9 de setembro de 2000

A razão do eleitor

Estudo pretende demonstrar peso da ideologia nas eleições brasileiras

Fábio Wanderley Reis


Este volume de André Singer, fruto de tese de doutorado apresentada ao departamento de ciência política da Universidade de São Paulo em 1998, é um estudo de natureza empírica, tendo seu cerne no exame de dados coletados por institutos como DataFolha e Ibope, por ocasião das eleições presidenciais de 1989 e 1994. A contribuição central que o livro pretende trazer é bem simples e clara.

As pesquisas acadêmicas do processo eleitoral até aqui desenvolvidas no Brasil tendiam ou a deixar de lado a variável correspondente ao contraste entre esquerda e direita ou a considerá-la em termos das posições adotadas pelos eleitores quanto a questões como intervencionismo estatal, nacionalismo e outras normalmente associadas a ela. Já o estudo de Singer usa dados sobre a maneira pela qual os próprios eleitores se situam em resposta a perguntas diretas sobre a sua posição na escala que vai da esquerda à direita. O resultado é que os dados mostram a existência de correlação entre a autocolocação como esquerdistas ou direitistas, por parte das pessoas entrevistadas, e seu voto nas eleições mencionadas.

Assim, os votos em Lula tendem a concentrar-se entre os que se definem como de esquerda, enquanto os votos em Collor e Fernando Henrique Cardoso se concentram entre os que se definem como de direita ou de centro.

Eleição e ideologia

A grande indagação é o significado ou alcance a atribuir a essa verificação. A leitura que faz o próprio Singer de seus dados vai na direção de destacar, como se resume na orelha do livro, que "a ideologia está muito mais presente na decisão eleitoral no Brasil do que é habitual imaginar". É admissível, por certo, a sugestão de alguma "ideologização" crescente que trazem outros aspectos dos dados, bem como a intensificação da nitidez do confronto esquerda-direita como consequência da afirmação do PT no nível da disputa presidencial e da introdução da polarização própria do segundo turno.

Matéria recente da Folha (de 16/8) mostrava também que a distribuição de votos entre "esquerda" e "direita", tal como os eleitores revelam percebê-las em pesquisas eleitorais, aproxima-se das proporções de deputados federais pertencentes aos partidos percebidos como situando-se em cada categoria. Contudo serão indícios como esse suficientes, em combinação com as constatações de Singer, para considerar "ideológico" o eleitorado brasileiro ou ver a presença forte da ideologia no condicionamento da decisão eleitoral?

Em pesquisas anteriores que trataram de utilizar a escala esquerda-direita, a razão para deixá-la de lado foi a constatação de que a enorme maioria dos eleitores brasileiros simplesmente não conhece o significado dessas categorias. Em projeto que eu mesmo coordenei, por exemplo, dados coletados em 1991/92 junto a uma amostra do eleitorado de Belo Horizonte e a trabalhadores paulistas e mineiros mostram níveis de desconhecimento que alcançam 90% ou mais.

Diante da importância atribuída por Singer à identificação com esquerda e direita, somos levados a pensar que seus dados neguem ou corrijam, de alguma forma, essa constatação. Ao contrário, eles a corroboram: Singer nos informa (com alguma demora: pág. 142), referindo-se a dados por ele utilizados, não só que mais de 60% dos entrevistados declaram diretamente não saber o que as categorias significam ou dão respostas inteiramente equivocadas à pergunta correspondente, mas também que outros 20% as assimilam a ser contra ou a favor do governo, resposta igualmente errada que ele, com leniência, decide tratar como correta.

Ora, um pouco de sensibilidade metodológica desperta a atenção para um problema evidente. Trata-se da possibilidade de que a correlação observada entre a decisão de voto e a opção por esquerda ou direita (que não é lá tão intensa, com os próprios dados de André Singer mostrando que a preferência ou identificação partidária é muito mais importante para o voto) não seja senão a combinação de duas coisas: o fato de que a minoria que sabe o significado das categorias e se identifica com uma ou outra vota de acordo com sua identificação, o que é banal; e o fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência "correta" entre o voto e a autocolocação na escala esquerda-direita.

Do ponto de vista da manipulação analítica a ser feita dos dados, daí resulta uma recomendação: a de tratar de observar a maneira como se comporta a correlação em questão, quando se controla ou mantém constante o conhecimento do eleitor sobre o significado de esquerda e direita. Naturalmente, cabe esperar que, se separarmos os que sabem o que essas categorias significam daqueles que não o sabem, a correlação inicial do voto com a identificação esquerda-direita se intensificará entre os que sabem, enquanto se reduzirá ou eventualmente desaparecerá entre os que não sabem.

Singer prescinde dessa operação simples, abrindo mão de assim esclarecer melhor, no plano do processamento dos próprios dados, o sentido da correlação encontrada (apesar de que o livro contém, na seção 3.5, tabulações e análises "trivariadas" ou tridimensionais a propósito de como se combinam o efeito da "ideologia" e o do apoio ao Plano Real sobre o voto de 1994).

"Sentimento" ideológico

Mas a operação seria crucial, já que o autor sustenta a posição sibilina segundo a qual a correlação entre o voto e a "ideologia", tomada esta última em termos de adesão à "esquerda" ou "direita" em circunstâncias em que a maior parte do eleitorado ignora o significado dessas categorias, indicaria a existência de um "sentimento" ideológico de natureza "intuitiva"... A clara implicação, não verificada e de plausibilidade duvidosa, é que, se excluída a minoria informada, a correlação não seria afetada de maneira relevante, continuando a ocorrer distribuição significativamente diferente da que resultaria da mera correspondência casual entre voto e identificação "ideológica".

