31 de dezembro de 2003

O imperialismo do nosso tempo

Aijaz Ahmad


Tradução / Inicio com a frase “o imperialismo do nosso tempo” em homenagem ao seminal ensaio “Fascismo de Nosso Tempo” que Michael Kalecki escreveu no momento crítico em que a extrema direita americana ascendia à presidência nas eleições de 1964 através do candidato republicano Barry Goldwater. Kalecki não faz referência direta a Benito Mussolini, ainda que devia fazê-lo, dado que este foi o primeiro a definir o fascismo como aquela forma de governo unida às “corporações”, termo cujo significado não era tão distinto do que lhe dava o presidente Dwight D. Eisenhower quando advertia sobre a convergência entre o governo norte-americano e o “complexo industrial-militar”. De todo modo, o que a análise de Kalecki sugeria era que, em sua forma extrema, o capitalismo industrial possui uma tendência inerentemente fascista, ao mesmo tempo em que se perguntava como seria o fascismo no caso de apresentar-se nos Estados Unidos em condições de prosperidade e democracia eleitoral estável. Mas, nem a intenção de Kalecki era de sugerir que os EUA estavam se tornando fascistas, nem a minha era implicar que estamos vivendo em tempos de fascismo. No entanto, uma das características mais sobressalentes da conjuntura atual é que os EUA, o país imperialista, cujo poder global não encontra precedentes históricos, são hoje governados pela direita mais extrema. Os germes das formas mais delirantes de autoritarismo que os EUA têm exportado ao longo do globo parecem haver mudado e se desenvolvido no interior de suas próprias fronteiras, o que é acompanhado por toda uma série de conseqüências globais, nacionais e militares.

Também uso a expressão simples “imperialismo de nosso tempo” com o fim de evitar o uso de termos como “Novo Imperialismo”, que por estar em voga em diversos momentos, tomou significados distintos. O imperialismo tem estado conosco durante longo tempo, tomando diversas formas e reinventando-se na medida em que, para dizê-lo de algum modo, as estruturas do capitalismo global foram mudando. O que oferecemos aqui é uma série de indicações provisórias que tendem a facilitar a compreensão de uma conjuntura, “nosso tempo”, que em si mesma é um complexo de continuidades e descontinuidades –e como tal, algo muito mais novo. Assim, exporei uma série de proposições que serão elaboradas mais extensamente ao longo do artigo.

I

A novidade fundamental do imperialismo de nosso tempo é que emerge depois da dissolução das duas grandes rivalidades que marcaram a política global do século XX, ou seja, o que Vladimir I. Ulianov (Lênin) chamava de “rivalidade interimperialista” da primeira metade do século XX, e o que podemos chamar, na falta de um termo melhor, rivalidade intersistêmica entre os EUA e a União Soviética durante cerca de setenta anos. O fim de tais rivalidades fecha a era política inaugurada pela Primeira Guerra Mundial, permitindo, assim, ao único vencedor, os EUA, partir de modo mais agressivo para saquear os possíveis espólios da vitória e a desfazer à vontade as conquistas que as classes trabalhadoras e as nações oprimidas do mundo haviam conseguido naquele período.

Esta nova face do imperialismo surge não apenas depois da dissolução dos grandes impérios coloniais (principalmente o britânico e o francês) e das ambições de outros países capitalistas rivais (basicamente Alemanha e Japão), mas também depois da derrota definitiva do nacionalismo das burguesias locais em grande parte do chamado Terceiro Mundo (o anticolonialismo, as guerras de libertação nacional, o projeto Bandung, o não alinhamento, o estado protecionista em industrialização), o qual havia sido sustentado de forma considerável pela existência de um pólo alternativo sob a forma dos países comunistas. Os três grandes objetivos pelos quais os EUA travaram a guerra de posições ao longo do século XX –contenção/desaparecimento dos estados comunistas, supremacia sobre outros países líderes e derrota do nacionalismo do Terceiro Mundo– foram alcançados.

Longe de ser um imperialismo enrolado em um nó de rivalidades interimperiais, trata-se do imperialismo da era na qual (a) os capitais nacionais têm sido interpenetrados de tal modo que o capital ativo em qualquer território dado se compõe em proporções variáveis tanto de capital nacional como de transnacional; (b) o capital financeiro predomina sobre o capital produtivo numa extensão tal que nem a tese de Lênin sobre “exportação de capitais” nem as advertências de John M. Keynes sobre a rapacidade dos rentistas puderam vislumbrar; e (c) tudo, dos mercados de bens até os movimentos financeiros, está globalizado a tal nível que o estado global, com capacidades militares globais, converteu-se em uma necessidade objetiva do próprio sistema, muito além das ambições dos grupos dominantes norteamericanos que, para impor suas estruturas e disciplinas, têm que expor o complexo como um todo a fissuras tremendas e quebras potenciais.

Ao longo da história do capital têm havido impérios sem colônias, em um ou outro rincão do globo, em alguns casos precedendo conquistas militares (impérios comerciais), em outros como conseqüência do processo de descolonização (América Latina depois da dissolução do domínio espanhol e português), e às vezes assumindo a forma daquilo que Lênin chamava de “semi-colonial” (Egito, Pérsia, etc.). No entanto, este é o primeiro imperialismo totalmente pós-colonial, não apenas por carecer de governo colonial, mas por ser sua antítese. Neste sentido, é pouco provável que a atual ocupação do Iraque se converta em uma dominação colonial de longa duração por mais tempo que dure este lodaçal e mesmo se os superfalcões do Pentágono levem tropas dos EUA para a Síria, Irã ou onde quer que seja. Como Leo Panitch e Sam Gindin argumentam neste volume, não se trata de uma preferência ideológica pelo império “informal” sobre o “formal”, mas de um imperativo estrutural da atual composição do próprio capitalismo global. O movimento de bens e capitais deve ser o mais livre possível, mas a forma do estado-nação tem que ser sustentada em toda a periferia, não apenas por razões históricas, mas também para complementar a internacionalização das leis capitalistas com regimes trabalhistas sustentados localmente, dando vigência, assim, ao que Stephen Gill chama de “neoliberalismo disciplinar” em condições específicas a cada unidade territorial.

Distintamente de Rudolf Hilferding, Lênin ou Nicolai I. Bukharin, a teoria do imperialismo de Rosa Luxemburgo tinha o mérito singular de estar fundada sobre uma teoria mais ampla do modo de produção capitalista e, portanto, centrava-se na relação entre produção industrial e agrícola que havia sido um aspecto muito importante da teoria marxista do modo de produção capitalista. Uma de suas proposições centrais postulava que o colonialismo não era um aspecto conjuntural, mas necessário para a globalização da lei do valor, já que as zonas capitalistas necessitam daquelas não capitalistas para a realização plena da mais-valia. Contudo, também argumentava que uma vez que o capitalismo alcançasse os limites mais longínquos do globo, necessariamente sobreviria uma crise devido ao crescente desaparecimento de zonas não-capitalistas. Esta última inferência parece lógica e historicamente injustificada. O desenvolvimento desigual e combinado não exige necessariamente que as periferias permaneçam “não-capitalistas”, ou seja, fora da operação global da lei do valor. Na história real, a era clássica do colonialismo dividiu o mundo num centro industrial e numa vasta região agrícola. Enquanto certos países e continentes dividiam-se entre enclaves das formas mais avançadas de produção industrial e financeira por um lado, e pelo outro das formas mais atrasadas de produção agrícola, a dissolução dos grandes impérios coloniais e a reestruturação do capital global do pós-guerra inauguraram uma nova era na qual o mundo se dividia progressivamente entre zonas industriais avançadas e atrasadas. Nos pólos extremos do chamado “Terceiro Mundo”, podia-se observar o assombroso avanço capitalista (Taiwan ou Coréia do Sul) e, em contraposição, o retrocesso até níveis inclusive inferiores aos alcançados durante a etapa de descolonização de zonas como a África Subsaariana. Esta produção transcontinental de fortes desigualdades constituiu uma fonte permanente de violência, daí a necessidade de que os sistemas estatais possam garantir formas extremas de coerção extra-econômica. Enquanto isso, em boa parte da Ásia e África pode-se observar o processo completo de acumulação primitiva e proletarização forçada que Marx descreveu em relação, principalmente, à Inglaterra em seu famoso capítulo sobre a questão, o qual nos lembra do papel central do estado em tal processo de “gerar”, em suas palavras, as condições para o crescimento acelerado da produção capitalista. Processos relativamente similares foram duplicados a tal ponto em numerosos países sob regimes combinados de estado-nação e administração globalizada –via o Banco Mundial (BM), Organização Mundial do Comércio (OMC), etc.– em um sistema transnacional, onde uma autoridade supervisora supranacional tornou-se novamente uma necessidade objetiva do sistema como um todo; daí a firme articulação entre as instituições multilaterais, o estado norte-americano e administradores locais de outros estados.

Num nível mais amplo de generalização, poder-se-ia dizer que foram necessárias duas guerras mundiais para se decidir se os EUA ou a Alemanha herdaria os impérios coloniais da Inglaterra ou da França e, por fim, transformar-se-ia no centro do império global. É chamativo que enquanto a visão alemã se fundava na noção primitiva dos impérios coloniais mundiais, os EUA, já com Woodrow Wilson, hasteavam a bandeira da dissolução do colonialismo e do “direito das nacionalidades”, como precursor ideológico do imperialismo atual da “democracia” e dos “direitos humanos”. E foi precisamente após a Primeira Guerra Mundial, quando o centro financeiro global se mudou de Londres para Nova Iorque, e a Revolução Bolchevique desafiava o capitalismo global como um todo, que os EUA se posicionaram como líderes do “Mundo Livre” (como já era evidente a partir da presença dominante de Wilson em Versalhes e a liderança que os EUA exerceriam sempre nas cruzadas para conter o comunismo, especialmente após a Segunda Guerra Mundial).

Precisamente no momento em que os EUA alcançaram seus objetivos a longo prazo, incluindo o domínio completo sobre seus sócios do mundo capitalista avançado, em certos círculos surgiu a expectativa de uma nova “rivalidade interimperialista” entre os EUA e a União Européia (EU), dado o tamanho da economia desta última. Isto também foi estendido a outros centros competitivos da produção global capitalista devido às projeções futuristas do poder do Sudeste Asiático, seja do Japão, China ou um bloco de estados dessa região. Isto parece muito fantasioso. O máximo a que aspiram os europeus no Terceiro Mundo é buscar mercados e oportunidades de investimento. Neste caso, não há projeções de poder pela simples razão de que não há nenhum poder. Não apenas o poder militar dos EUA é muito maior do que o de toda Europa junta, além disso, sua presença militar em mais de uma centena de países contrasta tão nitidamente com a da Alemanha ou da França que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) apenas se move para onde os EUA indiquem. Esta supremacia militar sobre os que seriam seus possíveis rivais se complementa por sua vez com o arrebatador poder financeiro de sua moeda, tanto por seu domínio sobre a produção tecnológica, científica e intelectual como também seu alcance cultural e ideológico em escala global devido ao poder que exerce sobre os meios de entretenimento e (des)informação de massa.

Durante a segunda metade do século, os EUA enfrentaram com a mesma tenacidade os nacionalismos radicais do Terceiro Mundo e o comunismo. Tendo defendido a descolonização como condição necessária para o surgimento de um império globalmente integrado sob seu próprio domínio, opôs-se aos movimentos de libertação nacional, fossem eles liderados por comunistas (como na Indochina) ou por nacionalistas radicais (como na Argélia); ao não-alinhamento (a retórica de “conosco ou contra nós” de George Bush filho vem diretamente dos discursos de John Foster Dulles dos anos cinqüenta); assim como a certos regimes nacionalistas, seja o de Nasser, o de Nkrumah, o de Sukarno ou mesmo o do Príncipe Sihanouk no Camboja. Por sua vez, manteve monarquias onde pôde e impôs ditadores onde fosse necessário. Ainda que o fracasso do projeto nacional-burguês no Terceiro Mundo responde a todo tipo de fatores internos, foi decisivo o desgaste implacável que os EUA impuseram sobre estes processos. Tende-se a esquecer que em sua visão do pós-guerra, o próprio Keynes havia recomendado não apenas restrições estatais aos rentistas nos países capitalistas avançados, mas também transferências de capital a longo prazo para os países subdesenvolvidos com o fim de garantir o crescimento real e, portanto, a paz interior e a estabilidade dos mercados mais prósperos para os bens dos próprios países capitalistas desenvolvidos. Esta última recomendação foi rechaçada pelos EUA, que mantinham naquele momento um firme controle da arquitetura de Bretton Woods. O desgaste do projeto nacional-burguês (dado que o mesmo requeria altos níveis de protecionismo, tarifas, poupança interna e industrialização assistida pelo estado, com pouco espaço para a penetração imperialista) de fato tendeu a debilitar esses estados com relação ao domínio externo, ao mesmo tempo em que os tornou muito mais voláteis e, eventualmente, suscetíveis a todo tipo de irracionalidade, minando assim sua própria legitimidade popular. Este fenômeno tornou necessária não apenas uma supervisão globalizada, mas também um progressivo estado global intervencionista; como repetem Bush e Blair, agora todo o sistema tem que ser “reordenado”. A Guerra Fria nunca foi fria para aqueles fora da OTAN e das zonas do Pacto de Varsóvia, dado que as intervenções militares diretas ou indiretas dos EUA no Terceiro Mundo foram moeda corrente ao longo de tal período. Assim, ter ganho a Guerra Fria não abriu um processo de paz mas uma ideologia do intervencionismo permanentes por parte dos EUA. Como expressou Bush dez dias antes depois da catástrofe do 11 de Setembro: “uma tarefa que nunca termina”.

