1 de novembro de 1999

A CIA e a Guerra Fria cultural revisitada

James Petras

Monlhly Review

Monthly Review Volume 51, Number 6 (November 1999)

Who Paid the Piper?: The CIA and the Cultural Cold War
por Frances Stonor Saunders
Londres, Granta Books, £20.

Tradução / Este livro faz uma detalhada estimativa das formas pelas quais a CIA atuou e influenciou em um grande número de organizações culturais, através de seus agentes ou por meio de organizações filantrópicas, como as fundações Ford e Rockefeller. A autora dá detalhes de como e porque a CIA organizou congressos culturais, montou exibições de arte e organizou concertos. A CIA também publicou e traduziu autores conhecidos que seguiam a linha de Washington, financiou a arte abstrata contra arte com conteúdo social e, pelo mundo, subsidiou jornais que criticavam o marxismo, o comunismo e políticas revolucionárias. Justificou também, ou ignorou, as políticas imperialistas violentas e destrutivas dos EUA. A CIA criou um biombo para alguns dos principais expoentes da liberdade intelectual no Ocidente, colocando-os a seu serviço, a ponto de incluir alguns desses intelectuais em sua folha de pagamentos. Muitos eram conhecidamente envolvidos em "projetos" da CIA, e outros circulavam em sua órbita, alegando desconhecer a ligação com a CIA depois que esses financiamentos foram denunciados no final da década de 1960 e durante a guerra do Vietnã, quando a onda política virou-se para a esquerda.

Publicações anticomunistas americanas e europeias receberam fundos diretos e indiretos, incluindo Partisan Review, Kenyon Review, New Leader, Encounter e muitas outras. Entre os intelectuais financiados e promovidos pela CIA estavam Irving Kristol, Melvin Lasky, Isaiah Berlin, Stephen Spender, Sidney Hook, Daniel Bell, Dwight MacDonald, Roberto Lowell, Hannah Harendt, Mary McCarthy e numerosos outros, nos EUA e na Europa. Na Europa, a CIA estava particularmente interessada em promover a "esquerda democrática" e ex-esquerdistas, como Ignacio Silone, Stephen Spender, Arthur Koestler, Ràymond Aron, Anthony Crosland, Michael Josselson e George Orwell.

Sob o estímulo de Sidney Hook e Melvin Lasky, a CIA teve importante papel no financiamento e promoção do Congresso Para a Liberdade Cultural, uma espécie de OTAN da cultura, que reuniu toda a sorte de "anti-stalinistas" de direita e de esquerda. Eles tinham toda a liberdade para defender valores políticos e culturais do Ocidente, atacar o "totalitarismo stalinista" e tagarelar suavemente sobre o racismo e o imperialismo americanos. Ocasionalmente, críticas marginais contra a sociedade de massa americana apareciam nos jornais subsidiados pela CIA.

O que era particularmente bizarro nesse conjunto de intelectuais financiados pela CIA não era só seu sectarismo político, mas a pretensão de serem pesquisadores desinteressados da verdade, humanistas iconoclastas, intelectuais de espírito livre ou artistas adeptos da arte pela arte, que se contrapunham aos artistas corrompidos, comprometidos e prostituídos pelo aparato stalinista.

É impossível acreditar quando eles juravam ignorar as ligações com a CIA. Como poderiam ignorar a ausência, em seus jornais, de qualquer crítica mesmo elementar aos numerosos linchamentos que ocorriam em todo o sul dos EUA nessa época? Como poderiam ignorar a ausência, em seus congressos culturais, de críticas à intervenção imperialista na Guatemala, Irã, Grécia e Coréia, que deixaram milhões de mortes? Como poderiam ignorar as grosseiras desculpas, nos jornais onde escreviam, para os crimes imperialistas? Eles eram soldados: alguns lisonjeiros, cáusticos, rudes e polêmicos, como Hook e Lasky; outros, ensaístas elegantes, como Stephen Spender, ou informantes hipócritas, como George Orwell. Saunders retrata como a elite WASP manipula os cordéis da CIA; descreve também o rosnar de antigos esquerdistas contra aqueles que permanecem atuando nos movimentos de esquerda. Quando a verdade sobre esses financiamentos da CIA veio à tona, no final da década de 1960, alguns "intelectuais" de Nova York, Paris e Londres fingiram indignação, alegando terem sido manipulados. Foram desmentidos por Tom Braden, ex-dirigente da Seção das Organizações Internacionais da CIA, que os desmascarou dando detalhes de como eles, na verdade, sabiam quem pagava seus salários e bolsas (pp. 397-404).

De acordo com Braden, a CIA financiou sua "espuma literária", frase usada pelo dirigente linha dura da CIA, Cord Meyer, para descrever os exercícios intelectuais antistalinistas de Hook, Kristol e Lasky. Ele revelou que as mais prestigiosas e conhecidas publicações da chamada "esquerda democrática" (Encounter, New Leader, Partisan Review) foram financiadas pela CIA, e que "um agente tornou-se diretor da Encounter" (p. 398). Em 1953, escreveu, "estávamos operando ou influenciando organizações internacionais em todos os campos" (p. 398).

O livro de Saunders dá informações úteis sobre as formas como esses trabalhadores intelectuais da CIA defendiam os interesses imperialistas dos EUA nas frentes culturais, e abre uma importante discussão sobre as consequências a longo prazo das posições ideológicas e artísticas defendidas por esses agentes intelectuais do imperialismo.

Saunders refuta as afirmações de Hook, Kristol e Lasky de que a CIA e as fundações a ela ligadas promoviam ajuda sem exigir contrapartida. Demonstra que, ao contrário, "esperava-se que os indivíduos e instituições subsidiados pela CIA fossem (...) parte de uma propaganda de guerra". A propaganda mais eficiente era definida pela CIA como aquela em que "o sujeito se move na direção em que você deseja, por razões que ele acredita serem as suas próprias". A CIA dava dinheiro para a tagarelice da esquerda democrática sobre reforma social, mas o que lhe interessava mesmo eram as polêmicas "anti-stalinistas" e as diatribes literárias contra os marxistas ocidentais e os escritores e artistas soviéticos. Os autores dessas diatribes recebiam financiamentos mais generosos e eram promovidos com maior visibilidade. Para Braden, elas refletiam a "convergência" entre a CIA e a esquerda democrática na luta contra o comunismo. A colaboração entre a esquerda democrática e a CIA incluía ações anti-greves na França, deduragem contra stalinistas (Orwell e Hook), e campanhas difamatórias disfarçadas para evitar que artistas de esquerda tivessem reconhecimento (como ocorreu quando Pablo Neruda foi indicado para o Prêmio Nobel, em 1964 (p. 351)).

A CIA, como arma do governo dos EUA mais envolvida na luta cultural durante a Guerra Fria, com foco na Europa no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Depois de quase duas décadas de guerra capitalista, depressão, e ocupação pós-guerra, a grande maioria dos intelectuais e sindicalistas europeus eram anticapitalistas e particularmente críticos das pretensões hegemônicas dos EUA. Para combater a atração do comunismo e o crescimento dos partidos comunistas na Europa (especialmente na França e Itália), a CIA criou um programa de mão dupla. Por um lado, diz Saunders, certos autores europeus foram promovidos como parte de um "programa anticomunista" explícito. O critério cultural adotado pela CIA para "textos adequados" incluía "críticas contra a política externa soviética e contra o comunismo como forma de governo, desde que considerados objetivos e escritos de maneira convincente e oportuna". A CIA gostava especialmente de publicar textos de autoria de ex-comunistas desiludidos, como Silone, Koestler e Gide. A CIA promoveu escritores anticomunistas, financiando generosamente conferências em Paris, Berlim ou Bellagio, às margens do Lago Como, na Itália, onde cientistas sociais e filósofos como Isaiah Berlin, Daniel Bell e Czeslow Milosz pregavam seus valores (e as virtudes da liberdade e independência intelectual do Ocidente, dentro dos parâmetros anticomunista e pró-Washington definidos pelos seus patrões da CIA). Nenhum desses intelectuais de prestígio teve coragem de levantar a menor dúvida ou questionamento sobre o apoio dos EUA aos assassinatos em massa na Indonésia e na Argélia, a caça às bruxas contra intelectuais norte-americanos ou os linchamentos paramilitares promovidos pela Ku Klux Klan no sul dos EUA, assuntos "banais" que deviam ser deixados aos comunistas, segundo Sidney Hook, Melvin Lasky e o grupo do Partisan Review, que procurou avidamente recursos financeiros para evitar a falência da revista. Aliás, muitas dessas famosas revistas anticomunistas teriam falido sem o dinheiro da CIA, que comprou milhares de exemplares e, mais tarde, distribuiu-os gratuitamente.

O outro caminho usado pela CIA para a intervenção cultural foi muito mais sutil. Ele envolvia a promoção de sinfonias, exibições de artes plásticas, balé, grupos de teatro, e a apresentação de músicos de jazz famosos e cantores de ópera, com o objetivo explícito de neutralizar o sentimento antiimperialista na Europa e criar um ambiente favorável à cultura e ao governo norte-americanos. A ideia que orientava essa política era difundir a cultura norte-americana, para alcançar a hegemonia cultural em apoio ao império militar e econômico dos EUA. A CIA gostava especialmente de enviar artistas negros para a Europa particularmente cantores (como Marion Anderson), escritores e músicos (como Louis Armstrong), para neutralizar a hostilidade européia contra a política interna racista dos EUA. Se os intelectuais negros não aderiam ao script artístico e faziam críticas explícitas, eram banidos da lista, como foi o caso do escritor Richard Wright.

O nível de controle político da CIA sobre a agenda intelectual dessas atividades artísticas aparentemente apolíticas foi demonstrado claramente na reação dos editores de Encounter (Lasky e Kristol, entre outros) contra um artigo proposto por Dwight MacDonald. Ele era um dissidente anarquista e antigo colaborador do Congresso Para a Liberdade Cultural e de Encounter para a qual escreveu, em 1958, um artigo intitulado "America America", criticando a cultura de massa americana, seu materialismo rude e falta de civilidade. Era uma negação dos valores americanos, a matéria-prima da qual era feita a propaganda da CIA e da Encounter na guerra cultural contra o comunismo. O ataque de MacDonald ao "decadente império americano" foi demais para a CIA e seus intelectuais empregados na Encounter. Embora Braden tenha escrito, nas instruções para os intelectuais, "que não se pode exigir, das organizações financiadas pela CIA, o apoio a todos os aspectos da política dos EUA", esse era geralmente o quesito mais importante quando estava em jogo a política externa dos EUA. Apesar de MacDonald ser um ex-editor de Encounter, seu artigo foi recusado, mostrando que as queixas piedosas contra a guerra fria feitas por escritores como Nicola Chiaromonte, publicadas na segunda edição de Encounter, segundo as quais "nenhum intelectual pode deixar de aceitar, sem degradar-se, o dever de desmascarar ficções, não aceitando 'mentiras úteis' apresentadas como verdades", certamente não se aplicava a Encounter e sua famosa lista de colaboradores quando se tratava de lidar com as "mentiras úteis" do Ocidente.

Uma discussão importante e fascinante no livro de Saunders revela a ação da CIA e seus aliados no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que aplicaram muito dinheiro para promover as pinturas e os pintores do expressionismo abstrato como antídoto contra a arte de conteúdo social. Nessa ação, a CIA chocou-se com a direita no Congresso dos EUA. Ela viu nessa arte uma "ideologia anticomunista, a ideologia da liberdade e da livre empresa. Não figurativa e politicamente silenciosa, era a perfeita antítese do realismo socialista" (p. 274). A CIA e o MoMA viram essa arte como a verdadeira expressão da vontade nacional americana. Para enfrentar a crítica da direita parlamentar, a CIA voltou-se para a iniciativa privada (isto é, o MoMA e seu co-fundador, Nelson Rockefeller, que se referia ao expressionismo abstrato como "a pintura da livre empresa"). Muitos diretores do MoMA tinham ligações antigas com a CIA, e apoiavam a promoção do expressionismo abstrato como arma da guerra fria cultural. Mostras dessa arte foram organizadas em toda a Europa, sendo gasto muito dinheiro para isso. Críticos de arte foram mobilizados, e revistas de arte publicaram artigos com generosos elogios. A combinação dos recursos econômicos do MoMA com a ajuda da Fundação Fairfield, ligada à CIA, assegurou a colaboração das galerias europeias de maior prestígio que, por sua vez, puderam influenciar a estética em toda a Europa.

O expressionismo abstrato, como ideologia de uma "arte livre" (como disse George Kenan), foi usada para atacar politicamente os artistas engajados na Europa. O Congresso Para a Liberdade Cultural (ponta de lança da CIA) deu grande apoio à pintura abstrata, contra a estética figurativa e realista, numa atitude explicitamente política. Comentando o papel político do expressionismo abstrato, Saunders diz que "um dos papéis extraordinários que a pintura americana teve na guerra fria cultural não foi o fato de participar daquela jogada, mas sim o de um movimento tão deliberadamente apolítico ter se tomado tão intensamente politizado" (p. 275). A CIA associou artistas apolíticos e arte com liberdade para neutralizar os artistas da esquerda européia. A ironia aqui, é claro, era que a postura apolítica só valia para o consumo da esquerda.

