30 de janeiro de 1999

Desemprego e arrocho salarial

Marcio Pochmann

Folha de S.Paulo

Não parece existir dúvida a respeito do repique inflacionário a ser provocado pelo atual curso da maxidesvalorização sem controle do real. É trivial dizer que todo choque de grandes proporções implica mudança dos preços relativos e, por consequência, a reação encadeada dos agentes econômicos na tentativa de resguardar suas participações relativas na renda nacional.

Por conta disso, a indexação manifesta-se rapidamente, ainda que a sua extensão possa ser disforme e parcial. De imediato, surge um grande dilema. O possível salto na taxa de inflação no Brasil representará "apenas" a conformação de um novo patamar mais alto da carestia ou a subida progressiva dos preços conduzida pela inércia inflacionária.

Das estimativas preliminares existentes, pode-se depreender que a nova taxa anual de inflação corre o sério risco de se situar numa faixa acima de um dígito. Isso, por si só, não seria pouca coisa, em se tratando, sobretudo, de uma economia relativamente aberta ao exterior, sem os tradicionais mecanismos de indexação e diante do cenário recessivo.

Para que o repique inflacionário represente tão-somente um novo patamar mais alto do custo de vida, sem a contaminação em cascata de todo o processo de formação de preços da economia, torna-se absolutamente fundamental que o processo distributivo não apresente apenas vencedores, mas, principalmente, perdedores em definitivo, que aceitem a realidade proveniente de uma menor participação na renda nacional.

Em geral, percebe-se que o setor exportador aparece como privilegiado pela nova situação cambial, ao mesmo tempo que as commodities, com preços cotados em dólar no mercado internacional, e as empresas oligopolistas, com condições mais favoráveis para proteger suas margens de lucro, tendem a repassar para preços finais os possíveis impactos de custo. O que significa, em parte, a retroalimentação da cadeia inflacionária.

Mas onde a corrente da alta de preços poderia ser interrompida? Certamente nos seus elos mais débeis, como os setores produtivos vinculados ao mercado interno, especialmente as pequenas e microempresas, que poderão ter suas margens de lucro esmagadas pela escassez de consumidores ou ainda pela inadimplência dos mesmos. Como se sabe, o segmento voltado para o mercado interno possui dificuldades adicionais para repassar imediata e generalizadamente para preços qualquer aumento de custos num cenário recessivo, combinado a altas taxas de juros e à abertura comercial.

Da mesma forma o mundo do trabalho, que, por ser detentor de renda fixa, deverá amargar a maior parte do ônus inflacionário, diante da queda do salário real, que decorre do novo patamar da carestia no Brasil, e da elevação do desemprego, que resulta da recessão. Em outras palavras, o elo fraco da corrente distributiva, representado por empregados assalariados, funcionários públicos, trabalhadores autônomos, aposentados e pensionistas, encontra-se praticamente excluído das possibilidades de utilização dos mecanismos tradicionais de indexação, como forma de procurar garantir sua anterior participação no bolo da renda nacional.

Sem a plena e imediata correção dos salários, a inflação terminará atuando como um novo imposto, responsável pela redução da massa nacional de rendimentos do trabalho estimada em 5% (cerca de R$ 15 bilhões a menos no poder aquisitivo dos trabalhadores). Em síntese, o rendimento do trabalho, que significava 38% da renda nacional em 1996, poderá representar, em 1999, apenas 35%, o que torna ainda mais perverso o atual processo de distribuição funcional da renda no Brasil.

Nesse quadro, a estratégia governamental de combate à elevação do custo de vida parece bastante clara. Mais uma vez, a tentativa de controle da inflação tende a recair sobre os ombros dos trabalhadores, na forma de arrocho salarial e de maior desemprego.

Somente uma negociação nacional com os macropreços nacionais (preços privados, tributos, juros, câmbio e salários) apresenta-se como alternativa à política do silêncio de cemitério que a desindexação e a recessão impõem aos elos mais fracos da corrente distributiva. Mas será que há vontade política suficiente para a implementação de uma política de rendas concertada? Ou se deve acreditar que a capacidade do governo em controlar a inflação reside apenas e tão-somente no desmantelamento do bem-estar social da maior parte da população brasileira?

Sobre o autor


Marcio Pochmann, 36, economista, é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

24 de janeiro de 1999

Que moratória?

