27 de abril de 2024

Congresso também precisa ter responsabilidade fiscal, diz Haddad

Ministro afirma que governo recorreu ao STF contra desoneração da folha de pagamentos porque Legislativo deve ter as mesmas obrigações que o Executivo, ou equilíbrio fiscal nunca será alcançado

Mônica Bergamo

Folha de S.Paulo

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o esforço para que o país equilibre suas contas não chegará a uma vitória "por nocaute". "Cada seis meses é um round. Vai ser sempre por pontos", afirmou o petista em entrevista à Folha, em seu gabinete, na quinta-feira (25).

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante entrevista à Folha em seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Questionado sobre a alteração das metas fiscais estabelecidas para 2024 e 2025, ele afirma que o "Executivo não consegue impor sua agenda ao Legislativo", e elenca propostas de ajustes que foram "desidratadas" pelo Congresso Nacional.

Entre elas está a que prevê a prorrogação da desoneração da folha de pagamentos de empresas e prefeituras.

A medida foi questionada pelo governo no Supremo Tribunal Federal (STF). Cinco magistrados já votaram para que ela seja suspensa por não indicar o "impacto financeiro" sobre as contas públicas. Luiz Fux pediu vista.

O ministro justifica a iniciativa afirmando que o Legislativo, que tem hoje a mesma prerrogativa do Executivo de criar despesas, deve também indicar as receitas para fazer frente a elas.

"Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República", afirma.

Questionado se o descumprimento não leva ao descrédito da meta fiscal, ele afirma que o mais importante é o compromisso do governo de persegui-la. E admite cortes de despesas se não houver alternativas.

"Ninguém teve a coragem de fazer o que estamos fazendo", afirma. "Nós estamos avançando."

META FISCAL

Que livro o senhor está lendo? Ou melhor, que livro o senhor estava lendo?

[Risos] Eu estou lendo as obras do historiador alemão Reinhart Koselleck. Terminei o segundo dos quatro livros que comprei dele, "Estratos do Tempo".

O senhor vai seguir lendo, mesmo depois das declarações do presidente Lula (PT) nesta semana de que, ao invés disso, tem que perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara?

O presidente fez uma brincadeira de super bom gosto, descontraída, que não merecia essa discussão toda.

Bem, sobre economia: a revelação de que a meta fiscal estabelecida pelo governo para 2025 será alterada gerou ruído e descrédito. Por que, afinal, devemos acreditar que as metas são para valer, e não que serão alteradas dezenas de vezes?

Não é a primeira vez que isso acontece. No governo [de Michel] Temer, por exemplo, também houve mudança de meta fiscal, sem maior questionamento.

Agora, uma coisa é você deixar de ter uma meta exigente, que indique uma trajetória consistente para a [redução da] dívida pública. Isso seria um problema. Outra coisa é você reconhecer que as condições políticas retardaram o cumprimento, mas seguir estabelecendo uma meta fiscal exigente para os anos seguintes. Não deixá-la frouxa. Foi o que nós fizemos.

A meta definida em março do ano passado, de zerar [o déficit] neste ano [de 2024], sofreu alguns reveses —políticos, e naturais em uma democracia.

O Executivo não consegue impor a sua agenda ao Legislativo.

Quais foram os principais reveses, na sua opinião?

Todos os projetos e medidas corretivas que propusemos foram negociados e desidratados [no Congresso], à luz das considerações que os parlamentares legitimam ente podem fazer.

Agora mesmo eu tive que renegociar o Perse [Programa Emergencial para Setores de Eventos, criado em 2021 e que prevê isenções tributárias para empresas paralisadas na epidemia da Covid-19].

No meu entendimento, ele tinha que acabar. Mas tive que postergar, diluindo seus efeitos no tempo.

A desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia é outro caso.

Há mais de dez anos eles são beneficiados, com um total de mais de R$ 150 bilhões, sem nenhuma vantagem para o país. Isso é demonstrado por diversos estudos acadêmicos.

