13 de fevereiro de 2000

Um lugar dentro da história contemporânea

O ensaísta Edward Said escreve sobre os desafios atuais colocados aos palestinos para que possam exprimir sua identidade como cidadãos de um país livre

Edward Said

especial para a Folha

Uma das frases mais citadas de John F. Kennedy é "ich bin ein Berliner", dita por ocasião de sua visita, em 1961, à cidade recém-dividida pelo muro. "Eu sou um berlinense", afirmou para a tumultuosa aclamação do público presente e de todo o mundo. Foi um gesto de solidariedade e talvez também de coragem um homem tão distante das dificuldades de viver numa cidade torturada afirmar que compartilhava a existência dolorosa de seus cidadãos. Ninguém pôs em dúvida seu direito de fazê-lo, nem disse que ele não tinha vivido o suficiente na Alemanha. Do mesmo modo, quando os estudantes rebeldes da Paris de 1968 proclamaram aos gritos "nous sommes tous des juifs" (todos nós somos judeus) para expressar sua solidariedade aos judeus que haviam sido deportados e exterminados pelos nazistas, ninguém, que eu me lembre, negou-lhes o direito de fazê-lo, nem os censurou por tomarem uma identidade alheia com o propósito moral de reconhecer e assumir os sofrimentos de outros seres humanos. O mesmo ocorreu com muitas pessoas de todo o mundo, inclusive dos países árabes, cujos sentimentos de compaixão e solidariedade moral para com as vítimas palestinas de Israel fizeram-nos optar por ser efetivamente palestinos. O falecido Eqbal Ahmad, indiano de nascimento, paquistanês de nacionalidade, sempre se referia a si mesmo como um de "nós", palestino por escolha e não por nascimento. E, no entanto, o discurso público sobre o Oriente Médio tornou-se tão distorcido e repreensível, tão influenciado pelos sionistas ocidentais, que o simples fato de reconhecer-se como palestino de nascimento traz, há tempos, o estigma da delinquência e até da criminalidade.

Camisetas da Intifada

No meu caso particular, recordo perfeitamente que, logo que obtive meu primeiro título na universidade e quando começava a preparar meu doutorado em letras, se me perguntavam minha nacionalidade, eu me identificava, de modo bem consciente, como árabe. Ou seja, evitava propositalmente o problema de explicar que na realidade eu era palestino, de Jerusalém, com tudo o que isso acarretava.

Deve-se reconhecer o mérito perene da OLP, entre 1968 e 1982, cujo surgimento permitiu a todos os palestinos identificar-se como pertencentes a um povo, na realidade a uma nação, ainda que no exílio e despossuída. E durante a Intifada esse orgulho de pertencer a uma identidade que lutava corajosamente por sua sobrevivência, fazendo frente aos esforços por extingui-la ou negá-la, estendeu-se por toda a parte.

Em Praga, a resistência ao governo de partido único era expressa com as camisetas da Intifada vestidas pelos jovens manifestantes. O mesmo aconteceu na África do Sul durante os últimos dias do apartheid, em 90-91. Ser palestino e rebelar-se contra os soldados de ocupação israelenses era, de fato, dar maior profundidade e significado à luta contra a discriminação racial. Por certo, uma das ironias da história é o fato de que o maior inimigo histórico do povo palestino -o movimento sionista e seus ideólogos mais militantes- tenha extraído sua força da mesma idéia: que é possível a cada judeu assumir energicamente sua identidade judaica, em vez de submeter-se em silêncio à assimilação como cidadão polonês, russo, norte-americano ou britânico.

A maioria das histórias do sionismo mostra que o maior problema dos organizadores do movimento era convencer os judeus da diáspora de que sua identidade como judeus de nascimento não bastava: para que suas origens natais se realizassem, tinham também de assumir a identidade nacional de judeus que "regressam" ao Sião. O mesmo ocorreu recentemente com os palestinos que, desde 1948, foram integrando-se (de boa e má vontade) à amálgama de povos do país de residência, até que, em 1970, com vistas à luta política, lhes foi dada a oportunidade de serem palestinos. Isso não contradiz a tese defendida por Rashid Khalidi em seu recente livro sobre a identidade palestina, que afirma a possibilidade de distinguir uma identidade nacional palestina que remonta a muito tempo atrás na história, na cultura, na sociedade civil e na retórica política.

Mas deve-se acrescentar que a identidade por escolha significa um compromisso político de ser palestino, além de um compromisso ativo não apenas com a criação de um Estado independente, mas com a causa, mais importante, de acabar com a injustiça e conquistar a liberdade para os palestinos assumirem uma identidade laica capaz de ocupar seu lugar dentro da história contemporânea.

Atualmente, as pressões contra essa escolha vêm aumentando. Um dos principais objetivos das negociações de Oslo, assumido com grande entusiasmo pelos EUA e por Israel, é paradoxal, pois implicitamente aceita (para depois anular) a idéia de que a identidade palestina possui uma base mais ampla que a meramente nacionalista. Observando a história recente, percebe-se que, durante os anos 70 e 80, ser palestino significava estar na vanguarda de várias lutas de libertação, incluídas aquelas que se travavam muito além do mundo árabe, em lugares como a África do Sul, a América Latina, a Irlanda e em regiões da Europa e da Ásia.

Prova disso é um encontro recente que tive com um intelectual maori da Nova Zelândia que, depois de uma conferência, procurou-me para contar-me em detalhes o quanto a luta pelos direitos palestinos tem significado para o movimento maori há pelos menos três décadas. Encontrei o mesmo entusiasmo em lugares como a Índia, a Coréia e a Irlanda, e não entre os extremistas, mas, ao contrário, nos escritos e na prática daqueles que lutam pelas liberdades civis, de partidários do laicismo e grupos de mulheres, para os quais a idéia mesma de identidade palestina representava muito mais que um simples nacionalismo étnico. Significava atuar contra as forças do obscurantismo religioso, contra a discriminação baseada no sexo, na desigualdade econômica etc. Hoje é evidente que a força dessa identidade palestina motivou a invasão do Líbano por parte de Israel em 1982, e que o objetivo de Ariel Sharon nessa operação dificilmente se limitaria a destruir a insignificante ameaça militar que a OLP representava. Vale lembrar que uma das primeiras coisas que suas tropas fizeram ao entrar em Beirute oeste, em setembro daquele ano, foi roubar os arquivos do Centro de Pesquisas da OLP, um símbolo da força intelectual e moral que, de fato, a identidade palestina adquirira.

Direito à repatriação

De certo modo, as conversações de Oslo visavam debilitar o cerne dessa idéia de identidade mais ampla, fazendo com que os palestinos voltassem às suas cidades, aldeias e clãs de Gaza e da Cisjordânia, onde Israel e os Estados Unidos, por um lado, e, mais lamentavelmente, sua própria autoridade nacional, por outro, pudessem cercá-los, confiná-los e reduzi-los.

Esse esforço e esse aspecto de Oslo tiveram êxito, mas o centro da atenção voltou-se agora para os 4,5 milhões de palestinos que ainda se encontram no exílio, cuja persistente obstinação em expressar sua identidade por escolha é simbolizada pelo direito ao regresso que continuam a reivindicar.

Não se trata apenas de um desejo ou de uma exigência geográfica. Esse direito tem, no mínimo, mais cinco significados. É o direito de ter um lugar próprio. É o direito de permanecer nele. É o direito à repatriação. É o direito à compensação e à restituição. É o direito coletivo de associação (queremos ser palestinos onde quer que seja) e de residência. É o direito de coexistir em pé de igualdade com os judeus israelenses.

A Autoridade Palestina simboliza bem claramente a derrota e a privação da maioria desses direitos. O que cabe ao resto de nós -e aqui não falo apenas dos palestinos de nascimento- é resistir à tentativa de nos reduzirem, a nós e às nossas idéias, a uma mera questão de nascimento e de residência física, cujo árbitro final é Israel. É por isso que os atuais planos "internacionais" de reassentamento da ampla maioria dos refugiados prevêem o envio a lugares como o Iraque, o Canadá, os Estados Unidos e até a Jordânia, além da pressão sobre os países com grandes comunidades palestinas (como, por exemplo, o Líbano) para que lhes concedam a cidadania e a residência.