O economista Celso Furtado alerta sobre a dolarização da economia brasileira e a perda da autonomia política

Celso Furtado


A crise brasileira não surpreendeu ninguém. Foi a repetição de um espetáculo de desgoverno com que estão familiarizados os estudiosos da história do país. O problema de fundo tem sido sempre o mesmo: incapacidade da classe dirigente para enfrentar problemas que são a grande concentração da renda e da riqueza e que se traduzem, de um lado, em excessiva propensão a consumir e a importar e, de outro, em baixa taxa de poupança. Existe uma contradição entre o modesto nível de desenvolvimento do sistema produtivo e os padrões de consumo das classes afluentes aos quais aspiram as classes médias.

O crescimento econômico, que tem sido considerável nos últimos decênios, engendrou uma sociedade com graves distorções e sujeita a crises intermitentes de balança de pagamentos. Essas considerações são essenciais para compreender a inflação crônica que caracterizou a economia brasileira tanto nas fases de crescimento como nas de recessão.

A estratégia de estabilização adotada pelo governo no último quinquênio ignorou esplendidamente essa realidade. Sem dúvida, a instabilidade vinha reduzindo a governabilidade do país desde os anos 70, quando mudou a conjuntura internacional. O primeiro passo da nova política consistiu em tirar proveito do aumento considerável de liquidez internacional. Deu-se mais elasticidade à oferta interna de bens de consumo e inverteu-se a posição do balanço comercial, que, de positivo, passou a ser negativo. Isso favoreceu a massa de consumidores, o que produziu dividendos políticos consideráveis.

Mas, como era de se prever, logo se manifestou o desequilíbrio na balança de pagamentos. À diferença do ocorrido no passado, quando se enfrentava o desequilíbrio manipulando o câmbio, privilegiou-se a estabilidade de preços facilitando o endividamento externo de curto prazo e elevando de forma exorbitante as taxas de juros. A política de juros altos provocou uma redução dos investimentos produtivos e uma hipertrofia dos investimentos improdutivos. O país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida que se endivida no exterior para financiar investimentos especulativos e alienar o patrimônio nacional. A recessão tornou-se inevitável.

Não seria o caso de culpar os formuladores do plano de estabilização, que haviam recomendado uma política compensatória fiscal, a qual engendraria uma elevação compulsória da poupança. É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional, o que explica que não se haja tido em conta as peculiaridades do processo legislativo brasileiro, o qual está longe de ter a racionalidade ao gosto dos tecnocratas. Por outro lado, os dividendos políticos produzidos pela estabilização dos preços inebriaram os dirigentes do Poder Executivo, cujo comando se dispôs a aceitar qualquer risco que lhe garantisse a reeleição.

Assim, já ninguém tem dúvida de que a economia brasileira está fadada a entrar em moratória. Mais uma vez evidencia-se que as instituições internacionais são incapazes de mobilizar os recursos requeridos para evitar rupturas de pagamentos nos chamados países emergentes. E os parcos recursos que intermedeiam são aplicados a taxas de juros que pouco alívio trazem aos devedores. Os recursos postos à disposição do Brasil implicaram aprofundar o endividamento do país, particularmente se se tem em conta que as condicionalidades tornaram inevitável a recessão. A estratégia do FMI parece ser prolongar a recessão até que o paciente aceite a adoção de um sistema de "currency board", ou seja, a plena dolarização, à semelhança do ocorrido na Argentina. Isto significa nada menos que compartilhar com o sistema financeiro internacional o governo do país. Diante dessa perspectiva temos que reconhecer que a moratória é um mal menor, pois evita a abdicação da responsabilidade de se autogovernar.

Mas a moratória não deve acontecer como uma catástrofe. Deve ser meticulosamente programada no plano externo como no interno. Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Ainda no plano interno, caberia inspirar-se no capítulo 11 do "Código de Bancarrota dos Estados Unidos", conforme recomenda a última edição do "Trade and Development Report" da UNCTAD, esse órgão das Nações Unidas atualmente dirigido por um brasileiro de excepcional competência, que é o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero. No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de restaurar a disciplina cambial e a dos fluxos de capital.

