13 de maio de 1999

No supermercado espalhafatoso

Terry Eagleton

London Review of Books


A Critique of Post-Colonial Reason: Toward a History of the Vanishing
por Gayatri Chakravorty Spivak,
Harvard, 448 pp., £30.95, June 1999, 0 674 17763 0

Tradução / Em algum lugar deve haver um manual secreto para críticos pós-coloniais, cuja primeira regra ordena: “Comece por rejeitar toda a noção de pós-colonialismo”. É notável o quanto se padece para encontrar entusiasta sem restrições, entre os que promovem a ideia: tão difícil como foi, nos anos 1960 ou 1970, achar quem confessasse ser estruturalista. A ideia do pós-colonial tanto apanha dos teóricos pós-coloniais, que usar sem reservas a palavra seria quase como se autochamar de balofo, ou confessar algum interesse furtivo pela coprofilia. Gayatri Spivak anota, com algumas evidências em seu livro, que grande parte da teoria pós-colonial norte-americana é “lixo”, mas a ressalva é de rigueur, sempre que se tem um crítico pós-colonial escrevendo sobre o resto. Além do mais, que seja um teórico do “Terceiro Mundo” a trazer a notícia aos seus colegas norte-americanos é, num sentido, muito mal visto; noutro, é exatamente o que os norte-americanos querem ouvir. Nada mais “da moda” na academia norte-americana sempre devastada pela culpa, que confessar a inevitável má fé na posição de quem escreve. É o mais perto a que um pós-moderno consegue chegar, da autenticidade.

A segunda regra desse manual clandestino ordena: “Seja o mais obscuro e incompreensível possível, no limite do que você ainda tenha escapatória”. É frequente encontrarem-se teóricos pós-coloniais em estado de agonia provocada pela ravina que distancia e separa o próprio discurso intelectual deles e os povos nativos dos quais eles falam; mas a ravina parece-lhes menos horrível se não produzem discurso que a maioria dos intelectuais considerem inteligível. Ninguém precisa ser nativo de favela para estar qualificado a declarar “pretensiosamente obscura” uma confusão metafórica spivakiana como: “muitos de nós estão tentando esculpir negociações positivas com a gráfica epistêmica do imperialismo”. É difícil ver como alguém consegue escrever desse jeito e, simultaneamente, admirar a escrita luminosamente clara de, digamos, Freud. A teoria pós-colonial faz tempestades a favor de respeitar o Outro, mas o Outro mais próximo deles, o mais imediatamente próximo deles, o leitor, fica, ao que parece, excluído daquela sensibilidade. Acadêmicos radicais, algum ingênuo poderia ingenuamente supor, têm certa responsabilidade política por garantir que suas ideias cheguem a públicos também do lado de fora de salas de reunião do Conselho Universitário. Mas na academia nos EUA, as popularizações ou Plumpes Denken [alemão, “pensamento cru”] pouco rendem ao autor em termos de cátedras ou prêmios prestigiosos; então esquerdistas como Spivak, apesar do muito que escarnecem da academia, sempre podem esperar boa recompensa se escrevem escrita ainda mais inacessível ao público que os elitistas literários que tão apaixonadamente os desprezam.

