21 de outubro de 1993

Sobre E.P. Thompson

Perry Anderson

London Review of Books

Vol. 15 No. 20 · 21 October 1993

Tradução / Ao chegar a minha casa uma noite, nas últimas semanas de 1962, encontrei uma garrafa de vinho, no apartamento vazio, com um bilhete embaixo. Edward Thompson havia terminado “The making of the English working-class”; vivia em Halifax, e necessitava ficar por algumas semanas no Museu Britânico. Nesses dias, eu vivia em Talbot Road e havia me casado recentemente com Juliet Mitchell. Ela dava aulas em Leeds, enquanto eu trabalhava para a New Left Review em Londres. Ocasionalmente, Edward e eu trocávamos ideias sobre nossas preocupações e conversávamos amigavelmente sobre história e sociologia. “Você acredita que Weber é realmente mais importante que Marc Bloch?”, perguntava-me com um ar de maliciosa perplexidade. Se éramos mais circunspectos em relação a temas políticos, isso se devia em parte a uma questão de tato – ele não queria se apoiar demais em mim, editor principiante de uma revista da qual ele era o fundador. Contudo, eu também estava sujeito a uma imagem enganosa.

Edward parecia não apenas uma, mas praticamente duas gerações mais velho, porque entre nós estavam aqueles – o grupo de Stuart Hall ou de Raphael Samuel – que co-fundaram a Nova Esquerda a partir do início dos anos cinquenta, em vez dos anos quarenta. Sua imagem contribuía para a ilusão: suas belas feições ao mesmo tempo revestidos de inquietude melodramática e geologicamente traçadas, uma paisagem de relevos selvagens e depressões. Era, desde já, a conjuntura, que confirmava aquela imagem; nunca as diferenças de idade, por pequenas que fossem, eram vistas tão grandes como neste momento. [...] Mas, provavelmente, para a época, o bibliotecário de Hull era menos sábio que o historiador de Halifax, que contemplava com impaciência as conversas sobre divisões geracionais como uma maneira de evitar discussões difíceis. O resultado era o mesmo, ainda que para mim significasse menos um alívio que uma inibição. Tínhamos poucas discussões políticas. Eu estava no trem que vinha de Leeds quando ele embarcou em Londres com o trabalho concluído, exibindo o que parecia ser uma natureza morta de frustrada boa vontade. Apenas recentemente, na década de 1970, dei-me conta da surpresa de que ele tinha apenas 38 anos.

No ano seguinte, as relações entre os fundadores da New Left Review e seus novos editores se esclareceram. A revista estava presa à causa da Campanha pelo desarmamento nuclear (CND), e lutava sem muito êxito buscando um novo direcionamento. As discussões práticas e as diferenças intelectuais criaram tensões entre Edward e a equipe da rua Carlisle. Ele pensava, com razão, que a revista estava se afastando de maneira amorfa do seu passado sem ter prestado contas a ele e não tinha confiança política alguma em seu futuro. Houve explosões ocasionais. Mas sua atitude em relação aos mais jovens era essencialmente generosa e, quando chegou o momento, eles lhe garantiram sem rancor uma ordem de transição entre o antigo e o novo conselho. Quais tenham sido suas premonições, ele não era possessivo.

Quando a revista formou-se à maneira como existe agora, a posição de Edward mudou. No final de 1964, a New Left Review desenvolveu o tipo de perspectiva política (que ele nos imputava não ter) e um conjunto de teses históricas sobre a relação entre o passado britânico e a crise atual, tal como nós a víamos. Edward não gostava de nenhuma das duas coisas. Mas, agora, finalmente era possível uma confrontação real. A revista aceitaria publicar uma crítica completa feita por ele, “escrita talvez em meu estilo polêmico e notoriamente malicioso?”, ele me escreveu então. Seria bem vinda, respondi o nervosamente, mas não queríamos uma disputa vulgar. Com tato, Edward a publicou, entretanto, na Socialist Register. O resultado foi um de seus ensaios mais famosos, “The peculiarities of the English” (“As peculiaridades dos ingleses”). Ferido por sua ferocidade, respondi o da mesma maneira. O intercâmbio apresentou uma sorte assimétrica. Edward nos atacava por nossas leituras imprecisas da evidência histórica; eu, pelo manejo incorreto da evidência textual. O que me desconcertou foi o recorte por mim elaborado na tentativa de expor argumentos que queria refutar, os que eu não podia enquadrar em tudo definido por ele mesmo como próprio do historiador. Este foi um erro genérico de minha parte. A polêmica é um discurso de conflito, cujos efeitos dependem de um equilíbrio delicado entre os requisitos da verdade e da tentação da ira, a obrigação de argumentar e o gosto de provocar. Sua retórica permite, e inclusive reforça, uma certa licença figurativa. Como os epitáfios dos aforismos de Johnson, que não está sob juramento.

Eu não era o único que ignorava isso. Uns anos antes, Edward havia publicado uma resenha de The long revolution de Raymond Williams na New Left Review, cujo tom era mais temperado que seu tratamento para mim e Tom Nairn, mas tinha um resultado mais doloroso. Uma de suas críticas era que Raymond havia sido em parte absorvido em suas maneiras e preocupações pela academia da classe dominante. “Oh, o pátio universitário iluminado, o brindar das taças de vinho, as conversas tranquilas dos homens ilustrados!”, não é surpreendente que o filho de um porteiro não tenha gostado disso. Na realidade, Edward havia justificado admiravelmente seu discurso. Falando de uma “comunicação genuína”, Raymond havia dito: “pode-se sentir o descanso e o esforço: a abertura e a honestidade necessárias para um homem escutar outro de boa fé e contestado depois”. Edward respondeu: “Burke insultava, Cobbet condenava, Arnold era capaz de insinuações maliciosas, Carlyle, Ruskin e Lawrence, em sua idade adulta, não escutavam ninguém. Isso pode ser lastimável; mas não posso aceitar que a comunicação da raiva, da indignação ou mesmo da malicia seja algo menos genuíno”. Aqui em toutes lettres, a garantia de um polemista. As próprias indignações de Edward dessa época eram artifícios literários, sem rancor pessoal. Uns poucos meses depois de meu contra-ataque, deparei-me com ele em um pub próximo à rua Tottenham Court. Edward, em que não o via por três anos, era um homem de bom coração.

Passou outra década até que voltei a vê-lo novamente. No inverno de 1979, em uma fria igreja em Oxford, levantou-se como um clérigo raivoso para advertir uma vez mais a congregação sobre os perigos do dogma galês. Então, seu ataque a Althusser em The poverty of theory, publicado no ano anterior, havia despertado uma grande controvérsia. Sucedeu um debate diante de um público abalado e extasiado. Um dos que se posicionou foi Stuart Hall. Eu observava do meu assento. Minha própria reação a The poverty [...] foi um pouco diferente. Parecia-me mais importante acertar contas com Thompson do que com Althusser. Tentei empreender isso uns meses mais tarde.