A derrota de todas as forças que Hobsbawm felizmente batizou de “esquerda ilustrada” –comunismo, socialismo, movimentos de libertação nacional e a ala radical das socialdemocracias– produziu uma profunda crise ideológica em nível mundial. Ainda que raça, religião e etnicidade –rotuladas como “identidades”– ocupam agora o lugar que antes tinham as lutas de classe e as solidariedades inter-religiosas, inter-raciais e trans-étnicas, e uma política da “Diferença infinita” se erige sobre as ruínas da política da igualdade. O pós-modernismo está na mesma corrente que as temáticas provenientes do irracionalismo europeu e a nostalgia pelo pré-moderno. De fato, esta idéia do pré-moderno como solução pós-moderna aos problemas da modernidade foi difundida com conseqüências nefastas nas periferias do sistema capitalista, seja como ideologia da extrema direita hindu na Índia, dos diversos fundamentalismos islâmicos ou das ideologias milenares daqueles que nos trouxeram o 11 de Setembro. O terrorismo substituiu a libertação nacional e hoje os EUA perseguem grupos de terroristas com a mesma perseverança com que até pouco perseguia falanges de revolucionários. Mas tampouco é uma questão exclusiva das periferias. Os próprios EUA aderem hoje a uma combinação peculiar de fundamentalismo cristão, sionismo, neoconservadorismo de extrema direita e militarismo.

É aqui onde se pode observar a especificidade do regime atual de Bush nos EUA. Vale a pena recordar que, durante o século XX, os EUA não ape nas lutaram a guerra de posições contra o comunismo e os nacionalismos radicais, como também, e de maneira crucial, por seu próprio domínio sobre seus rivais capitalistas a fim de conseguir um papel preponderante com o único arquiteto do sistema capitalista global. Neste sentido, a administração atual continua um projeto cujas políticas mais agressivas não se remontam exclusivamente às administrações de Bush pai ou Reagan, mas também às de Clinton e Carter. A primeira especificidade subjacente a este regime é que, devido à dissolução do bloco soviético, pela primeira vez na história da humanidade um único poder imperial é tão dominante sobre seus rivais que na verdade não possui nenhum rival, próximo ou longínquo, que o possa desafiar no preciso momento em que tem a máxima capacidade para dominar o mundo. Neste quadro, Clinton aparece como uma figura de transição, enquanto que a presidência de Bush filho parece coincidir plenamente com este momento histórico em que a máxima concentração de forças pode ser exercida sem impedimentos. Esse é o momento objetivo desta presidência. A segunda especificidade é que, desde 1914 até agora, nunca houve uma concentração tão forte da extrema direita que pudesse monopolizar as instituições governamentais dos EUA; uma força tão sobredeterminada em seus projetos e ideologia globais. A seu modo, este governo é tão milenarista como o membro mais irracional da Al Qaeda ainda que, distintamente desta última, tenha mais poder que qualquer outro na terra. É por isso que ainda que suas ações sejam conformes à lógica do capital, também podem excedê-la.

II

Para entender apropriadamente onde se localiza hoje o imperialismo, é necessário começar em reconsiderar a concepção lêninista –apenas uma teoria, cabe esclarecer– da “rivalidade interimperialista”. Seu pensamento nesta matéria surgiu no curso de uma análise conjuntural no interior do intenso debate sobre a iminência ou não da Primeira Guerra Mundial, assim como também sobre a linha de ação que a socialdemocracia européia devia tomar neste caso: a questão do voto sobre os créditos de guerra (particularmente na Alemanha), a questão das possibilidades revolucionárias que o advento da guerra podia abrir como conseqüência, que classe de bloco de poder (alianças de classe) deviam construir os partidos revolucionários chegado o caso, e onde as probabilidades de uma revolução –se havia alguma– eram maiores. O notável desta concepção é que não estava baseada na dinâmica do modo de produção capitalista nem em uma análise histórica das formas de competição que davam lugar a conflitos recorrentes entre poderes coloniais. Não obstante, como análise conjuntural, a posição de Lênin acabou sendo inexpugnável. Contrariamente àquilo em que Kautsky –o grande teórico da socialdemocracia alemã– acreditava, a Primeira Guerra Mundial logo conduziu à Segunda, ao mesmo tempo em que se criavam as condições para uma Revolução Bolchevique bem-sucedida. Até o final da guerra, países como a Alemanha e Itália experimentaram níveis altíssimos de militância revolucionária, que nunca seriam igualados durante o período do pós-guerra. E foi precisamente como conseqüência de tal guerra e da Revolução Bolchevique que surgiram os movimentos de massas anticoloniais em numerosos países da Ásia e África. Como Lênin havia recomendado em seu devido momento, as alianças entre proletários, camponeses e a intelligentsia de esquerda haviam se convertido no denominador comum de tais movimentos, liderados ou não por comunistas. Tampouco cabiam dúvidas sobre o interesse da Alemanha em uma redivisão do mundo colonial, “recém chegada” ao capitalismo avançado e sem ser um “estado possuidor de colônias”, para usar uma expressão de Luxemburgo.

A acuidade da análise conjuntural de Lênin, e das recomendações estratégicas que daí se derivavam, não têm nada a ver com a veracidade ou não de outros elementos de seu pensamento, como a exportação de capitais, etc. Na verdade, a idéia da “rivalidade interimperialista” tinha muito mais a ver com a do “elo mais fraco” (por exemplo, mais possibilidades revolucionárias na Rússia que na Alemanha), a estratégia política de alianças multiclassistas basicamente entre proletários e camponeses (e uma grande inovação na teoria revolucionária marxista para países atrasados –o crime fatal de Stalin foi o de ter rompido tais alianças), e a questão colonial-nacional (a possibilidade de revoluções anticoloniais devido ao enfraquecimento das burguesias colonizadoras, o levantamento de movimentos de massas anticoloniais após a Primeira Guerra Mundial e a descolonização geral depois da Segunda). É possível apreciar os méritos desta análise conjuntural e da teoria política que a acompanhava sem por isso ter de aderir à teoria econômica em que se sustentava.

De qualquer modo, a concepção da “rivalidade interimperialista” pressupunha uma fase dentro da evolução global do modo de produção capitalista em que os capitais nacionais eram essencialmente discriminados por natureza e com escassa interpenetração. Portanto, pressupunha um tipo de estado que representava as burguesias nacionais como tais em competição com outras burguesias nacionais e seus respectivos estados. Ao estar arraigada no debate sobre a iminência e inevitabilidade da guerra entre tais estados organizados discricionalmente, o sentido do termo “rivalidade” excede naquelas circunstâncias o de mera competição. A idéia de uma guerra iminente necessariamente pressupunha alguma equivalência, ou ilusão de equivalência, nos níveis de capacidade militar, ou seja, os rivais eram percebidos como capazes de lutar entre si em função de suas estruturas militares potenciais.

Este breve excursus sobre a concepção de Lênin nos permite assinalar uma questão: hoje não é possível extrapolar um conceito de “rivalidade interimperialista” que reflita a situação conjuntural de um século atrás. Na medida em que se revisam aqueles textos clássicos, evidencia-se seu pertencimento a uma época totalmente distinta. A especificidade da conjuntura em que se desenvolve o imperialismo de nosso tempo, distintamente da época de Lênin, é que seu centro –composto pelos países capitalistas avançados– não está constituído nem por rivais nem por iguais. A população total e o PNB combinado da UE são iguais aos dos EUA, na verdade marginalmente maiores. Mas aqui termina a comparação. A UE não tem uma estrutura estatal centralizada nem remotamente comparável à dos EUA, nem um idioma comum, nem um exército vigente ou estruturas de segurança próprias, nem política exterior que sujeite os estados-membros, nem leis que transcendam a esfera nacional para além de alguns temas específicos. A constituição proposta em 2003 está tão atada a uma série de condicionamentos que, mais que uma constituição, parecia uma declaração de princípios e pontos de vista. Os fatores unificadores parecem se reduzir à burocracia de Bruxelas, o novo Euro e um monte de outras boas intenções.

Tudo isso ficou em evidência durante o processo de tomada de decisões referente à invasão do Iraque. A Grã-Bretanha se lançou nos braços dos EUA sem sequer dar a mínima consideração procedimental para a UE, mas sim mantendo o papel de subordinado leal que os EUA lhe impuseram desde a Segunda Guerra Mundial e do qual nem Wilson, nem Margaret Thatcher nem Tony Blair se desviaram jamais. Logo, na medida em que a França e a Alemanha procuraram diferenciar-se e o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, tachou-as com desprezo como “a velha Europa”, todos desde Derrida até Habermas desfilaram pelos programas de televisão expressando seu espanto em nome da Europa. Eventualmente, Rumsfeld pode se alinhar com a Grã-Bretanha, Itália, Espanha, Portugal e um conjunto de pequenos novos países da “Europa”, e foi precisamente em Açores que Bush tomou a decisão final de ignorar o Conselho de Segurança antes de começar a invasão, a aliança franco-alemã propunha uma advertência de trinta dias a Saddam (e aos inspetores), depois da qual a invasão seria tolerada. Bush ostensivamente desprezou a proposta de manter a agenda estabelecida pelo Pentágono e ignorar o Conselho de Segurança. Os EUA ordenaram retirar imediatamente os inspetores das Nações Unidas, para o que Kofi Annan, o secretário geral das Nações Unidas, nem sequer teve o trabalho de convocar a seção do Conselho de Segurança mesmo quando os inspetores haviam sido enviados não pelos EUA, mas pela resolução do próprio Conselho. Deste modo, Annan simplesmente ordenou aos inspetores que cumprissem as ordens dos EUA. Algum tempo depois, Hans Blix, o inspetor geral, diria que sempre tinha acreditado que não havia armas de destruição de massa no Iraque e que todo o assunto nada mais era que uma grande farsa. Uma vez que a invasão estava em marcha, até a aliança franco-alemã começou a rezar publicamente por um final rápido em favor dos EUA e, um pouco mais privadamente, a rogar por contratos para as empresas européias no processo de “reconstrução” do Iraque. Quando os EUA se afiançaram como a única força de ocupação e não concederam nenhuma participação efetiva às Nações Unidas, a aliança franco-alemã baixou a cabeça.

Enquanto isso, na questão da lei belga que concedia a suas cortes a jurisdição para julgar estrangeiros por crimes de guerra, a severa ameaça de Rumsfeld de transladar a central da OTAN para fora de Bruxelas se a lei não fosse modificada suscitou um repentino gesto de condescendência por parte do governo belga. Outro tanto ocorreu com os protestos por parte dos intelectuais europeus “bem-pensantes” pelos direitos humanos como aspecto integral da identidade européia emergente. Ao que parece, a Bélgica não tem direito a possuir leis próprias para assuntos tais como os crimes de guerra, mesmo que tais leis não tenham nenhuma relevância para o comércio global ou para os contratos financeiros e comerciais. A doutrina da soberania limitada que promove a política exterior norte-americana e seus efeitos sobre o novo constitucionalismo imperial pareciam ser aplicáveis não apenas aos países do Terceiro Mundo, mas também, ainda que seletivamente, à própria capacidade da Europa de promulgar leis autonomamente.

No plano teórico, este tipo de desenvolvimentos põe em dúvida a concepção da “soberania” supranacional ao estilo Negri-Hardt, a qual, segundo estes autores, globalizou-se tão plenamente que é impossível de localizar em algum lugar em particular, ao mesmo tempo em que somente uma “multidão” sem limites de classe ou outras identidades ou fronteiras pode se opor a ela. O que acontece na verdade é que os EUA fazem valer seu direito soberano de atuar em seu próprio interesse (o que chama de “defesa”) zombando da soberania de outros, e daí que a soberania do estado imperial parecia não ter fronteiras. De fato, foi a senhora Albright, antiga professora da universidade de Georgetown e secretária de Estado da administração Clinton, quem sustentaria que “soberania” e “nacionalidade” eram noções fora de moda e, por conseguinte, deviam ser abandonadas em vista das novas estruturas da globalização e dos imperativos da “intervenção humanitarista”.

Com a afirmação do direito soberano de guerrear contra qualquer estado que se apresente como ameaça –a chamada “guerra antecipatória”–, reservando-se obviamente o direito de julgar o que é que constitui uma ameaça, o governo de Bush dá continuidade de fato a uma doutrina já posta em prática por administrações anteriores. O que estamos presenciando, em todo caso, é a construção de uma soberania imperial que pela primeira vez é reclamada por um estado que ao mesmo tempo é o estado de uma nação e um estado globalizado do capitalismo contemporâneo. Os EUA atribuem-se uma soberania ilimitada que é arbitrária por natureza, e que só pode existir na medida em que seu poderio é tão superior ao dos demais que sua ação não pode ser desafiada por nenhum outro componente do sistema de estados, por ressentidos que estes possam estar.