Por mais que a retórica oficial palestina insista hoje no direito ao regresso, as atitudes passadas da Autoridade Palestina não constituem um bom precedente. Além disso, a postura de Israel desde sua fundação, em 1948, foi a de negar por completo aos palestinos qualquer coisa que se parecesse com o direito de regressar, ao mesmo tempo em que insistia no direito absoluto de qualquer judeu, de qualquer lugar, ao "regresso" e à incondicional cidadania israelense.

Nesta situação, portanto, escolher a identidade palestina significa, de fato, resistir àquilo que os acordos de Oslo deverão oferecer para a condição final. Não é uma postura negativa. Significa insistir nos nossos direitos nacionais e políticos como povo, que nos foram negados, primeiro, pelos britânicos (não se deve esquecer que a Declaração de Balfour, de 1917, concedeu aos judeus direitos políticos como nação, enquanto aos palestinos prometeu apenas direitos religiosos e civis) e, depois, por Israel e pelos Estados Unidos (e, aparentemente, pela maioria dos países árabes). Significa também que nos mantemos firmes na questão da identidade como algo mais significativo e politicamente democrático que a mera residência e a submissão cega àquilo que Israel nos ofereça.

O que pedimos como palestinos é o direito de sermos cidadãos, e não apenas peças no jogo de Oslo, perdido de antemão. Vale a pena assinalar, ainda, que os israelenses também acabarão perdendo se aceitarem a definição estreita e mesquinha dos palestinos como um povo subjugado e confinado a uma "pátria" manipulada por seu governo. Dentro de uma década haverá igualdade demográfica entre judeus e árabes na Palestina histórica. Será melhor aceitarmos logo uns aos outros como membros plenos de um Estado binacional e laico do que continuar lutando na que já foi depreciativamente chamada "guerra de pastores de tribos rivais". Escolher essa identidade é fazer história. Não escolhê-la é desaparecer.

Edward W. Said é ensaísta palestino, professor da Universidade Columbia (Nova York) e autor, entre outros, de "Orientalismo" e "Cultura e Imperialismo".

1 de fevereiro de 2000

Renovações

Enquanto a New Left Review entra em sua quinta década, um balanço da revista. De onde veio e para onde vai? Como avaliar o cenário político e cultural dos anos noventa? Um manifesto para a nova série de NLR que começa com esta edição.

Perry Anderson



Tradução / A duração de uma revista não é nenhuma garantia para seus êxitos. Um par de números, depois do qual uma repentina extinção pode significar mais na história de uma cultura do que um século de publicação contínua. Em seus três anos, a Athenaeum pôs em órbita o romantismo alemão. A explosão de ira da Revue Blanche, a primeira revista da vanguarda moderna, iluminou Paris durante apenas uma década. Em Moscou, a Lef fechou depois de sete números. Foram revistas na interseção da inovação estética com a filosofia e a política. As revistas de crítica freqüentemente sobreviveram mais tempo: The Criterion, em diferentes encarnações, durante a maior parte do período entre-guerras; Scrutiny, da década de 1930 à de 1950. As causas do fechamento podem ser externas, inclusive acidentais, mas por regra geral a vitalidade de uma revista está unida à daqueles que a criaram. Há casos heroicos, nos quais um só indivíduo pode desafiar o tempo compondo um monumento pessoal: Kraus escrevendo Die Fackel sozinho durante 25 anos; Croce igualando a façanha com A Crítica. Em geral, os ciclos vitais das revistas são adventícios e dispersos. Os editores lutam, mudam de opinião, se aborrecem ou se arruínam em sua maioria muito antes deles mesmos serem enterrados.

Uma revista política está tão sujeita a incidentes da mortalidade como qualquer outra. Em certo sentido, está mais ainda, na medida em que o político é sempre um Kampfplatz, um campo de divisões, que rompe vínculos e impõe conflitos. A este respeito, naufragar por causa de disputas ou divisões resulta mais freqüente do que qualquer outra causa. Além do mais, contudo, as revistas políticas têm uma razão de ser diferente que faz da renovação posterior em seu primeiro impulso uma prova de que é específica. Adere-se a determinados princípios objetivos, assim como à capacidade que estes têm de decifrar o curso do mundo. A este respeito, o emudecimento editorial significa uma derrota intelectual. Assim, as constrições materiais ou institucionais podem truncar uma publicação periódica no auge de sua vida. Mas, a não ser por tais circunstâncias, não resta outra opção às revistas políticas: para continuar sendo fiéis a si mesmas devem aspirar a prolongar sua vida real para além das condições ou gerações que lhes deram origem.

Esta revista, que agora entra em sua quinta década, chegou a este ponto. Quarenta anos pressupõem um importante período de atividade. Ainda que não extraordinário: Les Temps Modernes, da qual a New Left Review aprendeu muito em seus primeiros anos, se mantém há muito mais tempo. Mas é suficiente para se colocar uma revisão geral. Com este número damos início a uma nova série da revista, marcada por uma mudança de numeração, de acordo com a tradição radical, e por um novo layout da publicação, como sinal das modificações que acontecerão. Encarregado, no momento, da transição para outro estilo de revista, algo que não se consegue da noite para o dia, exponho a seguir minha própria visão da situação atual da NLR, assim como das orientações que seria conveniente que tomasse. Anunciado como um “editorial”, o resultado é, contudo, uma declaração pessoal e, portanto, provisória: exposta à contradição. Assim serão também os editoriais que acompanharão cada número, escritos por outros sobre temas de seu interesse, sem que tenha que se pressupor qualquer acordo automático.

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Toda consideração acerca do futuro da NLR deve partir de sua differentia specifica. O que fez dela uma revista característica da esquerda? Caberiam várias respostas a esta pergunta, mas a mais simples e sucinta é a seguinte: nenhuma outra revista deste tipo tentou atravessar os mesmos domínios, que abarcam desde a política, a economia, a estética, a filosofia, inclusive a sociologia, com as mesmas liberdades de extensão e detalhe exibidas em cada momento. Esta extensão nunca foi equânime ou regularmente explorada, por conseguinte, caso omisso das dificuldades para se mover entre registros da escritura tão completamente diferentes, a expensas inclusive dos leitores mais pacientes. Mas, de fato, foi aqui que se definiu o caráter da New Left Review. Esta é uma revista política com base em Londres que tentou tratar as ciências sociais e morais – a “teoria”, se se prefere – as artes e os costumes – a “cultura”, para sermos concisos – com o mesmo espírito histórico que corresponde ao político. O melhor modo de apreender a presente situação da revista consiste em voltar os olhos para o contexto no qual o formato da NLR foi concebido originalmente, tornando possível a combinação destes interesses. A conjuntura de princípios da década de 1960, quando a revista tomou forma nas mãos de um novo coletivo, apresentava os seguintes traços:

  • Politicamente, um terço do planeta havia rompido com o capitalismo. Poucos tinham dúvidas acerca dos despropósitos do domínio de Stálin, ou da falta de democracia em qualquer dos países que se declaravam socialistas. Mas o bloco comunista, inclusive em seu momento de divisão, continuava sendo uma realidade dinâmica: Isaac Deutscher, escrevendo na NLR, pôde ver no conflito chino-soviético um sinal de vitalidade.1 Krustchev, visto como um “revolucionário romântico” pelos atuais historiadores da Rússia, fez a promessa de reformas na União Soviética. O prestígio da China maoísta continuava praticamente intacto. A revolução cubana era um novo farol na América Latina. Os vietnamitas combatiam com êxito contra os Estados Unidos no Sudeste Asiático. O capitalismo, apesar de sua estabilidade e prosperidade em suas zonas centrais do Norte, estava ameaçado e sentia isso na maior parte do mundo circundante. Mesmo em casa, na Europa ocidental e no Japão, movimentos comunistas de massas continuavam posicionando-se contra a ordem estabelecida.
  • Intelectualmente, o descrédito da ortodoxia estalinista depois de 1956 e o ocaso do consenso doméstico do período da Guerra Fria depois de 1958 deram pé a um processo de descobrimento de tradições escamoteadas da esquerda e do marxismo que, nas condições de inanição britânicas, tomou ares de uma febre teórica. Começaram a circular veios alternativos de um marxismo revolucionário ligado à política de massas: luxemburguistas, trotskistas, maoístas, comunistas conselhistas. Simultaneamente, os diferentes legados do marxismo ocidental nascido da derrota da política de massas, desde a época de Lukács, Korsch e Gramsci em diante, se apresentavam suscetíveis de reativação. Na influência dessas tradições ocidentais foi crucial para sua continuidade até aquele momento: Sartre, Lefebvre, Adorno, Marcuse, Della Volpe, Colletti, Althusser eram autores contemporâneos que produziam novos textos enquanto entravam na gráfica os números da NLR. O isolamento britânico a respeito dos citados modelos continentais fez com que o contato com eles, repentino e concentrado, tivesse um efeito embriagador.
  • Culturalmente, a saída da atmosfera conformista da década de 1950 significava um fenômeno muito mais amplo e igualmente brusco. Os dois marcos dominantes do período são o surgimento da música rock enquanto onipresente onda sonora da revolta juvenil em oposição à produção, em regra geral melosa, do período anterior: uma onda popular que reclamava da mesma maneira uma ruptura estética, assim como uma efervescência social. Por sua vez, a Grã-Bretanha liderava essa transformação, cujos efeitos convulsivos estavam longe ainda de se tornarem rotina, como posteriormente haveria de ocorrer. O segundo deslocamento crítico foi o surgimento do cinema do autor como percepção e projeto. A este respeito tornou-se decisiva a influência dos Cahiers du Cinéma e da nouvelle vague que surgiu da revista. Nessa recepção, a posição outorgada aos diretores clássicos de Hollywood por parte dos cineastas franceses abriu um veio que em grande medida definiu o período. De fato, o novo predomínio do cinema e da música liberou uma dialética entre planos de referência “altos” e “baixos” na vida cultural da década de 1960, que, retrospectivamente, aparece como um traço distintivo. Brincalhona ou séria, a facilidade de circulação entre ambas sem grandes tensões era muito devida à corrente teórica mais importante do movimento, exceto o marxismo, que foi o estruturalismo. A importância do primeiro Barthes ou de Levi-Strauss (Mythotologie ou Tristes tropiques), que proporcionam um método comum para o estudo de cada uma delas, foi crucial para a mediação entre as formas altas e baixas. Recuperando o legado do formalismo russo, tratava-se de um estruturalismo cujas preocupações continuavam sendo perfeitamente coerentes com as da esquerda cultural.

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Nesse tipo de contexto, a NLR desenvolveu uma série de programas que naquele momento resultou inovadora para o mundo de fala inglesa. Politicamente, a revista orientou sua bússola para os movimentos antiimperialistas do Terceiro Mundo, e, ainda que os reflexos denunciadores da estreiteza de olhares continuavam tendo força na esquerda britânica, reuniu uma equipe cujos interesses abarcaram com o tempo boa parte do planeta: América Latina, África Negra, Oriente Médio, Ásia Oriental e Sul-Oriental, todas e cada uma dessas áreas estavam representadas. Em casa desenvolvia uma série de argumentos característicos acerca do Reino Unido, que chegou a ter uma certa influência. Daí que, quando se deu a explosão de finais da década de 1960 no Ocidente, desencadeada pela Guerra do Vietnã – a revolta estudantil, em primeiro lugar, e, mais tarde, a irrupção dos trabalhadores –, a NLR ocupava uma posição favorável para desempenhar um certo papel no posterior alvoroço, conseguindo atrair assim um público internacional de leitores em meados da década de 1970.

Intelectualmente, a revista dedicou boa parte de suas energias para a introdução e a recepção crítica das diferentes escolas do pensamento marxista ocidental, uma empresa suficientemente avultada para ocupá-la por quase uma década. O estruturalismo, o formalismo e a psicanálise também estiveram presentes, e textos canônicos ou material de referência, que quase sempre eram publicados pela primeira vez, sulcaram suas páginas. Nessas frentes, a NLR estava bastante à frente da cultura circundante, assentando as bases de um horizonte de referência mais cosmopolita e radical daquilo que resultava facilmente exeqüível em qualquer outro ponto do mundo de fala inglesa.

Da mesma maneira, culturalmente, a revista desenvolveu novos estilos de intervenção, unindo o interesse pelas artes tradicionais ao compromisso com as formas de vanguarda e a intervenções sobre o cinema e a música populares. A famosa série de artigos de Peter Wollen sobre diretores de cinema, ou, citemos por acaso, a Dialectic of Fear, de Franco Moretti, são exemplos dessa liberdade de movimentos entre terrenos “altos” e “baixos”. As iniciativas a que deu lugar essa ebulição resistem a qualquer classificação estreita. Era um período criativo.

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Quatro décadas mais tarde, o ambiente em que tomou forma a NLR praticamente se dissipou. O bloco soviético desapareceu. O socialismo deixou de ser um ideal difundido. O marxismo já não predomina na cultura da esquerda. Até mesmo o trabalhismo se dissolveu em sua grande parte. Dizer que essas mudanças são enormes seria insuficiente. Não se pode dizer que fizeram calar a revista. Cada um a seu modo, diferentes escritores ligados à revista responderam energicamente à conjuntura. Em registros distintos, caberia incluir o “Fin-de-Siécle: Socialism after the Crash”, de Robin Blackburn; “Our Post-Communism: the Legacy of Karl Kautsky”, de Peter Wollen; The Golden Age is Within Us, de Alexander Cockburn; “The Ends of Cold War”, de Fred Halliday; Faces of Nationalism, de Tom Naim; “Radicalism after Communism”, de Benedict Anderson; Fear of Mirrors, de Tariq Alí, e a lista poderia continuar.2 Seria interessante explorar a variedade dessas reações, assim como de outras contribuições publicadas pela revista. Cabe avaliar a hora de apreciá-las. Mas, em seu conjunto, a tradição da revista manteve-se sem desdouro.

Contudo, dez anos depois do colapso do comunismo o mundo mudou, e uma das condições para o relançamento da revista consiste numa aproximação específica e sistemática de seu estado atual. Qual é o aspecto principal da década passada? Em poucas palavras, pode se definir como a consolidação praticamente irrefutável, unida à sua difusão universal, do neoliberalismo. O que não estava de todo dentro do previsto. Por mais que os anos 1989-1991 contemplassem a destruição do comunismo do bloco soviético, não se podia dar por certo, inclusive para seus defensores, que um capitalismo de livre mercado sem limites ganharia todos os prêmios tanto no Ocidente como no Oriente. Muitos dissidentes do Leste, progressistas euro-ocidentais e conservadores estadunidenses previram um certo “reequilíbrio” da paisagem global; a esquerda talvez recobraria um certo alento vital, uma vez liberada do incômodo legado moral do estalinismo, enquanto os corporativismos japonês ou renano demonstrariam sua superioridade em relação a Wall Street ou à City, tanto no plano da igualdade social como da eficiência econômica. Estas não eram opiniões isoladas, eram referendas por prestigiosos especialistas. Ainda em 1998, Eric Hobsbawm e os antigos redatores de Marxism Today continuavam anunciando esperançosos o fim do neoliberalismo.[3]

Na prática, a tendência da época se moveu na direção contrária. Cinco processos interconectados transformaram radicalmente o cenário:

  • O capitalismo estadunidense reafirmou estrondosamente seu predomínio em todos os campos – econômico, político, militar, cultural – com um boom sem precedentes que já dura oito anos. Por mais supervalorizados que estejam os ativos de Wall Street, sob o fardo da dívida privada familiar, e apesar dos atuais déficits da balança comercial, o indubitável é que a posição competitiva fundamental das empresas estadunidenses se reforçaram decisivamente.
  • A social-democracia européia, que se tornou governo em diferentes locais da Europa, reagiu às baixas taxas de crescimento econômico e ao elevado desemprego do continente com o giro geral em direção ao modelo estadunidense, com a aceleração da desregulamentação e da privatização, não só das indústrias, mas também dos serviços sociais, freqüentemente para além dos limites dos regimes conservadores anteriores. A Grã-Bretanha ocupa o primeiro lugar em desregulamentação, mas a Alemanha e a Itália lutam por se colocar à sua altura, enquanto a França fica para trás, mais pelas palavras do que pelos fatos.
  • O capitalismo japonês se precipitou numa profunda recessão, daí que, juntamente com o coreano, se veja cada vez mais pressionado a fim de que se dobre aos modelos da desregulamentação, com o conseguinte aumento de desemprego. Em outra parte da Ásia, a República Popular da China está ansiosa por ingressar na OMC praticamente a qualquer preço, confiando em que as pressões competitivas do capital estrangeiro acabarão com as indústrias estatais sem que seu governo tenha que assumir responsabilidade alguma por seu destino; entretanto, pela primeira vez, a Índia passou a depender das boas graças do FMI.
  • A nova economia russa, o elo mais débil do sistema do mercado global, não provocou nenhum tipo de resposta popular, apesar de uma regressão catastrófica em termos de volume de produção e esperança de vida. Confia agora na estabilização de sua oligarquia financeira sob uma liderança plebiscitária capaz de centralizar o poder e privatizar a terra. 

Estão se dando imponentes mudanças socioeconômicas que vão abrindo caminho em todo o planeta e que já foram canonizadas pelo entusiasta estudo de Daniel Yergin e Joseph Stanislaw, The Commanding Heights. Essas mudanças vieram acompanhadas de dois movimentos complementares, um político e outro militar.

  • Ideologicamente, o consenso neoliberal encontrou um novo ponto de estabilização na “terceira via” dos governos Clinton-Blair. Essa fórmula vitoriosa, que sela o triunfo do mercado, não pretende impugnar, mas conservar o placebo de uma autoridade pública compassiva, exaltando a compatibilidade da concorrência com a solidariedade. O núcleo duro das políticas governamentais consiste no prosseguimento do legado Reagan-Thatcher, em certas ocasiões com medidas que seus predecessores não se atreveram decretar: reforma da seguridade social nos Estados Unidos e das taxas acadêmicas no Reino Unido. Mas agora se rodeia cuidadosamente de concessões secundárias e de uma retórica mais branda. O resultado dessa combinação, que na atualidade se estende por toda a Europa, é a eliminação do potencial conflitivo dos regimes pioneiros da direita radical e o rigoroso extermínio da oposição à hegemonia neoliberal. Poderia se dizer que, por definição, o modelo Tina (There is no alternative) só assume toda a sua força quando um governo alternativo demonstra que não restam políticas alternativas críveis. Para dar o golpe de misericórdia na social-democracia européia ou acabar com a memória do New Deal eram indispensáveis os governos de centro-esquerda. Nesse sentido, e adaptando a máxima de Lênin que diz que a “república democrática é o arcabouço ideal do capitalismo”, poderíamos dizer que a “terceira via” é atualmente o melhor arcabouço ideológico do neoliberalismo. Apenas cabe considerar acidental o fato de que a teorização mais ambiciosa e intransigente do ultracapitalismo como ordem global, The Lexus and the OliveTree, de Thomas Friedman, seja ao mesmo tempo uma cínica louvação da hegemonia mundial estadunidense e uma defesa incondicional do clintonismo, sob o lema “hoje em dia não é aconselhável ser globalizador se alguém não é um social-democrata”.[4]
  • Por último, a Guerra dos Bálcãs arredondou a década com uma demonstração diplomáticomilitar da ascensão dessa constelação. A comparação com a Guerra do Golfo indica até que ponto se reforçou a Nova Ordem Mundial desde o início da década de 1990. Bush teve que mobilizar um vasto exército para repelir a invasão iraquiana do Kuwait, em nome da proteção do fornecimento de petróleo ao Ocidente e de uma dinastia feudal, sem que conseguisse nem derrubar o regime de Bagdá nem envolver a Rússia, que continua sendo imprescindível para a aliança contra ele. Clinton subjugou a Sérvia com os bombardeios sem que um só soldado tenha dado um tiro em nome do imperativo moral de parar com a limpeza étnica, o que com toda probabilidade não tardará por acabar com a supressão do regime de Belgrado; e conseguiu envolver a Rússia sem grandes esforços na força de ocupação num papel simbólico de tropa auxiliar. Entretanto, a China, depois da destruição de sua embaixada um pouco antes da respeitosa visita de seu primeiro ministro aos Estados Unidos, colaborou docilmente na utilização da ONU como fantoche para o protetorado da Otan em Kosovo, deixando claro que não vai permitir que nada atrapalhe suas boas relações com Washington. Por sua vez, a União Européia se sente em toda sua amplitude como companheira de armas dos Estados Unidos e une seus esforços para a reconstrução generosa dos Bálcãs. Nesse sentido, a vitória em Kosovo não foi só militar e política. Foi além do mais um triunfo ideológico que determina um novo modelo de intervenção em favor dos direitos humanos em todo o planeta, de acordo com a interpretação dos mesmos por Washington: não por que aplicá-lo ao caso dos chechenhos e dos palestinos. A sociedade criada pela refrega capitalista dos últimos vinte anos necessitava de um banho de boa consciência. A operação Força Aliada o proporcionou. 

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A atmosfera intelectual nos países avançados, que se estende para muito além de suas fronteiras, reflete essas mudanças. Ainda que o grosso da inteligência ocidental parecia satisfeito com o status quo, com uma minoria mais inquieta e imaginativa empurrando-a para a direita, a esquerda continuou tendo uma presença importante na maioria dos principais países capitalistas ao longo da década de 1980, por mais que se dessem mudanças importantes: os britânicos se tornaram menos conservadores, enquanto que aos italianos e franceses acontecia o contrário, etc. Com a homogeneização da cena política na década de 1990, cabia esperar por sua vez uma Gleichschaltung da opinião aceitável. No final da década, esse processo começou a tomar um ritmo. Se dermos uma olhada no espectro do que era a esquerda tradicional, antes socialista, são dois os tipos de reação predominante antes da nova conjuntura.

O primeiro é a acomodação. Em sua hora de triunfo generalizado, o capitalismo convenceu a muitos, que antes o consideravam um mal evitável, que é uma ordem social necessária, saudável e equilibrada. Os que se somam, explícita ou tacitamente, à “terceira via” são exemplos óbvios. Mas a gama de disfarces pela qual se pode chegar à acomodação é muito mais extensa e resulta de fato compatível com uma atitude cética ou até mesmo gozadora diante dos falsos pintores, Blumenthal Campbell, da nova ordem: compreende desde o franco reconhecimento da superioridade em toda linha da empresa privada, sem muitos adereços, até a omissão pura e simples da questão dos regimes de propriedade em seu conjunto. Uma das conseqüências dessa modificação do clima ideológico em sentido lato consiste em que se torna cada vez menos necessário expressar uma postura sobre esses temas, na medida em que se vêem expurgados dos limites dos debates importantes. A retratação ruidosa é bastante rara; o mais comum é limitar-se a mudar de tema. Não obstante, a profundidade das concessões reais pode ser vista em episódios como o da Guerra dos Bálcãs, onde o papel da Otan simplesmente se deu como certo como um componente normal e conveniente do universo político por parte de uma ampla parcela da opinião pública que jamais havia sonhado fazê-lo há dez ou vinte anos. A atitude de fundo é: há capitalismo para muito tempo, vamos nos adaptar a ele.