Pode ser também o caso, é claro, de que a meta de uma sentença tão desgraçada como “o paratema in-coativo in-fans ab-originário não pode ser teorizado como se fosse completamente funcionalmente congelado num mundo no qual a teleologia é esquematizada em geo-grafia” seja subverter a falsa transparência da Razão Ocidental. E pode também ser que discutir questões públicas nesse idioma tão hermeticamente privado seja, mais, sintoma daquela Razão, do que solução para o sintoma. Como na maioria das questões de estilo, a obscuridade de Spivak não é só questão de estilo. Seu ouvido surdo a tom e ritmo, o descalabro descuidoso com a textura verbal, suas mordidas teóricas (“Derrida pôs em cena o homoerotismo da filosofia europeia na coluna esquerda de Glas”), saltam tanto da própria linguagem feita mercadoria dos EUA como da tentativa pervertida de miná-la. Uma sentença que começa “Aos 26, grafando-se ele mesmo no sotaque da Aufhebung, Marx vê a necessidade, para sua empreitada crítica”... combina o vocabulário de Hegel e a sintaxe de “Oba. Tudo belê?” da linguagem de Spivak, vagueando, como faz, do tom altissonante para a malandragem de rua, pertence a uma cultura na qual há cada vez menos e menos meio campo, entre o portentoso e o feito em casa, o retórico e a futrica. Um pingo de ironia ou de humor seria fatal para a solenidade autocontemplativa. Ao longo de seu livro, Spivak escreve com grande brilho teórico sobre Charlotte Brontë e Mary Shelley, Jean Rhys e Mahasweta Devi; mas não dá praticamente qualquer atenção à linguagem, à forma ou ao estilo do que escrevem. Como qualquer aluno iniciante de qualquer velha faculdade de Letras que Spivak tanto despreza, a sua teoria literária mais avant-garde reduz-se, se se examina de perto, à velha boa antiga análise de conteúdo.

Spivak opõe-se, com razão, aos filisteus esquerdistas, para os quais qualquer ideia que não derrube instantaneamente os patrões seria tão politicamente inútil quanto a topologia algébrica. Mas reluta muito, demais, a reconhecer a semente de verdade que há no ponto de vista deles: que a teoria radical tende a crescer desagradavelmente narcisista, se privada de uma válvula política de vazão. Como os semióticos poderiam dizer, a teoria então passa a se impor por metáfora, no lugar do que ela significa. A revolução política implica muitos perigos, mas fracassar na operação de concentrar magnificamente a inteligência não está entre eles. As digressões infinitas e as autointerrupções nesse estudo – como os meandros que vão de Kant a Krishna, de Schiller a Sati, cabem, dentre outros buracos, numa esquerda politicamente sem rumo. Leitores mais caridosos verão esse cozidão de tediosa loquacidade como ataque às narrativas lineares do Iluminismo, por autora cujos gênero e etnicidade são lá violentamente excluídos. Se sociedades coloniais passam por o que Spivak chama de “uma série de interrupções, repetidos cortes de tempo que não podem ser suturados”, o mesmo vale também para sua prosa superinflada, excessivamente elíptica. Ela própria, como se poderia esperar que acontecesse e acontece, lê o que é espinha dorsal partida na estrutura do livro, como se fosse distanciamento iconoclasta da “prática acadêmica ou crítica aceita”. Mas as elipses, o jargão super carregado, o pressuposto de superioridade (segundo o qual todos entendem o que ela diz, mas, se você não entender coisa alguma, ela nem se importa muito) são tanto a supercodificação de uma ‘manha’ acadêmica, quanto o beijo-de-judas do academicismo convencional.

Assim como um salto abrupto de Jane Eyre para O Modo Asiático de Produção desafia as noções composicionais de acadêmicos machos e brancos, há aí também mais do que um toque do bom velho ecletismo norte-americano. Nesse supermercado de exibidos da mente, em que tudo é permitido, qualquer ideia pode, aparentemente, ser trocada por qualquer outra. O que alguns talvez chamem de pensamento dialético é, para outros, uma inabilidade patológica de manter-se atento ao problema. A linha entre o hibridismo pós-colonial e o vale-tudo-ismo pós-moderno é embaraçosamente tênue. Como feminista, desconstrucionista, pós-marxista e pós-colonialista, tudo ao mesmo tempo, Spivak parece não querer perder nenhum dos jogos teóricos que estão rolando hoje na cidade. Multiplicar as próprias alternativas é postura teórica admirável, tanto quanto é item conhecido da filosofia do supermercado norte-americano. Para Spivak, impor uma narrativa coerente aos seus materiais, mesmo que o título sugira espuriamente uma (alguma) narrativa, seria pecar por teleologia, que pune com pena de banimento alguns tópicos, como o imperialismo bane alguns povos. Mas se teóricos culturais hoje em dia podem saltar bruscamente de alegoria para Internet, numa espécie de versão intelectual do DDA (Déficit de Desordem de Atenção), é em parte porque estão libertos dos clamores inevitavelmente constritores de algum grande projeto político. Pensamento lateral, assim, é quase absolutamente não distinguível de perda de objetivo político. Até os livros sobre os quais Spivak não escreveu circulam como fantasmas inquietos pelas notas de rodapé, resistindo contra a exclusão. Verdade é que ainda falta escrever outro ensaio sobre os escritos não publicados de Gayatri Spivak, que tomaria por objetos todas aquelas notas nas quais ela anunciou trabalho jamais publicado ou que ninguém jamais viu ou que a autora apresenta como trabalho que ela não pode ou não quer escrever.