Dentro da perspectiva da “rivalidade interimperialista”, na medida em que é oposta à soberania global do império americano, ainda há outra idéia mais futurista, mesmo que menos verossímil, que situa esta rivalidade não tanto no Atlântico, mas na zona do Pacífico, de onde surge que o rival não seria a Europa, mas o Leste Asiático. Em uma primeira versão, a rivalidade viria do Japão, mas a tendência recorrente às crises em sua economia, contrastada com as significativas taxas de crescimento mantidas pela economia chinesa durante mais que uma década, parece ter voltado as atenções para a China. No entanto, esta também parecia ser uma opção inviável. Quaisquer sejam suas taxas de crescimento, a escalada da economia chinesa não é nada comparada com a da EU e, além do considerável tamanho de suas forças armadas terrestres, a tecnologia avançada de suas capacidades militares é ainda muito inferior inclusive à da Rússia. O papel preponderante de sua cúpula militar é, sobretudo, interno e está relacionado com o controle de sua sociedade civil e com o domínio de outras instituições estatais; portanto, suas capacidades para fazer a guerra são majoritariamente de caráter defensivo. Seu próprio crescimento econômico agravou suas contradições sociais internas, tanto nas clivagens de classe como regionais, e seria sorte se a China sobrevivesse a este difícil e entrecortado período de crescimento, dada sua atual configuração territorial, sem enfrentar o crescente mal-estar das massas. Do que, sim, podemos estar seguros é de que os EUA vão explorar esse mal-estar social para manter movimentos separatistas, especialmente nas regiões periféricas como Xinjiang, ao mesmo tempo em que põem o Tibet na mira como possível área de controle territorial. Enquanto isso, a indiscutível orientação exportadora de sua economia serviu para integrá-la profundamente no mercado de consumo dos EUA, e, portanto, a China estaria hoje ameaçada por um pesadelo no caso de que houvesse uma grande recessão nos EUA e suas exportações declinassem dramaticamente e, conseqüentemente, sua economia seria lançada na direção de um estancamento. Integrar a China dentro do sistema global dominado pelos EUA como forma de aumentar sua dependência era um imperativo que Bush pai e Clinton já haviam compreendido muito bem. A atual administração poderia perseguir políticas que forcem a China a gastar enormes quantidades recursos provenientes de seu crescimento econômico para investir em defesa militar (para cuja finalidade a Índia desempenharia um papel chave) e assim exacerbar ainda mais os conflitos internos. De qualquer modo, a China se tornou extremamente vulnerável aos EUA, militar e economicamente, daí que vê-la como competidor é fantasioso sob todos os aspectos.

III

Distintamente da rivalidade interimperial, a questão do colonialismo é –ou deveria ser– central para nosso entendimento do presente. Na história do imperialismo, o papel do colonialismo –hoje em dia conceituado de maneira geral como um contraste entre impérios “formais” e “informais”– sempre foi um assunto controvertido. Sem medo de nos contradizer, exceto para os círculos devotamente “Eurocêntricos” (Westocentric), podemos oferecer quatro observações básicas. Primeiro, o colonialismo não é um aspecto incidental, episódico ou epifenomênico do desenvolvimento capitalista, e a negação deste fato empobreceu boa parte da teoria marxista do capitalismo. Desde o princípio, o colonialismo foi uma parte intrínseca da acumulação primitiva do capital e as ex-colônias continuam desempenhando seu papel em tal processo de acumulação que ainda hoje continua se dando no imperialismo pós-colonial de escala global (como argumenta David Harvey neste volume, a acumulação primitiva é uma constante ao longo de toda a história do capitalismo até nossos dias). Segundo, há um profundo contraste entre os distintos tipos de colonialismo, por exemplo, entre o levado a cabo pelos colonos (que foi bem-sucedido na América e Austrália, mas que falhou na Ásia e na África) e as assim chamadas colônias que foram ocupadas, administradas e exploradas por burguesias externas, mas que nunca fincaram raízes nas terras conquistadas (como é o caso da maior parte das colônias da Ásia e África). Alguns dos assentamentos de brancos nas zonas temperadas conseguiram uma transição ao capitalismo avançado (América do Norte e até certo ponto Austrália e Nova Zelândia), enquanto que outros não (América Latina e Caribe). Tampouco conseguiram aquelas colônias ocupadas, mas não colonizadas, ainda que a Índia tivesse potencial no momento da colonização. A maior parte do capital e da tecnologia foram transferidos às “colônias de colonos”, e às outras praticamente não transferiram quase nada. Isto trouxe consigo efeito diretos sobre a estrutura de classes dos respectivos subsistemas. As colônias de assentamento que fizeram a transição para o capitalismo avançado se caracterizaram pelo domínio da indústria sobre a agricultura, e, portanto, mantinham um equilíbrio demográfico no qual o número de empregados superava o de desempregados. No caso daqueles que não fizeram tal transição, o exército de desempregados tendia a exceder os setores da classe operária.

Terceiro, os chamados impérios “informais” (imperialismo sem colônias) foram recorrentes desde o princípio, e as conquistas coloniais em grande escala foram geralmente precedidas por outras formas de exploração imperialista. Os destacamentos no litoral da África Ocidental, combinados com ataques e incursões no interior, foram suficientes para dizimar boa parte de suas populações via tráfico de escravos e o desmantelamento de suas redes econômicas: a conquista do interior viria muito depois. Inclusive o início da conquista territorial da Índia foi posterior ao estabelecimento dos fortes costeiros destinados ao imperialismo comercial, e a conquista territorial completa levou cerca de cem anos –sem mencionar que passou de uma possessão da Companhia das Índias Orientais a uma colônia da coroa. Por contraste, iriam transcorrer noventa anos entre a conquista completa e a descolonização.

Quarto, a história global dos impérios “formais” e “informais” –sem mencionar as conquistas coloniais e a descolonização– é paralela, mas não sincrônica. A América Latina estava completamente descolonizada muito antes que os interiores da Ásia e da África estivessem plenamente colonizados. A história da rivalidade anglo-americana sobre o império “informal” da América Latina posterior à descolonização precedeu o surgimento de movimentos anticoloniais em massa na Ásia e África por quase um século. O fato de que as formações estatais latino-americanas tenham sua origem nos assentamentos de colonos enquanto que a maior parte dos estados da Ásia e da África nem sequer experimentaram algo parecido produziu como conseqüência um desenvolvimento diferenciado de línguas, culturas, religiões, composição demográfica, etc. nos respectivos continentes. E no que diz respeito aos territórios colonizados e nos “semi-colonizados” (nos termos de Lênin), algumas das conseqüências do imperialismo foram mais similares para os impérios “formais” e “informais”. A Índia mudou seu estatuto de colônia da coroa na década de 1830. Nesse momento, a Turquia, que nunca havia sido colonizada, levava adiante reformas burguesas modernas –período de Tanzimat; e até a década de 1920, ambos haviam desenvolvido relações de propriedade, estruturas legais e movimentos reformistas similares, para não mencionar as formas de dependência da Europa (por exemplo, a servidão ocasionada pela dívida), com a diferença de que a Índia havia sido colonizada e Turquia não.

Em toda esta história do colonialismo, os EUA ocupam um lugar único. Foi a única ex-colônia que se converteu em império; e inclusive quando no século XIX estava na moda na Europa a colonização, os EUA não buscavam colonizar, mas dominar a América Latina. Nascidas do genocídio que produziu a anexação de seus vastos territórios, as Treze Colônias fizeram uma revolução, converteram-se em uma nação e deram a si próprias uma constituição que combinava uma comovedora retórica sobre o que hoje chamamos “direitos humanos” com a defesa da escravidão. Deste modo, os colonos puderam continuar fazendo o que já faziam de fato –escravidão baseada na raça para as plantações, os lucros comércio triangular, comércio e indústria concentrados majoritariamente na costa leste, pequena produção na Nova Inglaterra–, mas agora sem ter que compartilhar os lucros com “a pátria mãe”. A ideologia expansionista que surgiu disto era mais anexacionista que colonialista no sentido europeu: tudo que havia além das fronteiras estava ai para ser tomado, daí que estas se expandiram durante a maior parte do século XIX. Até o oeste o único limite era o Pacífico; até o norte e o sul, as fronteiras com o Canadá e o México foram disputadas através de guerras e foram anexadas sem necessidade de colonização. Distintamente dos estados europeus que “possuíam colônias”, os EUA nunca tiveram o problema do trabalho excedente (surplus labour); dado que acumulava continuamente em uma grande quantidade de recursos excedentes por si próprios. Enquanto os europeus exportavam sua própria população para as colônias a fim de alcançar um equilíbrio demográfico favorável, os EUA puderam prosperar graças à importação de escravos, mão-de-obra qualificada e uma grande quantidade de recursos intelectuais de outros países. Seu primeiro império “informal” foram as próprias Américas, e na medida em que os territórios anexados eram incorporados progressivamente como parte do território nacional, império e nação eram, em sua gênese, uma coisa e outra.

IV

Como os EUA não entraram na Primeira Guerra Mundial para redividir o mundo colonial, mas para arbitrar as disputas entre os europeus, converteram-se no primus inter pares. Os nazis haviam iniciado a Segunda Guerra Mundial com a ambição de converter o mundo inteiro em uma grande colônia alemã. Uma vez que os EUA entraram no conflito, adotaram a política explícita de persuadir –ou forçar– os estados “que possuíam colônias” a desfazer-se delas e juntar-se num império capitalista unificado em escala global. Mais adiante, os EUA travariam muitas batalhas, das quais a mais prolongada e sangrenta provavelmente tenha sido a da Indochina, mas nunca com o fim de colonizar e sim de conseguir regimes subordinados e fazer do mundo um lugar seguro para o capitalismo.

A arquitetura do poder posterior à Segunda Guerra Mundial combinava uma clara liderança dos EUA com uma complexa rede de instituições multilaterais. As mais importantes eram aquelas que os EUA podiam controlar mais firmemente –a OTAN e as instituições financeiras internacionais (IFIs). As Nações Unidas eram consideradas um mal necessário dado que a URSS tinha poder de veto no Conselho de Segurança e o número de membros na Assembléia Geral era tão grande que conseguir maiorias fazia-se dificil. Até houve um fugaz momento nos anos setenta em que as Nações Unidas haviam se tornado um fórum para promover projetos nacionalistas para o Terceiro Mundo mediante os subsídios de organismos como a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Agora que os velhos adversários foram derrotados, há uma situação paradoxal com relação à crescente docilidade das Nações Unidas: os EUA estão hoje tão determinados a controlar as redes do capitalismo mundial que terminam solapando não apenas o poder das Nações Unidas, mas também eventualmente o do FMI e do BM, os quais foram até pouco tempo seus principais instrumentos de governança, especialmente no Terceiro Mundo. Em retrospectiva, pode-se observar que tanta ênfase no multilateralismo era em si mesma funcional à necessidade de fazer frente ao desafio do comunismo e do nacionalismo do Terceiro Mundo dentro de um marco institucional que permitisse sustentar a unidade e o consentimento dos principais aliados sob a asa de sua própria liderança. Hoje em dia, sem esses desafios, com uma liderança firme e uma administração muito mais beligerante, muitos aspectos daquele multilateralismo foram deixados de lado. As afirmações exaltadas de Bush filho sobre a soberania imperial dos EUA são diametralmente opostas ao trilateralismo de seu pai.

Um aspecto muito subestimado da hegemonia global que os EUA estabeleceram depois da Segunda Guerra Mundial foi o papel que a indústria do conhecimento exerceu no treinamento e na cooptação de amplos segmentos das elites do Terceiro Mundo, seja de maneira direta em suas próprias instituições ou indiretamente através de instituições “nacionais” do Terceiro Mundo, mediante o abastecimento de professores, programas de estudo, subvenções, equipamento de pesquisa, bibliotecas e outras coisas mais. Marx uma vez disse que uma classe dominante somente é estável na medida em que incorpora a seu serviço os melhores cérebros das classes subalternas. No momento em que os impérios da Ásia e África se dissolviam e os EUA perfilavam-se com o líder claro dos países capitalistas, estes desenvolveram o establishment acadêmico maior, mais rico e melhor financiado jamais visto na história da humanidade. Também se dispuseram sistematicamente a incorporar dentro de seu próprio âmbito acadêmico intelectuais chave dos países recentemente descolonizados provenientes dos diversos campos da física e das ciências técnicas, das ciências sociais e das humanidades, da arte, da diplomacia, da jurisprudência, etc. Muitos dos que permaneceram nos EUA passaram a formar parte de seu establishment intelectual e, certamente, foi a partir dos anos sessenta que a grande “fuga de cérebros” do Terceiro Mundo (principalmente da Ásia) teve seu grande momento (o que contrasta notavelmente com os intelectuais europeus que não queriam emigrar de seu continente próspero e recentemente estabilizado).