O foco das energias de Thompson se alterou repentinamente. Havia explodido uma segunda onda de intensa Guerra Fria, e ele se lançou sem reservas a uma campanha de resistência. Finalizei meu escrito sobre ele dizendo que era melhor deixar para trás velhas pendências e explorarmos juntos novas questões. Ele respondeu publicando um manifesto de seus temores na New Left Review em notes on the exterminism, the last stage of civilization?, na primavera de 1980. A revista organizou um debate internacional em torno do texto. Apareceu um livro com as conclusões de Edward. O desacordo havia sido superado.

Em 1986 encontramo-nos em Nova York. Christopher Hill, Eric Hobsbawm e eu fomos mobilizados para discutir sobre as agendas para uma radical history na New School. No auditório lotado, pendurado em suas palavras, ele era a imagem do orador romântico com suas explosões do discurso apaixonado, marcadas com aquele típico gesto, um movimento rápido da palma de sua mão sobre sua cabeça – tocando sua sobrancelha ou sua massa de cabelos grisalhos – cujo efeito sempre oscilava entre a arte dramática e o jogo. Logo, quando saímos do jantar oficial – um quarteto incongruente – tive algo da mesma percepção enganosa da primeira vez. O mais jovem dos três doyens, parecia misteriosamente maior – perguntei-me se porque era fisicamente mais alto. Agora, de todos os modos, sua aparência havia mudado. Notei, pela primeira vez, ares de dandy, com o colete delicado e o charuto sem graça, insinuando uma silhueta clássica. Nossa conversa girou entre os escritores do século XVIII. Contestou-me por meu atrevimento com Swift, dizendo que estava escrevendo uma novela que seria algo semelhante à Viagens de Gulliver, porém em versão moderna.

Levou tempo para eu ter uma ideia mais precisa da distinção de Thompson como historiador e como escritor. Sua obra abarca muitas formas para ser julgada facilmente e sua aura pode ser uma tentação para os atalhos. Mas, no centro criativo de sua escrita há uma tensão entre o que se poderia chamar de sensibilidade adequada ao século XIX e o correspondente ao século XVIII. Se bem que no começo de The making of the English working-class, e que conecta ambas as épocas, ninguém nunca duvidou de onde descansa o peso de seu relato. Até onde apontam os trabalhos desenvolvidos por Thompson? Havia uma resposta óbvia: mais à frente, para o que se tornou a classe operária inglesa, uma vez formada, na época vitoriana. Contudo, ele se orientou na direção oposta: um século inteiro para trás, até 1720. O que produziu essa alteração no campo, esse salto tão incomum – ele fazia referência a um salto de paraquedas – para qualquer historiador? Poderia se suspeitar que o tranquilo mundo do sindicalismo vitoriano, por não falar do posterior trabalhismo, não lhe atraía: um retrocesso sobre Morris. Mas se havia um elemento político em sua escolha, como certa resistência a buscar algo que poderia se parecer com o epílogo de Guerra e paz, as razões pessoais deveriam ter mais importância.

Coincidindo com o deslocamento de período, houve uma mudança de residência. Em Yorkshire, ele vivia em uma arejada casa vitoriana, localizada acima das desoladas ruas de Halifax, em meio à horrível escória da revolução industrial. Em Worcestershire, seu lar era uma mansão georgiana, em um campo ondulante, que havia sido a propriedade de um bispo. A transferência permitiu a Williams, que recordava a imputação de Thompson, uma piada travessa sobre “O marxismo de country”. Na realidade, seria o quartel-general do mais ardente trabalho político de sua vida. Porém, houve uma mudança no tom de sua escrita. Whigs and hunters é um tipo de livro diferente de The making of the English working-class, não somente nos objetivos, mas também no estilo. Em um gesto mimético, onde a abundância romântica dá lugar a uma sóbria elegância, e a paixão expressa-se frequentemente de forma mais irônica. Sua distribuição mais à frente variará, mas, em diferentes composições, as cadências dos dois períodos contrapor-se-ão em seu discurso até o final. Essa combinação de expressões foi o segredo de seu sucesso. Foi o maior retórico da época. Mas como a retórica é uma arte estranha, sua resistência é visível na tensão que Thompson tinha com esta era. Seu punho era menos seguro quando seu discurso era mais contemporâneo. Tipicamente, sua escrita desfalece quando busca chegar ao demótico e pouco importante século XX. O resultado pode ser chamativo. Os obituários têm mencionado escassamente a ficção ou a poesia de Thompson. Ele, com toda razão, não as considerava marginais. Seus dois extensos poemas The place called choice e Powers and names (London Review of Books, 23 de janeiro de 1986), que são parecidos em tema e forma (guerra atômica – despotismo), são exemplos vívidos desta irregularidade: passagens de tenra beleza ao lado de outras alcaparras populares. Sua novela The Sykaos Papers é a mais completa expressão singular de seu pensamento; as ideias adquirem uma forma imaginativa que não tem expressão comparável em nenhum lugar de sua obra. Nela, o olhar alheio de uma razão incorpórea cai – tarde demais – no mundo da propriedade, da autoridade e da guerra, na medida em que se move em direção à destruição nuclear. O argumento metafísico está envolto em uma das mais vividas narrativas terrestres, e cada uma de suas máximas mobiliza, instrui e deleita. Mas há ainda um contrastante chamativo entre os breves começos das sessões da novela (carregados de zombarias a uma imprensa popular e da cena urbana dos anos 1980, cujo humor pode nos assustar) e a energia e a astúcia da trama central que segue. Seu clímax, antes da Terra se extinguir, é o idílio em que a razão está sexualmente encarnada, quando a heroína leva a estrela cativa em seus braços, no éden de um “parque de 1740” e “terminado no início do século XIX”.

O livro de Thompson sobre Blake, Witness against the beast, que aparecerá no mês seguinte, pode ser lido de alguma maneira como um anexo que ilustra sua novela. Os mesmos temas aparecem aqui de forma critica. Na News School ele contou a sua audiência como havia descoberto a história marxista lendo Chritopher Hill na sua época de estudante, e quando saiu The making of the English working-class, disse que esperava encontrar algum dia o túnel subterrâneo que podia conectar as ideias de Blake com o mundo da Guerra Civil, ligando diretamente as duas épocas revolucionárias que Thompson e Hill construíram juntos. Witness against the beast encontra essa filiação na seita fundada por John Reeve e Ludowick Muggleton em 1652. A mãe de Blake, sugere Thompson, pode ter sido uma muggletoniana, e muitas de suas noções devem ter derivado de seu ramo do antinomianismo.