O ardente desejo de Spivak de dizer tudo de uma vez talvez não seja perfeitamente inocente, ou desejo de impressionar; mas é muito mais do que isso, assim como a obscuridade do estilo de um teórico pode vez ou outra ser sinal quase tanto de insegurança, quanto é de arrogância. Fato é que Spivak tem amplidão formidável de referências, o que deixa muito teórico cultural parecendo tristemente paroquial. Poucos poderiam de longe, que fosse, equiparar-se ao alcance e à versatilidade desse livro, que vai da filosofia hegeliana e dos arquivos históricos da Índia colonial à cultura pós-moderna e ao comércio internacional. Muitos autores pós-coloniais agem como se as relações entre o norte e o sul do mundo fossem, basicamente, assunto ‘'cultural'’, o que permite aos tipos literários exercitar os músculos em questões mais pesadas que a imagética dos insetos no James da última fase. Spivak, ao contrário, manifesta adequado escárnio contra tal “culturalismo”, mesmo que partilhe de boa quantia dos pressupostos dele. Não comete o erro de imaginar que ensaio sobre a figura da mulher em Passagem para a Índia seja inerentemente mais ameaçador, contra as corporações transnacionais, que uma pesquisa sobre o emprego do ponto-e-vírgula, em Thackeray. As relações entre norte e sul não são basicamente sobre discurso, linguagem ou identidade, mas sobre armas, mercadorias, exploração, trabalhadores precários, imigrados, dívida e drogas; e esse estudo trata de realidades econômicas que excesso de críticos pós-coloniais só fazem culturalizar e afastar para bem longe. (Para alguns deles ultimamente qualquer referência ao econômico seria, por isso mesmo, “economicista”, assim como falar de pulmões ou rins já é imediatamente “biologismo”). Se Spivak sabe de grafêmica, também sabe da indústria do vestuário. E ajuda bem que ela esteja entre os/as mais coruscantemente inteligentes teóricos contemporâneos/as, cujos insights podem ser idiossincráticos, mas só muito raramente são menos que originais. É possível que ela tenha feito mais bem político de longo prazo, como pioneira de estudos feministas e pós-coloniais na academia global, que qualquer outro de seus/suas colegas de teoria. E, como essas grandes maîtresses, tem de enfrentar agora essa fonte inesgotável de incômodos e embaraços: os acólitos devotados.