Persistir na política atual de endividamento externo é aceitar o risco de uma moratória catastrófica, que parece ser o objetivo dos que se empenham em liquidar o que resta do patrimônio público (leia-se Petrobrás) e ceder às empresas transnacionais o comando do sistema monetário (leia-se dolarização).

Sobre o autor

Celso Furtado é economista. Foi ministro do Planejamento (entre 1962 e 1963) do governo João Goulart e ministro da Cultura entre 1986 e 1988 do governo José Sarney. É autor de mais de 30 livros, entre eles, "Formação Econômica do Brasil" e "Teoria Política do Desenvolvimento Econômico".

14 de janeiro de 1999

Um tipo de golpe

John Conyers disse, em um ponto particularmente absurdo e exasperante nas audiências da Câmara, que estava começando a farejar um golpe. No sentido familiar da palavra, ele estava errado, é claro.

Ronald Dworkin


January 14, 1999 issue

O poder de impeachment de um presidente é uma arma nuclear constitucional e deve ser usado apenas nas emergências mais graves. Dá aos políticos os meios para destruir os princípios mais fundamentais de nossa estrutura constitucional, e agora sabemos com que facilidade esse terrível poder pode ser abusado. Um grupo partidário na Câmara, em votação partidária, pode aniquilar a separação de poderes e enviar um presidente legitimamente eleito do partido oposto a um julgamento prolongado, humilhante e televisionado, um julgamento que assustaria os mercados, usurparia o recurso escasso de atenção nacional por meses e prejudicaria a liderança e as políticas presidenciais por ainda mais tempo. Tal grupo pode até mesmo, se dominar o Senado, destituir um presidente do cargo, apesar de ser o único funcionário do país eleito por todo o povo, e mesmo que ainda goze de amplo apoio.

Nada - nada - pode parar um partido de políticos com votos suficientes e essa ambição. Eles podem, como alertou Gerald Ford, declarar qualquer coisa que quiserem como “crime grave ou contravenção”. Eles podem ignorar, como a Câmara ignorou, as disposições mais fundamentais do devido processo e do procedimento justo. Nenhum tribunal pode revisar seus procedimentos, suas declarações ou seu veredicto. Nenhum clamor público pode detê-los. Nada pode detê-los, exceto sua própria consciência constitucional: seu próprio respeito não apenas pelo texto detalhado da Constituição, mas por sua estrutura e filosofia mais profundas.

A liderança republicana da Câmara afirma ter tido esse respeito: diz que agiu não com alegria, mas com um solene senso de responsabilidade. Devemos examinar essa afirmação com o maior cuidado. Dizem que o Presidente não deve estar acima da lei, que deve ser tratado como qualquer outro cidadão. Mas a maneira de tratá-lo como qualquer outro cidadão é não impugná-lo: em dois anos Bill Clinton será um cidadão privado e poderá ser processado, por Kenneth Starr ou qualquer outro oficial apropriado, por qualquer coisa, em um tribunal onde ele terá os mesmos direitos de um réu criminal que qualquer outro cidadão tem

A liderança diz que o presidente é culpado dos “crimes e contravenções graves” que a Constituição exige para o impeachment. O que essa frase obscura significa? Os Pais Fundadores pensaram que isso significava um crime contra a Constituição ou o estado: um presidente agindo além de sua autoridade legítima ou traindo a confiança pública. Eles repetidamente deram o exemplo de um presidente que é pago por uma potência estrangeira. Mesmo que deixemos a história de lado e tentemos interpretar a frase obscura para que ela faça sentido dentro da estrutura da Constituição como um todo, chegamos à mesma conclusão.

Julgar um presidente, quanto mais removê-lo, é um choque sísmico para a separação de poderes que é a espinha dorsal da Constituição. Quando esse choque é necessário – quando não é bom esperar até o fim do mandato do presidente? A resposta parece óbvia. Não é bom esperar apenas quando há um perigo constitucional ou público em deixar um presidente no cargo, apenas quando ele subverte a força ou os fundos públicos para uso ilegal, por exemplo, ou perseguiu inimigos políticos com atos ilegais, ou aceitou subornar, como temiam os fundadores, ou enviar soldados para a guerra para ganho pessoal.