A desoneração da folha de pagamento dos municípios [de até 156,2 mil habitantes] nem estava na pauta.

No entanto, uma emenda de última hora [apresentada por parlamentares], que representa R$ 10 bilhões em custos tributários, foi aprovada. E tivemos que recorrer ao Poder Judiciário [STF] para reverter [o ministro Cristiano Zanin deu liminar a favor do governo em ação que sustenta que o Congresso não pode prorrogar a desoneração das folhas de pagamento sem demonstrar o seu impacto financeiro. Quatro magistrados já seguiram o seu voto].

É importante, então, esclarecer: uma coisa é a meta, onde se quer chegar.

Outra coisa é o resultado que você consegue, politicamente, atingir, respeitando os poderes.

E a terceira coisa importante é saber se o governo está ou não comprometido com a trajetória [das contas públicas]. O nosso compromisso é o de botar ordem em dez anos de déficits públicos que acumulam quase R$ 2 trilhões.

RESPONSABILIDADE

Um líder do PT me disse que a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024 é que antes ele era rico, e agora ele é pobre. Ou seja, perdeu poder sobre o Orçamento, que hoje tem que dividir com o Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) afirma que a briga para ver quem manda nos recursos será permanente.

Há não muito tempo atrás, criar despesas e renunciar a receitas eram atos exclusivos do poder Executivo.

O Supremo Tribunal Federal disse que o Parlamento também tem o direito de fazer o mesmo.

Mas qual é o desequilíbrio? É que o Executivo tem que respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal. E o Parlamento, não.

É por isso que nós recorremos agora ao STF [na ação que discutia a desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia e para prefeituras].

É preciso dizer que o Congresso também tem que respeitar a mesma lei. E que atos que não a respeitem precisam ser suspensos.

Se o Parlamento tem as mesmas prerrogativas do Executivo, ele deve ter também as mesmas obrigações.

Nós temos o Orçamento fechado, com meta estabelecida, tudo bonitinho.

Aí vamos [referindo-se ao Congresso] dar benefício pa ra prefeituras, para governos, para entidades assistenciais, para taxista. Tudo bem. Mas de onde vêm as receitas?

Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República, e chama o vice.

Ninguém quer retirar a prerrogativa de ninguém. Mas não pode um Poder [o Executivo] ficar submetido a regras rígidas, e o outro [o Parlamento], não.

Se a exigência de equilíbrio fiscal valer só para o Executivo, ele não será alcançado nunca.

Como é a sua relação com o presidente da Câmara, Arthur Lira? Ele conversou com o presidente Lula recentemente. O clima melhorou entre os Poderes?

A conversa foi boa. O Lula é bom conversador. Toda vez que eles dialogam, o clima melhora.

Ainda sobre os desafios de se cumprir a meta fiscal, ouvi no próprio governo que o senhor tem o mesmo comportamento do filho que promete à mãe que vai tirar dez na prova. Volta com boa, mas menor, e fica parecendo um fracassado. Estabelecer uma meta ambiciosa que, sabe-se, não será cumprida, não gera o efeito inverso, de perda de credibilidade?

Ao contrário. Eu tenho certeza absoluta de que, se a meta não for exigente, as medidas [de aumento de arrecadação e contenção de gastos] não passam no Congresso. Se eu baixar a guarda e disser que a meta é de 1% de déficit, ele vai para 2%.

É difícil. Mas a meta é factível.

O mercado não acredita nela e prevê déficit de 0,7% para este ano e 0,6% para 2025.

As projeções são diferentes. O mercado coloca na conta os eventuais reveses que o governo vai ter.

E por que o próprio governo não coloca?

Porque eu não posso reconhecer que um projeto não vai ser aprovado antes de lutar por ele.

Vou te dar um exemplo. A revisão da vida toda [recálculo do valor da aposentadoria considerando todas as contribuições feitas pelo trabalhador, com impacto de R$ 400 bilhões] foi revertida no Supremo [Tribunal Federal, que antes a aprovara].