Ela desincumbe-se da tarefa com excessiva graça. Alguém devia mesmo escrever uma crítica da razão pós-colonial, avaliando as realizações e os absurdos, mas esse livro é excessivamente bem-comportado, excessivas boas-maneiras, tanto quanto excessivamente episódico, para a tarefa. Se o subtítulo mal se entende, o título, esse, desencaminha completamente. Spivak é simultaneamente a autora mais bem e mais mal situada para levar a cabo esse projeto; e quanto falha, o fracasso é, simultaneamente também, frustrante e compreensível. É a mais bem situada, porque, como imigrada para o ocidente, consegue ver aqueles limites conceituais menos óbvios para locais e insiders. Há muito oportuno bom senso, mas só se Spivak parasse de só pensar na frase, em mostrar aos mais idealistas empregados da indústria ocidental pós-colonial que o nativismo não deve ser romanticizado; que as minorias étnicas dentro dos países-metrópoles não são a mesma coisa que povos colonizados; que nada há de “essencialista” nos direitos civis; e que, para grupos subalternos, tornarem-se cidadãos institucionalizados não é meta desejável só para primitivistas passeadores de cartazes em passeatas. Diferente de alguns de seus colegas de olhos mais na-Lua, Spivak não vê a transição de migrante étnico para executivo de empresa como inequívoco progresso, nem sente a necessidade de denunciar “empreendedores étnicos, cafetões das transnacionais, que vendem as próprias mulheres a empregadores clandestinos”. Também sabe que feministas a trabalhar pró “justiça de gênero” no ocidente só fazem contribuir inevitavelmente para promover uma ordem social cujas operações globais violentarão ainda mais os mesmos direitos noutros pontos do planeta.

Mas essa crítica aguada contra os liberais pós-coloniais ocidentais tampouco chega aos cabeças. Se Spivak mostra faro refinado para localizar a mentira, a hipocrisia, o apadrinhamento ocidental, ela ao mesmo tempo é notavelmente cautelosa no serviço de não sugerir rompimentos nem quebrar fileiras. Num sentido, é uma recusa louvável a ceder ao jogo sujo entre os que sabem e os que querem saber. Já há autodilaceramento fútil suficiente dentro da academia norte-americana, sem Spivak fazer-se ainda mais, de vítima. É também valente reconhecimento de sua própria condição comprometida, como celebridade acadêmica que discorre sobre casta e clitoridectomia. Mas há mais que isso, nas reticências dela. Esse livro encaminha algumas bem merecidas porretadas à ninhada mais feroz dos críticos pós-colonialistas, cuja fascinação pelo Outro é em parte uma ânsia desmoralizante de não serem absolutamente outro, nada de outro, só eles mesmos. Mas vem também suavizado pelo consenso brando, anódino da academia norte-americana, na qual os grandes conflitos são praticamente sempre abafados por um “profissionalismo” que interessa a todos. Além do hábito-sintoma revelador de usar o adjetivo “agressivo” como elogio, os EUA são cultura que teme profundamente qualquer discussão ou debate – o que talvez explique que a luta livre, jogo que converte briga em simulacro e espetáculo, seja o esporte mais popular da televisão norte-americana.

Spivak é a mais mal posicionada dos críticos para escrever o livro que seu título tão falsamente promete, porque ela é também, por demais, a insider, como uma das maiores arquitetas de toda a empreitada pós-colonial no Ocidente. Seu arquiteto associado, Edward Said, rapidamente perdeu a paciência com o que haviam conseguido construir juntos e, à maneira dele, sedutoramente cáustico, não se nega a dizer precisamente isso. Mas Spivak é mais irênica do que sugeriria a sua prosa ocasionalmente pugilística. Seu comentário de que muito na área é “lixo” é em vasto sentido, marginal. Se ela distingue corretamente entre minoria étnica e nação colonizada, ao mesmo tempo não consegue afirmar o ponto de que foi bom negócio do pós-colonialismo ser uma espécie de versão “exportada” dos graves problemas étnicos dos EUA e, assim, apenas mais uma instância do God’s Own Country, um dos mais insulares da Terra, que define o resto do mundo em termos dele mesmo. Para que essa exportação acontecesse, algumas importações, conhecidas como intelectuais do Terceiro Mundo, tiveram de atuar como seus agentes; embora Spivak tenha razão para saber disso melhor que muitos, ela nunca para por tempo suficiente em seu livro, em pausa para desembrulhar suas implicações. Fazer isso requer alguma crítica sistemática; mas crítica sistemática é, para ela, parte mais do problema que da solução, como é para os suficientemente privilegiados para não precisarem de conhecimento rigoroso. Esses indivíduos são acostumados a ser tratados como “a elite” [orig. the gentry], e são hoje conhecidos como pós-estruturalistas. Se ela pode ser esplendidamente amarga sobre “rapazes brancos falando de pós-colonialidade”, ou da aliança entre estudos culturais, multiculturalismo liberal e capitalismo transnacional, esses saudáveis bocados só brevemente surgem à superfície, para novamente sumirem no cozido indigesto de seu texto.