Aqueles que regressavam convertiam-se em economistas, cientistas, diplomatas, burocratas, professores, políticos e empresários de seus respectivos países. Em comparação, a influência dos países europeus na formação intelectual da intelligentsia do Terceiro Mundo pós-colonial se reduziu intensamente, e as instituições domésticas foram reformadas à imagem e semelhança das dos EUA. O projeto imperialista americano foi em boa medida facilitado pelo fato de que o inglês havia se convertido, então, no idioma universal, dado que era o idioma dos dois impérios mais importantes dos séculos XIX e XX. Como resultado, a maior parte das instituições estatais nas dependências do Terceiro Mundo foi conquistada simplesmente através da conquista intelectual de seu pessoal mais importante. Para esse pessoal estatal, o ponto de vista americano converteu-se em seu senso comum básico. Mas não se tratava de um mero assunto prático. Isto estava acompanhado de todo um treinamento do sentido e da sensibilidade, do gosto artístico e literário, de pautas de consumo, televisionamento e absorção de notícias que se reproduzem nas formas da indústria do entretenimento. A maior parte dos intelectuais europeus hoje é conhecida na Ásia e África através de sua reconversão americana; a única literatura latino-americana que chega às livrarias de Nova Delhi é aquela que foi traduzida, comentada e publicada nos EUA. Por sua vez, as únicas formas musicais que hoje são “universais” provêm dos EUA ou são variantes locais da forma americana. Definitivamente, é possível dizer que, mesmo que com um grau considerável de cor local e originalidade imitativa, a pós-modernização do mundo é, na verdade, a americanização do mundo.

V

No entanto, este não é o único impacto que o imperialismo moderno apresenta sobre as esferas culturais e ideológicas do Terceiro Mundo. Uma explosão geral de irracionalidade ao longo de grande parte das antigas colônias e semicolônias foi outra conseqüência do fracasso do projeto original anticolonial.

Os movimentos de libertação nacional contra o colonialismo e o imperialismo surgiram dentro de um campo de forças determinado e contraditório. Por um lado, estavam constituídos pelas hierarquias anacrônicas de suas próprias sociedades e pelo domínio externo que era, por si próprio, cúmplice dessas hierarquias. Por outro, estavam inspirados pelo aspecto radical da Modernidade: as idéias iluministas da razão secular e do direito de qualquer entidade social de emancipar-se a si própria por meio do exercício de tal razão; o exemplo prático dentro das sociedades industriais avançadas de relativa expansão social; as idéias da Revolução Bolchevique, que se expandiram pelo mundo no preciso momento em que surgiam esses movimentos de massa e inspiraram novos movimentos de massa. Em linhas gerais, estes foram ao mesmo tempo movimentos seculares de reforma –a secularização da religião era quase sempre um objetivo– e movimentos anticoloniais. Como movimentos de massa, conseguiram incorporar dentro da arena política atores sociais coletivos que nunca antes haviam participado politicamente. E como movimentos pela independência nacional e pela transformação social, buscavam integrar diversos elementos da sociedade, o que de outro modo não teria sido possível, dado que pertenciam a diferentes grupos étnicos, religiosos e lingüísticos.

Obviamente, esta não foi a única forma de oposição ao colonialismo que se desenvolveu. Comumente, era hostil tanto aos movimentos de reformas seculares como ao colonialismo. No entanto, de uma perspectiva mais ampla, é surpreendente quão dominantes eram as tendências secularizantes, modernizadoras e inclusive revolucionárias –da África do norte, passando pelo oeste e pelo sul da Ásia até a Indochina. Isto podia incluir tanto o nacionalismo árabe como o movimento anticolonial da Índia e grande parte dos regimes reformistas como o de Ataturk, que fundou o estado moderno turco. Os partidos comunistas de massa eram um fenômeno em nada restrito a países como Vietnam, onde triunfou a libertação nacional liderada pelo comunismo, mas também presente em todo um conjunto de países do Iraque e Sudão até a Índia, Malásia e Indonésia. As sociedades muçulmanas parecem ter sido bastante receptivas às idéias comunistas, enquanto que entidades como o Rastelo Swayamsewak Sangh (RSS) da Índia e a Irmandade Muçulmana do Egito permaneceram marginalizadas até o último quarto do século XX. Poder-se-ia acrescentar que, de 1950 em diante, em todas estas sociedades o Islã político era sustentado e mantido pelos EUA como bastião contra o comunismo, o que teria depois efeitos desastrosos no Afeganistão. Por sua vez, em termos de classe, tais movimentos representavam uma aliança entre o campesinato e a classe média urbana e eram liderados pela intelligentsia desta última, por sua vez, alinhada com o projeto nacional burguês.

O que aconteceu, então, com este projeto após a independência? A resposta é complexa, mas, como ampla generalização, pode-se dizer que todos os regimes de burguesias nacionais que surgiram depois da descolonização nas sociedades agrárias tiveram que escolher entre o imperialismo e o campesinato, e em todos os casos traíram o campesinato. Este é um tema muito significativo. Gramsci já argumentava que as burguesias européias que haviam experimentado a Revolução Francesa tornaram-se tão temerosas do fantasma de um campesinato levando a revolução às últimas conseqüências, que a burguesia nunca mais exerceria um papel revolucionário contra a classe proprietária. Efetivamente, nas economias agrárias das antigas grandes colônias, a revolução camponesa era a única via para sair da dependência imperialista. A falta de tal revolução foi decisiva na hora de decidir o fracasso do projeto nacional burguês, a conseqüente aceitação dos ditames imperialistas e a formação de regimes neoliberais por parte das burguesias locais. Este fator interno foi certamente decisivo no caso da Índia, onde o estado póscolonial “engendrou” aceleradamente uma poderosa burguesia industrial e financeira e criou uma extensa classe de agricultores ricos no campo, mas nunca emancipou a grande massa de camponeses pobres e sem terra. Este tipo de estado começou a decair até meados dos anos setenta, e quanto chegou o momento certo a burguesia desarticulou o projeto de estratégias de crescimento assistidas pelo estado em favor de um estatuto majoritariamente subordinado às estruturas do capitalismo global. O grande fator externo que havia contribuído anteriormente com o projeto nacional burguês era a existência do bloco soviético que fornecia ajuda chave em termos tecnológicos, financeiros e de mercado, de modo que sua queda também significou o fim do pouco que restava desse projeto. De qualquer modo, as pressões imperialistas constituíram o fator fundamental na morte de tal projeto.

Em vários países, da Índia até a Argélia e o Egito, o fracasso e/ou a queda do nacionalismo democrático, secular e anticolonial deu lugar a formas irracionais de nacionalismo cultural e delírio atávico. Em outros de meus artigos argumento que em toda a história do nacionalismo moderno, do início do século XIX em diante, tem havido uma luta feroz entre o projeto do Iluminismo de uma cidadania igual e auto-emancipada racional, por um lado, e o nacionalismo romântico, identitário, racista e religiosamente intolerante por outro. O que vemos hoje é que o fracasso do projeto do Iluminismo conduziu necessariamente ao surgimento de identidades selvagens baseadas na raça ou na religião. Nos termos de Clara Zetkin, o fascismo foi a “recompensa” pelo fracasso em fazer a revolução. 

Isto nos leva à Al Qaeda. No mundo árabe, o projeto nacionalista radical do nasserismo entrou em colapso durante a Guerra dos Seis Dias em 1967 –a invasão “antecipatória” do Egito por Israel, a destruição instantânea de sua força aérea e a ocupação do Sinai– ali onde o estado sionista era um claro instrumento do império americano. Foi a partir dessa catástrofe que as monarquias se estabilizaram novamente e ressurgiu o Islã político no mundo árabe. Na Palestina, a derrota da esquerda e das forças secular-democráticas de libertação nacional dão conta do posterior surgimento do Hamas e dos homens-bomba suicidas. No Irã, a destruição do movimento comunista e das forças nacionalistas seculares, graças ao esforço conjunto da CIA e da polícia secreta do Xá, deu lugar para que regimes islâmicos preenchessem o vazio e se apropriassem dos sentimentos antimonárquicos e reformistas do povo iraniano. No Afeganistão, os EUA apoiaram uma elaborada e feroz guerra contra os regimes reformistas instalados pelas forças comunistas, congregando o extremismo islâmico internacional para combater o comunismo e por em cena os chamados “mujaidins”, o Talibã, Osama Bin Laden e companhia. Esse é o monstro de sua própria obra que veio encurralar os EUA no 11 de Setembro de 2001.

VI

É necessário retomar a pergunta do começo, isto é, onde reside a especificidade do regime de Bush filho. Em primeiro lugar, não reside nas invasões ao Afeganistão e Iraque. No caso do Afeganistão, os EUA simplesmente voltaram a se beneficiar com a guerra iniciada por Carter em 1978 contra o então novo regime secular do Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA) por meio de seus associados islâmicos que se chamavam “mujaidins” (“lutadores da fé”). Brzezinski, o conselheiro de Segurança Nacional de Carter, afirmou ter apoiado tal guerra com o objetivo explícito de atrair os soviético –e conduzi-los até a armadilha. Os Talibãs (literalmente, “estudantes”) surgiram entre os meninos mais jovens que cresceram nos campos de refugiados que a própria guerra havia gerado e foram treinados em seminários com o propósito expresso de produzir mais “lutadores da fé” ao serviço dos estadunidenses. Sobre a desgraça desse país ensangüentado, o regime da fração islâmica foi implantado pelas agências de inteligência paquistanesas e com o conselho dos EUA. Os chamados “afegãos árabes”, dos quais Osama era um dos líderes, eram agentes da CIA recrutados para combater os soviéticos. Quando os Talibãs se recusaram a cooperar plenamente com os EUA com seus desígnios de controlar o petróleo da Ásia Central, os EUA decidiram invadir. Niaz Naik, o diretor das forças diplomáticas paquistanesas, disse à BBC que os norte-americanos anunciaram que a invasão começaria em outubro. Os eventos do 11 de setembro ocorreram entre o desenho e sua execução.

A guerra contra o Iraque não começou em 2003, mas no curso da chamada “Guerra do Golfo” em 1991, a qual se estendeu durante uma década através de sanções e restrições do espaço aéreo em determinadas zonas–mais do que duraram somadas a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais– e sob três presidentes norte-americanos consecutivos, dois republicanos (paie filho) e um democrata (Clinton, o “Novo Democrata” que inspirou ao “Novo Trabalhismo” do outro lado do Atlântico). Foi durante a presidência de Clinton que o Congresso dos EUA aprovou a Ata de Libertação do Iraque em 1998. Quando certas agências das Nações Unidas estimaram que as sanções ao regime haviam causado a morte de meio milhão de crianças iraquianas, e os jornalistas perguntavam à secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright, se tais sanções haviam valido o preço dessas mortes, ela respondeu: “o preço valeu a pena”. Dado que as chamadas zonas de proibição de vôo no norte e leste do Iraque foram declaradas ilegais por Boutros Boutros-Ghali, o secretário geral da ONU, o esquema de bombardeio anglo-americano do Iraque converteu-se na maior campanha aérea desde a Segunda Guerra Mundial. Somente em 1999 foram lançados 1.800 bombas e foram alcançados 450 alvos. Cumulativamente, ao longo de doze anos, a tonelagem lançada sobre o Iraque equivale a sete Hiroshimas. 

“Mudança de regime” é uma frase contagiosa e, indubitavelmente, o governo de Bush a elevou à categoria de direito legítimo da soberania imperial. Os EUA, no entanto, vem fazendo isso durante décadas. Isso foi feito no Iraque mesmo quando a CIA ajudou a derrocar o regime progressista de Abdal-Karim Kassem em 1964 e colocou em seu lugar o regime do partido de Ba’ath (“Chegamos ao poder no trem da CIA”, regozijava-se o secretário geral do partido antecessor do de Saddam), abrindo assim o caminho para a ditadura de Saddam Hussein, que foi um aliado próximo dos EUA durante a década de oitenta, quando lutou na guerra contra o Irã.  “Mudança de regime” é o que trouxe a CIA para o Irã em 1953 e o exército dos EUA para Granada e Panamá mais recentemente. E a história do devir dos EUA como “libertador” e posterior ocupador data do fim do século XIX nas Filipinas. 

O que é específico do regime de Bush é a combinação da intensificação dessas antigas tendências com um agregado de novidades que, tomadas em conjunto, representam uma quebra histórica. A intensificação de tendências é o suficientemente óbvia. Mas, quais são as novidades internas próprias à presidência de Bush? Primeiro, a maneira em que foi eleito: converteu-se em presidente por uma decisão judicial de duvidosos méritos, combinada com uma grande desfiliação (disenfranchisement) eleitoral de um considerável setor do eleitorado negro no estado da Flórida que, casualmente, era governado por seu irmão Jeb. Outra grande contribuição de Jeb Bush à campanha de seu irmão foi haver congregado a maquinaria de neoconservadores, composta pelos think-tanks da extrema direita e supervisionada por Dick Cheney, que logo iria definir a política doméstica e exterior e ocupar as estruturas civis e militares depois das eleições. Quando os irmãos Bush conquistaram a Casa Branca, a extrema direita cooptou o Pentágono e, portanto, o aparato militar.