A CIA e suas organizações culturais puderam, com isso, moldar profundamente a visão da arte no pós-guerra. Muitos escritores de prestígio, poetas, artistas e músicos proclamaram sua independência política, declarando sua crença na arte pela arte. O dogma do artista ou intelectual livres, isto é, sem engajamento político, ganhou força, e ainda hoje é muito difundido.

Saunders apresenta um balanço muito detalhado das ligações entre a CIA e os artistas e intelectuais do Ocidente, mas não explorou as razões estruturais pelas quais a espionagem dos EUA tinha de controlar os dissidentes. Sua discussão é amplamente emoldurada pela competição política e do conflito com o comunismo soviético, sem nenhuma tentativa séria de colocar a guerra fria cultural no contexto da luta de classes, das revoluções do Terceiro Mundo e dos desafios dos marxistas independentes à dominação do imperialismo econômico dos EUA. Isso leva Saunders a privilegiar algumas aventuras e operações da CIA em detrimento de outras. Ao invés de ver a guerra cultural da CIA como parte de um sistema imperialista, Saunders tende a criticar sua natureza reativa desigual e enganadora. A conquista cultural do Leste europeu e da ex-URSS pela OTAN deveria dissipar rapidamente a noção de que a guerra cultural foi uma ação defensiva.

As raízes da guerra fria cultural estão fincadas na luta de classes. Muito antes, a CIA e seus agentes na central sindical americana AFL-CIO, Irving Brown e Jay Lovestone (ambos ex-comunistas), usaram milhões de dólares para corromper sindicatos militantes e acabar com greves comprando sindicatos social-democratas (p. 94). O Congresso para a Liberdade Cultural e seus intelectuais eruditos eram financiados pelos mesmos funcionários da CIA que em 1948 contrataram gangsters de Marselha, na França, para acabar com uma greve de estivadores.

Depois da II Guerra Mundial, com o descrédito da velha direita na Europa Ocidental (comprometida por suas ligações com o fascismo e com um sistema capitalista enfraquecido), a CIA percebeu que, para submeter os sindicatos e intelectuais contrários à política dos EUA e à OTAN era preciso encontrar (ou inventar) uma esquerda democrática disposta a se engajar na luta ideológica. Foi criada então uma seção especial da CIA para neutralizar a resistência dos políticos de direita no Congresso dos EUA. A esquerda democrática foi usada essencialmente para combater a esquerda radical e dar um verniz ideológico à hegemonia norte-americana na Europa. Mas não cabia a esses pugilistas ideológicos moldar as estratégias políticas e os interesses dos EUA. Sua tarefa não era questionar ou exigir, mas servir ao império em nome dos "valores democráticos ocidentais". Somente quando a oposição em massa à guerra do Vietnã tomou conta dos EUA e da Europa, e suas ligações com a CIA foram reveladas, muitos dos intelectuais financiados e promovidos por ela abandonaram o barco e começaram a criticar a política externa dos EUA, como Stephen Spender que, depois de passar a maior parte de sua carreira na folha de pagamentos da CIA, tomou-se um crítico da política norte-americana no Vietnã; alguns editores da Partisan Review fizeram o mesmo. Alegavam inocência, mas poucos críticos acreditaram que um namoro com tantas publicações e conferências, antigo e com um envolvimento tão profundo, pudesse ter acontecido sem um grau mínimo de conhecimento.

O envolvimento da CIA na vida cultural dos EUA, Europa e outros lugares teve importantes consequências em longo prazo. Muitos intelectuais foram recompensados com prestígio, reconhecimento público e dinheiro para pesquisas precisamente por trabalhar dentro do cabresto ideológico imposto pela agência. Alguns dos grandes nomes da filosofia, ética política, sociologia e arte, que ganharam visibilidade com as publicações e seminários financiados pela CIA, foram quem definiram as normas e padrões para a formação das novas gerações, seguindo os parâmetros políticos criados pela CIA. Não foi o mérito ou o talento, mas a política - a linha definida por Washington como "verdade" ou "excelência" - que abriu caminho para postos em universidades, fundações e museus de maior prestígio.

A retórica anti-stalinista dos EUA e da esquerda democrática européia e suas proclamações de fé nos valores democráticos e libertários foram uma cobertura ideológica útil para os horríveis crimes cometidos em nome do Ocidente. Isso repetiu-se na recente guerra da OTAN contra a Iugoslávia, quando muitos intelectuais da esquerda democrática puseram-se ao lado do Ocidente e do ELK (Exército de Libertação de Kosovo), apoiando o sangrento expurgo de milhares de sérvios e o assassinato em massa de civis inocentes. Se o anti-stalinismo foi o ópio da esquerda democrática durante a guerra fria, o intervencionismo a pretexto de defesa dos direitos humanos tem hoje o mesmo efeito narcotizante e ilude membros da esquerda democrática contemporânea.

As campanhas culturais da CIA criaram o protótipo de intelectuais, acadêmicos e artistas que, hoje, se dizem apolíticos, divorciados das lutas populares, e cujo valor aumenta na medida em que se distanciam das classes trabalhadoras e se aproximam das fundações de prestígio. O modelo que a CIA fixou, de profissional de sucesso, é o do leão de chácara ideológico, e exclui intelectuais críticos que escrevem sobre a luta de classes, a exploração dos trabalhadores, e o imperialismo norte-americano categorias consideradas "ideológicas" e não "objetivas", como eles dizem.

A pior e mais duradoura influência do pessoal do Congresso para a Liberdade Cultural não foi a defesa das políticas imperialistas dos EUA, mas o êxito em impor, para as gerações seguintes de intelectuais a ideia de excluir toda discussão sobre o imperialismo norte-americano, sua influência cultural e sua ação através dos meios de comunicação de massas. A questão não é se os intelectuais ou artistas podem ou não tomar partido ou assumir uma posição progressista numa ou outra questão. O problema é a crença difundida, entre escritores e artistas, de que expressões sociais e políticas antiimperialistas não devem aparecer em suas canções, pinturas e escritos, se querem ter sua obra valorizada como trabalho de substancial mérito artístico. A vitória política duradoura da CIA foi a de convencer intelectuais e artistas de que um engajamento sério e firme à esquerda é incompatível com arte e conhecimentos sérios. Hoje, na ópera, teatro, galerias de arte, nas reuniões profissionais nas universidades, aqueles valores culturais que a CIA promoveu na guerra fria cultural são visíveis: quem ousará dizer que o rei está nu?

Sobre o autor

James Petras is the author of thirty-six books and several hundred refereed articles. His most recent book is The Left Strikes Back (Boulder, CO: Westview Press, 1998).

14 de agosto de 1999

Bravo, Malan

Artigos do atual ministro da Fazenda mostram sua trajetória desde 1978

Leda Paulani


Vinte Anos de Política Econômica
João Paulo de Almeida Magalhães e outros (org.)
Contraponto (0/xx/21/259-4957)
286 págs., R$

Para esta coletânea, editada a fim de comemorar as duas décadas de existência do Ierj (Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro), os organizadores convidaram os nove economistas que presidiram a instituição ao longo de seus 20 anos de vida. O primeiro foi justamente Pedro Malan, sucedido por Maria da Conceição Tavares. Dadas as posições absolutamente polares que eles defendem hoje e sua inegável expressão na vida política do país, estaria mais que justificado escrever uma resenha enfatizando apenas seus artigos.
Porém, quanto a Tavares, o livro contém tão somente a transcrição de uma rápida entrevista concedida ao boletim do Ierj, em julho de 78. Já da autoria de Malan o livro traz três textos: um de 1980, outro de 1989 e um último de maio de 1998. Como o espaço é exíguo, decidi comentar apenas os 20 anos de Malan.
Julgo que há aí menos arbítrio do que parece. Não bastando ser ele quem é e o país estar na situação em que está, Malan ainda fez questão de frisar na introdução que redigiu para seus artigos: "Quero apenas registrar que não me arrependo de nada do que escrevi". Daria para recusar um convite desses? Portanto que me perdoem os demais autores e que atentem os leitores para outros instigantes textos do livro. Mas vamos a Malan.
O Malan de 1978 é um crítico feroz da ortodoxia econômica. Para ele, "a chamada ciência econômica é um veículo para racionalizar certos tipos de interesses ligados à ideologia dominante", condição essa diante da qual os economistas teriam apenas "uma postura crítica rarefeita". Assim, "as embaçadas lentes dos economistas ortodoxos" teriam feito deles futurólogos de péssima qualidade, que expressam sua visão do problema econômico em termos de uma dicotomia, para ele ilegítima e antidemocrática, entre os objetivos do controle inflacionário, do controle do balanço de pagamentos e do crescimento e os objetivos relacionados aos chamados "problemas sociais a serem eventualmente resolvidos a longo prazo", processo lento "para o qual se deveria pedir -ou impor- paciência".
Para Malan, o que permitia então no país o florescimento dessa "ilusão tecnocrática", que, "reduzindo tudo a uma questão de eficiência", apostava numa "única solução racional", inaceitavelmente atrelada ao "padrão de consumo de economias com renda "per capita" várias vezes superior à brasileira", era a inexistência de um processo político aberto, que "reconhecesse como óbvia a existência de respostas divergentes".
Há mais nesse texto de Malan que mereceria atenção, mas isso basta. Essa pequena síntese de suas idéias em 1978 parece suficiente para mostrar de maneira cabal como o próprio Malan se trairia. A política econômica da qual ele é hoje o condutor primeiro é absolutamente tecnocrática, bate incansavelmente na tecla do "não há outra saída" e não aceita respostas divergentes, já que desqualifica seus opositores sob a pecha de incompetentes, quando não de impatriotas (ou, na melhor das hipóteses, utópicos). Além disso, conseguiu a façanha de mais do que dobrar o nível de desemprego em quatro anos e tem operado, impositivamente, para gáudio das elites e de um modo inimaginável há 20 anos, o atrelamento do país ao padrão de consumo das economias avançadas.
O Malan de 89 não tem maior interesse, até porque o texto é bastante curto. O Malan de 98 talvez não fosse preciso reproduzir. Desfia impassivelmente a já conhecida cantilena das benesses do real, de suas promessas de retomada sustentada do crescimento e de melhoria das condições de vida da população. Algumas observações, porém, merecem destaque.

Defesa das reformas

A primeira delas dá razão ao Malan de 78. Lá, ele dissera que os economistas são péssimos futurólogos. Pois acertou em cheio! Comentando a política cambial do Plano Real (não nos esqueçamos de que o artigo foi escrito em maio de 98), ele afirma: "Temos uma política cambial flexível o suficiente. (...) Portanto não teremos surpresas no câmbio". Janeiro de 1999 que o diga!
A segunda observação diz respeito à questão da desigualdade. Como os ricos "nem são tantos assim, como pode parecer à primeira vista" (à primeira vista? em que país ele vive? certamente não no Brasil, onde o que mais se vê é miséria), as classes médias é que são as culpadas, já que, em detrimento dos mais pobres, são detentoras de privilégios inaceitáveis tanto na previdência quanto na educação (leia-se universidades públicas). Trata-se, como se vê, de uma forma inusitada de defender as reformas pelas quais se bate o atual governo.
Uma última observação diz respeito às razões pelas quais a inflação deve ser mantida sob controle, objetivo este que, segundo ele, "faz parte de um consenso básico em sociedades modernas". Além da razão econômica (eficiência), da razão política (é o que a opinião pública espera) e da razão social (prejudica os mais pobres), Malan arruma ainda uma razão ética: a inflação propicia enormes -e, presume-se, inaceitáveis do ponto de vista moral- transferências patrimoniais. Razão muito nobre, sem dúvida. Mas, tendo em vista o que aconteceu em nosso país recentemente, particularmente por conta do processo de privatização e do câmbio descabidamente sobrevalorizado, o Brasil lá precisa de inflação para operar tais transferências?
Malan é certamente um dos exemplos mais flagrantes da guinada liberal levada a cabo por boa parte da intelectualidade brasileira nos últimos anos. Talvez por isso diga que não se arrepende do que escreveu. Premonitoriamente, ele fecha seu artigo de 1978 transcrevendo as seguintes palavras de Weffort: "Seja o que for que o futuro nos reserva, o certo é que dentro de algum tempo já não haverá mais ninguém à vista a quem possamos responsabilizar; (...) só restará o peso de nossa própria fraqueza e de nossa própria incompetência política". Bravo, Malan!

Sobre a autora

Leda Maria Paulani é professora da Faculdade de Economia e Administração da USP.

14 de julho de 1999

Restrição externa e crescimento

Antônio Corrêa de Lacerda


Entre os aspectos de ordem conjuntural que pautam o debate econômico atual, começa-se a esboçar uma discussão mais ampla sobre as condições estruturais da economia brasileira. A desvalorização do câmbio alterou positivamente a expectativa sobre o comportamento do nível de atividade econômica. Há evidentes aspectos positivos no desempenho do valor agregado local, seja por substituição de importações ou possibilidades de exportações.

