo. Ela é a empregada doméstica filipina, o jamadarni hindu, a noiva postal da Tailândia, a ajuda doméstica mexicana, a babá jamaicana. Ela é a empregada para limpar a merda dos outros. Ela é usada e abusada à vontade.

Apesar de todas as sérias submissões de Blair, e toda a sua adulação servil, Bush deixou claro que a ONU não terá qualquer papel independente na administração do Iraque no pós-guerra. Os EUA decidirão quem vai levar os contratos suculentos da "reconstrução". Mas o Bush apelou para a comunidade internacional para não "politizar" a questão da ajuda humanitária. Em 28 de março, Bush requereu uma imediata retomada do programa ‘alimentos por petróleo’, e o conselho de segurança da ONU votou unanimemente a favor da resolução. Isso quer dizer que todo mundo concorda que o dinheiro iraquiano (com as vendas do petróleo do Iraque) deveria ser utilizado para alimentar o povo do Iraque, que está morrendo de fome em consequência das sanções impostas pelos EUA e da guerra ilegal conduzida pelos EUA.

Os contratos para a "reconstrução" do Iraque, conforme nos dizem, em debates e notícias de negócios, poderiam reativar a economia mundial. É interessante como os interesses das corporações americanas são, com tanta frequência, confundidos tão deliberadamente e com tanto sucesso com aqueles da economia mundial. Embora o povo americano vai acabar tendo que pagar pela guerra, as companhias de petróleo, os fabricantes de armas, os vendedores de armas e as corporações envolvidas nos trabalhos de "reconstrução" lucrarão diretamente com a guerra. Muitas delas são velhas amigas ou prévias empregadoras da cabala Bush/Cheney/Rumsfeld/Rice. Bush já pediu ao Congresso US$ 75 bilhões. Contratos para a "re-construção" já estão sendo negociados. O que os noticiários não informam é que a maioria da mídia corporativa dos EUA é possuída e administrada pelos mesmos interesses.

Tony Blair nos garante que a Operação Liberdade para o Iraque significa devolver o petróleo iraquiano ao povo iraquiano. Ou seja, devolver o petróleo iraquiano ao povo iraquiano através das multinacionais corporativas. Como a Shell, como a Chevron, como a Halliburton. Ou será que alguém perdeu o fio da meada? Será que a Halliburton é, na realidade, uma empresa iraquiana? Ou, talvez, o vice-presidente dos EUA Dick Cheney (que foi diretor da Halliburton) seja um iraquiano disfarçado?

Enquanto a fissura entre a Europa e os EUA aumenta, há sinais de que o mundo poderia estar entrando numa nova era de boicotes econômicos. A CNN reportou que os americanos estão jogando vinho francês no bueiro, cantando: "Não queremos o seu vinho fedorento." Ficamos sabendo que as batatas-fritas, as ‘French fries’, foram rebatizadas. Agora, são chamadas de fritas da Liberdade — ‘Freedom fries’. Há rumores de que os americanos estão pensando em boicotar os produtos alemães. Acontece que se a guerra precipitará nessa direção, são os EUA que sofrerão mais. Seu território pode estar sendo protegido por patrulhas de fronteira e armas nucleares, mas sua ecnomia está atada ao mundo todo. Seus estabelecimentos econômicos estão expostos e vulneráveis de serem atacados de qualquer direção. A Internet já está cheia de listas de produtos e companhias ligadas aos governos americano e britânico que deveriam ser boicotados. Além dos alvos mais habituais, a Coca, a Pepsi e o McDonald's — agências governamentais como a USAID, o British department for international development, os bancos americanos e britânicos, Arthur Andersen, Merrill Lynch, American Express, corporações como a Bechtel, General Electric, e empresas como a Reebok, Nike e Gap — poderiam encontrar-se sob assédio. Essas listas estão sendo divulgadas e refinadas por ativistas em todo o mundo. Elas poderiam se tornar guias práticos para dirigir e canalizar a fúria amorfa, porém crescente, no mundo todo. Repentinamente, a "inevitabilidade" do projeto de globalização corporativa está começando a parecer mais do que somente algo um pouco evitável.