O respeito e o afeto que mostra por esse suave e diminuto lado é persuasivo. Não ignora nenhuma sutileza teológica. À medida que explora sua complicada doutrina, aqueles leitores que recordam suas requisições contra o obscurantismo do marxismo parisiense podem esboçar um sorriso enquanto lutam contra os mistérios do influxo divino e das duas sementes, da dispersão versus a unidade de Deus, expostos detalhadamente aqui.

O propósito mais amplo desse livro não depende, contudo, da exatidão da ressurreição muggletoniana. Seu objetivo é sugerir uma nova interpretação de Blake. Thompson argumenta que o poeta é herdeiro de uma longa trajetória “anti-hegemônica”, enraizada entre os artesãos que rejeitavam o amável nacionalismo do século e o substituíam por uma religião do amor igualitário, hostil tanto à nova ciência materialista como à lei moral da igreja e do Estado estabelecidos. Mas Blake transformou sua perspectiva antinomianista em uma constelação mais radical e crítica, sob o impacto do jacobinismo e do deísmo. Do ambiente paineano, desenvolveu uma visão política dos males da propriedade e da pobreza, do clero e do exército, da monarquia e do matrimônio; enquanto que, a partir de Volney, chegou a uma nova crítica da fé alienada ao serviço dos poderes seculares. Em cada caso, porém, Blake viu mais profundamente que seus contemporâneos ilustrados sem reduzir a miséria humana meramente à opressão ou exploração sociais, nem o sentimento religioso à mistificação clerical. Só o chamado do amor pode curar a maldição de Caim, não a razão científica nem o interesse individual. Uma natureza humana alternativa, de acordo com o evangelho eterno, aguarda por ser realizada. “A intensidade dessa visão”, escreve Thompson, “impede Blake de cair nos caminhos de apostasia” quando os fogos revolucionários ardem suavemente em 1801 – enquanto que “os perfeccionistas obsessivos e racionalistas benévolos” de seu tempo “terminam quase todos desencantados”.

Witness against the beast é um brilhante final para uma vida de trabalho excepcional. Como honrar a esse impulso antinominista? Certamente não através de qualquer tipo de piedade. Lendo os obituários de Thompson, os de direita, centro e esquerda, já não sei quantas vezes encontrei a citação de seu desejo de resgatar “inclusive o mais marginal seguidor de Joanna Southcott de enorme condescendência da posteridade”. Essa frase é uma das mais veementes e programáticas. Mas, pela força da repetição, corre o risco de se transformar em uma fórmula estereotipada. Edward, que era a pessoa mais politicamente incorreta do mundo, nunca aceitaria isso. Ele desfrutou com a irreverência e seria melhor segui-lo, quando pudermos, por esse caminho. Para começar, poderíamos observar que Blake foi o primeiro a expressar sua condescendência para Joanna Southcott, sobre cuja inocência escreveu em tom desdenhoso: “O que se faça a ela, não posso saber/ e se lhe pergunta jurar-lhe-á / seja isto bom ou mal, não há a quem culpar;/ Ninguém pode estar orgulhoso, ninguém pode ser culpado”.

Mas há uma questão mais ampla aqui, que se embasa no argumento de seu último livro. Um escritor do século XVIII que nunca atraiu muita atenção de Thompson foi seu grande historiador. Em Witness against the beast, Gibbon, contudo, faz sua aparição. Aqui é apresentado como uma contrafigura, o deísta, cujo retrato de Constantino deverá atrair um antinomiano, mas cuja visão cética do cristianismo fez explodir compreensivamente a ira de Blake (“Gibbon aparece com seu chicote de aço e Voltaire com uma engrenagem”). Thompson cita as linhas de Blake com simpatia. Mas o poema é na realidade uma amostra das fraquezas de Blake – e precisamente nos dois pontos que Witness against the beast apresenta como suas características mais destacadas. Nesse poema, um lastimoso monge é torturado em uma cela por Gibbon e Voltaire por não participar na celebração da guerra: como se o belicismo fosse o gravame de sua crítica à fé. A History de Gibbon era realmente perturbadora, e não só para Blake. Mas se nos perguntarmos por que sua medicina era tão forte, o parecer de Thompson pode ser revertido. A emancipação intelectual de The decline and fall está no que se poderia chamar de sua “enorme condescendência” – que outra coisa é o tom inimitável desses seis volumes? Diante do cristianismo e inclusive do passado clássico. Thompson louva as indignadas anotações de Blake à Apology of the Bible do bispo Watson, dirigidas a Paine. Mas Blake não falou publicamente. Foi Paine que contestou Watson, como havia feito Gibbon antes dele.

O poema de Blake teve origem no julgamento que se iniciou em Chichester, motivado por uma obscura rixa com um soldado em seu jardim, do qual foi absolvido. Assustado com o episódio, imaginou-se como um dos monges acinzentados do antigo presbitério no qual se realizou o julgamento, ferido, porém triunfante: “o gemido amargo de dor de um mártir é / uma flecha do arco do Todo Poderoso!”. Dois anos depois do julgamento, quando ainda o importunava “a história completa de meus sofrimentos espirituais”, fez uma dedicatória à rainha. Na versão manuscrita de Jerusalém, o frade é um “sedicioso”, mas logo reconsiderou o fim e modificou sua publicação para “vago”. Não há, em tudo isso, motivos para censura. Blake tinha um certo lado temeroso; foi vítima do medo de perseguição e saiu mal disso. Eram tempos difíceis para qualquer pessoa progressista. De qualquer modo, é um erro apresentá-lo como politicamente mais intransigente que os oponentes menos místicos ao regime da guerra conservadora. Perseguiu com ímpeto Robert e Leigh Hunt por haver considerado que suas pinturas de Nelson e Pitt eram ícones da reação (um erro compartilhado – pois, Blake nunca o esclareceu – por não poucos historiadores da arte), acusando-os de serem responsáveis por uma guerra sobre a qual falaram com mais franqueza que ele. Processados três vezes, os irmãos foram finalmente encarcerados por insultar o Regente, para a gozação de Blake. “Não posso conceber que um monge possa ser hipócrita”, avisavam os deístas. A ilustração, depois de tudo, pode lhe ensinar algo.