O melhor modo de descobrir o segundo tipo de reação é em termos de desconsolo.5 Aqui estamos diante de uma acomodação sem princípios e os ideais de antes não são abandonados, mas chegam inclusive a ser reafirmados incondicionalmente. Mas diante do desalentador das perspectivas, há uma inclinação humana natural para encontrar resquícios de esperança em algo que do contrário se apresentaria como um entorno ameaçadoramente hostil. A necessidade de albergar uma mensagem de esperança estimula a inclinação para superestimar a importância dos processos contrários, a apoiar ações inapropriadas com possibilidades desinteressadas, a alimentar ilusões acerca de forças imaginárias. Provavelmente, nenhum dos que nos situamos na esquerda ficamos a salvo desta tentação, que pode inclusive buscar uma justificação na regra geral das conseqüências inesperadas derivadas de toda transformação histórica: o sentido dialético segundo o qual, inesperadamente, as vitórias podem gerar por sua vez vencedores sobre as mesmas. Também é certo que nenhum movimento político pode sobreviver sem oferecer a seus aderentes um certo alívio emocional, que em períodos de derrota desenvolverá inevitavelmente elementos de ressarcimento psicológico. Todavia, as tarefas de uma revista intelectual são outras. Sua primeira obrigação consiste em proporcionar uma descrição precisa do mundo, com independência de sua orientação moral. Tanto mais se temos em conta que há um terreno intermediário no qual o desconsolo e acomodação podem se superpor: isto é, quaisquer mudanças na ordem estabelecida calculadas para fortalecer seu domínio são festejadas como passos para sua dissolução, ou talvez como uma transformação qualitativa do sistema. O livro recentemente publicado de Russe Jacoby, End of Utopia, oferece mordazes reflexões sobre alguns aspectos da questão.

Que tipo de postura deveria a New Left Review adotar diante da nova situação? Creio que a atitude geral deveria consistir num realismo intransigente. Intransigente em dois sentidos: negando-se a toda acomodação com o sistema imperante e rejeitando toda piedade e eufemismo que possam subvalorizar seu poder. Disso não se depreende nenhum tipo de maximalismo estéril. A revista deveria expressar sempre sua solidariedade com os esforços em favor de uma vida melhor, por mais modesta que seja sua envergadura, mas deve apoiar todo tipo de movimento local ou de reforma limitada, sem pretender além do mais que alterem a natureza do sistema. O que não pode, ou não deveria fazer, é dar crédito às ilusões de que o sistema avança numa direção de progresso, ou então sustentar mitos reformistas de que é urgente e necessário proteger-lhe das forças reacionárias: atitudes manifestas, para colocar dois exemplos recentes, nas amostras de adesão à princesa e ao presidente por parte da esquerda bien-pensant, como se a monarquia britânica necessitasse de mais popularidade ou a presidência estadunidense de maior proteção. Esse tipo de histeria merece um ataque sem contemplações.

Os chamamentos a veneráveis tradições ou a instituições estabelecidas para, por assim dizer, viver segundo suas próprias normas constituem um assunto de outro matiz. Boa parte da melhor literatura da esquerda em nossos dias tenta levar ao pé da letra as convenções dominantes, tratando da hipocrisia oficial, o desajuste entre as palavras e os fatos, como a homenagem que o vício deve render à virtude, que promete um final feliz. Essa foi a orientação clássica privilegiada e praticada com eloqüência pela primeira New Left. Muitas contribuições à revista continuaram sendo redigidas nesses termos e há que se julgá-las por, freqüentemente consideráveis, méritos. Contudo, há um perigo com esse tipo de discurso. A linha entre o desejável e o factível pode não ficar clara, dando pé à mistificação em torno das realidades do poder e ao que racionalmente deve se esperar delas. A este respeito, é melhor que não fique nenhuma ambigüidade. A prova da capacidade da New Left Review para dar um tom político deveria estar na freqüência com que seja capaz de surpreender a seus leitores, chamando o pão de pão e o vinho de vinho, em vez de cair numa hipocrisia bem-intencionada ou enganar-se a si mesma acerca da esquerda. Hoje em dia, é o espírito da Ilustração, menos que o dos Evangelhos, que mais nos faz falta.

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Uma década não faz uma época. O grande golpe neoliberal da década de 1990 não é nenhuma garantia de poder perpétuo. De uma perspectiva histórica mais ampla, cabe fazer uma leitura mais esperançosa da época. Depois de tudo, este foi também um período em que foi derrotada a ditadura Suharto na Indonésia; a tirania clerical no Irã perdeu o seu vigor; na Venezuela, uma oligarquia venal foi expulsa; o apartheid terminou na África do Sul; os diferentes generais e seus fantoches civis foram dobrados na Coréia, e no Timor Oriental a libertação afinal venceu. Esses não eram movimentos que gozassem da confiança dos investidores ocidentais, como o que aconteceu com a primavera dos povos na Europa. Um ponto de vista otimista os consideraria como os germes de um próximo ajuste de contas: os últimos atos de uma contínua emancipação das nações, que constitui o verdadeiro processo de democratização em escala mundial e cujo resultado não estamos ainda em condições de imaginar. Outra versão apontaria muito mais a atenuação da hierarquia dos sexos, graças às pressões em escala mundial em favor da emancipação das mulheres como relato central da época. Ou então o aumento da consciência ecológica, que inclusive os Estados mais recalcitrantes se vêem agora obrigados a respeitar. O comum de todas estas visões é a insinuação de que o capitalismo poderá ser invencível, mas que poderia finalmente acabar dissolvido nas profundas águas de maiores cotas de igualdade, desenvolvimento sustentável e autodeterminação, de modo que esqueceríamos sua existência.

Sendo assim, tais profundidades continuam sendo insondáveis. A extensão da democracia como substituto do socialismo, como esperança ou reivindicação, fica em evidência diante da moldura dessa mesma democracia em suas terras natais capitalistas, para não falar de suas acompanhantes pós-comunistas: diminuição constante das percentagens de participação eleitoral, aumento da corrupção financeira e mediatização mortal. De modo geral, o vigor não pertence às aspirações democráticas vindas de baixo, mas à asfixia do debate público e da diferença política a partir de cima por parte do capital. A força dessa ordem não está na repressão, mas na adulteração e neutralização, e até o momento ela conseguiu resolver seus desafios mais recentes com destreza. As conquistas dos movimentos feminista e ecologista no mundo desenvolvido são reais e para serem apreciadas: trata-se dos elementos mais importantes do progresso humano dessas sociedades nos últimos trinta anos. Mas até agora demonstraram ser compatíveis com os hábitos da acumulação. Logicamente, contribuíram em boa medida para uma normalização política. O comportamento das feministas nos Estados Unidos e dos Verdes na Alemanha, países nos quais respectivamente é mais forte cada um desses movimentos, a serviço do governo Clinton na Casa Branca e da Otan nos Bálcãs, fala por si mesmo.

Isto não quer dizer que alguma outra força nos países capitalistas avançados tenha mostrado uma maior cota de antagonismo contra o status quo. Salvo raras exceções, a França no inverno de 1995, a classe trabalhadora encontra-se há vinte anos em letargia. Suas condições não é um mero resultado das mudanças econômicas ou dos deslocamentos ideológicos. Foram necessárias violentas lutas de classes para subjugá-la na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Ainda que algo menos acovardados na Europa, os trabalhadores continuam na defensiva em todas as partes. O único ponto de partida para uma esquerda realista em nossos dias é numa lúcida constatação de uma derrota histórica. O capital repeliu ponto por ponto todas as ameaças contra o seu domínio, as bases de cujo poder as pressões da concorrência acima de tudo foram persistentemente subvalorizadas pelo movimento socialista. As doutrinas da direita que teorizaram o capitalismo como uma ordem sistêmica conservam todo o seu implacável vigor; em comparação, as atuais tentativas de enganar suas realidades por parte de um pretenso centro radical não passam de uma frouxa operação de relações públicas. Entre os que sempre acreditaram no valor primordial dos mercados livres e na propriedade privada dos meios de produção se contam muitas figuras de alto teor intelectual. Não se pode afirmar o mesmo da recente colheita de expurgadores e especialistas da beleza, que somente ontem deploravam a repugnância do sistema que hoje se encarregam de enfeitar.