Há, com certeza, muito mais a ser dito a favor dos estudos pós-coloniais do que isso aqui, e a própria Spivak diz muito nessas páginas. Sejam quais forem as ilusões românticas e a autoapreciação secreta dos estudos pós-culturais, seu setor de mais rápido crescimento, o da crítica literária, assinala a entrada no estágio cultural ocidental, pela primeira vez na história, dos que o ocidente mais agrediu e dos que mais abusou. Difícil, pois, que haja críticos mais importantes em nosso tempo que os equivalentes de Spivak, Said e Homi Bhabha, mesmo que dois desse trio sejam impenetravelmente opacos. Diferente de salvar-se um dentre dois ladrões no Calvário, aqui a porcentagem não é razoável. Mas há razões pelas quais dar crédito, tantas quantas pelas quais não dar, ao rápido surgir à tona do pós-colonialismo, e Spivak, praticamente durante todo o tempo, mantém-se em silêncio sobre elas. O nascimento, por exemplo, seguido do início da derrota, pelo menos por hora, de ambos: da luta de classe nas sociedades ocidentais e do nacionalismo revolucionário no mundo antes colonizado. Os alunos nos EUA que, embora não por culpa deles, não reconhecem a luta de classe nem que apareça pendurada à rabeta de suas pranchas de skate, ou que talvez não amassem tanto o Terceiro Mundo se alguns de seus habitantes se puserem a matar seus pais e irmãos em grandes números, podem deslocar generosamente seus vicários sentimentos generosamente radicais, bastando para tanto deslocar a opressão para outros pontos. Esse movimento os deixa plugados às sombras das dores da moda pós-moderna sobre o atraso ‘monolítico’ das próprias ordens sociais. É como se o tema desorientado, empobrecido, do Ocidente consumista conseguisse, por uma extraordinária ironia histórica, encontrar uma imagem dele mesmo, nos condenados da terra. Se “margens” não andam muito na moda, é em parte porque os que habitam as margens clamam por justiça política, e em parte porque uma geração sem memória política delegou cinicamente toda a esperança ao “centro”. Como grande parte do feminismo norte-americano, o pós-colonialismo é um modo de ser politicamente radical, sem ter necessariamente de ser anticapitalista, e, assim, é uma forma peculiarmente hospitaleira de esquerdismo para um mundo “pós-político”. Gayatri Spivak, diferente disso, manteve a fé, embora com ambiguidades, na tradição socialista; mas embora haja muitas agudas percepções sobre o marxismo em seu livro, ela está investida profundamente demais no feminismo e no pós-colonialismo, para lançar a crítica socialista à vera, dessas correntes. E assim como aqui cavalga dois mundos, e também o hábito cansativo em seu trabalho de se autorreferir e se autoteatralizar, vê-se o autodesempenho irônico do colonial, uma facada satírica na personificação de intelectual, e um já conhecido culto norte-americano à personalidade.