Os presidentes podem fazer muitas coisas ruins que não os tornam ameaças constitucionais. Eles podem acabar sendo moralmente decepcionantes, não serem pessoas que gostaríamos que nossos filhos copiassem. Eles podem sonegar seu imposto de renda, o que está muito longe de ser um crime trivial, ou podem mentir sob juramento, o que é muito ruim, mas muitas vezes não é pior. Essas falhas podem esperar pela história; esses crimes podem esperar por julgamento quando um presidente deixar o cargo.

É verdade que um funcionário que cometeu hediondos crimes privados, como assassinato, revela tamanha maldade inerente, e tanto desprezo pela vida humana, que é perigoso permitir que ele continue a exercer seus poderes, que incluem, por exemplo, o poder de enviar soldados para a guerra. Mas um congressista que pensa que mentir para esconder um embaraço sexual, mesmo sob juramento, está na mesma escala moral que o assassinato - que mostra maldade ou depravação comparável - não tem capacidade moral e é uma ameaça mais perigosa para a nação do que um presidente que mente, mesmo sob juramento, para manter sua vida sexual para si mesmo.

Portanto, qualquer pessoa com consciência constitucional evitaria o impeachment do presidente Clinton no registro que o Comitê Judiciário compilou, e devemos considerar a alegação da liderança republicana de um triste dever de impeachment como hipocrisia ou cegueira constitucional. A posição dos chamados “moderados” republicanos, que dizem que votarão pelo impeachment, mas não o fariam se o presidente tivesse confessado um crime, não é menos bizarra. O impeachment, que julga se é perigoso deixar um presidente no cargo, não é ocasião para delação premiada. Se mentir sobre sexo sob juramento é um crime passível de impeachment, então nenhuma confissão o tornaria menos; se não for, então nenhuma quantidade de teimosia o torna um.

John Conyers disse, em um ponto particularmente absurdo e exasperante nas audiências da Câmara, que estava começando a farejar um golpe. No sentido familiar da palavra, ele estava errado, é claro. Mas é uma espécie de golpe usar fórmulas constitucionais para subverter princípios constitucionais: se há atos nesta triste história que são graves crimes constitucionais, são os atos daqueles políticos que odeiam o presidente e suas políticas o suficiente para tirar a Constituição do caminho quando veem uma chance de humilhá-lo e enfraquecê-lo.

Nada na longa e triste história é tão revelador dessa fúria partidária quanto a acusação inicial e reflexiva de Trent Lott, o líder da maioria no Senado, e outros membros da liderança republicana no Congresso de que a decisão do presidente de bombardear o Iraque foi uma manobra para atrasar o processo de impeachment. O bombardeio pode ou não ter sido a resposta certa ao relatório da comissão de inspeção sobre o último descumprimento de Saddam. Mas se foi - e poucos no Congresso negam que foi - então parece forte o argumento de que era melhor começar a bombardear imediatamente, antes de qualquer nova ação evasiva ou manobra diplomática iraquiana, e na curta janela de tempo antes do início do mês sagrado do Ramadã, do que esperar até que esse mês terminasse.

De qualquer forma, porém, é grotesco sugerir que o momento de uma delicada ação militar deva aguardar o cronograma de impeachment do Congresso, e não o contrário. Um julgamento no Senado não pode começar até o próximo ano de qualquer maneira, e nada pode explicar a acusação inevitavelmente prejudicial da liderança, feita quando os pilotos americanos estão em risco e quando a reação de outras nações ao ataque americano é incerta e crucial, exceto uma raiva petulante de que sua vingança será adiada - ou, talvez, um medo arrepiante de que a decisão de alguma forma seja adiada para a próxima Câmara, que foi eleita em novembro passado e, portanto, será mais representativa da escolha do público, mas na qual os republicanos terão cinco votos a menos.

Suponha que eles consigam impeachment do presidente, mais cedo ou mais tarde. O dano maior pode ser o dano duradouro: aconteça o que acontecer no Senado, o precedente que eles criaram será um terror e uma tentação por muito tempo. Devemos fazer o que pudermos para apressar o dia em que esse precedente seja unanimemente denunciado como um erro que não deve ser repetido. Devemos cultivar uma longa memória. A maioria dos que votam pelo impeachment se candidatará novamente em dois anos, e devemos encorajar e apoiar os opositores que os denunciam pelo que fizeram, de todas as formas que pudermos, inclusive financeiramente. Os fanáticos terão manchado a Constituição, e devemos fazer tudo ao nosso alcance para envergonhá-los e não a nação.

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