Se tivéssemos perdido, a meta de 2025 não poderia ser zero, porque o impacto seria de no mínimo 0,5% do PIB. Nós estamos agindo junto ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo para que a disciplina das contas públicas volte à ordem do dia.

Desde 2015 estamos com mais de 19% do PIB de despesa primária e, em média, 17,5% do PIB de receita primária. É estruturalmente inviável.

Se não compreendermos que temos que reverter esse quadro e voltar ao patamar [de receita] de 18,7% do PIB, como era em 2011, 2013, não haverá ajuste.

E é absolutamente possível voltarmos a esse patamar só combatendo os gastos tributários [perda de arrecadação provocada por benefícios e isenções] criados neste período, como o da desoneração da folha.

O gasto tributário no Brasil, que já foi de 2%, chegou a 6%. Ou seja, os lobbies atuaram firmemente para diminuir a base fiscal em proveito próprio, não em proveito do Brasil.

Estamos eliminando gastos tributários absolutamente ineficazes. Já conseguimos fazer muita coisa. A arrecadação, neste ano, está aumentando 8,5% acima da inflação.

Mas há receitas extraordinárias neste ano que não vão se repetir, como a taxação dos estoques dos depósitos em fundos offshore. A margem da Fazenda é cada vez menor.

Não são receitas extraordinárias. A maioria delas é receita consistente.

Você pensa que foi fácil reverter politicamente a decisão populista do [Jair] Bolsonaro [PL] de tirar imposto dos combustíveis para fazer demagogia [baixando o preço da gasolina e do diesel] em período eleitoral?

Essa é uma receita permanente.

Não foi fácil convencer o nosso governo, convencer um presidente [Lula] que acabou de tomar posse, de que era o certo a fazer. Eu falei para ele: "O dólar vai cair, vai compensar a volta dos impostos, a gasolina vai baixar". Foi o que aconteceu.

Como o senhor mesmo admite, não é fácil.

É por isso que nós fomos ao Legislativo e estamos indo agora ao Judiciário.

Ninguém teve coragem de fazer o que nós estamos fazendo. Muitos ministros respeitáveis passaram por aqui e não enfrentaram esse debate. Não estou criticando ninguém. Tudo é difícil.

O negócio é não desistir de buscar o certo. Nenhum economista critica o mérito do que estamos fazendo.

PAUTAS-BOMBA

O limite de 2,5% de crescimento da despesa estabelecido no arcabouço fiscal é outro número colocado em dúvida. Há pressão de gastos estruturais como o da Previdência, atrelado à política do governo de reajustes do salário mínimo acima da inflação. Há aumento de despesas com emendas parlamentares, há pautas-bomba como a volta do quinquênio para juízes, promotores e outras categorias.

Estou trabalhando. Tive uma reunião com 15 senadores anteontem para segurar a PEC do quinquênio, que considero um retrocesso. Estamos agindo para evitar que esse tipo de coisa aconteça. Mas aqui é apenas um ministério. O país precisa se entender.

Há duas alternativas caso não se consiga evitar o aumento exponencial de despesas: ou altera o teto de 2,5% do arcabouço fiscal, ou o governo corta gastos. Me parece que o presidente Lula não está disposto a usar a tesoura. Qual será a escolha?

Cada dia com a sua agonia. Nós estamos avançando.

Agora, não adianta imaginar que vamos voltar aos bons tempos de crescimento de 3,5%, 4,5%, cometendo os mesmos erros que nos trouxeram para 1,5%.

Estamos fazendo as coisas corretas. Aceitei ser ministro da Fazenda para implementar o ajuste sobre quem não paga imposto. E sem penalizar os mais pobres.

Porque todo ajuste neste país é feito no lombo do trabalhador.