Há alguns tipos de crítica – a de Orwell pode servir como exemplo – que são muito mais radicais politicamente do que o estilo “senso comum” poderia sugerir. Com toda a azia que faz jorrar sobre os marxistas, para nem falar da visível vontade de entregar os comunistas ao estado, as políticas de Orwell têm muito mais longo alcance do que sua prosa pensada convencionalmente pode sugerir. Como grande parte do que se escreve de pós-colonial, a situação é exatamente o contrário. O coruscante avant-gardismo teórico deles oculta uma agenda política muito pobre, bem modesta. Onde se arriscam a fazer propostas políticas, o que é muito raro, eles sequer têm o élan revolucionário das escandalosas especulações sobre o desejo ou a morte do Homem ou o fim da História. Esse é um traço que também se constata em Derrida, Foucault e outros como eles, que vagueiam entre um culto da ‘loucura’ ou da ‘monstruosidade’ e um tipo mais contido, reformista, de política, recuando para um ou outro ponto, dependendo da direção da qual lhes venha o fogo crítico. Derrida – figura que esse livro consagra, sobre o qual não se admite nem um sopro de crítica – consegue fazer a desconstrução soar, às vezes, como um tipo de negócio tão ordinário, afirmativo, inócuo, que se fica a cogitar por que Christopher Ricks e Denis Donoghue não correm imediatamente a abraçá-lo. Outras vezes, e para outros públicos, torna-se assunto muito mais ameaçador: nada menos que uma forma radicalizada de marxismo, o que, aliás, deve irromper como grande surpresa para muitos desconstrucionistas e para todos os marxistas. Desconstrução pode ser, sim, manobra politicamente desestabilizatória, mas devotos como Gayatri Spivak teriam de reconhecer também seu efeito de desvio. Como muita teoria cultural, ela permite que alguém fale soturnamente de subversão, ao mesmo tempo em que, em termos políticos, posiciona-se só um pouquinho à esquerda de Edward Kennedy. Para alguns teóricos pós-coloniais, por exemplo, o conceito de emancipação é chapéu embaraçosamente velho. Para algumas feministas norte-americanas, socialismo é território tão jamais pisado como Alpha Centauri.

As próprias políticas de Gayatri Spivak são tão elusivas como seus processos de pensar; mas há indícios nesse estudo de que ela também é bastante mais ousada na epistemologia, que na reconstrução social. Às vezes, ela falará positivamente sobre a necessidade de novas leis, sistemas de educação e saúde, relações de produção; outras vezes, em estilo pós-colonial familiar, sua ênfase é menos na transformação que na resistência. A resistência sugere ação militante, mas também implica que a pegada política está(ria) noutro lugar. É doutrina conveniente para os que não gostam do que o sistema faz, ao mesmo tempo em que duvidam de que algum dia terão força bastante para pô-lo abaixo. O marxismo, para Spivak, embora não para seu fundador, é uma especulação, não um programa; e só pode ter consequências violentas se usado para “engenharia social preditiva”. Como o pensamento de estrangular seu companheiro de apartamento; em outras palavras: tudo bem, desde que você não aja. O atual sistema de poder pode ser incessantemente “interrompido”, adiado ou “posto de lado”, mas tentar ir além dele, completamente, é a forma mais crédula de utopismo.

Pode até que venha a ser verdade, mais soa um pouco demais antidesconstrutivistamente seguro de si, como estão as coisas, assim como esse livro assume (sem argumentar abertamente) o caso pós-moderno dogmático segundo o qual todo o universalismo é reacionário, quase toda transgressão ou disrupção é positiva, e quase todas as tentativas de calcular com precisão e rigor são uma forma de razão dominatória. Para Spivak, propor um “outro” ao que temos hoje é negar a inevitável cumplicidade de alguém com o que tenha; e assim é deixar particularmente vulneráveis críticos como ela mesma. Ninguém imaginaria que Stanley Fish não estaria afundado até as orelhas no capitalismo, nem Stanley Fish; mas há várias almas enganáveis nos programas de graduação nos EUA que podem cometer o erro de ver Gayatri Spivak como algum avatar de pura alteridade. Ela mesma trabalha corretamente para emperrar esse sentimentalismo, lembrando esses fãs da Mulher Negra de que ela também é burguesia altamente paga e líder de uma elite colonial. E então, ela antes opta pela má fé de recusar o sistema sem propor alternativa geral, que pela má fé de negar sua colusão com o mesmo sistema.