Está ficando claro que a guerra contra o terror não é sobre o terror, e que a guerra no Iraque não é só sobre petróleo. É sobre o impulso autodestrutivo de uma superpotência em direção à supremacia, ao estrangulamento, à hegemonia global. O mesmo argumento é feito de que tanto o povo da Argentina quanto o do Iraque foram dizimados pelo mesmo processo. Só as armas usadas contra cada país diferem: num caso, o livrinho de cheques do FMI. No outro, os mísseis cruise.

Finalmente, há a questão do arsenal de armas de destruição em massa do Sadam. (Uau, estava quase esquecendo delas!)

Na neblina da guerra — uma coisa é certa — se o regime de Sadam realmente tem armas de destruição em massa, ele está demonstrando um grau incrível de responsabilidade e auto-controle, nessa situação de provocação extrema. Em circunstâncias similares (digamos, se as tropas iraquianas estivessem bombardeando Nova York e assediando Washington DC) será que poderíamos esperar o mesmo do regime Bush? Será que ele manteria seus milhares de ogivas dentro do papel de embrulho? Seus estoque de antraz, de varíola e de gás nervino? Será?

Desculpem-me pela risada.

Na neblina da guerra, somos levados a fazer especulações: ou o Sadam é um tirano extremamente responsável. Ou ele simplesmente não possui armas de destruição em massa. Seja como for, independentemente do que acontecer, o Iraque vai sair dessa cheirando muito melhor do que o governo dos EUA.

Portanto, aqui temos o Iraque — um estado embusteiro, grande ameaça à paz mundial, membro do Eixo do Mal. Aqui está o Iraque, invadido, bombardeado, assediado, abusado, sua soberania destruída, suas crianças mortas pelo câncer, seu povo feito explodir nas ruas. E todos nós olhando. A CNN-BBC, a BBC-CNN, até tarde de noite. Aqui estamos todos, suportando o horror da propaganda e suportando a chacina da linguagem, assim como a conhecemos e entendemos. Liberdade hoje significa massacre em massa (ou, nos EUA, batatinhas fritas). Quando alguém diz "ajuda humanitária", automaticamente esperamos inanição induzida. "Incorporado", tenho que admitir, é um grande achado. Soa aquilo que é. E o que fazer com o "arsenal de táticas?" Maravilha!

Na maioria do mundo, a invasão do Iraque é vista como uma guerra racista. O perigo real de uma guerra racista detonada por regimes racistas é que ela cria racismo em todos — perpetradores, vítimas, espectadores. Estabelece os parâmetros para o debate, define as premissas de uma forma específica de pensar. Há uma onda gigantesca de ódio contra os EUA que se levanta do antigo coração do mundo. Na África, na América Latina, na Ásia, na Europa, na Austrália. Pude observar isso a cada dia. Às vezes, provém das pessoas mais insuspeitadas. Banqueiros, empresários, estudantes yuppies; e eles trazem consigo a ignorância crassa de suas políticas conservadoras e não-liberais. Aquela absurda inabilidade de separar os governos de seus povos: a América é uma nação de idiotas, uma nação de assassinos, dizem (com a mesma falta de cuidado que dizem "Todos os muçulmanos são terroristas"). Mesmo no universo grotesco do insulto racista, os britânicos fazem sua entrada como anexos. Puxa-sacos, são chamados.

De repente, eu, que fui acusada de ser "anti-americana" e "anti-ocidental", me encontro na posição extraordinária de defender o povo da América. E da Grã-Bretanha.