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Para a esquerda, a lição do século passado é a ensinada por Marx. Sua primeira obrigação é prestar atenção no desenvolvimento real do capitalismo como uma complexa maquinaria de produção e lucro, em constante movimento. The Economics of Global Turbulence, de Robert Brenner, que ocupou todo um número da New Left Review, proporciona o exemplo adequado.[6] Não aparece no horizonte nenhuma agência coletiva capaz de enfrentar o poder do capital. Vivemos num tempo, enquanto a engenharia genética amadurece ameaçadora, em que a única força revolucionária capaz nesse momento de perturbar seu equilíbrio parece ser o próprio progresso científico: as forças produtivas, tão detestadas pelos marxistas convencidos da primazia das relações de produção quando o movimento socialista ainda estava vivo. Mas se por acaso as energias humanas para uma mudança de sistema voltarem a se libertar, o farão a partir de dentro do próprio metabolismo do capital. Não podemos dar-lhe as costas. Só na revolução dessa ordem caberia encontrar os segredos do outro. Esse é o sentido de investigações como as de Robin Blackburn na New Left Review acerca da marcha das instituições financeiras.[7] Aqui não há certezas; no máximo cabe fazer propostas e conjecturas teóricas.

Ideologicamente, a novidade da situação presente salienta-se a partir de uma perspectiva histórica. Pode se expressar da seguinte maneira. Pela primeira vez desde a Reforma, já não se dão oposições significativas, isto é, perspectivas sistematicamente opostas, no seio do mundo do pensamento ocidental; tampouco, apenas uma ou outra, em escala mundial, se deixamos de lado as doutrinas religiosas como arcaísmos inoperantes em sua maioria, como parecem nos indicar as experiências da Polônia e do Irã. Com independência das limitações que continuam impedindo seu exercício, o neoliberalismo como conjunto de princípios impera sem fissuras em todo o globo: a ideologia mais vitoriosa da história mundial. O que isso implica para uma revista como a New Left Review é uma descontinuidade radical na cultura de esquerda, quando esta se renova em termos de geração. Em nenhum outro aspecto é mais agudo o contraste como o contexto original da revista. Todo o horizonte de referência no qual se formou a geração da década de 1960 praticamente foi varrido do mapa: os fios do socialismo reformista e revolucionário igualmente. A lista dos nomes de Bebel, Bernstein, Luxemburg, Kautsky, Jauré, Lukács, Lênin, Tróstky e Gramsci aparece hoje para a maioria dos estudantes tão remota como uma lista de bispos arianos. Como retecer fios de significado entre o século passado e este seria uma das tarefas mais delicadas e difíceis que deveria enfrentar toda revista que leve a sério o termo “esquerda”. Não parece que haja muitos cartazes indicadores que ajudem a realizá-la.

Se damos uma olhada nas tradições intelectuais mais próximas no tempo e influência na primeira New Left Review, à primeira vista a situação não parece muito melhor. A maior parte do corpus do marxismo ocidental ficou também fora da circulação geral: Korsch, o Lukács de História e consciência de classe, quase todo Sartre e Althusser, a escola de Della Volpe, Marcuse. O que melhor sobreviveu é menos diretamente político: no essencial, a teoria da Escola de Frankfurt do período pós-guerra e algumas obras escolhidas de Benjamin. Em nosso país, Raymond Williams foi esquecido, quase como Wrigth Mills nos Estados Unidos há vinte anos; Deutscher desapareceu; o nome de Miliband fala de outro tempo.

Por outra parte, a história das idéias não é um processo darwiniano. Os principais sistemas de pensamento raras vezes desaparece, como se se tratasse de outras tantas espécies extintas. Ainda que não permaneçam compreendidas dentro de um contexto coerente, alguns filamentos dessas tradições continuaram demonstrando uma notável vitalidade. Poderíamos dizer que a historiografia marxista britânica conseguiu ser lida em escala mundial, algo que nunca havia acontecido anteriormente, graças a The Age of Extremes, de Hobsbawm, que provavelmente permanecerá como a interpretação do século passado mais influente neste século, enquanto história global de uma vitória a partir do ponto de vista dos vencidos. O trabalho de Jameson sobre a pós-modernidade, herdeiro direto do marxismo continental, não tem equivalentes fiéis como versão cultural da época. Robert Brenner nos proporcionou a única análise econômica coerente sobre o desenvolvimento capitalista a partir da Segunda Guerra Mundial; Giovanni Arrighi, a projeção mais ambiciosa de sua evolução a longo prazo. Tom Naim e Benedict Anderson são de primeira ordem acerca das ambigüidades políticas do nacionalismo moderno. Régis Debray desenvolveu uma das teorias mais sistemáticas acerca dos meios de comunicação de massa contemporâneos de que dispomos na atualidade. Terry Eagleton no campo literário, T. J. Clark nas artes visuais e David Harvey na reconstrução da geografia são figuras centrais para todos aqueles interessados nessas disciplinas

É suficiente a enumeração desses nomes para se dar conta de que não é concebível sua unificação forçada dentro de um único paradigma. A diversidade dos diferentes métodos, interesses e acentuação é muito grande. Ainda que em certa medida isso seja conseqüência da fragmentação da cultura da esquerda, é também uma expressão de desinibição criativa e de diversificação das linhas de investigação. A respeito dessas últimas, a revista deveria aspirar a apresentar uma paisagem inteligível na qual as distintas séries de trabalho encontrem uma relação recíproca acessível.

Ao mesmo tempo, há um aspecto intelectual mais extenso, de origem pouco ou nada marxista, que se define de esquerda no sentido lato e que continua hoje em movimento. Se considerarmos os campos da filosofia, da sociologia e da economia, teria que se incluir os trabalhos de Habermas, Derrida e Barry; Bourdieu, Mann e Runciman; Stiglitz, Sen e Dasgupta. Aqui podemos comprovar como se entrecruzam as mudanças de uma posição à outra: pensadores antes moderados vão se radicalizando na medida em que a hegemonia neoliberal vai se tornando absoluta, enquanto outros antes mais radicais vão se adaptando a elementos do saber convencional. Mas há um traço comum a boa parte desse leque de trabalhos, mais importante que esses redemoinhos: a combinação de uma atrevida ambição intelectual e uma ampla síntese disciplinar com um compromisso tímido ou trivial no próprio campo político, o qual constitui um eco longínquo do mundo vigoroso e apaixonado de Weber, Keynes ou Russell. Aqui se deixam ver particularmente as conseqüências da extirpação de todas as continuidades da tradição socialista, por mais indireta que pudesse ser a relação com esta última. O resultado característico é um espetáculo de impressionante energia e produtividade teórica, o produto cuja soma social é sensivelmente menor do que suas partes intelectuais.

Ao contrário, dominando o campo das construções diretamente políticas do momento, a direita proporcionou uma visão eloqüente uma depois de outra de para onde vai o mundo ou de onde parou: Fukuyama, Brzezinski, Huntington, Yergin, Luttwark, Fridrnan. Trata-se de escritores que combinam uma tese simples e poderosa com um estilo popular loquaz, destinado não tanto a leitores acadêmicos, mas a um público internacional amplo. Este gênero confiado, do qual até o momento os Estados Unidos ostentam praticamente o monopólio, não tem equivalentes na esquerda. No melhor dos casos, os programas normativos de “democracia cosmopolita” ou de “lei dos povos”, que colocam entre parênteses o curso real das coisas, continuam sendo a alternativa defeituosa. A New Left Review tampouco se ocupou muito do tema. Esta deveria ser uma das prioridades. É pouco provável que essa desigualdade no terreno intelectual se modifique sensivelmente antes que se produza uma mudança na correlação de forças políticas, que provavelmente permanecerá estável a não ser que ecloda uma profunda crise econômica no Ocidente. Só uma depressão de proporções não muito diferentes da do período entre-guerras está em condições de sacudir os parâmetros do consenso atual. O que não é razão suficiente para deixar, entretanto, passar o tempo, polêmico ou analítico.