Mas a culpa pode ser tão desabilitante quanto a arrogância. O bem político que Spivak fez ultrapassa em muito o fato de que ela vive vida mansa nos EUA. Se cumplicidade é viver em sociedade capitalista, praticamente todo mundo, até Fidel Castro, pode ser acusado de cúmplice; se significa ‘comprar sua parte para entrar’ (como diz eloquentemente a expressão “buying in” dos norte-americanos) em algo chamado Razão Ocidental, então só esses pensadores racistas e não dialéticos para os quais tal razão seria uniformemente opressora têm por que se preocupar com ela. A palavra “cúmplice” tem um signo daninho ligado a ela, mas nada há de daninho em ser “cúmplice” do Grupo de Ação Contra a Pobreza Infantil ou dos escritos das suffragettes. Em todos os casos, Spivak está logicamente errada ao supor que imaginar alguma alternativa geral ao atual sistema significa(ria) declarar-se não conspurcada por ele. Imaginar que seria ótimo estar em Siena não é necessariamente negar o fato de que estou em Scunthorpe. Ela compara sua própria crítica da teoria pós-colonial metropolitana ao ardente assalto que seu colega indiano Aijaz Ahmad move contra ela em seu livroIn Theory, e apresenta o próprio livro dela como “mais nuançado, com reconhecimento produtivo de cumplicidade”. Mas por que, afinal, isso deveria ser pressuposto qualidade, se o resultado é menos aproveitável? Ahmad pode disfarçar seu envolvimento no que ataca, pelo menos na visão de Spivak, mas isso não implica automaticamente que faça retrato menos acurado [do que ataca]. Seja como for, pode-se dizer que Ahmad é menos “cúmplice” que Spivak: lecionou por muito menos tempo no ocidente; está mais explicitamente comprometido com uma alternativa socialista; e está muito (muito!) menos apaixonado por novas teorias cevadas no ocidente. Mas nada disso importa. O que importa é que ele escreve muito bem sobre teoria pós-colonial, um corpo de trabalho escrito que se pode descartar em Delhi e apoiar em Sacramento. A ênfase pós-estruturalista na “posição do sujeito” é parente próxima da obsessão existencialista com a autenticidade: o que você diz conta menos que o fato de você estar dizendo [qualquer coisa]. O liberalismo, muito semelhantemente, tende a crer que o escolhido é menos importante que o fato de que eu escolhi [qualquer coisa] – por isso é ética especialmente talhada para adolescentes. Mas está-se interessado em pós-colonialismo, não na má fé ou nos vícios de psíquicos de acadêmicos que o pratiquem. Spivak é anti-intencionalista resoluta, no que tenha a ver com trabalho dos outros; mas é frequentemente autobiográfica e anedótica no que tenha a ver com o trabalha dela mesma. Se é tentativa admirável para introduzir um pingo de subjetividade no debate impessoal dos patriarcas, ao mesmo tempo trai excesso de interesse na própria subjetividade.

Quando se trata da ideia de resistência, qualquer intrépido Derridaeano deve “tomar certo cuidado, ser vigilante, uma persistente tomada de distância” [orig. persistent taking of distance (sic)], nas próprias palavras de Spivak, atento a outro tema. Bem pouca gente no bloco soviético nos anos 1980 estava convencida de que seria possível resistir àquele sistema, mas não seria possível transformá-lo; mas essa opinião, ao fim, mostrou-se um pouco rígida demais, ainda que aquilo em que aquele sistema transformou-se dificilmente se possa chamar de sociedade justa. Pode-se acrescentar que, quando chegou a hora de varrer aquela estrutura de poder, comprovou-se que a agência coletiva nada tinha de ficção essencializante e nem o cálculo preciso comprovou-se tão impreciso como os pós-estruturalistas parecem imaginar.

6 de maio de 1999

Belém, vítima do regime colonial do espírito

Paulo Nogueira Batista Jr.

Folha de S.Paulo


"Não se imagina, no resto do Brasil, o que é a cidade de Belém", escreveu o grande Euclides da Cunha no início do século 20. Pois acabei de voltar de Belém, onde passei alguns dias, e poderia dizer exatamente a mesma coisa.