Aqueles que descem tão facilmente na sarjeta do abuso racista deveriam se lembrar dos milhares de cidadãos dos EUA a da Grã-Bretanha que protestaram contra as reservas de armas nucleares de seus próprios países. E os milhares de americanos que resistiram à guerra e forçaram seu governo a se retirar do Vietnã . Eles deveriam saber que as críticas mais eruditas, ou mordazes, ou hilárias ao governo dos EUA são feitas por cidadãos dos EUA. E que a condenação mais engraçada e amarga de seu primeiro-ministro, vem da mídia britânica. Finalmente, eles deveriam lembrar-se de que, agora mesmo, milhares e milhares de cidadãos britânicos e americanos estão nas ruas protestando contra a guerra. A Coalizão dos Abusados e Vendidos consiste de governos, não de pessoas. Mais de um terço dos cidadãos americanos sobreviveram à implacável propaganda a que foram submetidos, e muitos milhares estão ativamente lutando contra o seu próprio governo. No clima ultra-patriótico prevalecente nos EUA, isso é tão patriótico quanto um iraquiano que luta pela sua terra natal.

Enquanto os "Aliados" esperam no deserto por uma insurreição dos muçulmanos xiitas nas ruas de Basra, o levante real está ocorrendo nas cidades do mundo todo. Tem sido a demonstração mais espetacular de moralidade pública jamais vista.

Mais corajosos de todos são os milhares de americanos nas ruas das grandes cidades americanas — Washington, Nova York, Chicago, San Francisco. O fato é que a única instituição no mundo, hoje em dia, mais poderosa do que o governo americano, é a sociedade civil americana. Os cidadãos americanos têm uma imensa responsabilidade nas costas. Como deixar de saudar e de apoiar aqueles que não somente reconhecem como também agem em função dessa responsabilidade? Eles são nossos aliados, nossos amigos.

No fim de tudo isso, precisa ser dito que ditadores como Sadam Hussein, e todos os outros déspotas no Oriente Médio, nas repúblicas da Ásia Central, na África e na América Latina, muitos dos quais instalados, mantidos e financiados pelo governo dos EUA, são uma ameaça a seus respectivos povos. Além de fortalecer o papel da sociedade civil (ao invés de enfraquecê-la, como foi feito no Iraque), não há um caminho fácil, transparente para se lidar com eles. (É estranho como aqueles que descartam o movimento pacifista, tratando-o de utópico, não hesitam em proferir as razões mais absurdamente sonhadoras para ir à guerra: para acabar com o terrorismo, instalar a democracia, eliminar o fascismo, e mais hilário ainda, "ficar livres dos maus".)

Independentemente do que a máquina de propaganda nos diz, esses ditadores de lata não são o maior perigo do mundo. O perigo real e urgente, a maior ameaça de todas é a força locomotiva que impulsiona o engenho político e econômico do governo dos EUA, atualmente pilotado por George Bush. Malhar o Bush é divertido, porque ele é um alvo tão fácil, tão evidente. É verdade que ele é perigoso, um piloto quase suicida, mas a máquina que ele manipula é muito mais perigosa do que ele mesmo.

Apesar do pano mortuário de depressão que paira sobre nós hoje, gostaria de lançar um cauteloso apelo de esperança: em tempos de guerra, deseja-se que o mais fraco dos inimigos esteja no leme de suas forças. E o Presidente George W Bush é certamente isso. Qualquer outro presidente dotado de um nível de inteligência meramente médio teria feito, provavelmente, as mesmas coisas que ele fez, mas teria conseguido embaçar o vidro e confundir a oposição. Talvez, até mesmo ter a ONU do seu lado. A imprudência destituída de qualquer tato de Bush e a sua crença desavergonhada de que pode administrar o mundo com seu esquadrão abafa-tumulto, alcançaram o efeito oposto. Ele conseguiu o que escritores, ativistas e professores têm lutado para conseguir durante décadas. Ele expôs os dutos. Ele colocou a nu, sob os olhos de todos, todas partes e componentes, as porcas e os parafusos do aparato apocalíptico do império americano.

Agora que o plano (O Guia da Pessoa Comum ao Império) foi posto em circulação em massa, ele poderia ser desmontado mais cedo do que os pânditas ou eruditos tinham predito.

Tragam as chaves de parafuso.

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