7

Assim, o panorama cultural apenas se assemelha àquele no qual florescera a primeira New Left Review. Três mudanças fundamentais definiram o lapso de tempo transcorrido. Em primeiro lugar, houve um imponente deslocamento de dominação dos códigos verbais para os visuais, com a preponderância da televisão sobre qualquer outro meio de comunicação anterior, seguido ulteriormente pela ascensão dos media eletrônicos, com o que se reproduziu tecnologicamente essa mesma correção. Certamente, esse modelo determinou a chegada das formas pósmodernas em geral. Em segundo lugar, outra marca distintiva destas últimas, grande parte da tensão entre os impulsos desviados ou insurgentes a partir de baixo e a ordem estabelecida a partir de cima foi absorvida, na medida em que o mercado se apropriou e institucionalizou a cultura juvenil quase da mesma forma que como antes conseguira limitar as práticas das vanguardas; mas, por se tratar de um mercado de massas, nesse caso muito mais a fundo. O resultado é a apoteose da mercadoria de ídolos como Jackson ou Jordan. Em terceiro lugar, a voltagem que conectava os sistemas altos e baixos, cujo circuito constituía um dos traços do período moderno, foi se encurtando na medida em que a distância, que era uma de suas condições, foi sendo derrubada progressivamente. O resultado é uma mútua caricatura, na medida em que ambos convergem num terreno comum: espetáculo da sordidez na Royal Academy e da pretensão nos óscares: Sensation e Dreamworks como formas complementares de kitsch. A literatura arrastada para o próprio turbilhão pelos prêmios em dinheiro e os gastos em publicidade gera um Eco ou o último Rushdie.

Para a revista o importante é o lado crítico da situação. A este respeito, se inverteu o modelo do lado da produção. Desde muito antes dava-se um vivo intercâmbio entre os níveis altos e baixos, se instalou uma polarização que tende a atar cada qual em seus próprios discursos hipertrofiados. Deste modo, as formas altas caíram vítimas das tortuosas rotinas da desconstrução filosófica, enquanto as formas populares se converteram no paraíso dos “estudos culturais” de tipo subsociológico. Ambos fundam suas raízes em filões de trabalho radicais de finais da década de 1950 e da de 1960: Hoggart e Williams por um lado, Bataille e Derrida, por outro. Em termos formais, as respectivas mutações continuam identificando-se, em sua maior parte, com a esquerda: para dizer a verdade, nas grandes ocasiões, como se ufanam em ressaltar os críticos de direita, praticamente como a esquerda, pelo menos nos Estados Unidos. Não obstante, quase sempre não vão além de uma alternativa entre obscurantismo e populismo ou, o que é pior ainda, de uma mescla de ambos, fazendo alarde de uma estranha combinação do demagógico com o apolítico.

O obscurantismo, como impedimento deliberado do significado, tem poucos defensores. Por sua parte, às vezes se pensa que o populismo tem um potencial progressista. Mas se deixarmos de lado suas origens legendárias na Rússia, onde, seguindo os critérios atuais, teria que se considerar os narodniki como astutos elitistas, o peculiar do populismo hoje em dia consiste na simulação de uma situação de igualdade vigente entre votantes, leitores ou espectadores que não existe na maioria dos casos e que serve para se passar por cima das desigualdades reais de conhecimento ou de alfabetização: um terreno no qual com muita facilidade se encontram uma direita cínica e uma esquerda piedosa. Assim, não surpreende o fato de que, das duas hermenêuticas disponíveis, os estudos culturais desfrutem de uma maior influência na atualidade, nem que, em suas formas deterioradas, constituam o principal obstáculo de toda recreação num sentido natural do movimento entre o alto e o baixo. Não faltam análises elogiosas da cultura de massas que determinam uma continuidade com as intenções originais que animaram a linha Hoggart-Williams. Todavia, salvo raras exceções, a prole da escola de Birmingham se encaminhou aos tropeções para uma adesão acrítica ao mercado como manancial entusiasta da cultura popular. Em tais condições, o papel da New Left Review deveria consistir em jogar resolutamente do lado contrário, procurando evitar toda nota neoleavisina. As contribuições de Julian Stallabrass à revista deram o tom preciso, abordando criticamente por sua vez os mais recentes meios eletrônicos, no âmbito das salas de videojogos, assim como a última pintura britânica no ponto em que atua, em todos os sentidos, para a galeria.

Em toda revista radical sempre é razoável uma tensão entre duas formas de crítica, igualmente necessárias, mas marcadamente distintas. Em linhas gerais, podemos identificá-las como os enfoques da cultura “de vanguarda” e “hegeliano”: o primeiro preocupado em assinalar uma postura agressiva e apressada, inclusive ao preço da unilateralidade, enquanto o segundo se empenha em decifrar de maneira mais indicativa a inteligibilidade histórica ou filosófica de um cenário mais vasto: Clement Greenberg e Fredric Jameson destacam-se aqui, respectivamente, como virtuosos. Ambos os estilos não são excludentes e a revista deveria estimulá-los por igual. Inevitavelmente, a necessidade de um e de outro varia em função do tema ou da conjuntura. Num âmbito como o cinematográfico, as reflexões mais sérias sobre o último êxito de bilheteria de Hollywood ou Elstree, ainda que bem-intencionadas, são um desperdício do espaço da New Left Review em comparação com o tratamento de diretores, sobretudo não pertencentes ao mundo de fala inglesa, que não fazem por merecer atenção ou resultam difíceis de ver. Como contrapeso às evoluções negativas do período anterior na zona metropolitana houve um enorme crescimento cultural em geral, como fica demonstrado pela multiplicação de produtores periféricos na Ásia, África, Oriente Médio e América Latina. No Ocidente essa realidade apenas está documentada, daí que constitua uma prioridade à qual a esquerda deveria se dedicar. Um bom texto sobre Hou Xiao Xien, Kiarostami, Sembene ou Leduc vale mais do que cem, por mais críticos que sejam, sobre Spielberg ou Coppola. Uma continuação deste procedimento trasladado para o novo cinema europeu (Amélio, Reitz, Jacquot, Zonka) suporia uma sucessão natural do ciclo pioneiro de Peter Wollen na primeira New Left Review.

Em termos mais gerais, o tipo de geografia literária que Franco Moretti veio elaborando, na medida em que centra sua atenção tanto no mercado como na morfologia das formas, proporciona uma ponte natural entre as zonas da cultura de massas e de elite, assim como, ultimamente, um “giro para o exterior” dos sistemas globais que propõe um modelo diferente. Em todos os campos, a New Left Review deveria tentar contra-arrestar o providencialismo, o narcisismo, na realidade do mundo de fala inglesa, centrando sua atenção, desproporcionada, se necessária, nas obras e nos produtores de fala não-inglesa. Um dos traços mais surpreendentes do panorama inglês atual (e a fortiori também do estadunidense) consiste em que, apesar de que nas escolas e nas universidades se ensinam muito mais línguas, literaturas e políticas estrangeiras do que há vinte anos, as referências culturais das gerações mais recentes, até as mais sofisticadas, freqüentemente são mais estreitas, já que a hegemonia de Hollywood, da CNN e do Bookerismo aumentou exponencialmente. Basta passar os olhos na esteira dos atuais estilos jornalísticos para se dar conta do paradoxo. Em consonância com sua tradição, a revista terá que se opor a essa involução.