Congela o salário mínimo por sete anos, congela tabela do imposto de renda. Uma pessoa que ganha R$ 1.500 estava pagando imposto, e o sujeito [que tem dinheiro] no fundo exclusivo dos super-ricos não pagava nada? Desonera os fundos, desonera as empresas que não pagam impostos, os lobbies, cria paraísos fiscais dentro do país, acaba com voto de qualidade do Carf para beneficiar empresas lobistas que não pagam impostos? São coisas inaceitáveis para mim. Prefiro não participar de um trato como esse.

CORTES DE DESPESAS

Quando o senhor não diz claramente que o teto de despesas de 2,5% do arcabouço é sagrado, podemos concluir que cortes de despesas estão descartados e que, no fim, esse percentual será, sim, alterado.

Eu nunca tratei do marco fiscal desde que ele foi aprovado. Para mim, aquilo ali [os 2,5% de limite de crescimento de despesas] é o que tem que ser.

Podemos concluir então que pode haver cortes de despesas.

Veja bem: amanhã tem outra eleição, outro presidente, as condições econômicas melhoraram, conseguimos arrumar as contas? Então esses parâmetros podem ser revistos. Eu sempre disse isso.

Mas, hoje, acredito que eles devem ser mantidos, até que consigamos demonstrar que estamos em uma trajetória consistente [de ajuste fiscal e redução da dívida pública].

O senhor preferiria então, se necessário, defender cortes a alterar esses 2,5%?

Se necessário, sim.

Mas há muita resistência, inclusive do presidente Lula.

E eu entendo. Depois de sete anos de baixo investimento, de servidor e aposentado pagando a conta, de calote nos precatórios, de bombas-relógio sendo construídas, de o sujeito iludindo a população de que as contas estavam sendo colocadas em ordem, é natural que haja resistência.

Por outro lado, se cortes forem necessários, o senhor não vai acabar botando a conta em cima dos mais fracos novamente? Qual é a saída?

Não. Tem várias formas de cortar [despesas]. Supersalários, por exemplo, tem que cortar. O Proagro [programa voltado para agricultores] gastava R$ 1 bilhão e passou para R$ 10 bilhões. Tem alguma coisa errada.

A Fazenda está cuidando dos gastos tributários. O [ministério do] Planejamento está cuidando dos gastos primários.

Todos os gastos, na minha opinião, têm que ser revistos. Os tributários, que saíram de 2% e foram para 6% do PIB, e os primários, que desde 2015 superaram 19% [do PIB].

Agora, falamos sempre dos problemas, e é justo.

Mas tem muita coisa importante acontecendo. O crédito e a renda voltaram a subir, o desemprego caiu, a confiança do mundo no Brasil melhorou muitíssimo, aumentamos a nossa nota de crédito junto às agências de risco.

Entramos com gente falando em recessão, e agora tiveram que encaixar 2, 9% de crescimento. E eu penso que na revisão do IBGE vai chegar a 3%.

INFLUÊNCIA EXTERNA

Como vê o cenário externo, com a possibilidade de alta de juros nos EUA, o que afetaria diretamente o Brasil?

Muita gente falava que os juros americanos cairiam em março. Tinha aposta em dinheiro. E quando isso acontece é para valer, né? Não é palpite de economista-chefe. O FED [banco central dos EUA] fez uma barbeiragem, errou em suas próprias previsões. Comunicou errado. Levou o mundo a errar. Muita gente perdeu dinheiro, inclusive no Brasil, apostando na valorização do real.

Eu acredito que os juros não vão subir [nos EUA]. Mas também acredito que eles vão empurrar o ciclo de cortes para a frente.

JUROS

E no Brasil? O presidente do Banco Central, Roberto Campos, falou que a âncora fiscal menos transparente aumenta o custo da política monetária, sinalizando que os juros podem subir.

O governo Bolsonaro fez o maior déficit da história, inclusive por causa da pandemia da Covid-19. Mas mesmo tirando a pandemia, foi o estouro da boiada, furando o teto o tempo inteiro. No pior momento, a Selic chegou a 2%.