A segunda novidade de sua presidência, e que a distingue das anteriores, é sua vontade de reconstruir radicalmente os EUA em seu afã de redefinir o mapa global. Tanto as previsões de Dick Cheney de que a guerra contra o terrorismo duraria cerca de cinqüenta anos ou mais, como as do general Tommy Frank que antes da invasão do Iraque asseguravam que as tropas norte-americanas teriam que permanecer ali quase indefinidamente (como o modelo coreano), estão em sintonia com uma política interna de histeria permanente que invoca uma combinação de insegurança extrema com patriotismo atávico. A população geral está sendo persuadida a sacrificar muitos de seus próprios direitos fundamentais e avalizar distinções entre os nascidos em solo americano e os cidadãos naturalizados, entre imigrantes de uma parte do mundo e os de outra, entre membros “bons” e “maus” do Islã –tudo isto sustentado por uma nova aliança entre o sionismo extremo e o fundamentalismo cristão. O assalto contra as liberdades americanas foi codificado como Atos Patrióticos I e II. Esta união entre patriotismo delirante e uma população dócil, cujos direitos estão sendo limitados é em si mesma uma configuração quase-fascista. Enquanto isso, as políticas de redistribuição de renda regressivas com prosperidade imposta aos ricos e às corporações que põem em falência o estado social se aprofundaram a tal ponto que um governo sucessor não teria (mesmo que quisesse) os recursos necessários para manter o sistema de segurança social.

Portanto, o que foi inventado não é apenas a chamada “síndrome do Vietnam”, mas também aspectos chave da vida social americana que datam do New Deal. No informe “Reconstruindo as Defesas da América: Estratégia, Forças e Recursos para um Novo Século” (Re-Building America’s Defenses: Strategy, Forces and Resources For a New Century) editado pelo “Projeto para um Novo Século Americano” (The Project for a New American Century) em setembro de 2000 e que foi preparado por uma grande seção transversal da elite neoconservadora, incluindo Paul Wolfowitz, os autores ressaltavam que as mudanças drásticas propostas levariam algum tempo a menos que uma catástrofe ou evento catalizador, com um novo Pearl Harbour, ocorresse. O 11 de setembro de 2001 foi o evento que estavam esperando. Na manhã seguinte, Condoleeza Rice sugeriu a seus colegas para “capitalizar esta oportunidade”, enquanto Donald Rumsfeld exigia a imediata invasão do Iraque.

Como podemos compreender esta mistura peculiar de continuidades e descontinuidades dentro de um todo? Uma maneira de vê-la seria que a reação da direita que começou no final dos anos setenta (em resposta por um lado às derrotas militares que estavam enfrentado os EUA na Indochina e, pelo outro, ao enorme êxito do movimento contra a guerra do Vietnã, à radicalização da política afro-americana e a expansão do movimento feminista) finalmente cresceu e amadureceu ao ponto de capturar o poder estatal. Esta ofensiva foi preparada por mais de um quarto de século, mas a presidência de Bush filho representa uma quebra histórica na medida em que previamente essas tendências haviam se mantido limitadas e subordinadas a outras exigências de poder, e seus representantes, ainda que ocupassem posições nos governos de Reagan e de Bush pai, não estavam a cargo de todas as instituições chave do aparato estatal como estão agora. Uma característica notável desta contra-ofensiva é o papel que desempenharam as fundações e think-tanks da extrema direita de financiar, treinar e facilitar o pessoal necessário a fim de transformar, no momento apropriado, o clima intelectual nos EUA e, agora, no aparelho de estado. Ouro aspecto notável foi o papel quase messiânico que desempenhou o cristianismo evangélico em preparar a sensibilidade receptiva da população para todas essas transformações.

Um grupo de intelectuais de Nova Iorque começou a argumentar que desde a presidência de Richard M. Nixon, a Nova Esquerda, o movimento contra a guerra, o nacionalismo negro e os movimentos de liberação das mulheres, entre outros, compunham uma minoria disruptora, mas ruidosa e que, portanto, a verdadeira tarefa era organizar e mobilizar a “maioria silenciosa” que a ela se opunha. Na Universidade de Chicago, Milton Friedman formulou um ataque contra o estado social e avançou na ideologia do mercado como árbitro final do bem-estar social. Seu colega Alan Bloom escreveu livros que foram best-sellers sobre a “destruição da mentalidade americana” devido às reformas que as pressões da esquerda, os negros e as feministas haviam forçado sobre o sistema de educação, incluindo as universidades de elite. O professor de Bloom, Leo Strauss, treinou vários dos que na última década seriam membros destacados da elite intelectual neoconservadora. Centenas de grandes e pequenos enclaves e organizações neoliberais hoje predominam na paisagem americana e apareceram um sem fim de fundações de direita não muito conhecidas –Carthage Foundation, Henry M. Olin Foundation, Philipe M. McKenna Foundation, Henry Salvatori Foundation, etc.– que financiam aquelas fundações mais influentes e prestigiosas: American Enterprise Institute, Heritage Foundation, Cato Institute, e a elite de todos os think-tanks neoconservadores. The Project for New American Century, cujos fundadores constituem o coração do governo de Bush: o vicepresidente Dick Cheney, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, o chefe de gabinete (chief staff) de Cheney, Lewis I. Libby, o secretário de educação de Reagan, Willian Bennet e Zalmay Khalilzad, o sombrio representante de Bush no Afeganistão e Iraque.

Um comentário sobre o cristianismo evangélico. Quando Reagan foi reeleito com a maior base eleitoral da história, perdendo apenas em um estado, descobriu-se que, na verdade, apenas 27% do potencial de votantes havia ido votar em seu favor; a maioria havia ficado em casa. Ao mesmo tempo, uma pesquisa do Gallup mostrou que 27% dos norte-americanos aderiram a alguma variedade de cristianismo evangélico e que, de acordo com especialistas, de ser mobilizada para votar em bloco, os EUA teria permanentemente governos de extrema direita. Mesmo que nem todos tenham sido mobilizados, este tipo de governo já foi estabelecido. Enquanto Reagan nos deleitava com a economia da oferta e a Guerra nas Estrelas, a esquerda considerava-o o pior e a direita do partido republicano um Roosevelt democrático. Essa mesma direita hoje está no poder.

Talvez estejamos presenciando um transbordamento imperialista. Determinados por seus próprios delírios ideológicos, os neoconservadores de Bush estariam executando políticas que em boa medida excedem a lógica do capitalismo global ou as necessidades do estado imperial americano. Até George Soros parece vê-lo assim. Dois ex-presidentes, incluindo o pai do atual, se opuseram à invasão do Iraque antes que ocorresse. O trilateralista presbiteriano Bush pai sempre ressaltou que os EUA necessitavam de uma aliança com a Europa e que a guerra poderia solapá-la. Como observamos, a aliança franco-alemã, ainda que com ressentimento, aceitou as conseqüências. No entanto, o Iraque ainda pode se converter em uma espécie de cura contra qualquer apetite da população americana de lutar guerras reais além de suas telas de televisão. Os norte-americanos estão em tempo de compreender a ameaça que representa o atual governo para sua própria segurança e para a de seus filhos. Por sua vez, a oposição global contra o imperialismo estadunidense que foi observada durante a véspera da invasão ao Iraque poderia recuperar força, e este momento de extremismo neoconservador pode ainda passar à história como um episódio a mais entre os tantos momentos sanguinários da história do imperialismo.

1 de dezembro de 2003

EUA: ONU

As origens americanas das Nações Unidas em San Francisco em 1945, e a dualidade dos usos e concepções dos EUA desde então: da Guerra Fria ao colapso da URSS até a guerra atual contra o terror e a ocupação da Mesopotâmia.

Peter Gowan


NLR 24 • NOV/DEC 2003

Tradução / Durante o século XX os líderes norte-americanos lançaram duas vezes ambiciosas instituições de segurança coletiva para solucionar conflitos internacionais. A cada vez, logo depois de lançados, os projetos eram subvertidos ou transformados pelos próprios Estados Unidos. A ideia de Wilson da criação de uma Liga das Nações naufragou com a oposição republicana no Senado. A concepção de Roosevelt das Nações Unidas foi abortada pela administração democrata de seu sucessor. Até 1950, a administração Truman, orientada por Dean Acheson, havia chegado a uma estrutura política bem diferente para gerenciar a política mundial, que não exigia desmantelar as Nações Unidas nem se retirar dela; a entidade mundial e suas agências desempenhavam demasiadas funções úteis aos Estados Unidos para isso. Porém significava reduzi-la a não mais que um papel secundário, como instrumento auxiliar da diplomacia americana. As Dean Acheson later put it, the un was ‘certainly an American contribution to a troubled world, [but] I personally am free of the slightest suspicion of paternity’.1

Não ficou óbvio de modo imediato que os líderes norte-americanos haviam marginalizado o projeto de Roosevelt para as Nações Unidas. O momento em que essa mutação se completou visivelmente foi o triunfo de Washington na mobilização das Nações Unidas para seus próprios fins: apoiar a intervenção ocidental na guerra civil coreana. Porém, na realidade, nesse momento, as Nações Unidas já haviam sido abandonadas como veículo através do qual a dominância global americana se expressaria. As Nações Unidas haviam sido degradadas e reduzidas a uma estrutura alheia ao projeto inicial de Roosevelt. Até a década de 1960 a Organização das Nações Unidas era considerada em Washington não somente secundária, mas também, de alguma forma, constrangedora, uma vez que as ex-colônias europeias e outros estados se organizavam no movimento não alinhado e usavam a assembleia geral como plataforma para divulgar opiniões indesejáveis para o Departamento de Estado. Tais desdobramentos levaram Acheson a declarar publicamente que “os votos nas Nações Unidas significam menos que nada”. Privadamente, os sentimentos de Acheson sobre a organização eram ainda mais cáusticos. Com grande desdém pelo funcionário nascido na Rússia que era o verdadeiro arquiteto das Nações Unidas na administração Roosevelt, referia-se às “Nações Unidas daquele rato do Leo Pasvolsky”.3

Leo Pasvolsky em seu escritório no Departamento de Estado dos EUA [foto de Marie Hansen/The LIFE Picture Collection]Há tempos Pasvolsky caiu no esquecimento (violentamente anti-bolchevista, Pasvolsky gostava de se gabar de que havia debatido com Trotsky em Nova York em 1916). Também caiu no esquecimento o vasto conclave de dois meses, na cidade de São Francisco, Califórnia, que estabeleceu as Nações Unidas. Há uma vasta literatura anglo-saxã sobre Versailles e uma literatura substancial sobre o Congresso de Viena. Inúmeras pessoas ouviram falar dos tratados de Vestfália. Mas São Francisco? A conferência que lançou a Carta das Nações Unidas e a ONU foi grandemente obliterada da memória pública do mundo anglo-americano. Se a grande conquista da Áustria de pós-guerra foi convencer o mundo de que Hitler era alemão e Beethoven era austríaco, houve períodos em que os conservadores nos Estados Unidos atingiram sucesso semelhante em persuadir muitos americanos de que as Nações Unidas foram o trabalho — se não uma conspiração — de estrangeiros. O livro Act of creation de Stephen Schlesinger nos lembra em detalhes vívidos que as Nações Unidas eram tão norte-americanas em sua concepção como a própria cidade de São Francisco. É de Schlesinger o primeiro livro a fornecer um relato razoavelmente acadêmico sobre o que realmente ocorreu na cidade californiana entre 25 de abril e 25 de junho de 1945, sobre o qual há um silêncio de 50 anos, até mesmo no enorme e diverso mundo acadêmico norte-americano.

Parte do motivo pelo qual a conferência em São Francisco não atraiu muita pesquisa deve-se ao fato que muitas das decisões mais importantes sobre o novo órgão já haviam sido estabelecidas entre os principais poderes na conferência em Dumbarton Oaks em setembro de 1944 e na cidade de Ialta em fevereiro do ano seguinte. No entanto, um efeito desse descaso foi que continuam escassos os estudos acadêmicos sobre todo o curso do projeto das Nações Unidas, desde os primórdios do planejamento de Roosevelt para o mundo pós-guerra até a própria conferência de São Francisco.4 Schlesinger nos deu um estudo razoavelmente completo dos procedimentos na Califórnia, mas o livro é um tanto superficial, carecendo de qualquer perspectiva histórica real sobre os cálculos das grandes potências que determinaram seu resultado. A esse respeito, não há comparação com o clássico estudo de Robert Hilderbrand sobre as negociações em Dumbarton Oaks. O livro The politics of war, de Gabriel Kolko, publicado décadas atrás, ainda permanece o guia indispensável e quase o único completo do quadro geral.

O expansionismo de Franklin Delano Roosevelt

Roosevelt estava bem equipado para desenvolver a grande estratégia exigida pelos Estados Unidos, uma vez que ficou claro que Stalingrado havia determinado o resultado militar da Segunda Guerra Mundial. Fascinado por política internacional desde sua juventude, Roosevelt estudara Mahan (historiador e oficial da marinha dos EUA) com entusiasmo na escola, acumulando uma biblioteca pessoal de livros sobre guerra naval enquanto frequentava Harvard. Um feroz admirador de seu primo Theodore Roosevelt, com cuja sobrinha Eleanor ele se casou, Franklin Roosevelt seguiu muito conscientemente os passos de seu parente assumidamente expansionista. Sua carreira política começou com o que, para um norte-americano da geração dele, era uma escola crucial em estratégia militar: o Departamento Naval, onde tornou-se secretário assistente em 1912. Lá ele se tornou um grande oficial da marinha, levando sua frota a rivalizar com a britânica. Em 1914, ansiava por uma guerra total com o México para “limpar a bagunça política” ocasionada pela revolução mexicana. No mesmo ano, declarou: “Nossa defesa nacional deve se estender sobre todo o hemisfério ocidental, deve se estender mil milhas mar adentro, deve englobar as Filipinas e quaisquer mares onde nosso comércio possa estar”. Desdenhando de seu superior, o secretário da marinha Daniels, um pacífico metodista da Carolina do Sul, Delano Roosevelt esforçou-se para lançar os Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial.