A nova substituição de importações se dá, em um primeiro momento, em setores de tecnologia tradicional e que foram fortemente afetados pela valorização cambial dos últimos anos. Nesse caso se encaixam, entre outros, têxteis, calçados e bens de consumo em geral, setores em que já existem uma base instalada, um relativo domínio da tecnologia e economia de escala para atendimento do mercado interno, além do externo.

Quanto às exportações, a questão é mais complexa. Em primeiro lugar, o aumento da disposição de oferta por parte dos produtores brasileiros não significa, automaticamente, maior demanda dos importadores no mercado internacional. Além disso, o baixo crescimento do comércio mundial, a queda dos preços dos bens transacionáveis, especialmente commodities agrícolas, e o efeito das desvalorizações dos asiáticos (o que tem provocado quedas de preços de mercado) implicam que nem sempre maiores volumes de mercadorias exportadas signifiquem mais receita.

Nos dois casos, tanto na substituição de importações quanto no caso das exportações, a desvalorização cambial é uma condição necessária, mas não suficiente, para garantir o rompimento da restrição externa decorrente dos erros da política econômica dos últimos anos -especialmente a valorização do câmbio, a ausência de uma política de desenvolvimento (entendida como a articulação de política industrial, comercial, ciência e tecnologia, educacional etc.) e os elevados juros. Tudo isso determinou um processo de inserção passiva do Brasil no cenário internacional.

Além da estagnação da economia (que teve como consequências aumento da quebra de empresas, inadimplência elevada e crescimento do desemprego), como efeito direto temos o déficit em transações correntes, que no acumulado dos últimos 12 meses permanece em cerca de US$ 32 bilhões. E aí temos não só o efeito do déficit na balança comercial como também, e principalmente, na dos serviços, com destaque para juros, remessa de lucros e dividendos das empresas transnacionais, conta de viagens internacionais e gastos com fretes e seguros.

O fato é que, em condições internas e externas diferentes, retomamos, neste final da década de 90, a restrição externa vivida pelo Brasil no início dos anos 80, em que o comportamento "stop and go" da economia brasileira foi determinante para o resultado da década perdida. O avanço do déficit em transações correntes nos últimos quatro anos, de 0,3% do PIB (Produto Interno Bruto) em 1994 para cerca de 4,5% do PIB em 1998, retomou a questão justamente num momento em que os efeitos das crises asiática e russa tornavam o financiamento aos países em desenvolvimento mais seletivo.

Embora em 1999 deva ocorrer uma diminuição substantiva do déficit em transações correntes -em números absolutos, para algo entre US$ 22 bilhões e US$ 24 bilhões-, essa diminuição será menor em termos relativos (de 4,5% para algo entre 3,5% e 4,0% do PIB), já que este, expresso em dólares, diminuirá substancialmente, pelo efeito da desvalorização cambial (de cerca de US$ 800 bilhões em 1998 para US$ 600 bilhões em 1999). A redução do déficit em transações correntes deste ano é fruto direto da desvalorização cambial e da retração de atividade, que diminuem a demanda por importações e, consequentemente, despesas com fretes e seguros e gastos de viagens internacionais.

A questão é que há um desequilíbrio estrutural da balança de serviços, decorrente principalmente da conta de juros e de remessas de lucros e dividendos. Para esse desequilíbrio ser compensado, dependemos fundamentalmente de um superávit na balança comercial. Ou seja, para eliminar a restrição externa ao crescimento, é fundamental que as exportações cresçam acima das importações e do nível de atividades.

Quanto à condução da política econômica e às suas opções, a experiência destes últimos meses trouxe-nos algumas lições importantes. Apesar de tardia e realizada de maneira atabalhoada, a desvalorização trouxe uma nova dinâmica para a economia brasileira e a oportunidade de uma virada na política econômica, de forma a compatibilizar estabilização de preços com uma política de desenvolvimento.

Os fatos desfizeram os mitos de que a política cambial era intocável e que a desvalorização traria a completa desorganização da economia. A sustentação cada vez mais difícil do câmbio valorizado tornou-nos mais vulneráveis do ponto de vista externo e implicou rigidez das taxas de juros, o que travou a atividade econômica e desorganizou as contas públicas, inviabilizando o Estado brasileiro.

Não é o caso de "chorar o leite derramado", mas é de lamentar que a mudança na política econômica tenha sido tratada como mito intocável durante tanto tempo. Isso levou a custos econômicos e sociais elevados, apesar das análises críticas de economistas e de segmentos importantes da sociedade brasileira, sempre desqualificados pelos condutores da política econômica.

Antônio Corrêa de Lacerda, 42, economista, é presidente do Conselho Federal de Economia, professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e autor de "O Impacto da Globalização na Economia Brasileira" (Contexto).

E-mail: lacerda@cofecon.org.br

4 de julho de 1999

Raízes do autoritarismo brasileiro

Lições contemporâneas

Maria da Conceição Tavares

Em homenagem aos mortos na luta pela terra

Folha de S.Paulo

Na nossa história recente, as raras passagens pela democracia política nunca conseguiram estabelecer um Estado de Direito com instituições capazes de conter dentro delas o seu próprio aperfeiçoamento. A moldura de regulação dos conflitos das oligarquias territoriais e financeiras sempre ameaça rasgar-se ao menor solavanco nas relações de poder intraburguesas. As lutas paralelas dos movimentos sociais sempre serviram de pretexto para o endurecimento do regime político. O acesso à terra, a educação e os direitos do trabalho nunca puderam ser reivindicados abertamente pela nossa população rural e urbana nos marcos do nosso precário Estado de Direito. Não por falta de "leis", mas porque uma das marcas terríveis do nosso capitalismo selvagem foi a descolagem completa entre a ideologia das elites bacharelescas liberais ou libertárias e os pactos de poder ferozmente conservadores que conduziram o país por meio de sucessivas alianças entre as cúpulas políticas territoriais e as cúpulas do poder ligadas ao Império e ao dinheiro.

Nossas "transições democráticas interrompidas" nunca alteraram a marcha batida do capitalismo excludente, dando a impressão sistemática de que os ideais reformistas ou revolucionários estão "fora de lugar", quando na verdade as idéias postas em prática pela chamada "sociedade civil" burguesa brasileira sempre estiveram no lugar: o de manter em movimento o "moinho satânico" do capital em suas várias formas.

Para manter o movimento do dinheiro e assegurar a propriedade do território -a ser retalhado e reocupado por formas mercantis sempre renovadas de acumulação patrimonial-, o Estado brasileiro é chamado periodicamente a intervir de forma centralizada e arbitrária. Os propósitos da intervenção autoritária são sempre os mesmos: manter a segurança e o domínio das nossas classes proprietárias ou tentar validar o estoque de riquezas acumulado, tanto pelo capital nacional como estrangeiro.

As nossas reformas burguesas sempre tiveram como limites dois medos seculares das nossas elites ilustradas: o medo do Império e o medo do povo. Todas as tentativas reformistas democráticas tenderam sistematicamente a extravasar os limites de tolerância da dominação oligárquica, fosse ele estabelecido pelas armas ou pelo famoso "pacto de compromisso" das elites políticas e sociais. A tentativa de conciliar o mandonismo das nossas burguesias regionais, donas do território, com o cosmopolitismo dos donos do dinheiro associados ao Império sempre produziu alianças políticas que excluíram os interesses majoritários da cidadania. Esse forte autoritarismo ligado à terra e ao dinheiro serviu sempre de embasamento para aniquilar as lutas populares e das classes médias radicalizadas, nas suas tentativas recorrentes de levar à prática as, nunca concluídas, reformas democráticas.

Nem os pactos oligárquicos, liberais ou autoritários, nem os projetos "nacional-desenvolvimentistas" encontraram tempo, dinheiro ou razão suficientes para levar adiante a reforma agrária e o ensino básico universal. Os sucessivos pronunciamentos sobre a "necessidade" de reforma agrária -desde o patriarca da Independência, passando pelo programa do Estatuto da Terra do governo Castelo Branco até os nossos dias- dão uma demonstração inequívoca da falta de vontade política do nosso poder central de enquadrar num pacto social concreto os direitos do nosso povo. Mesmo quando consagrados explicitamente em "pactos constitucionais", sempre formais e "provisórios".

A "necessidade" de ensino público fundamental também vem sendo reiterada como "direito universal" desde o Ministério da Educação do Estado Novo até o governo Fernando Henrique Cardoso, com os resultados conhecidos. No Brasil, até hoje, as tradicionais reformas burguesas continuam, portanto, sendo "revolucionárias" e, como tal, difíceis de aceitar pela ordem social vigente.

O fato de a nossa "revolução democrática-burguesa" continuar "incompleta" não se justifica, porém, nem pelo caráter tardio do nosso capitalismo, nem porque os nossos burocratas de Estado sempre procuraram fazer a "revolução pelo alto". Muitos outros países de capitalismo tardio, com governos autoritários e sociedades atrasadas, no seu processo de construção nacional, levaram a cabo as reformas agrárias e de ensino, requeridas pelas suas "modernizações conservadoras".

Na verdade, a história vitoriosa da constituição do capitalismo em mais de cinco quartos de século de Brasil independente e os seus percalços e "desvios históricos", do ponto de vista da incorporação popular, parecem dever pouco tanto à herança colonial quanto às idéias iluministas que animaram os corações e mentes de nossas elites bem pensantes.

O dado estrutural mais relevante para a história social e política da nossa "modernidade" parece ter sido sempre a apropriação privada de um território de dimensões continentais apenas para valorização mercantil-patrimonialista, sem que o uso social da terra e dos seus recursos naturais fosse levado em consideração pelos sucessivos regimes "republicanos" e pelas repetidas "reformas fiscais".

Ordem sempre significou domínio duro das classes proprietárias sobre a terra e as classes subordinadas, e progresso sempre resultou na acumulação "familiar" de capital e riqueza, qualquer que fosse a inspiração ideológica, positivista ou liberal, das elites no poder. Nunca se conseguiu constituir, por isso, nenhuma espécie de consenso amplo da "sociedade civil" sobre como governar de forma democrática o nosso país.

O processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações rurais, em busca de terra, e rurais-urbanas, em busca de trabalho remunerado, produziu mudanças radicais nas condições de vida das nossas populações, mas sempre com um alargamento nas formas de exploração da mão-de-obra. Esse imenso processo "migratório" e de deslocamento recorrente das "fronteiras" de ocupação e de exploração capitalista não permitiu, até hoje, a formação de classes sociais subordinadas mais homogêneas e sedimentadas capazes de um enfrentamento sistemático com as classes dominantes que pudesse levar a uma ordem civil burguesa estabilizada e democrática.

Por sua vez, a "ordem" das elites de negócios sempre foi capaz de mudar as "regras jurídicas" e fazer "contratos de gaveta", produzindo assim uma sociedade mercantil predatória em constante "fuga para a frente", sem normas e sem dinheiro permanentes. A nossa (des)ordem civil burguesa jamais foi capaz de auto-administrar-se nos marcos de um Estado de Direito que respeitasse pelo menos os contratos privados, que dizer o direito público das gentes. Recorrendo periodicamente a golpes militares ou a elites políticas "salvacionistas", as classes dominantes brasileiras não enfrentaram até hoje uma acumulação política de forças democráticas acompanhadas de uma participação societária popular, capazes de produzir uma verdadeira sociedade civil emancipada.

As "forças de ocupação" dos donos do Império, do Território e do Dinheiro sobrepuseram-se sempre aos interesses de vida da maioria da população brasileira. Percorrendo os seus caminhos de dominação, ao longo dos últimos dois séculos, podem ser encontradas as razões da riqueza e da miséria da nação brasileira. É por isso que as bandeiras da emancipação nacional, da democracia e da justiça social continuam, hoje como ontem, a ser bandeiras esfarrapadas por sucessivas derrotas.

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis e, enquanto não se tornarem uma ideologia hegemônica e consciente da maioria da sociedade nos sucessivos embates das lutas populares, não será possível mudar o significado histórico de um projeto de desenvolvimento para o futuro.

Maria da Conceição Tavares, 68, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

13 de maio de 1999

No supermercado espalhafatoso

Terry Eagleton

London Review of Books


A Critique of Post-Colonial Reason: Toward a History of the Vanishing
por Gayatri Chakravorty Spivak,
Harvard, 448 pp., £30.95, June 1999, 0 674 17763 0

Tradução / Em algum lugar deve haver um manual secreto para críticos pós-coloniais, cuja primeira regra ordena: “Comece por rejeitar toda a noção de pós-colonialismo”. É notável o quanto se padece para encontrar entusiasta sem restrições, entre os que promovem a ideia: tão difícil como foi, nos anos 1960 ou 1970, achar quem confessasse ser estruturalista. A ideia do pós-colonial tanto apanha dos teóricos pós-coloniais, que usar sem reservas a palavra seria quase como se autochamar de balofo, ou confessar algum interesse furtivo pela coprofilia. Gayatri Spivak anota, com algumas evidências em seu livro, que grande parte da teoria pós-colonial norte-americana é “lixo”, mas a ressalva é de rigueur, sempre que se tem um crítico pós-colonial escrevendo sobre o resto. Além do mais, que seja um teórico do “Terceiro Mundo” a trazer a notícia aos seus colegas norte-americanos é, num sentido, muito mal visto; noutro, é exatamente o que os norte-americanos querem ouvir. Nada mais “da moda” na academia norte-americana sempre devastada pela culpa, que confessar a inevitável má fé na posição de quem escreve. É o mais perto a que um pós-moderno consegue chegar, da autenticidade.