Quase cem anos depois, em plena suposta "era da informação", o quadro não mudou: o Brasil continua a ignorar o maravilhoso patrimônio histórico e cultural de uma de suas principais cidades.

O leitor poderá estar estranhando um pouco o tema que escolhi esta semana para uma coluna que é, afinal, de opinião econômica. Mas pretendo mostrar, caro leitor, que a relação entre os dois assuntos é maior do que pode parecer à primeira vista.

Veja o meu caso. Tenho mais de 40 anos e nunca fui, nem quis ser, um daqueles economistas "tecnocráticos", encantado ou obcecado com a ciência econômica e suas aplicações. Dentro dos estreitos limites da minha ignorância de economista, sempre tive grande interesse por temas culturais. Apesar disso, até o ano passado, quando conheci Belém, não tinha a mais vaga e remota idéia do que é essa cidade brasileira!

Eis o que eu queria dizer: o brasileiro não se interessa realmente pelo Brasil. Vive, eternamente, de costas para o próprio país e desconhece solenemente os seus valores e potencialidades.

Trata-se, como é óbvio, de uma das facetas da nossa crônica falta de auto-estima. Do nosso secular complexo de vira-latas, como diria Nelson Rodrigues. Complexo esse que sofreu, nos anos 90, diga-se de passagem, uma intensificação impressionante, que bem mereceria uma avaliação aprofundada da parte dos estudiosos dos problemas sociais brasileiros.

Foi esse complexo revigorado de vira-latas que contribuiu -e muito- para que a política econômica brasileira, nos últimos dez anos, importasse todo tipo de "consenso" internacional vagabundo, fabricado no Primeiro Mundo para consumo na periferia do planeta.

Assim como na área da cultura, também na da economia o Brasil tem sido induzido a ignorar, descartar e desprezar os seus valores e interesses básicos. O resultado foi que, a pretexto de modernizar, abrir e privatizar, produziu-se grande desnacionalização e enfraquecimento da economia nacional.

Há quem diga que, no fundo, no fundo, o brasileiro não tem motivos individuais ou coletivos, históricos ou recentes para a auto-estima. É um engano. Belém está aí, a demonstrá-lo de forma escandalosamente clara. Assim como Fortaleza, Florianópolis e outras cidades que só recentemente tive a oportunidade de conhecer melhor.

E, depois, é preciso considerar o seguinte: auto-estima é uma questão de disposição interna, subjetiva. De saber encontrar, criar e recriar, na realidade multifacetada e multicolorida do mundo, do jeito mesmo que ele é, com todas as suas ambivalências, sombras e abismos, os motivos para viver, para fortalecer e fazer crescer a vida. O que vale no plano individual da vida de cada um de nós vale também no plano nacional.

Evidentemente, enquanto continuarmos valorizando e importando indiscriminadamente tudo o quanto é vulgaridade produzida na Europa e, sobretudo, nos EUA, nada de fundamental vai mudar. Continuaremos clientes de todas as bobagens que, sob a égide de uma falsa "globalização", percorrem a Terra à cata de consumidores incautos e provincianos.

"Eadem, sed aliter" ("O mesmo, mas de outra maneira"), ensinava Schopenhauer. Certos traços centrais de um país mudam pouco ou nada. Ou, em todo o caso, muito menos do que sugere a superfície das coisas.

No livro "Contrastes e Confrontos", publicado em 1907, o mesmo Euclides da Cunha desancou o "cosmopolitismo" das elites brasileiras, a sua atitude imitativa e servil que conformava "uma espécie de regime colonial do espírito", capaz de transformar "o filho de um país num emigrado virtual, vivendo, estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo".

O nosso fascínio beócio com a "globalização", com as novidades, muitas vezes falsas, da economia e da cultura "globais" do final do século 20 é apenas a última transfiguração desse antigo, antiquíssimo regime colonial do espírito.

Paulo Nogueira Batista Jr., 44, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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