Essas observações não tendem a diminuir o vigor da defesa que Thompson faz de Blake, como um iconoclasta quase genial, mas buscam situá-lo mais criticamente na tradição sobre a qual Thompson chama a atenção. Os muggletonianos foram um grupo atrativo, como ele mostra. Mas era também um grupo isolado e secreto, afastado do culto público e do proselitismo, e sua fé chegou a ser quietista. A ausência em Blake de qualquer forma coletiva de política radical, em tempo de agitação, é chamativa. Sua única experiência direta de contato com a multidão parece ter tido lugar quando, na juventude, mesclou-se, por um momento, com as revoltas de Gordon. Sua aversão a correr os riscos que outros aceitavam deve ter sido em parte de seu temperamento. Mas, por acaso, não refletia a mentalidade retraída do meio do qual provavelmente vinha? A noção de um evangelho eterno proporcionava uma via fácil de recuo do tumulto cotidiano. Contudo, descender da Terceira Comissão, por transfigurado que estivesse, acarreta custos. Não eram somente os limites de uma experiência política, entretanto, também literária. Os fracassos poéticos dos últimos trabalhos de Blake eram o resultado de seu auto-isolamento. Mas significava que sua distância dos círculos jacobinos era a ausência de qualquer resposta romântica a seus trabalhos, apesar dos valorosos esforços de Crabb Robinson, por interessar a Wordworth, Hazlitt e outros. Um bom antídoto para os patrióticos clamores de uma “Inglaterra, terra verde e agradável” é recordar hoje que o único eco significativo da obra de Blake enquanto vivo, encontra-se na Alemanha.

O último artigo de Thompson tratava do patriotismo nessa época. Em uma resenha crítica amistosa do livro de Linda Colley, Britons: forging the nation publicado este verão em Dissent, questionava a consistência da lealdade popular durante as guerras contra a França. A pesar de não negar sua existência, mostrava-se impaciente com aquelas análises que passavam por alto o fluxo de “patriotismo hipócrita” das danças e os desfiles dos voluntários. Embora pudesse irritar adotando os mesmos gestos ingleses, seus compromissos mais profundos foram evidentemente internacionalistas. O desarmamento nuclear europeu foi a causa à qual se dedicou durante toda uma década. Sua imaginativa resposta como escritor estendeu-se à China, Índia, América Latina e aos Estados Unidos. A unidade desses compromissos residiu em seu desejo de acabar com a Guerra Fria.

Em seus atos, demonstrou ser o profeta desse fim. Isso é por si só admirável. O quanto contribuiu o movimento pacifista para esse fim é outro problema; é o debate principal que Thompson deixa pendente. Nesse ponto, diferíamos. Entre os ideais do END (Movimento pelo Desarmamento Nuclear Europeu) e as realidades da queda da União Soviética, há uma grande brecha. Ao distinguir os defensores do fim da Guerra Fria de seus agentes, não os estou depreciando. A Primeira Guerra Mundial não foi concluída pela esquerda Zimmerwaldiana do “Chamado de Estocolmo”, mas pela vitória da Tríplice Entente. Não lhe concedemos menos honrarias por isso. Foi muito diferente o final da Guerra Fria? Edward sustentava apaixonadamente que foi. Ninguém teria mais direito a afirmar que ele. Seu juízo profissional – Ends and histories, concluído na primavera de 1990 e publicado no volume de Mary Kaldor Europe from bellow (A Europa vista de baixo) - é em parte uma resposta a Francis Fukuyama, sobre o qual tínhamos posições convergentes. É uma de suas mais atrativas análises é visionário e autobiográfico ao mesmo tempo. As pessoas o trarão à tona depois que os vereditos mais convencionais tenham sido esquecidos.

O primeiro rascunho foi terminado, explica, justo antes de a velha ordem ser arrasada em Praga, e ele estava à beira da morte em um hospital em Nova York. Em seus últimos anos, sofreu constantes enfermidades. Os leitores da London review of books recordaram um texto sobre a National Health Service (NHS). Não era velho quando morreu. Para nós, é uma perda enorme. Christopher Hill publicou meia dúzia de livros durante os doze anos posteriores à idade que tinha Thompson quando morreu. O que poderia ter escrito Edward? Em pleno auge do movimento pacifista, ele tendia a deixar de lado outras lutas políticas, porque poderiam dividir a causa comum. Com o final da Guerra Fria, seguramente havia contribuído mais uma vez para renovação da esquerda. Há vislumbres disso em Ends and histories. Qualquer que fosse o caminho tomado suas ideias, seriam de oposição. Seu temperamento não era de um contemporizador. A life of dissent é o filme afetuoso que Tariq Ali fez sobre Edward e Dorothy Thompson, no início deste ano, e que recentemente pude voltar a vê-lo. Durante a filmagem, conversaram sobre parentes em comum... “Que estará fazendo Perry por esses tempos?” perguntou Edward. Tariq mencionou algo que eu havia escrito sobre o conservadorismo nesta revista. “Sim, já sei”, respondeu Edward. “Oakshott era um cara ruim. Diga a ele para fortalecer seu tom”.

A manhã seguinte

Por que o pacto Israel-OLP é uma capitualização histórica

Edward Said

London Review of Books

Vol. 15 No. 20 · 21 October 1993

Tradução / Agora que parte da euforia já se foi, é possível reexaminar o acordo entre Israel e a OLP com o bom senso exigido. O que emerge de tal escrutínio é um acordo que é mais defeituoso e, para a maioria do povo palestino, mais desfavoravelmente desequilibrado do que muitos inicialmente supunham. As vulgaridades, dignas de uma exibição de moda, da cerimônia na Casa Branca, o espetáculo degradante de Yasser Arafat agradecendo a todos pela suspensão da maioria dos direitos do seu povo e a solenidade tola do desempenho de Bill Clinton, como um imperador romano do século XX pastoreando dois reis vassalos pelos rituais de reconciliação e obediência: tudo isso apenas temporariamente oculta as proporções verdadeiramente assombrosas da capitulação palestina.

Então, primeiro que tudo, vamos dar ao acordo o seu verdadeiro nome: um instrumento de rendição palestina, um Versalhes palestino. O que piora as coisas é que, pelo menos durante os últimos quinze anos, a OLP poderia ter negociado um arranjo melhor do que este Plano Allon modificado, um arranjo que não exigisse tantas concessões unilaterais a Israel. Por razões que a liderança melhor conhecerá, recusou todas as aberturas anteriores. Para dar um exemplo de que tenho conhecimento pessoal: no final dos anos setenta, o secretário de Estado Cyrus Vance pediu-me para persuadir Arafat a aceitar a Resolução 242 com uma reserva (aceita pelos EUA) a ser acrescentada pela OLP, que insistiria nos direitos nacionais do povo palestino bem como na autodeterminação palestina. Vance disse que os EUA reconheceriam imediatamente a OLP e inaugurariam negociações entre ela e Israel. Arafat recusou categoricamente a oferta, como fez com ofertas semelhantes. Então aconteceu a Guerra do Golfo, e por causa das posições desastrosas que então assumiu, a OLP perdeu ainda mais terreno. Os ganhos da intifada foram desperdiçados e hoje os defensores do novo documento dizem: "Não tínhamos alternativa." A maneira correcta de enunciar é: "Não tínhamos alternativa porque perdemos ou jogamos fora muitas outras, deixando-nos apenas esta."