A segunda regra desse manual clandestino ordena: “Seja o mais obscuro e incompreensível possível, no limite do que você ainda tenha escapatória”. É frequente encontrarem-se teóricos pós-coloniais em estado de agonia provocada pela ravina que distancia e separa o próprio discurso intelectual deles e os povos nativos dos quais eles falam; mas a ravina parece-lhes menos horrível se não produzem discurso que a maioria dos intelectuais considerem inteligível. Ninguém precisa ser nativo de favela para estar qualificado a declarar “pretensiosamente obscura” uma confusão metafórica spivakiana como: “muitos de nós estão tentando esculpir negociações positivas com a gráfica epistêmica do imperialismo”. É difícil ver como alguém consegue escrever desse jeito e, simultaneamente, admirar a escrita luminosamente clara de, digamos, Freud. A teoria pós-colonial faz tempestades a favor de respeitar o Outro, mas o Outro mais próximo deles, o mais imediatamente próximo deles, o leitor, fica, ao que parece, excluído daquela sensibilidade. Acadêmicos radicais, algum ingênuo poderia ingenuamente supor, têm certa responsabilidade política por garantir que suas ideias cheguem a públicos também do lado de fora de salas de reunião do Conselho Universitário. Mas na academia nos EUA, as popularizações ou Plumpes Denken [alemão, “pensamento cru”] pouco rendem ao autor em termos de cátedras ou prêmios prestigiosos; então esquerdistas como Spivak, apesar do muito que escarnecem da academia, sempre podem esperar boa recompensa se escrevem escrita ainda mais inacessível ao público que os elitistas literários que tão apaixonadamente os desprezam.

Pode ser também o caso, é claro, de que a meta de uma sentença tão desgraçada como “o paratema in-coativo in-fans ab-originário não pode ser teorizado como se fosse completamente funcionalmente congelado num mundo no qual a teleologia é esquematizada em geo-grafia” seja subverter a falsa transparência da Razão Ocidental. E pode também ser que discutir questões públicas nesse idioma tão hermeticamente privado seja, mais, sintoma daquela Razão, do que solução para o sintoma. Como na maioria das questões de estilo, a obscuridade de Spivak não é só questão de estilo. Seu ouvido surdo a tom e ritmo, o descalabro descuidoso com a textura verbal, suas mordidas teóricas (“Derrida pôs em cena o homoerotismo da filosofia europeia na coluna esquerda de Glas”), saltam tanto da própria linguagem feita mercadoria dos EUA como da tentativa pervertida de miná-la. Uma sentença que começa “Aos 26, grafando-se ele mesmo no sotaque da Aufhebung, Marx vê a necessidade, para sua empreitada crítica”... combina o vocabulário de Hegel e a sintaxe de “Oba. Tudo belê?” da linguagem de Spivak, vagueando, como faz, do tom altissonante para a malandragem de rua, pertence a uma cultura na qual há cada vez menos e menos meio campo, entre o portentoso e o feito em casa, o retórico e a futrica. Um pingo de ironia ou de humor seria fatal para a solenidade autocontemplativa. Ao longo de seu livro, Spivak escreve com grande brilho teórico sobre Charlotte Brontë e Mary Shelley, Jean Rhys e Mahasweta Devi; mas não dá praticamente qualquer atenção à linguagem, à forma ou ao estilo do que escrevem. Como qualquer aluno iniciante de qualquer velha faculdade de Letras que Spivak tanto despreza, a sua teoria literária mais avant-garde reduz-se, se se examina de perto, à velha boa antiga análise de conteúdo.

Spivak opõe-se, com razão, aos filisteus esquerdistas, para os quais qualquer ideia que não derrube instantaneamente os patrões seria tão politicamente inútil quanto a topologia algébrica. Mas reluta muito, demais, a reconhecer a semente de verdade que há no ponto de vista deles: que a teoria radical tende a crescer desagradavelmente narcisista, se privada de uma válvula política de vazão. Como os semióticos poderiam dizer, a teoria então passa a se impor por metáfora, no lugar do que ela significa. A revolução política implica muitos perigos, mas fracassar na operação de concentrar magnificamente a inteligência não está entre eles. As digressões infinitas e as autointerrupções nesse estudo – como os meandros que vão de Kant a Krishna, de Schiller a Sati, cabem, dentre outros buracos, numa esquerda politicamente sem rumo. Leitores mais caridosos verão esse cozidão de tediosa loquacidade como ataque às narrativas lineares do Iluminismo, por autora cujos gênero e etnicidade são lá violentamente excluídos. Se sociedades coloniais passam por o que Spivak chama de “uma série de interrupções, repetidos cortes de tempo que não podem ser suturados”, o mesmo vale também para sua prosa superinflada, excessivamente elíptica. Ela própria, como se poderia esperar que acontecesse e acontece, lê o que é espinha dorsal partida na estrutura do livro, como se fosse distanciamento iconoclasta da “prática acadêmica ou crítica aceita”. Mas as elipses, o jargão super carregado, o pressuposto de superioridade (segundo o qual todos entendem o que ela diz, mas, se você não entender coisa alguma, ela nem se importa muito) são tanto a supercodificação de uma ‘manha’ acadêmica, quanto o beijo-de-judas do academicismo convencional.

Assim como um salto abrupto de Jane Eyre para O Modo Asiático de Produção desafia as noções composicionais de acadêmicos machos e brancos, há aí também mais do que um toque do bom velho ecletismo norte-americano. Nesse supermercado de exibidos da mente, em que tudo é permitido, qualquer ideia pode, aparentemente, ser trocada por qualquer outra. O que alguns talvez chamem de pensamento dialético é, para outros, uma inabilidade patológica de manter-se atento ao problema. A linha entre o hibridismo pós-colonial e o vale-tudo-ismo pós-moderno é embaraçosamente tênue. Como feminista, desconstrucionista, pós-marxista e pós-colonialista, tudo ao mesmo tempo, Spivak parece não querer perder nenhum dos jogos teóricos que estão rolando hoje na cidade. Multiplicar as próprias alternativas é postura teórica admirável, tanto quanto é item conhecido da filosofia do supermercado norte-americano. Para Spivak, impor uma narrativa coerente aos seus materiais, mesmo que o título sugira espuriamente uma (alguma) narrativa, seria pecar por teleologia, que pune com pena de banimento alguns tópicos, como o imperialismo bane alguns povos. Mas se teóricos culturais hoje em dia podem saltar bruscamente de alegoria para Internet, numa espécie de versão intelectual do DDA (Déficit de Desordem de Atenção), é em parte porque estão libertos dos clamores inevitavelmente constritores de algum grande projeto político. Pensamento lateral, assim, é quase absolutamente não distinguível de perda de objetivo político. Até os livros sobre os quais Spivak não escreveu circulam como fantasmas inquietos pelas notas de rodapé, resistindo contra a exclusão. Verdade é que ainda falta escrever outro ensaio sobre os escritos não publicados de Gayatri Spivak, que tomaria por objetos todas aquelas notas nas quais ela anunciou trabalho jamais publicado ou que ninguém jamais viu ou que a autora apresenta como trabalho que ela não pode ou não quer escrever.

O ardente desejo de Spivak de dizer tudo de uma vez talvez não seja perfeitamente inocente, ou desejo de impressionar; mas é muito mais do que isso, assim como a obscuridade do estilo de um teórico pode vez ou outra ser sinal quase tanto de insegurança, quanto é de arrogância. Fato é que Spivak tem amplidão formidável de referências, o que deixa muito teórico cultural parecendo tristemente paroquial. Poucos poderiam de longe, que fosse, equiparar-se ao alcance e à versatilidade desse livro, que vai da filosofia hegeliana e dos arquivos históricos da Índia colonial à cultura pós-moderna e ao comércio internacional. Muitos autores pós-coloniais agem como se as relações entre o norte e o sul do mundo fossem, basicamente, assunto ‘'cultural'’, o que permite aos tipos literários exercitar os músculos em questões mais pesadas que a imagética dos insetos no James da última fase. Spivak, ao contrário, manifesta adequado escárnio contra tal “culturalismo”, mesmo que partilhe de boa quantia dos pressupostos dele. Não comete o erro de imaginar que ensaio sobre a figura da mulher em Passagem para a Índia seja inerentemente mais ameaçador, contra as corporações transnacionais, que uma pesquisa sobre o emprego do ponto-e-vírgula, em Thackeray. As relações entre norte e sul não são basicamente sobre discurso, linguagem ou identidade, mas sobre armas, mercadorias, exploração, trabalhadores precários, imigrados, dívida e drogas; e esse estudo trata de realidades econômicas que excesso de críticos pós-coloniais só fazem culturalizar e afastar para bem longe. (Para alguns deles ultimamente qualquer referência ao econômico seria, por isso mesmo, “economicista”, assim como falar de pulmões ou rins já é imediatamente “biologismo”). Se Spivak sabe de grafêmica, também sabe da indústria do vestuário. E ajuda bem que ela esteja entre os/as mais coruscantemente inteligentes teóricos contemporâneos/as, cujos insights podem ser idiossincráticos, mas só muito raramente são menos que originais. É possível que ela tenha feito mais bem político de longo prazo, como pioneira de estudos feministas e pós-coloniais na academia global, que qualquer outro de seus/suas colegas de teoria. E, como essas grandes maîtresses, tem de enfrentar agora essa fonte inesgotável de incômodos e embaraços: os acólitos devotados.

Ela desincumbe-se da tarefa com excessiva graça. Alguém devia mesmo escrever uma crítica da razão pós-colonial, avaliando as realizações e os absurdos, mas esse livro é excessivamente bem-comportado, excessivas boas-maneiras, tanto quanto excessivamente episódico, para a tarefa. Se o subtítulo mal se entende, o título, esse, desencaminha completamente. Spivak é simultaneamente a autora mais bem e mais mal situada para levar a cabo esse projeto; e quanto falha, o fracasso é, simultaneamente também, frustrante e compreensível. É a mais bem situada, porque, como imigrada para o ocidente, consegue ver aqueles limites conceituais menos óbvios para locais e insiders. Há muito oportuno bom senso, mas só se Spivak parasse de só pensar na frase, em mostrar aos mais idealistas empregados da indústria ocidental pós-colonial que o nativismo não deve ser romanticizado; que as minorias étnicas dentro dos países-metrópoles não são a mesma coisa que povos colonizados; que nada há de “essencialista” nos direitos civis; e que, para grupos subalternos, tornarem-se cidadãos institucionalizados não é meta desejável só para primitivistas passeadores de cartazes em passeatas. Diferente de alguns de seus colegas de olhos mais na-Lua, Spivak não vê a transição de migrante étnico para executivo de empresa como inequívoco progresso, nem sente a necessidade de denunciar “empreendedores étnicos, cafetões das transnacionais, que vendem as próprias mulheres a empregadores clandestinos”. Também sabe que feministas a trabalhar pró “justiça de gênero” no ocidente só fazem contribuir inevitavelmente para promover uma ordem social cujas operações globais violentarão ainda mais os mesmos direitos noutros pontos do planeta.

Mas essa crítica aguada contra os liberais pós-coloniais ocidentais tampouco chega aos cabeças. Se Spivak mostra faro refinado para localizar a mentira, a hipocrisia, o apadrinhamento ocidental, ela ao mesmo tempo é notavelmente cautelosa no serviço de não sugerir rompimentos nem quebrar fileiras. Num sentido, é uma recusa louvável a ceder ao jogo sujo entre os que sabem e os que querem saber. Já há autodilaceramento fútil suficiente dentro da academia norte-americana, sem Spivak fazer-se ainda mais, de vítima. É também valente reconhecimento de sua própria condição comprometida, como celebridade acadêmica que discorre sobre casta e clitoridectomia. Mas há mais que isso, nas reticências dela. Esse livro encaminha algumas bem merecidas porretadas à ninhada mais feroz dos críticos pós-colonialistas, cuja fascinação pelo Outro é em parte uma ânsia desmoralizante de não serem absolutamente outro, nada de outro, só eles mesmos. Mas vem também suavizado pelo consenso brando, anódino da academia norte-americana, na qual os grandes conflitos são praticamente sempre abafados por um “profissionalismo” que interessa a todos. Além do hábito-sintoma revelador de usar o adjetivo “agressivo” como elogio, os EUA são cultura que teme profundamente qualquer discussão ou debate – o que talvez explique que a luta livre, jogo que converte briga em simulacro e espetáculo, seja o esporte mais popular da televisão norte-americana.