8

Editar uma revista com este conjunto de preocupações sempre foi um exercício de equilibrismo. Conseguir esse equilíbrio entre âmbitos tão díspares como o econômico e o estético, o sociológico e o filosófico, já seria um tanto complicado em si mesmo. Não obstante, aqui se consegue citar todos esses âmbitos, dada a natureza da publicação, sob a primazia do político, que coloca seus próprios problemas de definição e seleção. A estrutura da revista reflete tacitamente o centro de interesse que a organiza: os editoriais e os artigos principais se ocupam em regra geral de temas internacionais da atualidade. A New Left Review continua sendo antes de tudo uma revista política, afastada de todo consenso educado e de qualquer perímetro estabelecido de opinião. Mas não se trata de uma política que absorva os terrenos que aborda. A cultura de qualquer sociedade sempre excede o espectro da política ativa em seu seio, como uma reserva de significados dentre os quais só um leque limitado tem a ver com a divisão do poder, que é o objeto da ação política.[8]

Uma política eficaz respeita esse excesso. As tentativas de recrutamento forçado de qualquer âmbito teórico ou cultural com fins instrumentais serão sempre inúteis ou contraproducentes. O que não significa indiferença. A esquerda necessita de uma “política cultural”; mas o que isto supõe é, antes de tudo, uma ampliação dos limites de sua própria cultura. Em conseqüência, a New Left Review publicará artigos sem levar em conta a relação ou ausência de relação imediata destes a respeito das mencionadas agendas radicais.

Uma transformação fundamental da época anterior, freqüentemente comentada, foi a migração generalizada de intelectuais da esquerda para instituições de educação superior. Esta evolução, resultado não só das mudanças na estrutura profissional, mas também do esvaziamento das organizações políticas, da idiotização das editoras e da atrofia das contraculturas, dificilmente poderá inverter seu curso nos próximos tempos. Não é preciso dizer que isso gerou perdas específicas. Recentemente Edward Said chamou nossa atenção sem rodeios para as piores delas: níveis de redação que teriam deixado sem fala Marx ou Morris. Mas a academização causou estragos em outros aspectos: aparelhos inúteis, mais para justificar méritos do que por motivos intelectuais, referências repetitivas às autoridades na matéria, citações pretensiosas dos próprios trabalhos, etc. Na medida em que o considera oportuno, a New Left Review aspira a ser uma publicação erudita, mas não acadêmica. Diferentemente da maioria das revistas acadêmicas de hoje, para não falar das que não são, não deixa as notas para o fim dos artigos nem recorre a pobres referências sobre “Harvard”, mas respeita a clássica cortesia das notas de pé de página, como indicação de fontes ou como exposições tangenciais ao texto, acessíveis no ato ao leitor. Quando são necessárias, o autor pode usá-las como quiser. Mas não se aceitará mera proliferação pela proliferação, essa praga do excesso de autoridades em nossos dias. Deveria ser uma questão de honra para a esquerda escrever pelo menos tão bem como seus adversários, sem redundâncias nem confusão.

A revista oferecerá uma seção regular de resenhas de livros e fomentará o intercâmbio polêmico. A New Left Review sempre gozou de uma vantagem comparativa imerecida devido à língua em que se publica, já que o inglês desfruta de um público mundial que não possui nenhum outro idioma. A modo de compreensão, deveria tentar chamar a mesma atenção de seus leitores para obras importantes não publicadas em inglês, como sobre aquelas que o foram neste idioma. A resenha deste número proporciona uma amostra improvisada do que poderíamos fazer. Quanto às polêmicas, tradicionalmente foi se consolidando seu escasseamento nas páginas da revista. Confiamos em mudar esta circunstância. O presente número contém uma delas, como acontecerá no próximo. A respeito deste tipo de artigo, do mesmo modo do que em todo o restante da revista, o critério não é a correção política, como queira que se interprete, mas a originalidade e o vigor do argumento. Não se necessita de colaboradores que sejam convencionalmente de esquerda: há muitas áreas, talvez especialmente no âmbito das relações internacionais, nas quais os argumentos contra os sentimentos piedosos do progressismo habitual, compartilhado de modo geral pelos pilares do liberalismo respeitável, superam estes últimos. Freqüentemente, as críticas mais devastadoras da expansão da Otan e da Guerra dos Bálcãs vinham da direita. A revista deveria acolher intervenções deste tipo. Em troca, o que sobram são apologias das políticas oficiais da esquerda, muitas das quais puderam ser escutadas quando os B-52 decolaram rumo ao Kuwait ou a Kosovo. Estes tipos de discurso estão disponíveis todos os dias na imprensa do sistema. Neste sentido, o valor da troca polêmica deveria se situar distante dessa zona saturada de clorofórmio.

Por último, queria referir-me à situação da revista. A New Left Review é uma publicação concebida na Grã-Bretanha, um Estado cuja vida cabe esperar que não se prolongue muito, pelos motivos mordazmente expostos por Tom Naim. Por tal motivo, foi muito o que teve que dizer sobre o Reino Unido, e não deixará de fazê-lo agora. Ao mesmo tempo, muitos de seus editores vivem e trabalham atualmente nos Estados Unidos, país ao qual a revista também dedicou um sem-número de páginas. Durante décadas, os escritos de Mike Davis, que foi o colaborador mais constante deste país, sobre os Estados Unidos deixaram uma marca indelével. Não se pode esquecer tampouco os antecedentes europeus, que estimularam a maioria das idéias que deram origem à publicação. O alcance da New Left Review sempre ultrapassou esta linha de base ocidental. Mas, ainda que a revista tenha coberto o resto do mundo – tanto o Terceiro e o Segundo como o Primeiro, se é que tais termos continuam sendo válidos – na fortuna e na adversidade, segundo o período, seus autores continuaram precedendo essencialmente de suas terras de origem. Gostaríamos que isto mudasse. Chegará um momento em que os colaboradores da revista serão tão não-atlânticos como seus conteúdos. No momento, este objetivo está fora de nosso alcance. Mas é um horizonte que se tem que ter presente.

[1] Isaac Deutscher, “Three Currents in Communism”, em New Left Review, jan./fev., 1964. 
[2] Respectivamente, New Left Review, no 185, jan.-fev., 1991 (Blackburn); New Left Review, no 202, nov.-dez., 1993 (Wollen); Verso, 1994 (Cockburn); New Left Review, no 180, mar.-abril, 1990 (Halliday); Verso, 1997 (Nairn); New Left Review, no 202, nov.-dez., 1993 (Anderson); Arcadia, 1998 (Ali). 
[3] “The Dead of Neo-Liberalism”, em Marxism Today, nov./dez., 1998, primeiro número após seu reaparecimento. 
[4] The Lexus and Olive-Tree (Nova York, 1999), p. 354. Numa via semelhante, Yergin e Stanislaw terminam seu percurso entusiasta sobre o triunfo dos mercados em escala mundial com uma homenagem a Blair, artífice da “extraordinária façanha de fundir os valores social-democratas de eqüidade e integração com o programa econômico thatcheriano”, ver The Commanding Heights (Nova York, 1999), p. 390. 
[5] Logicamente há uma terceira reação possível ao curso dos tempos, isto é, nem acomodação nem desconsolo: a saber, a resignação; em outros termos, um reconhecimento lúcido da natureza e do triunfo do sistema, sem pretensões de adaptação, nem ilusões vãs, mas também sem fé alguma nas possibilidades de qualquer alternativa. Contudo, uma conclusão tão amarga rara vez se articula como posicionamento público. 
[6] New Left Review, no 229, maio-junho, 1998; está prevista a publicação de uma edição aumentada pela Verso. 
[7] “The Colletivism”, em New Left Review, no 223, jan.-fev., 1999. 
[8] Pode se encontrar um argumento excepcional em favor da assimetria entre cultura e política em Francis Mulhern, The Present Last a Long Time (Cork, 1998), pp. 6-7, 52-53.

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