A fim de avançar em direção à autodeterminação palestina — que só tem sentido se a liberdade, a soberania e a igualdade, e não a subserviência perpétua a Israel, for a sua meta —, precisamos de reconhecer honestamente onde estamos, agora que o acordo interino está prestes a ser negociado. O que é particularmente estranho é como tantos dirigentes palestinos e os seus intelectuais podem persistir em falar do acordo como uma "vitória". Nabil Shaath chamou-lhe um acordo de "completa paridade" entre israelenses e palestinos. O fato é que Israel não concedeu nada, como disse em uma entrevista televisiva o ex-secretário de Estado James Baker, exceto, inocuamente, a existência da "OLP como representante do povo palestino". Ou como Amos Oz, uma "pomba" israelense, declarou durante uma entrevista à BBC, "é a segunda maior vitória da história do sionismo".

Pelo contrário, o reconhecimento por Arafat do direito de Israel a existir traz consigo toda uma série de renúncias: da Carta da OLP; da violência e do terrorismo; de todas as resoluções relevantes da ONU, excepto a 242 e a 338, que não têm uma palavra sobre os palestinos, os seus direitos ou aspirações. Implicitamente, a OLP pôs de lado numerosas outras resoluções da ONU (que, com Israel e os EUA, aparentemente agora está a procurar modificar ou rescindir) que, desde 1948, deram aos palestinos direitos de refugiados, incluindo ou compensação ou repatriação. Os palestinos tinham conquistado numerosas resoluções internacionais — aprovadas, entre outros, pela Comunidade Europeia, pelo movimento dos não-alinhados, pela Conferência Islâmica e pela Liga Árabe, bem como pela ONU — que anulavam ou censuravam os colonatos israelitas, as anexações e os crimes contra o povo sob ocupação.

Pareceria, portanto, que a OLP acabou com a intifada, que corporizou não terrorismo ou violência mas sim o direito palestino de resistir, apesar de Israel continuar a ocupar a Cisjordânia e Gaza. A principal consideração no documento é a segurança de Israel, sem qualquer consideração pela segurança dos palestinos contra as incursões de Israel. Na sua conferência de imprensa de 13 de Setembro, Rabin foi directo acerca da continuação do controlo de Israel sobre a soberania; além disso, disse ele, Israel conservaria o rio Jordão, as fronteiras com o Egipto e a Jordânia, o mar, a terra entre Gaza e Jericó, Jerusalém, os colonatos e as estradas. O documento contém pouco que sugira que Israel vai desistir da sua violência contra os palestinos ou, como o Iraque foi obrigado a fazer depois de se retirar do Koweit, compensar aqueles que têm sido as vítimas da sua política nos últimos 45 anos.

Nem Arafat nem nenhum de seus parceiros palestinos que se reuniram com os israelitas em Oslo alguma vez viram um colonato israelita. Existem agora mais de duzentos, principalmente em colinas, promontórios e pontos estratégicos em toda a Cisjordânia e Gaza. Muitos provavelmente murcharão e morrerão, mas os maiores são projectados para durar. Um sistema independente de estradas liga-os a Israel e cria uma incapacitante descontinuidade entre os principais centros da população palestina. A terra realmente ocupada por esses colonatos, mais a terra destinada a expropriação, equivale — supõe-se — a mais de 55% da área terrestre total dos Territórios Ocupados. Só a Grande Jerusalém, anexada por Israel, compreende uma enorme parcela de terras virtualmente roubadas, pelo menos 25% do total. Em Gaza, os colonatos no Norte (três), no meio (dois) e no Sul, ao longo da costa desde a fronteira egípcia, passando por Khan Yunis (12), constituem pelo menos 30% da Faixa. Além disso, Israel explorou todos os aquíferos na Cisjordânia e hoje usa cerca de 80% da água para os colonatos e para Israel propriamente dito. (Provavelmente há instalações de água similares na «zona de segurança» de Israel no Líbano.) Assim, a dominação (se não o roubo puro e simples) da terra e dos recursos hídricos é negligenciada, no caso da água, ou adiada pelo acordo de Oslo, no caso da terra.

O que torna as coisas piores é que todas as informações sobre colonatos, terra e água estão na mão de Israel, que não partilhou a maioria desses dados com os palestinos, tal como não dividiu as receitas provindas dos impostos extraordinariamente altos que lhes impôs durante 26 anos. Foram criados pela OLP todo o tipo de comités técnicos (nos quais participaram palestinos não-residentes) nos territórios para examinar estas questões, mas há poucos indícios de que as conclusões dos comités (se as há) foram usadas pelo lado palestino em Oslo. Portanto, permanece por corrigir a impressão de uma enorme discrepância entre o que Israel conseguiu e aquilo que os palestinos concederam ou ignoraram.

Duvido que tenha havido um único palestino que assistiu à cerimónia da Casa Branca que também não tenha sentido que um século de sacrifício, expropriação e luta heróica tinha acabado em nada. De facto, o que foi mais perturbador foi que Rabin de facto fez o discurso palestino enquanto Arafat pronunciou palavras que tinham todo o ar de um contrato de aluguer. Assim, longe de serem vistos como vítimas do sionismo, os palestinos foram caracterizados perante o mundo como os seus agressores agora arrependidos: como se os milhares de pessoas mortas pelos bombardeamentos israelitas a campos de refugiados, hospitais e escolas no Líbano; a expulsão de 800 000 pessoas por Israel em 1948 (cujos descendentes hoje somam cerca de três milhões, muitos deles apátridas); a conquista da sua terra e dos seus bens; a destruição de mais de quatrocentas aldeias palestinas; a invasão do Líbano; a devastação de 26 anos de ocupação militar brutal — foi como se esses sofrimentos tivessem sido reduzidos ao estatuto de terrorismo e violência, para serem retrospectivamente repudiados ou passados em silêncio. Israel sempre descreveu a resistência palestina como terrorismo e violência, de modo que, mesmo em termos de palavras, recebeu uma dádiva moral e histórico.