Spivak é a mais mal posicionada dos críticos para escrever o livro que seu título tão falsamente promete, porque ela é também, por demais, a insider, como uma das maiores arquitetas de toda a empreitada pós-colonial no Ocidente. Seu arquiteto associado, Edward Said, rapidamente perdeu a paciência com o que haviam conseguido construir juntos e, à maneira dele, sedutoramente cáustico, não se nega a dizer precisamente isso. Mas Spivak é mais irênica do que sugeriria a sua prosa ocasionalmente pugilística. Seu comentário de que muito na área é “lixo” é em vasto sentido, marginal. Se ela distingue corretamente entre minoria étnica e nação colonizada, ao mesmo tempo não consegue afirmar o ponto de que foi bom negócio do pós-colonialismo ser uma espécie de versão “exportada” dos graves problemas étnicos dos EUA e, assim, apenas mais uma instância do God’s Own Country, um dos mais insulares da Terra, que define o resto do mundo em termos dele mesmo. Para que essa exportação acontecesse, algumas importações, conhecidas como intelectuais do Terceiro Mundo, tiveram de atuar como seus agentes; embora Spivak tenha razão para saber disso melhor que muitos, ela nunca para por tempo suficiente em seu livro, em pausa para desembrulhar suas implicações. Fazer isso requer alguma crítica sistemática; mas crítica sistemática é, para ela, parte mais do problema que da solução, como é para os suficientemente privilegiados para não precisarem de conhecimento rigoroso. Esses indivíduos são acostumados a ser tratados como “a elite” [orig. the gentry], e são hoje conhecidos como pós-estruturalistas. Se ela pode ser esplendidamente amarga sobre “rapazes brancos falando de pós-colonialidade”, ou da aliança entre estudos culturais, multiculturalismo liberal e capitalismo transnacional, esses saudáveis bocados só brevemente surgem à superfície, para novamente sumirem no cozido indigesto de seu texto.

Há, com certeza, muito mais a ser dito a favor dos estudos pós-coloniais do que isso aqui, e a própria Spivak diz muito nessas páginas. Sejam quais forem as ilusões românticas e a autoapreciação secreta dos estudos pós-culturais, seu setor de mais rápido crescimento, o da crítica literária, assinala a entrada no estágio cultural ocidental, pela primeira vez na história, dos que o ocidente mais agrediu e dos que mais abusou. Difícil, pois, que haja críticos mais importantes em nosso tempo que os equivalentes de Spivak, Said e Homi Bhabha, mesmo que dois desse trio sejam impenetravelmente opacos. Diferente de salvar-se um dentre dois ladrões no Calvário, aqui a porcentagem não é razoável. Mas há razões pelas quais dar crédito, tantas quantas pelas quais não dar, ao rápido surgir à tona do pós-colonialismo, e Spivak, praticamente durante todo o tempo, mantém-se em silêncio sobre elas. O nascimento, por exemplo, seguido do início da derrota, pelo menos por hora, de ambos: da luta de classe nas sociedades ocidentais e do nacionalismo revolucionário no mundo antes colonizado. Os alunos nos EUA que, embora não por culpa deles, não reconhecem a luta de classe nem que apareça pendurada à rabeta de suas pranchas de skate, ou que talvez não amassem tanto o Terceiro Mundo se alguns de seus habitantes se puserem a matar seus pais e irmãos em grandes números, podem deslocar generosamente seus vicários sentimentos generosamente radicais, bastando para tanto deslocar a opressão para outros pontos. Esse movimento os deixa plugados às sombras das dores da moda pós-moderna sobre o atraso ‘monolítico’ das próprias ordens sociais. É como se o tema desorientado, empobrecido, do Ocidente consumista conseguisse, por uma extraordinária ironia histórica, encontrar uma imagem dele mesmo, nos condenados da terra. Se “margens” não andam muito na moda, é em parte porque os que habitam as margens clamam por justiça política, e em parte porque uma geração sem memória política delegou cinicamente toda a esperança ao “centro”. Como grande parte do feminismo norte-americano, o pós-colonialismo é um modo de ser politicamente radical, sem ter necessariamente de ser anticapitalista, e, assim, é uma forma peculiarmente hospitaleira de esquerdismo para um mundo “pós-político”. Gayatri Spivak, diferente disso, manteve a fé, embora com ambiguidades, na tradição socialista; mas embora haja muitas agudas percepções sobre o marxismo em seu livro, ela está investida profundamente demais no feminismo e no pós-colonialismo, para lançar a crítica socialista à vera, dessas correntes. E assim como aqui cavalga dois mundos, e também o hábito cansativo em seu trabalho de se autorreferir e se autoteatralizar, vê-se o autodesempenho irônico do colonial, uma facada satírica na personificação de intelectual, e um já conhecido culto norte-americano à personalidade.

Há alguns tipos de crítica – a de Orwell pode servir como exemplo – que são muito mais radicais politicamente do que o estilo “senso comum” poderia sugerir. Com toda a azia que faz jorrar sobre os marxistas, para nem falar da visível vontade de entregar os comunistas ao estado, as políticas de Orwell têm muito mais longo alcance do que sua prosa pensada convencionalmente pode sugerir. Como grande parte do que se escreve de pós-colonial, a situação é exatamente o contrário. O coruscante avant-gardismo teórico deles oculta uma agenda política muito pobre, bem modesta. Onde se arriscam a fazer propostas políticas, o que é muito raro, eles sequer têm o élan revolucionário das escandalosas especulações sobre o desejo ou a morte do Homem ou o fim da História. Esse é um traço que também se constata em Derrida, Foucault e outros como eles, que vagueiam entre um culto da ‘loucura’ ou da ‘monstruosidade’ e um tipo mais contido, reformista, de política, recuando para um ou outro ponto, dependendo da direção da qual lhes venha o fogo crítico. Derrida – figura que esse livro consagra, sobre o qual não se admite nem um sopro de crítica – consegue fazer a desconstrução soar, às vezes, como um tipo de negócio tão ordinário, afirmativo, inócuo, que se fica a cogitar por que Christopher Ricks e Denis Donoghue não correm imediatamente a abraçá-lo. Outras vezes, e para outros públicos, torna-se assunto muito mais ameaçador: nada menos que uma forma radicalizada de marxismo, o que, aliás, deve irromper como grande surpresa para muitos desconstrucionistas e para todos os marxistas. Desconstrução pode ser, sim, manobra politicamente desestabilizatória, mas devotos como Gayatri Spivak teriam de reconhecer também seu efeito de desvio. Como muita teoria cultural, ela permite que alguém fale soturnamente de subversão, ao mesmo tempo em que, em termos políticos, posiciona-se só um pouquinho à esquerda de Edward Kennedy. Para alguns teóricos pós-coloniais, por exemplo, o conceito de emancipação é chapéu embaraçosamente velho. Para algumas feministas norte-americanas, socialismo é território tão jamais pisado como Alpha Centauri.

As próprias políticas de Gayatri Spivak são tão elusivas como seus processos de pensar; mas há indícios nesse estudo de que ela também é bastante mais ousada na epistemologia, que na reconstrução social. Às vezes, ela falará positivamente sobre a necessidade de novas leis, sistemas de educação e saúde, relações de produção; outras vezes, em estilo pós-colonial familiar, sua ênfase é menos na transformação que na resistência. A resistência sugere ação militante, mas também implica que a pegada política está(ria) noutro lugar. É doutrina conveniente para os que não gostam do que o sistema faz, ao mesmo tempo em que duvidam de que algum dia terão força bastante para pô-lo abaixo. O marxismo, para Spivak, embora não para seu fundador, é uma especulação, não um programa; e só pode ter consequências violentas se usado para “engenharia social preditiva”. Como o pensamento de estrangular seu companheiro de apartamento; em outras palavras: tudo bem, desde que você não aja. O atual sistema de poder pode ser incessantemente “interrompido”, adiado ou “posto de lado”, mas tentar ir além dele, completamente, é a forma mais crédula de utopismo.

Pode até que venha a ser verdade, mais soa um pouco demais antidesconstrutivistamente seguro de si, como estão as coisas, assim como esse livro assume (sem argumentar abertamente) o caso pós-moderno dogmático segundo o qual todo o universalismo é reacionário, quase toda transgressão ou disrupção é positiva, e quase todas as tentativas de calcular com precisão e rigor são uma forma de razão dominatória. Para Spivak, propor um “outro” ao que temos hoje é negar a inevitável cumplicidade de alguém com o que tenha; e assim é deixar particularmente vulneráveis críticos como ela mesma. Ninguém imaginaria que Stanley Fish não estaria afundado até as orelhas no capitalismo, nem Stanley Fish; mas há várias almas enganáveis nos programas de graduação nos EUA que podem cometer o erro de ver Gayatri Spivak como algum avatar de pura alteridade. Ela mesma trabalha corretamente para emperrar esse sentimentalismo, lembrando esses fãs da Mulher Negra de que ela também é burguesia altamente paga e líder de uma elite colonial. E então, ela antes opta pela má fé de recusar o sistema sem propor alternativa geral, que pela má fé de negar sua colusão com o mesmo sistema.

Mas a culpa pode ser tão desabilitante quanto a arrogância. O bem político que Spivak fez ultrapassa em muito o fato de que ela vive vida mansa nos EUA. Se cumplicidade é viver em sociedade capitalista, praticamente todo mundo, até Fidel Castro, pode ser acusado de cúmplice; se significa ‘comprar sua parte para entrar’ (como diz eloquentemente a expressão “buying in” dos norte-americanos) em algo chamado Razão Ocidental, então só esses pensadores racistas e não dialéticos para os quais tal razão seria uniformemente opressora têm por que se preocupar com ela. A palavra “cúmplice” tem um signo daninho ligado a ela, mas nada há de daninho em ser “cúmplice” do Grupo de Ação Contra a Pobreza Infantil ou dos escritos das suffragettes. Em todos os casos, Spivak está logicamente errada ao supor que imaginar alguma alternativa geral ao atual sistema significa(ria) declarar-se não conspurcada por ele. Imaginar que seria ótimo estar em Siena não é necessariamente negar o fato de que estou em Scunthorpe. Ela compara sua própria crítica da teoria pós-colonial metropolitana ao ardente assalto que seu colega indiano Aijaz Ahmad move contra ela em seu livroIn Theory, e apresenta o próprio livro dela como “mais nuançado, com reconhecimento produtivo de cumplicidade”. Mas por que, afinal, isso deveria ser pressuposto qualidade, se o resultado é menos aproveitável? Ahmad pode disfarçar seu envolvimento no que ataca, pelo menos na visão de Spivak, mas isso não implica automaticamente que faça retrato menos acurado [do que ataca]. Seja como for, pode-se dizer que Ahmad é menos “cúmplice” que Spivak: lecionou por muito menos tempo no ocidente; está mais explicitamente comprometido com uma alternativa socialista; e está muito (muito!) menos apaixonado por novas teorias cevadas no ocidente. Mas nada disso importa. O que importa é que ele escreve muito bem sobre teoria pós-colonial, um corpo de trabalho escrito que se pode descartar em Delhi e apoiar em Sacramento. A ênfase pós-estruturalista na “posição do sujeito” é parente próxima da obsessão existencialista com a autenticidade: o que você diz conta menos que o fato de você estar dizendo [qualquer coisa]. O liberalismo, muito semelhantemente, tende a crer que o escolhido é menos importante que o fato de que eu escolhi [qualquer coisa] – por isso é ética especialmente talhada para adolescentes. Mas está-se interessado em pós-colonialismo, não na má fé ou nos vícios de psíquicos de acadêmicos que o pratiquem. Spivak é anti-intencionalista resoluta, no que tenha a ver com trabalho dos outros; mas é frequentemente autobiográfica e anedótica no que tenha a ver com o trabalha dela mesma. Se é tentativa admirável para introduzir um pingo de subjetividade no debate impessoal dos patriarcas, ao mesmo tempo trai excesso de interesse na própria subjetividade.

Quando se trata da ideia de resistência, qualquer intrépido Derridaeano deve “tomar certo cuidado, ser vigilante, uma persistente tomada de distância” [orig. persistent taking of distance (sic)], nas próprias palavras de Spivak, atento a outro tema. Bem pouca gente no bloco soviético nos anos 1980 estava convencida de que seria possível resistir àquele sistema, mas não seria possível transformá-lo; mas essa opinião, ao fim, mostrou-se um pouco rígida demais, ainda que aquilo em que aquele sistema transformou-se dificilmente se possa chamar de sociedade justa. Pode-se acrescentar que, quando chegou a hora de varrer aquela estrutura de poder, comprovou-se que a agência coletiva nada tinha de ficção essencializante e nem o cálculo preciso comprovou-se tão impreciso como os pós-estruturalistas parecem imaginar.

6 de maio de 1999

Belém, vítima do regime colonial do espírito

Paulo Nogueira Batista Jr.