No fim da guerra, Roosevelt apoiou Wilson a respeito da Liga das Nações, mas também — posicionando-se de forma a moldar o pensamento do Partido Democrata sobre política exterior — queria robustecer o poder militar norte-americano. Uma vez instalado na Presidência, Roosevelt enviou Sumner Welles para esmagar a revolução de 1933 e instalar a ditadura de Batista em Cuba, bajulou clientes como Somoza na Nicarágua e — atento à necessidade dos votos dos católicos em casa — cuidou de auxiliar Franco embargando armas para a república espanhola durante a Guerra Civil. O fascismo, para ele, não era muito assustador. As relações com Mussolini eram excelentes; Vichy era um parceiro diplomático normal. Por outro lado, Franklin Roosevelt (embora pouco disposto a oferecer abrigo a refugiados judeus) enxergava a Alemanha nazista como o ressurgimento de uma ameaça expansionista total; exatamente como fez Churchill, outro político também de histórico naval vindo da Primeira Guerra. Assim, quando a luta irrompeu na Europa, e mesmo antes de os Estados Unidos entrarem na guerra, a administração Roosevelt já estava visualizando para além dela um novo mundo liderado pelos Estados Unidos.

Qualquer grande projeto para dominância global norte-americana tinha que abordar um problema fundamental: como estruturar a política doméstica americana para tal papel exterior. Wilson havia sido derrotado por esse desafio, mas a configuração das forças políticas domésticas havia mudado no final da década de 1930. Em primeiro lugar, os setores dominantes da classe empresarial estavam agora majoritariamente ligados à ideia de liderança norte-americana global. A ascensão do candidato Wendell Willkie entre os republicanos e a candidatura de Dewey contra Roosevelt (aconselhado por John Foster Dulles) durante a guerra demonstravam o novo consenso. Assim também o importante grupo de republicanos dentro da própria administração Roosevelt, entre eles Stimson, Lovett e McCloy. O que essa coalizão bipartidária do grande capital queria de Roosevelt era uma garantia de que a expansão internacional estaria em mãos seguras do ponto de vista dos negócios norte-americanos. Nesses círculos, a marca do internacionalismo representada pelo vice-presidente Henry Wallace foi julgada como sendo não confiável (do ponto de vista do liberalismo) e então Roosevelt o rejeitou, escolhendo para substituí-lo Harry Truman como seu parceiro de campanha – e pessoa com pouca probabilidade de ofender os conservadores.

Mas o isolacionismo popular estava longe de morrer nos Estados Unidos e havia um risco real de que, uma vez terminada a guerra, as pressões domésticas se intensificariam para que a América se concentrasse na resolução de problemas internos. A coalizão da classe empresarial precisava que Roosevelt surgisse com uma resposta firme para isso — uma resposta com um componente “moralista” poderoso, assim como deve possuir tal componente qualquer política de massa capaz de mover milhões de maneira duradoura. Grande parte do esforço de Roosevelt no preparo da opinião doméstica para as Nações Unidas envolvia construir tal apelo idealista — sem comprometer de maneira alguma as exigências de um estado dedicado à política de potência global e de expansão internacional do capitalismo norte-americano. Na América dos tempos de guerra, a política cultural local não tinha material disponível a partir do qual se pudesse tecer a bandeira interna necessária para a hipótese de liderança mundial da nação, a não ser uma variante atualizada do internacionalismo wilsoniano. Críticos subsequentes das bondades de Roosevelt a respeito das Nações Unidas teriam preferido uma substância moralista diferente: não o apelo ético sublime de uma nova e supostamente pacífica ordem mundial, mas sim o apelo mais realista de um anticomunismo robusto. Mas essa não era uma opção disponível para Roosevelt durante a guerra, quando uma aliança militar e diplomática com a União Soviética parecia essencial para a vitória.

No processo de resolver sua tarefa, a administração Roosevelt chegou a um insight fundamental: que instituições internacionais poderiam ser construídas para fazer face simultaneamente a duas direções radicalmente diferentes. Uma face estaria voltada na direção da política popular de massa, tanto dentro dos Estados Unidos como internacionalmente. Essa seria a face ética inspiradora, oferecendo as promessas de um mundo melhor. Porém, ao mesmo tempo, a face interna da organização poderia ser moldada de maneira totalmente diferente e, na realidade, de forma oposta, como uma moldura para a política de hegemonia.

Diretório de grandes potências

Desde o início, Roosevelt estava comprometido em envolver as bandeiras wilsonianas das Nações Unidas em torno de uma estrutura moldada como uma impressionante ditadura por um punhado de grandes potências. Ele nunca hesitou quanto a isso. A nova organização daria poder desprezível a seus estados-membros ordinários na assembleia geral: uma nítida violação das regras da Liga das Nações. Até mesmo o “comitê executivo” mais estreito, combinando grandes potências e outros estados-membros, para Roosevelt precisaria ser grandemente impotente. Todo o poder executivo deveria estar concentrado nas mãos de alguns poucos estados permanentes. O principal problema para Roosevelt era como garantir que, dentro desse diretório, os Estados Unidos dominassem.

Aqui Roosevelt enfrentou problemas tanto com Churchill como com Stálin. De muitas maneiras, os problemas de Roosevelt com Stálin a respeito da nova estrutura eram mais fáceis de lidar do que os problemas com Churchill. Inicialmente, Roosevelt concebeu o diretório pós-guerra como uma triarquia englobando Estados Unidos, Reino Unido e URSS; ou, como Hilderbrand chamava secamente, uma visão moderna do Dreikaiserbund (Liga dos Três Imperadores) dos dias de Bismarck. Essa noção, quando exposta em Teerã, soou eminentemente palatável para Stálin. Porém, conforme a vitória se aproximava, Roosevelt falava cada vez mais da sublime meta de reunir os povos da terra em uma assembleia comum. Para isso, Stálin não tinha entusiasmo. Suas prioridades eram essencialmente locais e práticas: Stálin estava convencido de que o resultado da guerra deveria fornecer mecanismos absolutamente confiáveis para a segurança geopolítica do estado soviético. Mas agora ele tinha motivos para temer que seu parceiro pudesse estar se afastando dos entendimentos anteriores. Pois, no momento em que o projeto das Nações Unidas estava sendo estabelecido em Dumbarton Oaks, Hilderbrand observa, “os americanos haviam se afastado do regionalismo, o princípio pelo qual o Kremlin esperava receber autoridade sobre seus vizinhos mais próximos, em favor de uma abordagem universalista que poderia abrir o caminho para o Ocidente intrometer-se na esfera soviética”.

Ao pressentir essa mudança, Stálin empenhou-se em garantir que o novo órgão global fosse projetado de forma que não pudesse ser utilizado como máquina para alinhar estados visando uma confrontação com a União Soviética. Havia dificuldades óbvias em garantir tais proteções para Moscou. Stálin conseguia ver a realidade: os membros da nova organização teriam uma pilha de estados do Hemisfério Ocidental, reunidos sob controle norte-americano; e outra pilha do Império Britânico. Assim a URSS poderia facilmente ser isolada em todas as agências e comitês da nova organização. Sua primeira resposta foi exigir que todas as repúblicas soviéticas fossem consideradas membros, o que causou pânico em Washington, onde a administração sabia bem que isso nunca seria aceito pela opinião pública norte-americana. Mas como Roosevelt, de qualquer maneira, não tinha intenção de conceder aos membros poderes significativos, isso não era uma questão assim tão importante. Ele convenceu Stálin a se conformar com o prêmio de apenas dois assentos a mais — da Ucrânia e Bielorrússia — na assembleia geral. Em Ialta, os Estados Unidos e o Reino Unido aprovaram essa concessão em princípio, enquanto insistiam que a real decisão sobre isso teria que ser tomada na conferência de São Francisco. Mais complicada era a exigência de Stálin que as grandes potências recebessem poder de veto sobre todas as questões de conteúdo e procedimento na nova organização. Os Estados Unidos resistiram a isso, argumentando que qualquer estado que estivesse diretamente comprometido em uma disputa com outro estado não deveria ter direito a voto sobre isso, e que o veto deveria ficar restrito à política, não a questões de procedimento.

Centralização ou esferas regionais

A Grã-Bretanha colocava um problema comparável. Segundo Cordell Hull, Churchill queria que as Nações Unidas tivessem uma estrutura regionalizada com um Conselho das Américas, um Conselho da Europa e um Conselho do Leste da Ásia — deixando o Sul da Ásia, o Oriente Médio e a África (ou seja, a maior parte do Império Britânico) esplendidamente não regulados. Esse esquema tinha suas atrações para Roosevelt. Atendia à determinação de Washington de reter seu controle sobre a América Central e do Sul, não implicando, ao mesmo tempo, exclusão dos Estados Unidos da Europa nem do Leste da Ásia. O poder norte-americano estaria bem implantado na Alemanha, podendo usar a tutela das Nações Unidas para estabelecer bases no Mediterrâneo, África Ocidental, Indochina, Coreia e Formosa. Enquanto satisfazia as necessidades dos Estados Unidos, a concepção regionalista, calculava Churchill, também ofereceria a melhor defesa do Império e de uma liderança britânica na Europa.

Se Roosevelt houvesse optado por uma estratégia pós-guerra de equilíbrio ao largo da costa em cada extremidade da Eurásia, o plano de Churchill teria tido suas atrações. Um arranjo regionalista informal permitiria que os Estados Unidos se mantivessem afastados das querelas locais na Europa ou no Extremo Oriente, mas podendo, ao mesmo tempo, intervir conforme necessário a partir de suas bases para impedir a formação de coalizões hostis. Porém, depois de algumas hesitações, Roosevelt rejeitou o esquema de Churchill e surgiu com uma estrutura centralizada sob a direção de uma grande potência global. Seu secretário de Estado, Cordell Hull, obcecado com a ideia de uma ordem de livre comércio (abrindo os mercados mundiais à indústria norte-americana), estava determinado a varrer do mapa todas as “esferas de influência” regionalistas que poderiam bloquear sua visão estreitamente centrada no comércio. Discutindo os perigos de tais blocos, Pasvolsky— depois de cometer a gafe de relembrar seu chefe que os japoneses haviam descrito sua esfera de co-prosperidade como a doutrina Monroe para a Ásia — foi ainda mais longe e observou que “se pedirmos o privilégio, todo mundo também pedirá”, o que “levaria os soviéticos a uma fusão própria deles”, uma perspectiva que precisava ser impedida. Roosevelt era simpático a tais considerações e também sabia que Hull falava em nome de forças poderosas no Congresso. De qualquer modo, calculava Roosevelt, ele poderia fazer uma estrutura centralizada funcionar melhor para os interesses norte-americanos.

A principal manobra de Roosevelt para garantir a dominância norte-americana dentro de um diretório global foi jogar o jogo da China. Não três, mas “quatro policiais” manteriam a ordem em todo o mundo, explicou ele. Antes de tirar esse coelho da cartola, ele garantiu que o regime irremediavelmente venal e desmoralizado de Chiang Kai-Shek — naquele momento reduzido a um reduto em Chungking— jogaria o jogo lealmente como um cliente norte-americano. Isso correspondia a dois votos norte-americanos entre quatro. Quanto à Grã-Bretanha, ficou claro que Londres seria criticamente dependente de recursos do poder militar e financeiro dos Estados Unidos por muito tempo, uma vez cessadas as hostilidades. Isso poderia transformar dois votos em três em todas as questões cruciais para Washington. Então, e a União Soviética? Nesse estágio, a esmagadora prioridade de Washington era expandir o poderio e os negócios norte-americanos em todo o mundo capitalista. Essa era a grande meta estrutural confrontando a Casa Branca na época; a meta não era engolir completamente a URSS. Três votos no diretório mais respeito pelos problemas soviéticos geopolíticos de segurança – parecia que essa seria uma fórmula que poderia funcionar.

Churchill, no entanto, ficou alarmado e indignado com o plano de Roosevelt quando soube dele em outubro de 1942. Repetidamente ele referia-se aos “Estados Unidos com sua China de faggot votes” (votos ilegalmente multiplicados) e não tinha dificuldade em detectar a conexão entre o truque chinês, uma visão centralizada das Nações Unidas e as intenções norte-americanas no Império Britânico. Os “chineses de rabicho” que Roosevelt estava tentando impingir aos “três grandes” seriam faggot votes do lado dos Estados Unidos em qualquer tentativa de liquidar o Império Britânico ultramarino. Eden buscou afastar Roosevelt advertindo que a China poderia “ter que passar por uma revolução depois da guerra”. Quando Roosevelt não se mexeu, Churchill lançou uma longa batalha buscando um faggot vote próprio. O formato improvável desse voto — considerando-se seus sentimentos para com De Gaulle — era a França, cujo império Churchill resolveu ver reconstruído depois da guerra, para deter os projetos norte-americanos para Indochina, Tunísia e Senegal.