Em troca exactamente do quê? O reconhecimento por Israel da OLP — sem dúvida, um avanço significativo. Para além disso, ao aceitarem que as questões da terra e da soberania estão a ser adiadas até às «negociações do estatuto final», os palestinos de facto ignoraram a sua reivindicação unilateral e internacionalmente reconhecida à Cisjordânia e a Gaza: estes tornaram-se agora «territórios em litígio». Assim, com a assistência dos palestinos, Israel recebeu uma pelo menos igual pretensão a eles. A previsão israelita parece ser que, ao concordar em policiar Gaza — um trabalho que Begin tentou dar a Sadat há quinze anos — a OLP logo seria alvo dos competidores locais, dos quais o Hamas é apenas um. Além disso, em vez de se tornarem mais fortes durante o período intermédio, os palestinos podem ficar mais fracos, mais sob a pata israelita, e, portanto, serem menos capaz de contestar as reivindicações israelitas quando o último conjunto de negociações começar. Mas sobre a questão de como, por que mecanismo específico, se passa de um estatuto intermédio para um posterior, o documento é propositadamente omisso. Significará isto, sinistramente, que o estatuto intermédio pode ser o final?

Comentadores israelitas têm sugerido que dentro de, digamos, seis meses, a OLP e o governo de Rabin negociarão um novo acordo adiando ainda mais as eleições, permitindo assim que a OLP continue a governar. Vale a pena mencionar que pelo menos duas vezes durante o Verão passado Arafat disse que a sua experiência de governo consistia nos dez anos durante os quais ele «controlava» o Líbano, dificilmente um conforto para os muitos libaneses e palestinos que se recordam daquele período penoso. Também não existe, nesta altura, nenhuma maneira concreta de realizar eleições, ainda que elas fossem agendadas. A imposição de domínio de cima, mais o longo legado da ocupação, não contribuíram muito para o crescimento de instituições democráticas de base. Há relatos não confirmados na imprensa árabe indicando que a OLP já nomeou ministros do seu próprio círculo interno em Túnis, e vice-ministros de entre os residentes confiáveis da Cisjordânia e Gaza. Haverá instituições verdadeiramente representativas? Não se pode ser muito optimista, dada a absoluta recusa de Arafat de compartilhar ou delegar poder, para não falar dos activos financeiros que só ele conhece e controla.

Tanto na segurança interna como no desenvolvimento, Israel e a OLP estão agora alinhados. Membros ou consultores da OLP têm se reunido com funcionários da Mossad desde Outubro do ano passado para discutir problemas de segurança, incluindo a própria segurança de Arafat. E isto na altura da pior repressão israelita dos palestinos sob a ocupação militar. A ideia por trás da colaboração é que isso irá dissuadir qualquer palestino de se manifestar contra a ocupação, que não se retirará, mas apenas se redistribuirá. Além disso, os colonos israelitas continuarão a viver, como sempre fizeram, sob uma jurisdição diferente. A OLP tornar-se-á, assim, a executora de Israel, uma perspectiva infeliz para a maioria dos palestinos. É interessante que o ANC se tenha recusado sistematicamente a fornecer ao governo sul-africano funcionários da polícia até que o poder fosse partilhado, precisamente para evitar aparecer como executor do governo branco. Foi noticiado em Amã há alguns dias que 170 membros do Exército de Libertação da Palestina, agora a serem treinados na Jordânia para o trabalho policial em Gaza, se recusaram a cooperar precisamente por esse motivo. Com cerca de 14.000 presos palestinos em prisões israelitas — alguns dos quais Israel diz que pode libertar — há uma contradição inerente, para não dizer incoerência, nos novos acordos de segurança. Haverá nelas mais espaço para a segurança palestina?

O único assunto sobre o qual a maioria dos palestinos concorda é o desenvolvimento, que está senda ser descrito nos termos mais ingénuos que se possa imaginar. Espera-se que a comunidade mundial dê às áreas quase autónomas apoio financeiro em larga escala; espera-se que a diáspora palestina, que de facto já se está a preparar, faça o mesmo. No entanto, todo o desenvolvimento para a Palestina deve ser canalizado através do Comité Conjunto Palestino-Israelita de Cooperação Económica, embora, de acordo com o documento, «os dois lados cooperem conjunta e unilateralmente com as partes regionais e internacionais para apoiar esses objectivos». Israel é o poder económico e político dominante na região — e seu poder é, naturalmente, reforçado pela sua aliança com os EUA. Mais de 80% da economia da Cisjordânia e de Gaza depende de Israel, que provavelmente controlará as exportações palestinas, fabricação e mão-de-obra no futuro previsível. À parte a pequena classe média e empresarial, a grande maioria dos palestinos está empobrecida e sem terra, sujeita aos caprichos da comunidade manufactureira e comercial israelita que emprega os palestinos como mão-de-obra barata. A maioria dos palestinos, economicamente falando, quase certamente permanecerá como está, embora agora seja esperado que trabalhem em indústrias de serviços do sector privado, parcialmente controladas por palestinos, incluindo estâncias turísticas, pequenas fábricas de montagem, quintas e afins.

Um estudo recente do jornalista israelita Asher Davidi cita Dov Lautman, presidente da Associação Industrial Israelita: «Não é importante se haverá um estado palestino, autonomia ou um estado palestino-jordano. As fronteiras económicas entre Israel e os territórios devem permanecer abertas.» Com as suas instituições bem desenvolvidas, estreitas relações com os EUA e uma economia agressiva, Israel na verdade incorporará economicamente os territórios, mantendo-os em um estado de dependência permanente. Então Israel voltar-se-á para o mundo árabe em geral, usando os benefícios políticos do acordo palestino como um trampolim para invadir os mercados árabes, que também explorará e provavelmente dominará.

A enquadrar tudo isto estão os EUA, a única potência global, cuja ideia da Nova Ordem Mundial é baseada na dominação económica por algumas corporações gigantescas e pauperização, se necessário, de muitos dos povos menores (mesmo os de países colonizadores). A ajuda económica para a Palestina está a ser supervisionada e controlada pelos EUA, contornando a ONU, cujas agências, como a UNRWA e o PNUD, estão em muito melhores condições para a administrar. Considerem a Nicarágua e o Vietname. Ambos são antigos inimigos dos EUA; o Vietname, na verdade, derrotou os EUA, mas agora necessita da sua ajuda económica. Continua o boicote contra o Vietname e os livros de história estão a ser escritos de forma a mostrar como os vietnamitas pecaram e «maltrataram» os EUA pelo gesto idealista destes últimos de terem invadido, bombardeado e devastado o seu país. O governo sandinista da Nicarágua foi atacado pelo movimento Contra, financiado pelos EUA; os portos do país foram minados, o seu povo devastado pela fome, boicotes e todo tipo concebível de subversão. Após as eleições de 1991, que levaram ao poder uma candidata apoiada pelos EUA, a senhora Chamorro, os EUA prometeram muitos milhões de dólares em ajuda, dos quais apenas 30 milhões se materializaram. Em meados de Setembro, toda a ajuda foi cortada. Há agora fome e guerra civil na Nicarágua. Não menos infelizes foram os destinos de El Salvador e do Haiti. Lançar-se, como fez Arafat, nas ternas graças dos Estados Unidos, é quase certo sofrer o destino que os EUA reservaram aos povos rebeldes ou «terroristas» com os quais tiveram de lidar no Terceiro Mundo depois de estes terem prometido nunca mais resistir aos EUA.