Folha de S.Paulo


"Não se imagina, no resto do Brasil, o que é a cidade de Belém", escreveu o grande Euclides da Cunha no início do século 20. Pois acabei de voltar de Belém, onde passei alguns dias, e poderia dizer exatamente a mesma coisa.

Quase cem anos depois, em plena suposta "era da informação", o quadro não mudou: o Brasil continua a ignorar o maravilhoso patrimônio histórico e cultural de uma de suas principais cidades.

O leitor poderá estar estranhando um pouco o tema que escolhi esta semana para uma coluna que é, afinal, de opinião econômica. Mas pretendo mostrar, caro leitor, que a relação entre os dois assuntos é maior do que pode parecer à primeira vista.

Veja o meu caso. Tenho mais de 40 anos e nunca fui, nem quis ser, um daqueles economistas "tecnocráticos", encantado ou obcecado com a ciência econômica e suas aplicações. Dentro dos estreitos limites da minha ignorância de economista, sempre tive grande interesse por temas culturais. Apesar disso, até o ano passado, quando conheci Belém, não tinha a mais vaga e remota idéia do que é essa cidade brasileira!

Eis o que eu queria dizer: o brasileiro não se interessa realmente pelo Brasil. Vive, eternamente, de costas para o próprio país e desconhece solenemente os seus valores e potencialidades.

Trata-se, como é óbvio, de uma das facetas da nossa crônica falta de auto-estima. Do nosso secular complexo de vira-latas, como diria Nelson Rodrigues. Complexo esse que sofreu, nos anos 90, diga-se de passagem, uma intensificação impressionante, que bem mereceria uma avaliação aprofundada da parte dos estudiosos dos problemas sociais brasileiros.

Foi esse complexo revigorado de vira-latas que contribuiu -e muito- para que a política econômica brasileira, nos últimos dez anos, importasse todo tipo de "consenso" internacional vagabundo, fabricado no Primeiro Mundo para consumo na periferia do planeta.

Assim como na área da cultura, também na da economia o Brasil tem sido induzido a ignorar, descartar e desprezar os seus valores e interesses básicos. O resultado foi que, a pretexto de modernizar, abrir e privatizar, produziu-se grande desnacionalização e enfraquecimento da economia nacional.

Há quem diga que, no fundo, no fundo, o brasileiro não tem motivos individuais ou coletivos, históricos ou recentes para a auto-estima. É um engano. Belém está aí, a demonstrá-lo de forma escandalosamente clara. Assim como Fortaleza, Florianópolis e outras cidades que só recentemente tive a oportunidade de conhecer melhor.

E, depois, é preciso considerar o seguinte: auto-estima é uma questão de disposição interna, subjetiva. De saber encontrar, criar e recriar, na realidade multifacetada e multicolorida do mundo, do jeito mesmo que ele é, com todas as suas ambivalências, sombras e abismos, os motivos para viver, para fortalecer e fazer crescer a vida. O que vale no plano individual da vida de cada um de nós vale também no plano nacional.

Evidentemente, enquanto continuarmos valorizando e importando indiscriminadamente tudo o quanto é vulgaridade produzida na Europa e, sobretudo, nos EUA, nada de fundamental vai mudar. Continuaremos clientes de todas as bobagens que, sob a égide de uma falsa "globalização", percorrem a Terra à cata de consumidores incautos e provincianos.

"Eadem, sed aliter" ("O mesmo, mas de outra maneira"), ensinava Schopenhauer. Certos traços centrais de um país mudam pouco ou nada. Ou, em todo o caso, muito menos do que sugere a superfície das coisas.

No livro "Contrastes e Confrontos", publicado em 1907, o mesmo Euclides da Cunha desancou o "cosmopolitismo" das elites brasileiras, a sua atitude imitativa e servil que conformava "uma espécie de regime colonial do espírito", capaz de transformar "o filho de um país num emigrado virtual, vivendo, estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo".

O nosso fascínio beócio com a "globalização", com as novidades, muitas vezes falsas, da economia e da cultura "globais" do final do século 20 é apenas a última transfiguração desse antigo, antiquíssimo regime colonial do espírito.

Paulo Nogueira Batista Jr., 44, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.

E-mail: pnbjr@ibm.net

7 de março de 1999

Como os EUA tomaram o poder no Brasil

Eleitores escolheram o Presidente Cardoso - mas, em vez disso, intrigas americanas lhes deram o Secretário do Tesouro Rubin

Greg Palast



Quando Robert Rubin, Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, era bem jovem, sonhou que um dia seria Presidente do Brasil. Agora, seu sonho tornou-se realidade. Obviamente, para um norte-americano residente em Washington, Rubin assumiu o poder da única maneira que lhe seria possível: por meio de uma brilhante falcatrua.

O Presidente nominal do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, foi reeleito em outubro de 98 por uma única razão: ele estabilizou, aparentemente, a moeda do seu país e, como conseqüência, estancou a inflação.

Na verdade, ele não fez isso. O real brasileiro foi absurdamente valorizado. Assim, à medida que se aproximavam as eleições a razão de troca, em relação ao dólar, desafiava, cada vez mais, a lei da gravidade. O milagre conduziu Cardoso à vitória, com 54% dos votos.

Todavia, não acontecem milagres na vida real. Quinze dias depois da posse de Cardoso, o real emborcou e morreu. Hoje ele vale quase a metade do seu valor no dia das eleições. A inflação está de volta e a economia implodiu. O apoio a Cardoso, que se revelou agora um fraudador incompetente caiu para 23% do eleitorado. Tarde demais. Ele é o Presidente.

Bem, mais ou menos! Não há muita coisa sobrando para a presidência de Cardoso, a não ser o título. Todas as decisões importantes, desde as de orçamento, até as relativas ao emprego, passaram a ser ditadas pelo FMI e agências associadas. Atrás deles, apertando o gatilho está o Secretário do Tesouro Rubin, que manobra como presidente "de fato" do Brasil, sem ter necessidade de faltar a um só "cocktail party" em Washington."

Este é o preço que Cardoso paga pelos serviços de Rubin durante a campanha eleitoral. Foi o Tesouro norte-americano que, junto com o FMI, manteve a moeda brasileira valorizada. Além de ajudar Cardoso, Rubin teve outro bom motivo para manter o sistema monetário brasileiro. Sabendo que a moeda iria se despedaçar após a eleição, o Tesouro norte-americano cercou-se de garantias de que os bancos americanos poderiam tirar o dinheiro deles do Brasil em condições favoráveis.

Entre Julho de 1998 e o início de Janeiro de 1999 as reservas brasileiras caíram de US$ 70 bilhões para US$ 26 bilhões, um sinal de que os banqueiros haviam pego o dinheiro deles e corrido para fora do Brasil.

Contudo, a moeda também ficou supervalorizada antes das eleições porque os norte-americanos disseram que substituiriam as reservas perdidas com um grande empréstimo do FMI.

E foi deixado claro para os eleitores que este empréstimo só seria dado para Cardoso e não para o Partido dos Trabalhadores, de oposição.

O patrocínio que a elite internacional deu para Cardoso foi selado pelo aparecimento no Rio de Janeiro, em Julho de 1998, de Peter Mandelson, cujo endosso de Cardoso marcou o ingresso oficial do Brasil no projeto da "terceira via" de Clinton-Blair e causou agito na imprensa brasileira.

Um mês após a reeleição de Cardoso, o FMI ofereceu créditos totalizando US$ 41 bilhões. Claro que o Brasil não receberá nada disso. Qualquer porção deste crédito que atualmente goteja em direção ao Brasil vai embora no primeiro avião, levados pelos investidores e especuladores que abandonam o país.

Os brasileiros pagarão integralmente esta dívida. Mas esta não é a preocupações dos brasileiros. Como parte da magia negra para manter a cotação do real frente ao dólar antes da eleição, Washington determinou ao Banco Central do Brasil que elevasse as taxas de juros, que agora chegam firme aos 39 por cento. O FMI queria 70 por cento. Nas ruas de São Paulo, isso se traduz em taxas de até 200 por cento em operações de empréstimos pessoais e empresariais.

A confirmação do esquema de Rubin de apoio a Cardoso e aos banqueiros norte-americanos vem de uma interessante fonte: Jeffrey Sachs da Universidade de Harvard. Sachs é bastante relembrado como a "Maria Tifóide" do neo-liberalismo (expressão figurada que indica "o grande disseminador do neo-liberalismo"), que espalhou teoremas de livre mercado e de depressão econômica através da antiga União Soviética. Sachs, que ainda está tagarelando em torno dos jogadores do grande jogo financeiro internacional disse-me:" Você podia ver a economia (brasileira) andando sobre um penhasco. O colapso ocorreu em câmera lenta. Mas antes de prevenir o colapso através de uma desvalorização controlada, Washington e o FMI vigorosamente encorajaram taxas de juros adicionais de 50 por cento."

"Washington queria Cardoso reeleito", disse ele, e os financiadores norte-americanos necessitavam seis meses para retirar seus capitais do Brasil em condições favoráveis.

Se o golpe financeiro de Rubin dá a impressão de ter sido bem sucedido, é porque ele usou o mesmo método que em 1994 o tornou presidente "de fato" do México. Mais uma vez, um partido governante suspeito foi levado ao poder através de uma (aparente) solidez monetária e promessas norte-americanas de auxílio.

Quatro semanas após a inauguração do Presidente Ernesto Zedillo, o peso entrou em colapso enquanto os banqueiros norte-americanos que financiavam o México eram "garantidos" de fora por um empréstimo especial dos Estados Unidos.

Cardoso sabe muito bem que as manipulações de Rubin são as culpadas pela falência brasileira. Mas, com a ajuda da imprensa direitista, ele (Cardoso) e o FMI atribuem a culpa pelo colapso econômico a vilões bem familiares dos leitores britânicos: empregados governamentais, aposentados e a união ("máquina" pública). Eles são acusados de estourar o orçamento do governo.

Isso é loucura. Pagamentos de juros, acentua Sachs, iguais a monstruosidade de 10 por cento dos gastos do país, são os únicos responsáveis por dobrar o déficit federal. Comparadas com isso, as aposentadorias dos trabalhadores governamentais, principal alvo dos cortes orçamentários, são uma gota dentro do oceano.

Mas a análise de Sachs é incompleta. Ele diz que o FMI "falhou", porque os grandes juros levaram à crise e depressão. Ele está errado. A crise é parte do plano.

Apenas sob o pânico econômico Rubin e o FMI poderiam soltar os Quatro Cavaleiros das Reformas: mate os gastos sociais, corte a folha de pagamento do governo, quebre a federação e, o grande prêmio, privatize empresas públicas lucrativas.

Mas Cardoso não é marionete feliz nas mãos de Rubin. Anteriormente sociólogo e especialista na teoria da dependência, ele deve estar triste pela perda da soberania financeira brasileira.

Ele sobreviveu às eleições, mas a oposição varreu o seu partido dos principais estados. Os novos governadores regionais não estão lamentando. Eles estão descobrindo os dentes dele.

Em Janeiro, o ex-presidente brasileiro Itamar Franco, eleito governador do estado de Minas Gerais, recusou-se a pagar os seus débitos com o Tesouro Federal. Seis outros governadores então disseram a Cardoso que qualquer pessoa sensível diria a qualquer vigarista que elevasse as taxas de juros dos empréstimos de 10 por cento para 60 por cento: vá para o inferno.

A imprensa trata Franco como um palhaço, alguém que tem inveja de Cardoso. O objetivo deles é desviar as atenções para bem longe da verdadeira ameaça a Cardoso e ao FMI, Olívio Dutra, o governador popular do estado do Rio Grande do Sul e a crescente estrela do Partido dos Trabalhadores. O filho de camponeses, este jovem, militante "suave" para a era da TV, transformou a capital do seu estado em um grande mostruário de desenvolvimento.

É Franco que eles atacam, mas é Dutra que eles temem. Cardoso está se esforçando ao máximo para punir os cidadãos do Rio Grande do Sul por elegerem Dutra, que não se recusou a efetuar os pagamentos ao governo federal, mas depositou, cerca de £ 27 milhões (27 milhões de libras esterlinas), em juízo.

Cardoso respondeu de forma depravada, bloqueando £37 milhões em impostos coletados para o estado de Dutra. O FMI bloqueou empréstimos ao Rio Grande.

Contatado por telefone em seu escritório em Porto Alegre, Dutra disse concordar que a crise requer sacrifícios. Ele demitiu trabalhadores governamentais. Mas ele teve a audácia de sugerir que a General Motors e a Ford deveriam juntar-se ao sacrifício e renunciarem às isenções fiscais (obtidas do governador anterior) e que agora sangram a tesouraria estadual.

O Brasil é uma nação rica. O seu Produto Interno Bruto (PIB), mesmo em depressão, é um terço de um trilhão de libras esterlinas. Mas como um animal que freneticamente corre em círculos, ele está perdendo a capacidade de reter o capital nacional, que é enviado para o exterior e acaba voltando na forma de empréstimos com taxas de juros usurpantes.