Roosevelt resistiu vigorosamente, mantendo relações diplomáticas com o regime de Vichy muito depois do Dia D em 1944, e ainda rejeitando qualquer reconhecimento da administração De Gaulle na França até mesmo em setembro de 1944, quando os “quatro grandes” estavam negociando a estrutura das Nações Unidas na conferência de Dumbarton Oaks em Georgetown— uma reunião que, ela própria, tinha que ser dividida em duas conferências porque os russos não queriam se sentar à mesa com um governo chinês que ainda não havia declarado guerra contra a Alemanha. Mesmo depois que Roosevelt finalmente abandonou Vichy e reconheceu o governo De Gaulle, Washington demorou em reconhecer plenamente a França como parte dos “grandes cinco”. De Gaulle, que tinha poucos motivos para confiar no apoio de Churchill, não ganhou assento em Ialta. Mesmo enquanto a conferência de São Francisco se reunia, o tratamento que ele recebeu de Washington o fez sentir-se tentado a liderar uma revolta contra Dumbarton Oaks e recusar-se a tomar seu assento como membro permanente do conselho de segurança. Mas na própria São Francisco, os franceses cederam e entraram para os “grandes cinco”, enquanto os americanos foram forçados a abandonar seus planos de abocanhar pedaços do império francês como localidades adequadas para bases americanas.

O modelo rooseveltiano

Apesar dessas batalhas raivosas por poder, a dedicação de Roosevelt nos últimos meses e semanas de sua vida ao projeto das Nações Unidas manteve impulso doméstico e internacional suficiente para garantir que, nos meses após sua morte, São Francisco produzisse uma agência que era, em resumo, a que ele e seus colaboradores haviam concebido. Era uma brilhante obra de engenharia institucional. O pacote das Nações Unidas possuía, desde o início, duas bandeiras herdadas da Liga. A primeira era sua pretensão de escopo cosmopolita. Isso era só uma promessa em São Francisco, já que as potências do Eixo foram excluídas e os impérios europeus ainda não haviam sido destruídos. Porém, com o passar do tempo, graças à reconstrução pós-guerra na Alemanha e no Japão e à descolonização de Ásia e África, as Nações Unidas ultrapassariam grandemente a Liga em escala e importância. A segunda bandeira era dedicação renovada à paz e à resolução dos conflitos armados. Havia muito mais na retórica declaratória da Carta (e uma hoste de agências especializadas das Nações Unidas acabaria por surgir), mas essas duas bandeiras eram e continuam sendo os maiores símbolos da entidade mundial.

Na conferência de fundação, a segunda bandeira foi a mais visível já que, como observado, a primeira ainda tinha um elemento de condicionalidade política: não somente a Alemanha e o Japão, mas quaisquer potências ainda suas aliadas, e até países militarmente neutros mas politicamente pró-Eixo não tinham permissão de participar. Schlesinger explica que o logotipo das Nações Unidas, mostrando um mapa do globo dentro de ramos de oliveira, foi cuidadosamente projetado de forma a ocultar a Argentina por causa da sua amizade com a Alemanha nazista. A vinculação deliberada do cosmopolitismo das Nações Unidas com a coalizão aliada marcou a agência desde então; mais obviamente na composição dos “cinco grandes” e na exclusão da Alemanha e do Japão de suas fileiras.

Ao mesmo tempo, a declaração de São Francisco do princípio de igualdade soberana dos estados e de abertura a uma potencial participação de todas as nações carregava a atraente mensagem que as Nações Unidas um dia poderiam reunir dentro de si todos os representantes dos povos do mundo inteiro. Isso conferiu às Nações Unidas um tipo diferenciado de aura popular: não de uma democracia política, muito menos de justiça social, mas simplesmente de inclusão planetária. Nunca houve questão alguma de governo mundial aqui: a administração Roosevelt sempre se opusera vigorosamente a todos os que pressionassem por até mesmo um embrião disso. Mas seu alcance étnico sempre deu às Nações Unidas uma pátina potente, mas nebulosa, de autoridade. Isso, por sua vez, fortaleceu seu papel continuado como ponto focal para diplomacia em zonas de conflito armado incipiente ou real em quase qualquer lugar do mundo. Os protagonistas em um lado ou em ambos os lados têm procurado consistentemente usar as Nações Unidas como plataforma de esforços para ganhar apoio para sua causa — exatamente como os Estados Unidos também têm usado as Nações Unidas de forma razoavelmente consistente como um órgão no qual lançar responsabilidade por gerenciar ou conter conflitos nos quais os Estados Unidos não identificam interesse estratégico norte-americano premente.

Se eram essas as promessas normativas que o pacote de Roosevelt oferecia, esse pacote buscava simultaneamente garantir que as Nações Unidas não poderiam de modo algum se tornar um obstáculo à busca da estratégia global norte-americana. O ideal cosmopolita foi destruído quando não se deu à assembleia geral nenhum poder significativo para elaborar políticas. A autoridade de tomar decisões ficou concentrada em um conselho de segurança sem a menor pretensão de basear-se em qualquer princípio representativo que não fosse força bruta. Esse rompimento radical entre o escopo da assembleia e a oligarquia irresponsável do conselho de segurança era, na realidade, um tópico de debate interminável na administração de Roosevelt. O próprio Roosevelt estava inclinado a aplicar imposição completa aos “quatro policiais” sem muito esforço para disfarçar (ele brincou com a ideia de acrescentar o Brasil a eles, como mais um vassalo dos Estados Unidos, mas foi dissuadido por seus subordinados). Em vez disso, foi persuadido a trazer seis outros estados eleitos em rotação pela assembleia geral como um todo (não por regiões, conforme instados por Sumner Welles) para o conselho de segurança, essencialmente como fachada para as prerrogativas arbitrárias de seu quarteto de “gendarmes” planetários. Podia-se contar com seus grandes poderes de veto para tornar impotentes os membros eleitos, bem como tornar nulos quaisquer princípios representativos.

Orquestrando o nascimento

Assim era a situação quando os delegados de 46 países chegaram a São Francisco em abril de 1945 para dar os toques finais aos contornos amplos das Nações Unidas que haviam sido concebidos pelos Estados Unidos em Dumbarton Oaks e refinados em Washington durante os meses seguintes. Roosevelt morrera duas semanas antes. Seu último secretário de Estado, Edward Stettinius, antigo diretor da US Steel, foi despachado — com relutância — por Truman para presidir os trabalhos. O livro de Stephen Schlesinger oferece um relato gráfico do total controle norte-americano da ocasião. Bastante adequadamente, as sessões plenárias eram encenadas na Opera House, onde os delegados se sentavam como tantos espectadores de um musical da Broadway — o auditório tendo sido transformado para a ocasião por um projetista. Quatro pilares dourados com ramos de oliveira, um semicírculo de bandeiras no alto de mastros, vinte e quatro refletores “com filtros azuis para um efeito cosmético” e uma banda nos bastidores tocando música marcial enfeitavam a première. Assuntos mais monótonos foram tratados por comitês especializados no edifício dos veteranos, que ficava próximo. Se esses ambientes sugeriam passividade e impotência, nenhuma conotação assim se associava ao apartamento de cobertura de Stettinius no Hotel Fairmont, que testemunhou a verdadeira ação quando as outras grandes potências foram convocadas para discutir com seu anfitrião.

Enquanto isso, na base do exército, no velho presídio espanhol a alguns quilômetros de distância, a inteligência militar norte-americana interceptava sistematicamente todo o tráfego de telegramas de comunicação trocados pelos delegados com seus países de origem, cujas mensagens decodificadas pousavam na mesa do café da manhã de Stettinius; enquanto o FBI rastreava seus movimentos na cidade — bem como, naturalmente, lobbies anticoloniais e outros grupos subversivos que se congregavam em torno da conferência. Muito do que foi bisbilhotado até hoje permanece oculto com tinta preta nas transcrições.

A conferência se concentrou em duas questões principais. A primeira era a posição que a União Soviética ocuparia dentro da estrutura emergente destinada a proteger o poder global norte-americano como Roosevelt o havia concebido. Molotov e Gromyko chegaram apressadamente de Dumbarton Oaks. Os poderes de veto dos membros permanentes do conselho de segurança deviam abranger matérias não somente de substância, mas também de procedimento, já que — como destacou Gromyko — nada era mais fácil do que a segunda deslizar rapidamente em direção à primeira. Truman, que com frequência era visto como mais anticomunista do que Roosevelt, despachou Harry Hopkins para Moscou com instruções: “Polônia, Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia, Áustria (sic), Iugoslávia, Letônia, Lituânia, Estônia, e outros (re-sic), não fazem diferença para os interesses dos Estados Unidos”. Com essa garantia, Stálin deixou de se opor à versão norte-americana do veto. A conferência de fundação das Nações Unidas terminou com um recuo soviético para cada ponto importante de discórdia. Os “linha-dura” da delegação norte-americana tinham todos os motivos do mundo para ficarem exultantes.

A concepção de Roosevelt para as Nações Unidas não sobreviveu intacta aos anos seguintes. A guinada na política estrangeira norte-americana enfatizou não as organizações coletivas de segurança para a paz mundial (em que ninguém, em princípio, é inimigo a menos que quebre as regras), mas alianças bilaterais de segurança construídas em linhas amigas/inimigas, desde o início.

O papel de Rockefeller

Enquanto a maior parte da administração Roosevelt se preocupava em travar uma guerra e organizar os preparativos para ancorar a dominância norte-americana através de uma organização coletiva de segurança, o setor que manipulava os assuntos latino-americanos sob a liderança de Nelson Rockefeller não estava envolvido em nenhum dos dois. Aqui não havia guerra a lutar, e a construção organizacional em que Rockefeller estava envolvido era a de uma aliança hegemônica de segurança. Rockefeller havia sido coordenador de assuntos interamericanos na administração desde 1940, onde uma de suas principais metas era, como ele definiu em um memorando oficial, “diminuir a dependência latino-americana da Europa como mercado para suas matérias-primas e fornecedora de artigos manufaturados”. Como observado em outro memorando oficial, havia “boas propriedades no portfólio britânico” na América Latina e “bem que nós poderíamos agarrá-las agora”, embora também houvesse “um monte de lixo que a Grã-Bretanha deveria ter permissão de manter”. Com tal finalidade, Rockefeller havia construído comitês coordenadores em cada país latino-americano. Como explicou um graduado diplomata norte-americano em uma carta para o chefe de Rockefeller, o subsecretário de Estado para Assuntos Latino-Americanos, os comitês eram “compostos dos mais importantes homens de negócios”, incluindo a Standard Oil, Guggenheim, GE e United Fruit. “Eles têm ideias muito bem definidas sobre como deveria ser nossa política e, em geral, as ideias deles têm sido as mais reacionárias”.

Tal foi o sucesso de Rockefeller nesse trabalho que, em novembro de 1944, ele foi promovido a secretário assistente para Assuntos Latino-Americanos. No início de 1945 ele organizou uma conferência interamericana em Chapultepec, no México, para formalizar a dominância dos Estados Unidos na região através de uma aliança militar/de segurança. Formalmente, o Pacto de Chapultepec comprometeu os Estados Unidos a defender os estados da região contra agressão externa; na prática, o objetivo era proteger os regimes pró-americanos contra subversão interna, em troca de acesso norte-americano a qualquer recurso que desejassem nos vários estados envolvidos.

Porém, a atividade de Rockefeller em Chapultepec provocou feroz oposição por parte da divisão internacional do Departamento de Estado, pois ela contradizia o princípio de Dumbarton Oaks que determinava que todas as disputas internacionais deveriam ser tratadas pelas Nações Unidas. Havia mais um problema com o ativismo de Rockefeller — o tipo de forças políticas que ele apadrinhava em vários países da América Latina. Nicolo Tucci, o chefe da Agência Latino-Americana de Pesquisa no Departamento de Estado, pediu demissão, declarando que “minha agência tinha que desfazer a propaganda nazista e fascista na América do Sul, mas Rockefeller está convidando os piores fascistas e nazistas para Washington.”

No entanto, Rockefeller ganhou em Chapultepec e, apesar de não ter sido incluído na delegação norte-americana em São Francisco, apareceu lá de qualquer maneira e tornou-se uma das figuras mais poderosas na conferência, pela simples razão que ele, e não o chefe da delegação norte-americana, seu superior formal Stettinius, contava com a lealdade das delegações latino-americanas, cujos votos tinham peso decisivo. Rockefeller cuidou de todas as necessidades do bloco latino-americano, mandando a marinha dos Estados Unidos cumprir seu papel e reunindo-se regularmente para elaborar linhas comuns sobre questões da conferência. Rockefeller tinha relações ainda mais próximas com o FBI do que tinha seu próprio secretário de Estado. Ele disse ao agente chefe do FBI na conferência que ele, Rockefeller, seria o veículo para os relatórios do FBI destinados a Stettinius. O FBI agradeceu, passando todo o seu material a Rockefeller, embora ele não tivesse função oficial alguma em São Francisco. Stettinius nunca descobriu esse vínculo.