De mãos dadas com o controlo económico e estratégico dos países do Terceiro Mundo que possuem recursos como o petróleo que são necessários para os EUA, ou dos que lhes estão próximos, está o sistema de comunicação social, cujo alcance e controlo sobre o pensamento é verdadeiramente surpreendente. Durante pelo menos vinte anos, Yasser Arafat foi considerado o homem mais desinteressante e moralmente repulsivo do mundo. Sempre que aparecia na comunicação social, ou era nela discutido, era apresentado como se tivesse apenas um pensamento em mente: matar judeus, especialmente mulheres e crianças inocentes. Numa questão de dias, a «comunicação social independente» tinha reabilitado totalmente Arafat. Ele era agora uma figura aceite e até adorável, cuja coragem e realismo tinham conferido a Israel o seu devido direito. Ele tinha-se arrependido, tornou-se um «amigo», e ele e seu povo estavam agora do «nosso» lado. Quem quer que se opusesse ou criticasse o que ele tinha feita era um fundamentalista como os colonos do Likud ou um terrorista como os membros do Hamas. Tornou-se quase impossível dizer qualquer coisa, excepto que o acordo israelo-palestino — na sua maior parte não lido ou não examinado, e em qualquer caso obscuro, faltando-lhe dezenas de detalhes cruciais — foi o primeiro passo para a independência da Palestina.

No que diz respeito ao crítico ou analista verdadeiramente independente, o problema é como é que ele se vai libertar do sistema ideológico que tanto o acordo como a comunicação social agora servem. O que é necessário é memória e cepticismo (se não total desconfiança). Mesmo que seja manifestamente óbvio que a liberdade palestina, em qualquer sentido real, não foi alcançada, e é claramente programada para não o ser, para além dos magros limites impostos por Israel e pelos EUA, o famoso aperto de mão transmitido para todo o mundo é suposto, não só simbolizar um grande momento de sucesso, mas também apagar realidades passadas e presentes.

Se houvesse um mínimo de honestidade, os palestinos deveriam ser capazes de ver que a grande maioria das pessoas que a OLP é suposta representar não será realmente servida pelo acordo, senão cosmeticamente. É verdade que os habitantes da Cisjordânia e de Gaza estão contentes por ver que algumas tropas israelitas vão retirar e que grandes quantias de dinheiro podem começar a entrar. Mas é total desonestidade não estar alerta para o que o acordo implica em termos de mais ocupação, controlo económico e profunda insegurança. Depois, há o gigantesco problema dos palestinos que vivem na Jordânia, para não falar dos milhares de refugiados apátridas no Líbano e na Síria; os Estados árabes «amigos» sempre tiveram uma lei para os palestinos e uma para os nativos. Esses padrões duplos já se intensificaram, como testemunham as chocantes cenas de atrasos e perseguições que ocorreram na ponte Allenby desde o anúncio do acordo.

Então, o que fazer, se é inútil chorar sobre o leite derramado? A primeira coisa é esclarecer, não apenas as virtudes de ser reconhecido por Israel e aceite na Casa Branca, mas também quais são verdadeiramente as maiores deficiências. Pessimismo do intelecto primeiro, depois optimismo da vontade. Não se pode melhorar uma situação ruim, que é em grande parte devida à incompetência técnica da OLP — que negociou em inglês, uma língua que nem Arafat nem seu emissário em Oslo conhecem, sem um consultor jurídico —, até que no nível técnico, pelo menos se envolvam pessoas que possam pensar por si e não sejam meros instrumentos do que é agora uma única autoridade palestina. Acho extraordinariamente desanimador que tantos intelectuais árabes e palestinos, que uma semana antes estavam a gemer e lamentar-se dos modos ditatoriais de Arafat, do seu controlo obstinado sobre o dinheiro, do círculo de bajuladores e cortesãos que o cercaram em Túnis nos últimos tempos, da ausência de responsabilidade e reflexão, pelo menos desde a Guerra do Golfo, tenham feito de repente uma viragem de 180 graus e começado a aplaudir o seu génio táctico e a sua última vitória. A marcha para a autodeterminação só pode ser empreendida por um povo com aspirações e objectivos democráticos. Caso contrário, não vale a pena o esforço.

Depois de toda a excitação a celebrar «o primeiro passo em direcção a um Estado palestino», devemos lembrar-nos que muito mais importante do que ter um estado é que tipo de estado ele é. A história do mundo pós-colonial está desfigurada pelas tiranias de partido único, pelas oligarquias vorazes, pelo deslocamento social causado pelos «investimentos» ocidentais e pela pauperização em larga escala provocada pela fome, pela guerra civil ou pelo roubo total. Mais do que o fundamentalismo religioso, o mero nacionalismo não é e nunca poderá ser «a resposta» aos problemas das novas sociedades seculares. Infelizmente, já se pode ver no potencial Estado da Palestina as linhas de um casamento entre o caos do Líbano e a tirania do Iraque.

Para que isso não aconteça, vários problemas específicos têm de ser abordados. Um deles é o dos palestinos da diáspora, que originalmente levaram Arafat e a OLP ao poder, os mantiveram lá, e agora estão relegados ao estatuto de exilados ou refugiados permanentes. Uma vez que eles representam pelo menos metade do total da população palestina, as suas necessidades e aspirações não são desprezáveis. Um pequeno segmento da comunidade exilada é representado pelas várias organizações políticas «hospedadas» pela Síria. Um número significativo de independentes (alguns dos quais, como Shafik al-Hout e Mahmoud Darwish, se demitiram da OLP em protesto) ainda têm um papel importante a desempenhar, não apenas aplaudindo ou condenando do lado de fora, mas defendendo alterações específicas na estrutura da OLP, tentando mudar o ambiente triunfalista do momento para algo mais apropriado, mobilizando apoio e construindo uma organização a partir das várias comunidades palestinas em todo o mundo para continuar a marcha rumo à autodeterminação. Estas comunidades ficaram singularmente desmobilizadas, sem chefias e indiferentes desde o início do processo de Madrid.