De acordo com Singer, sua interpretação enigmática teria respaldo em certa perspectiva na literatura internacional relativamente recente sobre o comportamento eleitoral. Com efeito, encontra-se nessa literatura a idéia do papel de "imagens" mais ou menos difusas dos partidos na decisão dos eleitores, além da velha idéia de Anthony Downs segundo a qual a ideologia permite ao eleitor economizar na obtenção de informações (embora a idéia de Downs não remeta por força à concepção do eleitor cognitivamente rústico e ignorante, mas antes à daquele que se furta deliberadamente às complicações e aos vaivéns das conjunturas mutáveis).

Contudo, apesar das posições confusas de autores em que Singer encontra apoio mais direto (como T. Levitin e W. Miller em texto de 1979), os analistas mais sofisticados, como Giovanni Sartori, não deixam de apontar enfaticamente a conexão dessas "imagens" com elementos intelectuais e o caráter de síntese cognitiva da percepção de questões complexas que elas podem adquirir.

Sartori é mal lido por Singer, que o invoca para assimilar (pág. 37) "identificação ideológica" com imagem e esta com a idéia de um eleitorado "cognitivamente pouco estruturado".

Na própria passagem de Sartori citada por Singer a respeito, entretanto, a importância das imagens partidárias para o voto aparece condicionada a que a política "se desenvolva", o eleitor adquira "capacidade de abstração" e o sistema partidário seja estruturado de modo efetivo por partidos de massas.

Na verdade, a propósito da comparação das orientações partidário-eleitorais na América do Norte e na Europa, Sartori relaciona mesmo explicitamente a "capacidade" (note-se bem) de situar-se na escala esquerda-direita a "populações de elite", tais como os estudantes universitários (e o eleitorado europeu em geral), embora sustente que se pode atingir o ponto em que o simbolismo emocional das imagens ideológicas sobrepuje sua função cognitiva (vejam-se, por exemplo, as págs, 341 e 354, nota 55, de "Parties and Party Systems").

Naturalmente, uma perspectiva análoga à de Sartori será indispensável se quisermos ser fiéis à complexidade da idéia de ideologia que, além do componente emocional ou de identificação e antagonismo, esteve sempre associada com certa visão doutrinária estruturada de modo mais ou menos rico e sofisticado.

Sem falar de Marx e de coisas como o condicionamento do acesso à "consciência de classe" por fatores intelectuais ligados à transformação das condições objetivas, ou da conhecida "estruturação ideológica" de Philip Converse, seria possível lembrar, por exemplo, a cuidadosa revisão do tema da ideologia realizada por Robert Putnam muitos anos atrás ("Studying Elite Political Culture", 1971), na qual o núcleo da noção de "política ideológica" surge como remetendo ao papel das idéias na política, enquanto o "estilo ideológico" é caracterizado por traços como a tendência a raciocinar politicamente em termos abstratos e teóricos e a referência a ideologias específicas ou a utopias de algum grau de coerência. Nessa ótica, a posição de Singer acaba por sugerir o oxímoro de uma "ideologia não-ideológica", paradoxo, aliás, utilizado quase nesses termos em avaliação do trabalho de Levitin e Miller citada com aprovação tácita por ele (pág. 35).

Seja como for, o componente cognitivo da ideologia desaparece na perspectiva de André Singer. Daí que o eleitor que sua análise levaria a classificar como "ideológico" possa corresponder igualmente a qualquer dos dois casos seguintes: em primeiro lugar, o do eleitor sofisticado que, ao decidir como votar, traz seus valores à avaliação de como problemas diversos da conjuntura se articulam com um diagnóstico informado do próprio sistema sociopolítico geral em que vive e atua; em segundo lugar, o do eleitor tosco que ouviu cantar o galo de "esquerda" e "direita", teve sua simpatia por uma ou outra despertada por motivos espúrios e projeta sobre partidos ou candidatos os traços que sua desinformação lhe dita como cabíveis.

Nesse segundo caso, "esquerda" e "direita" não têm sequer a consistência e o interesse da contraposição singela entre "ricos" e "pobres", que estudos anteriores há muito nos mostram em operação no eleitorado popular brasileiro (que certamente "sabe" o que significa ser rico ou ser pobre) e da qual continua a valer-se o nosso velho populismo: haverá aí algo relevante para as verificações que Singer relata? Isso permite assinalar que o trabalho de Singer furta-se inteiramente ao diálogo adequado com estudos brasileiros anteriores em que, como nos de minha própria autoria, são perseguidos os matizes de identificações políticas diversas e estáveis que, justamente, "diferem" em sua articulação com os fatores de maior ou menor sofisticação intelectual e com a capacidade de apropriada compreensão de questões políticas específicas ("issues") de natureza variada.

O volume de André Singer traz contribuições interessantes em alguns aspectos, sobretudo com respeito às circunstâncias das eleições de 1989 e 1994. Em seu ponto central, no entanto, ele redunda em erigir simplismos conceituais e metodológicos em achado importante e em convidar-nos a esquecer nuances do jogo político-eleitoral brasileiro que há tempos, com esforço, chegamos a apreender.

Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro
André Singer
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4008)
204 págs., R$ 25,00

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor na Universidade Federal de Minas Gerais.

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