Este é o motivo pelo qual Dutra está especialmente agitado sobre o confisco, por privatização, do seu banco estadual de desenvolvimento, a locomotiva de autofinanciamento da expansão do Rio Grande.

O Governador, que não é bobo, não desperdiça disparos no humilhado Cardoso. Pela organização da resistência contra as exigências de Rubin e contra os termos dos empréstimos do FMI, Dutra, de forma perspicaz, não aponta para o marionete, mas para os manipuladores.

1 de março de 1999

O Mercado como Deus

Vivendo na nova dispensação

Harvey Cox


Tradução / Alguns anos atrás, um amigo aconselhou-me que se eu quisesse saber o que estava acontecendo no mundo real, eu deveria ler as páginas de negócios. Embora o meu interesse ao longo da vida tenha sido o estudo da religião, estou sempre disposto a expandir meus horizontes, por isso, segui o conselho, vagamente com medo de que eu teria que lidar com um novo e desconcertante vocabulário. Em vez disso, fiquei surpreso ao descobrir que a maioria dos conceitos que deparei foi bastante familiar.

Esperando uma terra incógnita, encontrei-me, em vez disso, na terra do déjà vu. O léxico do The Wall Street Journal e as seções de negócios da Time e Newsweek acabaram por ter uma semelhança impressionante com o Gênesis, a Epístola aos Romanos, e a Cidade de Deus de autoria de Santo Agostinho. Atrás de descrições de reformas pró mercado, a política monetária e as circunvoluções do Dow, eu gradualmente juntei as peças de uma grande narrativa sobre o significado mais profundo da história humana, porque as coisas tinham corrido mal e como colocá-las no rumo correto. Os teólogos chamam isso de Mitos de Origem, Lendas da Paixão, e Doutrinas do Pecado e da Redenção. Mas lá estavam todos eles, novamente, e apenas com leve disfarce: as crônicas sobre a criação de riqueza, as tentações sedutoras do estatismo, o cativeiro aos ciclos econômicos sem rosto e, por fim, a salvação através do advento de mercados livres, com uma pequena dose de cinto ascético apertado ao longo do caminho, especialmente para as economias do Leste Asiático.

Os problemas dos orientais-asiáticos, de acordo com os argumentos dos devotos, derivam de seu desvio herético de ortodoxia do livre mercado, eles eram praticantes de “capitalismo de compadrio”, “capitalismo étnico”, “capitalismo de Estado”, e não da única e verdadeira fé. Os pânicos financeiros do Leste Asiático, os repúdios da dívida russa, a crise econômica brasileira, e a pequena “correção” de US$ 1,5 trilhões no mercado de ações dos Estados Unidos, momentaneamente, balançou a crença na nova dispensação. Mas a fé é fortalecida pela adversidade, e o Deus-Mercado está ressurgindo de maneira renovada, superada sua provação pelo contágio financeiro. Desde que o argumento do design-inteligente já não comprova sua existência, ele está se tornando, rapidamente, uma divindade pós-moderna em que se acredita apesar da evidência contrária. Alan Greenspan foi vindicado por esta fé, temperada em depoimento perante o Congresso em outubro passado. Um fundo de hedge levado tinha acabado de perder bilhões de dólares, sacolejando a confiança dos mercados e precipitando os clamores por nova regulamentação federal. Greenspan, geralmente délfico em seus comentários, foi decisivo. Ele acreditava que a regulamentação só iria tolher esses mercados, e que eles deveriam continuar a ser auto-regulados. A verdadeira fé, diz São Paulo, é a evidência das coisas invisíveis.

Logo comecei a me maravilhar com o quão abrangente a teologia do negócio é. Havia até mesmo sacramentos para transmitir poder salvífico que oferece salvação para os perdidos, um calendário dos santos empreendedores, e o que os teólogos chamam de “escatologia“, um ensinamento sobre “o fim da história“. Minha curiosidade foi aguçada. Comecei a catalogar essas doutrinas estranhamente familiares, e vi que, na verdade, está embutida nas páginas de negócios uma teologia inteira, que é comparável em extensão, se não em profundidade, à de Tomás de Aquino ou Karl Barth. Ela só precisava ser sistematizada para toda uma nova Summa tomar forma.

No vértice de qualquer sistema teológico, naturalmente, está sua doutrina de Deus. Na nova teologia, este pináculo celestial está ocupado pelo Mercado, o que eu entendi significar tanto o mistério que o Mercado encobre, como a reverência que inspira à gente de negócios. Diferentes religiões têm, naturalmente, diferentes pontos de vista dos atributos divinos. No cristianismo, Deus tem sido por vezes definido como onipotente (possui todo o poder), onisciente (tem todo o conhecimento) e onipresente (existente em todos os lugares). Mas teologias cristãs, é verdade, protegem-no. Elas ensinam que essas qualidades de divindade estão realmente lá, mas estão escondidas aos olhos humanos tanto pelo pecado do homem quanto pela transcendência do divino em si. Em “luz inacessível”, elas estão, como diz o velho hino, “escondidas dos nossos olhos.” Da mesma forma, embora o Mercado, temos a certeza, possua esses atributos divinos, nem sempre são completamente evidentes aos mortais, mas devem ser confiáveis ​​e afirmados pela fé. “Mais adiante”, como diz outra velha canção gospel, “vamos entender o porquê.”

Como eu tentei seguir os argumentos e explicações dos economistas-teólogos que justificam os caminhos do Mercado para os homens, vi a mesma dialética pela qual tenho muito carinho já que por muitos anos eu a ponderei diante os Tomistas, os Calvinistas, e as várias escolas de pensamento religioso moderno. Em particular, a retórica dos devotos economistas se assemelha ao que é às vezes chamado de “teologia do processo”, uma tendência relativamente contemporânea influenciada pela filosofia de Alfred North Whitehead. Nesta escola, embora a vontade de Deus possua todos os atributos clássicos, ele ainda não os possui na íntegra, mas está, definitivamente, se movendo nessa direção. Esta conjectura é de grande ajuda para os teólogos, por razões óbvias. Ela responde ao incômodo enigma da teodiceia: por que muitas coisas ruins acontecem que um Deus onipotente, omnipresente e onisciente - especialmente um benevolente - não aceitaria. A teologia do processo também parece oferecer conforto considerável para os teólogos do Mercado. Isso ajuda a explicar o deslocamento, a dor e a desorientação que são os resultados das necessária transições da heterodoxia econômica para os mercados livres.

Desde os primeiros estágios da história humana, é claro, tem havido bazares, rialtos, e postos de negociação, enfim, todos os mercados. Então, o Mercado não era ainda Deus, porque havia outros centros de valor e significado, outros “deuses”. O Mercado operava dentro de uma infinidade de outras instituições que o restringia. Como Karl Polanyi demonstrou em sua obra clássica, A Grande Transformação, só nos últimos dois séculos, o Mercado se elevou acima desses semideuses e espíritos ctônicos para se tornar a Causa Primeira de hoje.

Inicialmente, a ascensão do mercado para a supremacia do Olimpo replicou a gradual elevação de Zeus acima de todas as outras divindades do panteão grego antigo, uma ascensão que nunca foi muito segura. Zeus, recorde-se, tinha que continuar atacando abaixo do Olimpo para acabar com esta ou aquela ameaça à sua soberania. Recentemente, no entanto, o Mercado está cada vez mais parecido com o Senhor do Antigo Testamento, e não é apenas uma divindade superior, concorrendo com os outros, mas a própria divindade suprema, o único Deus verdadeiro, cujo reinado deve agora ser universalmente aceito já que ele não tolera rivais.

Onipotência divina significa a capacidade de definir o que é real. É o poder de fazer algo a partir do nada e nada de alguma coisa. A vontade-mas-ainda-não-alcançada onipotência do Mercado significa que não há limite concebível a sua capacidade inexorável para converter qualquer criação em mercadoria. Mas, novamente, isto não é uma ideia nova, embora tenha ocorrido uma nova reviravolta. Na teologia católica, através do que é chamado de “transubstanciação“, pão comum e vinho tornam-se veículos santificados. Na missa do Mercado, um processo inverso ocorre. Coisas que foram realizadas de maneira sagrada transmutam em itens intercambiáveis ​​para venda. A terra é um bom exemplo. Durante milênios, ele possuiu vários significados, muitos deles numinoso, isto é, influenciado, inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade. Foi a Mãe Terra ancestral lugar de descanso, monte santo, floresta encantada, pátria nativa, inspiração estética, relva sagrada, e muito mais. Mas, quando a Sanctus campainha do Mercado toca, e os elementos são consagrados, todos esses complexos significados da Terra se derretem em um só: ativo imobiliário. A um preço justo toda a Terra está à venda, e isso inclui tudo, desde cemitérios até a enseada de especial deleite. Esta dessacralização radical altera, drasticamente, o relacionamento humano com a terra, o mesmo acontece com a água, o ar, o espaço, e, brevemente (prevê-se), os corpos celestes.

No momento supremo da missa, o sacerdote diz: “Este é o meu corpo”, ou seja, o corpo de Cristo e, por extensão, os corpos de todos os fiéis. O cristianismo e o judaísmo ensinam que o corpo humano é feito “à imagem de Deus.” Agora, no entanto, em uma exibição deslumbrante de transubstanciação inversa, o corpo humano tornou-se o mais recente meio sagrado para ser convertido em uma commoditie. O processo iniciou-se, apropriadamente, com o banco de sangue. Mas agora, ou brevemente, todos os órgãos do corpo - rins, pele, medula óssea, esperma, o coração em si, serão milagrosamente transformados em itens compráveis.

Ainda assim, a liturgia do Mercado não está a decorrer sem alguma oposição por parte dos bancos. Uma batalha considerável está acontecendo nos Estados Unidos, por exemplo, sobre a tentativa de transformar genes humanos em mercadorias. Alguns anos atrás, unindo pela primeira vez, salvo memória, praticamente todas as instituições religiosas no país, o liberal Conselho Nacional de Igrejas dos Bispos Católicos para a Coalizão Cristã se opôs ao martírio genético, a mais nova teofania do Mercado. Esses críticos são seguidores do que estão agora sendo consideradas “religiões antigas”, que, como cultos do divino, foram prosperando desde quando a adoração do vigoroso jovem Apollo começou a varrer Grécia antiga. Não tem força suficiente para retardar a propagação da nova devoção ao Mercado...

Ocasionalmente, apóstatas tentam morder “a mão invisível” que os alimenta. Em 26 de outubro de 1996, o governo alemão publicou um anúncio oferecendo toda a aldeia de Liebenberg, no que costumava ser a Alemanha Oriental, para a venda, sem aviso prévio aos seus cerca de 350 habitantes. Cidadãos de Liebenberg, muitos deles, idosos ou desempregados, olharam para o aviso prévio com descrença. Certamente, tinham detestado o comunismo, mas quando se optou pela economia de mercado, que a reunificação alemã prometia, eles não esperavam isso. Liebenberg inclui uma igreja do século XIII, um castelo barroco, um lago, um pavilhão de caça, dois restaurantes, e 3.000 hectares de pasto e floresta. Uma vez que era um local favorito para caça ao javali, realizada pela velha nobreza alemã, era obviamente muito valioso para o negócio imobiliário ignorar. Além disso, tendo sido desapropriada pelo governo da Alemanha Oriental comunista, agora estava legalmente habilitada para a venda, nos termos da reunificação alemã. Da noite para o dia, Liebenberg tornou-se uma parábola viva, proporcionando uma visão de valor inestimável do “venha a nós o vosso Reino” em que é realmente feita a vontade do Mercado. Mas os burgueses indignados da cidade não se sentiam particularmente abençoados. Eles reclamaram em voz alta, e, finalmente, a venda foi adiada. Todos na cidade perceberam, porém, que não era realmente uma vitória definitiva. O Mercado, como o Senhor, pode perder uma batalha, mas em um processo de convencimento progressivo, vai sempre ganhar a guerra final.

É claro que a religião no passado não tem relutado em cobrar por seus serviços. Orações, missas, bênçãos, curas, batismos, funerais e amuletos foram vendidos, e ainda são. Nem a religião sempre foi sensível ao que o tráfego iria suportar. Quando, no início do século XVI, Johann Tetzel, tendo levantado o preço da indulgência, ainda teve um dos primeiros tinos comerciais de compor canções para impulsionar as vendas (“Quando a moeda não pinga no prato, a alma sofre no purgatório”...), ele não conseguiu perceber que estava exagerando. Os clientes desapareceram, e um jovem monge agostiniano exagerou, levando o tráfego a um impasse, quando teve a livre iniciativa de pregar um cartaz à porta de uma igreja com o número de vendas...