Uma das primeiras tarefas é um recenseamento palestino, que deve ser considerado não apenas como um exercício burocrático, mas como a concessão do direito de voto aos palestinos onde quer que eles estejam. Israel, os EUA e os estados árabes — todos eles — sempre se opuseram a um recenseamento: isso daria aos palestinos um perfil demasiado alto em países onde eles deveriam ser invisíveis, e antes da Guerra do Golfo, isso teria deixado claro para os governos do Golfo como eles eram dependentes de uma comunidade «convidada» inadequadamente grande, geralmente explorada. Acima de tudo, a oposição ao recenseamento resultou da percepção de que, se os palestinos fossem contados todos juntos, não obstante a sua dispersão e desalojamento, eles, por esse mero exercício, estariam perto de constituir uma nação e não uma mera colecção de pessoas. Agora, mais do que nunca, o processo de realizar um recenseamento — e, talvez, mais tarde, eleições à escala mundial — deve ser um ponto prioritário na agenda dos palestinos em toda a parte. Constituiria um acto de auto-realização histórica e política fora das limitações impostas pela ausência de soberania. E daria corpo à necessidade universal de participação democrática, agora ostensivamente cerceada por Israel e pela OLP numa aliança prematura.

Certamente, um recenseamento voltaria a levantar a questão do retorno dos palestinos que não são da Cisjordânia e de Gaza. Embora essa questão tenha sido condensada na fórmula geral de «refugiado» e adiada até às discussões sobre o estatuto final algures no futuro, ela tem que ser levantada agora. O governo libanês, por exemplo, tem vindo a intensificar publicamente a retórica contra a cidadania e a naturalização para os 350-400.000 palestinos no Líbano, a maioria dos quais é apátrida, pobre, permanentemente encalhada. Uma situação semelhante ocorre na Jordânia e no Egipto. Essas pessoas, que pagaram o preço mais alto de todos os palestinos, não podem ser deixadas a apodrecer nem despejadas noutro lugar contra a sua vontade. Israel é capaz de oferecer o direito de retorno a todos os judeus do mundo: qualquer judeu pode tornar-se cidadão israelita e ir morar em Israel em qualquer momento. Essa iniquidade extraordinária, intolerável para todos os palestinos há quase meio século, precisa de ser rectificada. Não se pode pensar que todos os refugiados de 1948 queiram ou possam voltar a um lugar tão pequeno como um Estado palestino; mas, por outro lado, é inaceitável para todos eles que lhes digam que têm que se reintegrar noutro lugar ou abandonar quaisquer ideias que possam ter sobre repatriação e compensação.

Uma das coisas que a OLP e os palestinos independentes deveriam, portanto, fazer é levantar esta questão não abordada pelos Acordos de Oslo, antecipando assim as negociações do estatuto final - nomeadamente, pedir reparações para os palestinos que foram vítimas deste terrível conflito. Embora seja desejo do governo israelita (expresso muito energicamente por Rabin na sua conferência de imprensa em Washington) que a OLP feche «as suas chamadas embaixadas», essas representações devem ser mantidas selectivamente abertas para que aí possam ser apresentados pedidos de repatriação ou compensação.

Em suma, precisamos sair do estado de indolente abjecção em que os Acordos de Oslo foram negociados («aceitaremos qualquer coisa, desde que vocês nos reconheçam») para um que nos permita levar a cabo acordos paralelos com Israel e com os Árabes relativos às aspirações nacionais palestinas, por oposição às aspirações paroquiais. Mas isso não exclui a resistência contra a ocupação israelita, que continuará indefinidamente. Enquanto existirem ocupação e colonatos, legitimados ou não pela OLP, palestinos e outros devem levantar a voz contra eles. Uma das questões não abordadas, seja pelos Acordos de Oslo, pela troca de cartas entre a OLP e Israel ou pelos discursos de Washington, é se a violência e o terrorismo renunciados pela OLP incluem a resistência não-violenta, a desobediência civil etc. Estes são direitos inalienáveis de qualquer povo a quem sejam negadas a soberania e a independência totais, e devem ser apoiados.

Como tantos governos árabes impopulares e antidemocráticos, a OLP já começou a apropriar-se da autoridade chamando aos seus opositores «terroristas» e «fundamentalistas». Isso é demagogia. O Hamas e a Jihad Islâmica opõem-se ao acordo de Oslo, mas disseram várias vezes que não usarão violência contra outros palestinos. Além disso, a sua influência combinada equivale a menos de um terço dos cidadãos da Cisjordânia e de Gaza. Quanto aos grupos baseados em Damasco, eles parecem estar paralisados ou desacreditados. Mas isso de modo algum esgota a oposição palestina, que também inclui conhecidos secularistas, pessoas comprometidas com uma solução pacífica para o conflito palestino-israelita, realistas e democratas. Eu incluo-me nesse grupo que, acredito, é muito maior do que se supõe agora.

Para o pensamento desta oposição é fundamental a necessidade desesperada de reformas dentro da OLP, que fica agora avisada de que os apelos redutores à «unidade nacional» já não são uma desculpa para a incompetência, corrupção e autocracia. Pela primeira vez na história da Palestina, tal oposição não pode, excepto por alguma lógica absurda e hipócrita, ser equiparada a traição. Na verdade, o que afirmamos é que somos contra o palestinismo sectário e a lealdade cega à liderança: continuamos comprometidos com os amplos princípios democráticos e sociais de responsabilidade e desempenho que o nacionalismo triunfalista sempre tentou anular. Acredito que irá emergir na diáspora uma oposição de base ampla à história de incompetência da OLP, mas que virá a incluir pessoas e partidos dos Territórios Ocupados.

Por fim, há a questão confusa das relações entre israelitas e palestinos que acreditam na autodeterminação de dois povos, mútua e igualmente. As celebrações são prematuras e, para muitos judeus israelitas e não-israelitas, uma saída fácil para as enormes disparidades que subsistem. Os nossos povos já estão demasiado ligados uns aos outros por conflitos e uma história compartilhada de perseguições para que um «pow-wow» ao estilo americano possa curar as feridas e abrir o caminho a seguir. Continua a haver uma vítima e um algoz. Mas pode haver solidariedade na luta para acabar com as desigualdades e, para os israelitas, em pressionar o seu governo para acabar com a ocupação, a expropriação e os colonatos. Os palestinos, afinal, têm muito pouco que tenha sido deixado para dar. A batalha comum contra a pobreza, a injustiça e o militarismo deve agora ser levada a sério, e sem as exigências rituais de segurança psicológica para os israelitas — que, se não a têm agora, nunca a terão. Mais do que qualquer outra coisa, isso mostrará se o aperto de mão simbólico foi o primeiro passo para a reconciliação e a paz real.

Edward Said, que morreu em 2003, contribuiu pela primeira vez para a LRB em 1981.

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