O primeiro problema a eclodir foi a Argentina, com seu governo pró-fascista bruto. A reunião latino-americana de Rockefeller insistiu que dessem permissão à Argentina para participar das Nações Unidas. A reunião também advertia que, a menos que a Argentina tivesse um assento, os latino-americanos bloqueariam assentos para a Ucrânia e Bielorrússia, ameaçando assim uma grande ruptura pública com a União Soviética. Stettinius se viu obrigado a concordar. Em seguida, e muito mais grave para os princípios centrais das Nações Unidas, veio a pressão de Rockefeller para garantir que a conferência aceitasse o Pacto de Chapultepec, embora Washington estivesse fazendo campanha para um órgão mundial centralizado, acabando com as esferas de influência regionais.

Stettinius tentou lutar contra Rockefeller e o resultado foi a disputa interna mais grave dentro da delegação norte-americana em São Francisco. Rockefeller ganhou a batalha contra Stettinius e foi acordada uma vaga forma de palavras no Artigo 51 da Carta que permitia autodefesa individual ou coletiva no nível regional. Na década de 1950, encontrando-se ao lado de Rockefeller em um jantar, Stettinius declarou: “Eu lhe devo desculpas. Se você não tivesse feito isso, talvez nunca tivéssemos tido a Otan”. O real significado da atividade de Rockefeller na América Latina e em São Francisco era muito mais profundo. Ele estava oferecendo um modelo político de como organizar o poderio norte-americano global, em parte alternativo e em parte complementar ao modelo de Roosevelt das Nações Unidas: os contornos de um mundo capitalista subordinado aos Estados Unidos através de um sistema de alianças amigos/inimigos centrado no anticomunismo.

Ao longo das duas décadas depois da Segunda Guerra Mundial, o poderio do governo dos Estados Unidos na política mundial e seus interesses em desenvolver um sistema de alianças com outros governos contra a União Soviética, China e o comunismo, produziram as condições políticas subjacentes que possibilitaram a ascensão do transnacionalismo – empresarial. A Europa Ocidental, a América Latina, o leste da Ásia e grande parte do sul da Ásia, Oriente Médio e África se encaixavam no que era eufemisticamente chamado de “mundo livre” e que era, na realidade, uma zona de segurança. Os governos dos países dentro dessa zona achavam que estavam entre seus interesses: (a) aceitar uma garantia explícita ou implícita por parte de Washington da independência de seu país e, em alguns casos, da autoridade do governo; e (b) permitir acesso a seu território para uma variedade de organizações norte-americanas governamentais e não governamentais perseguindo metas que essas organizações considerassem importantes… A “Pax Americana”, como afirmou I. F. Stone, “é o internacionalismo da Standard Oil, Chase Manhattan e do Pentágono”.

Em tal ordem mundial, sejam quais fossem os papéis das Nações Unidas e suas várias agências, elas não poderiam ser mais do que auxiliares dentro das estruturas políticas da primazia norte-americana.

Encenando o desenlace

A Conferência de São Francisco terminou em grande estilo, com uma festa de gala no último minuto promovida por Nelson Rockefeller no Iate Clube St Francis, “abrilhantada pela presença de Carmen Miranda, a ‘Brazilian bombshell’, para celebrar o encerramento”. A isso se seguiu um final esplendorosamente coreografado na Opera House, holofotes brilhando sobre uma decoração de adereços de luxo em vários tons de azul, um fluxograma para rastrear os movimento dos delegados, ensaios de cada assinatura da Carta em uma sala escondida atrás do palco, e manobras de última hora para evitar que a Argentina liderasse o desfile de signatários que, de outra maneira seria em ordem alfabética. Assim que a cerimônia acabou, “guardas armados correram para o andar superior com a Carta e a colocaram em um cofre à prova de incêndio que pesava 34 quilos”. A carga preciosa foi então transportada em um avião especial do exército — embrulhada em seu próprio paraquedas para caso de acidente — para Washington por ninguém menos que Alger Hiss, o secretário geral da conferência. Esperando uma recepção igualmente solene ao entregar a Carta na Casa Branca, Hiss ficou mortificado ao encontrar o presidente descansando em mangas de camisa, um uísque na mão, indiferente à majestade da nova aliança em sua arca de aço com fechadura de combinação.

Não se poderia achar máxima melhor para as hipocrisias características das Nações Unidas quanto esta: quanto mais cínica e bruta a conduta de suas potências dominantes, mais essencial “invocar” e “contemplar” o bálsamo de edificantes princípios. O destino de Stettinius, descartado sem cerimônia por Truman a poucos dias de completar sua missão em São Francisco, foi um barômetro mais honesto da real condição atribuída às Nações Unidas em grandes projetos norte-americanos nos anos vindouros. Durante a Guerra Fria, a estratégia norte-americana global prosseguiu seguindo as linhas de Acheson.

Uma agenda mais “avançada”

Considerando-se que o projeto de Roosevelt garantiu realmente a dominância dos Estados Unidos sobre a política do mundo capitalista (com proteções de veto para a URSS), pareceria estranho que os líderes norte-americanos achassem a organização insuficiente como o principal instrumento da hegemonia norte-americana. Um indício pode ser encontrado em outra das observações de Acheson sobre a agência mundial. Ele alegava que as Nações Unidas eram uma ideia do século XIX. Claramente isso era um exagero, mas o que Acheson queria dizer certamente era que a concepção das Nações Unidas pertencia a uma época antes da hegemonia norte-americana. Pois a formal razão de ser das Nações Unidas, como a Liga antes dela, era acabar com as guerras entre os estados (capitalistas) estabelecendo regras de ação coletiva para detê-las. Para a Grã-Bretanha e para outras potências satisfeitas dos anos entre as guerras, esse era um princípio admirável. Nessa época Londres já havia abocanhado o que queria — e mais —em todo o globo, e o legalismo liberal, tão perfeitamente capturado e criticado por E. H. Carr, incorporado na Liga e a base de sua jurisprudência, atendia a seus interesses.

Afunção de segurança coletiva de defender o status contra potências revisionistas era irrelevante sob a hegemonia norte-americana pela simples razão que a América, diferente da Grã-Bretanha, possuía os recursos para impor um controle unipolar sobre todas as outras potências capitalistas na Europa Ocidental e na Ásia Oriental. Nesse sentido, Acheson tinha razão: o princípio de segurança coletiva era antiquado e supérfluo sob a hegemonia norte-americana. Basicamente ainda abordava o que tinha sido o problema mais espinhoso do mundo centrado na Europa.

Certamente, para os Estados Unidos exercerem o papel de guardiões e gerentes do núcleo todo, isso exigiria militarizar o Estado norte-americano permanentemente. Porém, por sua vez, parecia que isso poderia resolver problemas complicados da economia política doméstica. Nessas condições, as Nações Unidas eram não apenas redundantes como instrumento para estabilizar relações entre os principais centros capitalistas, mas, do ponto de vista de Acheson, eram piores do que redundantes porque, na causa de defesa política coletiva do status quo, as Nações Unidas promoviam um princípio jurídico que era, quando muito, inútil: soberania nacional absoluta. Novamente, isso era um princípio mais afinado com a era do imperialismo britânico do que com o imperialismo norte-americano. Os britânicos nunca tiveram a capacidade de remodelar coercivamente os arranjos internos de outros estados capitalistas. A especialidade deles era tomar e remodelar sociedades pré-capitalistas, derrotando forças tradicionalistas de resistência dentro de tais sociedades. Assim, o princípio de direitos absolutos dos estados e não-interferência era perfeitamente aceitável para os britânicos, uma vez que eles haviam atingido os limites de seu império.

Porém Washington tinha uma agenda diferente: primeiro, penetrar nos estados capitalistas existentes e reconhecer seus mecanismos internos para que se adequassem às finalidades norte-americanas; e segundo, derrotar quaisquer forças sociais ali que rejeitassem a via norte-americana para a modernidade em nome não do tradicionalismo, mas de uma modernidade alternativa. O modelo das Nações Unidas simplesmente não abordava essas questões que eram tão fundamentais para Washington. Na realidade, o modelo oferecia uma defesa conceitual contra a interferência norte-americana em sua ênfase na soberania nacional. Como resultado, a ordem política e social das Nações Unidas era um obstáculo incômodo para grande parte das atividades de pós-guerra norte-americanas, forçando muitos de seus movimentos por mudança interna de regime a serem organizados acobertadamente. O princípio de Acheson de união do mundo (mercado) livre contra toda a resistência — tematizado como “comunismo”— ao modo norte-americano de organizar a vida moderna podou as fraseologias da Carta das Nações Unidas. Intensificando a ameaça soviética, transformou os dois principais centros de capitalismo na Eurásia, Europa Ocidental e Japão, em semiprotetorados dos Estados Unidos — permitindo assim que Washington reconstruísse a Alemanha e o Japão com os polos industriais de suas respectivas regiões sem medo que eles pudessem tornar a desenvolver estratégias geopolíticas para reorganizar suas regiões como rivais de Washington. Paralisar o sistema das Nações Unidas, com seu lugar simbólico proeminente para a URSS, era, assim, um componente necessário da primazia de Acheson.

Depois da queda

A primeira Guerra do Golfo em 1991 foi um falso amanhecer para as Nações Unidas após a Guerra Fria, assim como a Coreia tinha sido no início da Guerra Fria. Ao violar o princípio de soberania incondicional dos estados, a invasão do Kuwait por Sadam Hussein permitiu aos Estados Unidos explorar ao máximo as Nações Unidas, dando uma demonstração do novo alcance da hegemonia norte-americana, à medida que a União Soviética cambaleava rumo à extinção. Porém agora, mais do que nunca, a utilidade das Nações Unidas para os Estados Unidos na era pós Guerra Fria exigia que seu princípio central de soberania dos estados fosse sucateado, pois esse princípio sugere que os estados são livres para organizar suas economias políticas domésticas como desejarem, ao passo que as correntes de lucro dos negócios norte-americanos (e muito dos europeus, especialmente britânicos) dependem fundamentalmente de acordos internos em outros estados que forneçam liberdade irrestrita para operadoras financeiras externas, direitos irrestritos para as empresas estrangeiras adquirirem empresas domésticas e proteção irrestrita de preços monopolistas sobre propriedade intelectual. A Carta das Nações Unidas não garante nada disso: na realidade, teoricamente, ela trabalha contra isso.

Assim, durante a década de 1990, os Estados Unidos e seus associados europeus procuraram retrabalhar o discurso tradicional das Nações Unidas, argumentando que a soberania não era incondicional, mas que deveria ser encarada como uma permissão revogável concedida a estados pela “comunidade internacional”, a ser emitida ou retirada de acordo com a palatabilidade ou conforme seu regime interno. Se um estado deixasse de atender os devidos padrões internacionais, justificava-se bloqueio ou invasão contra tal estado. Ao construir essa revisão, na qual trabalharam um exército de juristas e diplomatas, Washington (e Londres) conseguiram inspirar-se em ideais das Nações Unidas com bons resultados. O repertório eclético da própria Carta, com sua mistura de cláusulas contraditórias, oferecia um antídoto pronto para qualquer insistência muito firme sobre soberania nacional. Pois, afinal de contas, ela também era uma sonora declaração dos direitos humanos universais. Esses eram os valores superiores que o momento exigia, legitimando um novo “humanismo militar” em defesa deles. Nos Balcãs, a guerra podia ser travada pela Otan em nome dos direitos humanos e dos livres mercados, com a bênção do secretário geral das Nações Unidas, e “serviço pós-venda” ministrado pelo conselho de segurança. No final da década de 1990, parecia que a visão original de Roosevelt das Nações Unidas como instrumento central do poder norte-americano global poderia reviver, até além das expectativas de Roosevelt, já que a Rússia agora também poderia ser contada entre seus dependentes de um modo que ele mal poderia ter imaginado em Ialta.

Mas nem mesmo essa mudança foi suficiente para persuadir sucessivos presidentes a confiarem nas Nações Unidas como seu instrumento de hegemonia. A Casa Branca permaneceu comprometida com o modelo de primazia, organizado através de alianças de segurança radiais que tornam os outros principais estados capitalistas dependentes dos Estados Unidos para sua segurança. Uma nova cisão global (agora contra o “terrorismo”) oferece uma base muito mais flexível para intervencionismo de grande amplitude do que qualquer fórmula legal que o secretariado das Nações Unidas, embora com boas intenções, pudesse fornecer.

As Nações Unidas se encaixariam na estrutura de hegemonia norte-americana como uma máquina auxiliar novamente, como nos dias da Guerra Fria, mas desta vez com os outros quatro membros permanentes do conselho de segurança firmemente subordinados às diretivas dos Estados Unidos — uma impressionante máquina de ditadura mundial. Em caso de frustração, pelo menos Washington pode ter certeza que não há chance de quaisquer outras forças conseguirem usar as Nações Unidas como freio eficiente dos instintos predatórios dos EUA e de seus amigos britânicos.

Porém, apesar de mais precária, a estrutura rooseveltiana ainda se mantém. Depois da mais descarada de todas as guerras norte-americanas em violação à Carta das Nações Unidas, todas as mãos no conselho de segurança — algumas ansiosamente, outras mais aborrecidas — se levantaram para endossar a autoridade fantoche instalada pelos conquistadores, ratificando sua conquista.

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__________ Invoking humanity. War, law, and global order. Londres-Nova York, 2002.

Sobre o autor

Peter Gowan (1946-2009) foi professor de relações internacionais na Universidade Metropolitana de Londres e membro do comitê editorial da New Left Review.

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