Seria muito mais difícil para um Lutero interromper a venda de amuletos pelo Mercado hoje. Como o povo de Liebenberg descobriu, tudo agora pode ser comprado. Lagos, prados, igrejas, edifícios, enfim, tudo tem um preço na etiqueta. Mas essa prática em si mesma exige certo sacrifício. Como tudo o que antes costumava ser classificado como criação humana se torna uma mercadoria, os próprios seres humanos começam a olhar um para o outro, e para si mesmo e, de maneira engraçada, veem apenas etiquetas de preço coloridas. Houve um tempo em que as pessoas falavam, pelo menos ocasionalmente, de “valor intrínseco”, senão das coisas, então, pelo menos, das pessoas. O princípio Liebenberg muda tudo isso. Alguns adorariam saber o que seria de um Lutero moderno que tentasse publicar suas teses, na porta da igreja, apenas para depois descobrir que todo o edifício religioso já havia sido comprado por um bilionário americano que imaginava poder ter uma imagem pública mais agradável transformando-o em sua propriedade.

É reconfortante notar que os cidadãos de Liebenberg, pelo menos, não foram colocados no bolo. Mas isso levanta uma boa pergunta. Qual é o valor de uma vida humana na teologia do Mercado? Aqui, a nova divindade faz uma pausa para reflexão, mas não por muito tempo. O cálculo pode ser complexo, mas não é impossível. Não devemos acreditar, por exemplo, que se uma criança nasce com deficiência grave, incapaz de ser “produtivo”, o Mercado vai decretar a sua morte. É preciso lembrar que os lucros derivados de medicamentos, aparelhos ortopédicos e equipamentos de ressonância magnética também devem ser configurados na equação. Tal análise de custo pode resultar em um triz - mas o valor inerente da vida da criança, uma vez que não pode ser quantificado, seria difícil de incluir no cálculo.

Costuma-se dizer que, desde que tudo está à venda sob o domínio do Mercado, nada é sagrado. Mas isso não é bem verdade. Cerca de três anos atrás, uma polêmica desagradável irrompeu na Grã-Bretanha quando um fundo de pensão de ferroviários, que possuía o pequeno caixão repleto de joias em que os restos mortais de São Thomas Becket diziam ter descansado, decidiu leiloá-lo através da Sotheby. O caixão data do século XII e é reverenciado tanto como uma relíquia sagrada quanto como um tesouro nacional. O Museu Britânico fez um esforço para comprá-lo, mas não tinha os recursos, de modo que o caixão foi vendida para um canadense. Apenas medidas de última hora, tomadas pelo governo britânico, impediram a remoção do caixão do Reino Unido. Em princípio, no entanto, na teologia do Mercado, não há nenhuma razão para que qualquer relíquia, caixão, corpo ou monumento nacional, incluindo a Estátua da Liberdade e Westminster Abbey, não devam ser listados. Alguém duvida de que, se a Verdadeira Cruz fosse realmente descoberta, acabaria por encontrar o seu caminho para Sotheby? O Mercado não é onipotente, ainda. Mas o processo está em curso e ganha cada vez mais força.

Onisciência é um pouco mais difícil de medir do que onipotência. Talvez o Mercado já tenha conseguido isso, mas é incapaz, temporariamente, de aplicar sua gnose em seu Reino e Poder, alcançando sua plenitude. No entanto, o pensamento atual já atribui ao Mercado uma sabedoria abrangente que, no passado, só os deuses detinham. O Mercado, somos ensinados, é capaz de determinar o que são as necessidades humanas, quanto o cobre e o capital devem custar, por que quantia barbeiros e CEOs devem ser remunerados, e quantos aviões a jato, tênis e histerectomias devem ser vendidos. Mas como podemos saber a vontade divina do Mercado?

Nos dias de outrora, videntes entravam em um estado de transe e, em seguida, informavam a candidatos ansiosos que tipo de humor que os deuses estavam, e se este era um momento auspicioso para começar uma viagem, casar ou iniciar uma guerra. Os profetas de Israel se isolavam no deserto e, em seguida, voltavam para anunciar se o Senhor estava se sentindo benevolente ou irado. Hoje, a vontade inconstante do Mercado é esclarecida através de relatórios diários a partir de Wall Street e outros órgãos sensoriais das finanças. Assim, podemos aprender, no dia-a-dia, que o Mercado está “apreensivo”, “aliviado”, “nervoso”, ou mesmo, por vezes, “alegre”. Com base nessa revelação, adeptos assombrados tomam decisões críticas sobre a possibilidade de comprar ou vender. Como um dos deuses devoradores de outrora, o Mercado, apropriadamente incorporado em um touro ou um urso, devem ser alimentados e mantidos felizes em todas as circunstâncias. É verdade, às vezes, que o seu apetite pode parecer excessivo, uma perda de 35 bilhões de dólares aqui, outros US$ 50 bilhões ali, mas a alternativa de não saciar a sua fome é terrível demais para ser contemplada.

Os adivinhos e os videntes dos humores do Mercado são os altos sacerdotes conhecedores de seus mistérios. Agir contra suas advertências é arriscar-se à excomunhão e, possivelmente, à danação. Hoje, por exemplo, se a política de qualquer governo atormentar o Mercado, os responsáveis ​​pela irreverência estarão condenados a sofrer. Quer o mercado não esteja de todo descontente com a redução de empregos ou a desigualdade de renda crescente, quer possa estar alegre a respeito da expansão da venda de cigarros para os jovens asiáticos, nada deve levar a qualquer um questionar sua onisciência final. Como a divindade inescrutável de Calvino, o Mercado pode funcionar de maneira misteriosa, “insondável aos nossos olhos”, mas, em última análise, ele sabe o que é o melhor para todos nós.

Onisciência, por vezes, pode parecer um pouco intrusiva. O tradicional Deus do Livro de Oração Comum Episcopal é invocado como um “a quem todos os corações estão abertos, todos os desejos são conhecidos, e de quem não se tem nenhum segredo escondido”. Assim como ele, o Mercado já sabe os segredos mais profundos e os mais obscuros desejos de nosso coração, ou pelo menos gostaria de conhecê-los. Mas suspeita-se que a motivação divina difere nestes dois casos. É evidente que o Mercado quer este tipo de onisciência de raio-X, porque sondando os nossos medos e desejos mais profundos e, em seguida, dispensando todas as soluções “fora-da-caixa”, pode ampliar ainda mais seu alcance. Como os deuses do passado, cujos sacerdotes ofereciam as fervorosas orações e súplicas do povo, O Mercado confia em seus próprios intermediários: gurus motivacionais. Treinados na arte avançada da Psicologia, que desde há muito tempo substituiu a teologia como a verdadeira “ciência da alma”, os herdeiros modernos dos confessores medievais aprofundam as fantasias ocultas, inseguranças e esperanças do povo.

Por vezes se pergunta, nesta era da dominação religiosa do Mercado, onde os céticos e os livres pensadores estarão? O que aconteceu com os Voltaires, que por vezes expuseram falsos milagres, e os H.L. Menckens, que explodem vaias estridentes sob a impiedosa inclemência? Esse desaparecimento é o resultado do estrangulamento, praticado pela ortodoxia corrente, daqueles que questionam a onisciência do Mercado ao questionar a sabedoria inescrutável da providência. O princípio metafísico é óbvio: “Se o que você diz é a coisa real, então deve ser a coisa real”. Como o velho teólogo cristão Tertuliano uma vez comentou: “Credo quia absurdum est” (“Creio porque é absurdo”).

Finalmente, há a vontade da divindade ser onipresente. Praticamente todas as religiões ensinam essa ideia de uma forma ou de outra, e a nova religião não é exceção. A última tendência na teoria econômica é a tentativa de aplicar cálculos do Mercado para áreas que antes pareciam estar isentas, tais como o namoro, a vida familiar, as relações conjugais, e a criação dos filhos. Henri Lepage, um defensor entusiasta da globalização, agora fala sobre um “mercado total”. São Paulo lembrou aos atenienses que seus próprios poetas cantavam a respeito de um Deus “em quem vivemos, nos movemos e temos nosso ser”, por isso, agora, o Mercado não está apenas em torno de nós, mas dentro de nós, informando-nos de nossos sentidos e sentimentos. Não parece haver nenhum lugar para refugiar de sua busca incansável. Como o Cão do Céu, ele nos persegue da casa ao shopping, na sala e no quarto.

Costumava-se pensar – equivocadamente, como se constata – que pelo menos o mais íntimo, ou a dimensão da vida espiritual, era resistente ao Mercado. Parecia ser improvável que o interior de nosso castelo jamais fosse rompido até o século 21. Mas à medida que os mercados de bens materiais se tornam cada vez mais saturados, tais estados ​​de graças como a serenidade e a tranquilidade, anteriormente não comercializáveis, estão aparecendo agora nos Catálogos de Venda. A visão pessoal de sua sagrada missão pode ocorrer em regiões selvagens antes intocadas, que eram retratadas como praticamente inacessíveis, exceto, possivelmente, por outras pessoas que leem o mesmo catálogo. Além disso, o êxtase e a espiritualidade são agora oferecidos numa forma genérica conveniente. Assim, o Mercado disponibiliza os benefícios religiosos que antes exigiam a oração e o jejum, sem o constrangimento de compromisso demonizado ou a disciplina ascética tediosa que uma vez limitou a sua acessibilidade. Todos podem agora ser comprados sem uma demanda irreal de seu tempo, em uma oficina de fim de semana em um resort do Caribe com um consultor psicológico sensível que substitui o mestre de retiro excêntrico.

Descobrindo a teologia do Mercado, ela me fez começar a pensar de uma maneira diferente sobre o conflito entre as religiões. Violência entre católicos e protestantes no Ulster ou hindus e muçulmanos na Índia, muitas vezes, domina as manchetes. Mas eu vim a me perguntar se o verdadeiro choque de religiões (ou mesmo de civilizações) pode se passar despercebido. Estou começando a pensar que, para todas as religiões do mundo, podendo variar um ou outro caso, a religião do Mercado tornou-se a rival mais formidável, ainda mais porque raramente é reconhecida como uma religião. As religiões tradicionais e a religião do Mercado global, como vimos, apresentam radicalmente diferentes visões da natureza. No cristianismo e no judaísmo, por exemplo, “do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam.” O Criador nomeia os seres humanos como mordomos e jardineiros, mas, por assim dizer, detém a titularidade da terra. Outras religiões têm ideias semelhantes. Na religião do Mercado, no entanto, os seres humanos, mais particularmente aqueles detentores de dinheiro próprio, coisa que eles adquirem dentro de certos limites, podem dispor de qualquer coisa como quiserem. Outras contradições podem ser vistas nas ideias sobre o corpo humano, a natureza da comunidade humana, e a finalidade da vida. As religiões mais antigas incentivam testamentos arcaicos em lugares específicos. Mas aos olhos do Mercado todos os lugares são intercambiáveis. O Mercado prefere uma cultura mundial homogeneizada, possivelmente, com bem poucas inconvenientes particularidades nacionais.

Divergências entre as religiões tradicionais se tornam irrelevantes em comparação com as diferenças fundamentais que todas elas têm com a religião do Mercado. Será que isto vai levar a uma nova jihad ou cruzada? Duvido. Parece pouco provável que as religiões tradicionais vão escalar para a ocasião de desafiar as doutrinas da nova dispensação. A maioria delas parecem contentes de se tornar seus acólitos ou para ser absorvidas em seu panteão, bem como os antigos deuses nórdicos, depois de abandonarem os jogos de luta, finalmente se colocaram em acordo, embora com um status diminuído, mas seguro, com os santos cristãos. Normalmente, sou um grande apoiador do ecumenismo. Mas as contradições entre as visões de mundo das religiões tradicionais, por um lado, e da visão de mundo da religião do Mercado, por outro, são tão básicas que nenhum compromisso parece possível, e eu estou esperando, secretamente, por um renascimento da polêmica.

Nenhuma religião, nova ou antiga, está sujeita à prova empírica, então o que temos é uma disputa entre crenças. Muito está em jogo. O Mercado, por exemplo, prefere fortemente o individualismo e a mobilidade. Desde que precisa mudar as pessoas para onde a produção exige que elas estejam, torna-se furioso quando as pessoas se apegam às tradições locais. Estas pertencem às dispensações mais antigas e – como os altos lugares de Baalim –, devem ser lavradas. Mas talvez não. Como as religiões anteriores, o novo tem formas engenhosas de incorporar as pré-existentes. Templos hindus, festivais budistas e santuários dos santos católicos podem esperar novas encarnações. Junto com trajes nativos e comida picante, eles terão permissão para dar cor local e autenticidade no que de outro modo poderia vir a ser uma Terra Beulah extremamente branda.

Há, entretanto, uma contradição entre a religião do mercado e as religiões tradicionais que parece ser intransponível. Todas as religiões tradicionais ensinam que os seres humanos são criaturas finitas e que há limites para qualquer empreendimento terreno. Um mestre zen japonês disse uma vez aos seus discípulos quando estava morrendo: "Aprendi apenas uma coisa na vida: quanto é o suficiente". Ele não encontraria nenhum nicho na capela do Mercado, para quem o Primeiro Mandamento é "Nunca há o suficiente". Como o provérbio do tubarão que para de se mover, o Mercado que impede a expansão, simplesmente, morre. Isso poderá acontecer. Se isso acontecer, então, Nietzsche terá afinal acertado. Ele só tinha o Deus errado em sua mente.

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