Eu não sou diretor do Banco Central. Mas, para mim, seria uma enorme surpresa, com a inflação de março em 0,16% [os juros subirem]. Estão pedindo o quê da economia brasileira?

Está sendo uma experiência extremamente complexa conviver com um presidente do Banco Central que você não escolheu.

Que outras medidas estão sendo pensadas para, diante das previsíveis dificuldades, se alcançar de fato as metas propostas?

Não posso te antecipar. São medidas ainda em estudo.

O Ministério da Fazenda enfrenta rounds. Cada seis meses é um round. No ano passado ganhamos o primeiro e o segundo rounds. Estamos agora no terceiro round, no Legislativo e no Judiciário.

Se a gente for ganhando, avançando, vai ser sempre por pontos. Não vai ter um nocaute.

26 de abril de 2024

Núcleo da Europa

Lógicas de integração.

Scott Lavery

Sidecar


Em maio de 2023, Olaf Scholz proclamou que uma grande "reindustrialização" estava a ocorrer na Alemanha. Falando no lançamento de uma nova fábrica de semicondutores da Infineon, no valor de 5 bilhões de dólares, o Chanceler vangloriou-se de que um em cada três microchips europeus seria agora "Made in Saxony". Um mês depois, a Intel confirmou que iria investir 33 bilhões de dólares em duas novas fábricas em Magdeburgo: o maior investimento direto estrangeiro na história da República Federal. Isto foi seguido por um anúncio de que a gigante taiwanesa de semicondutores TSMC assumiria uma participação acionária de 70% em uma nova fábrica de € 11 bilhões em Dresden. O chamado mercado livre não atraiu estas empresas para a "Saxônia do Silício": foram os impressionantes 20 bilhões de euros em subsídios do governo alemão. O Sumo Sacerdote da disciplina orçamental da Zona Euro pôs de lado os seus escritos sagrados, respondendo ao declínio do modelo de crescimento liderado pelas exportações, entrando em uma farra de subsídios.

A causa imediata da reviravolta foram as consequências inflacionárias da pandemia de Covid-19. Em outubro de 2021, quando a Europa começou a aliviar as restrições de bloqueio, o Diretor Geral da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA), Eric-Mark Huitema, emitiu um alerta. O setor automóvel europeu - a maior parte do qual está concentrado na Alemanha e no seu interior - sofreu perdas de produção de 100 bilhões de euros durante 2020, e o fornecimento global de semicondutores estava em colapso. À luz destas carências, Huitema apelou a um “plano estratégico pan-europeu para aumentar a produção de semicondutores na UE”, com o objetivo de minimizar a dependência da Europa dos mercados externos.

Do outro lado da Rue de Loi, em frente à sede da ACEA, a Comissão Europeia estava ocupada desenvolvendo os seus planos para apoiar a indústria europeia em dificuldades. Ursula von der Leyen sublinhou a necessidade de reforçar as capacidades de produção de chips da UE, a fim de restaurar a sua “soberania tecnológica” em um contexto de crescentes tensões geopolíticas. Isto culminou em um pacote de 43 bilhões de euros - a Lei dos Chips da UE de 2023 - que procurou reduzir as dependências externas da Europa, ao mesmo tempo que transferiu a produção de semicondutores para o Mercado Único. A característica mais importante da Lei não é o seu preço de destaque ou a ambição elevada de “duplicar a quota da Europa no mercado global de semicondutores até 2030”. O seu verdadeiro significado está ao nível dos Estados-membros. A Comissão flexibilizou as restrições aos auxílios estatais, permitindo aos governos nacionais injetar fundos públicos nos seus setores nacionais de semicondutores. A Direção-Geral da Concorrência - tradicionalmente a responsável pela aplicação do rigoroso regime anti-subsídios da UE - aprovou os novos acordos. Em vez de policiar zelosamente as práticas “anticoncorrenciais”, Bruxelas dará agora apoio ativo a um regime de subsídios em massa.

Isto marca uma ruptura decisiva com o passado recente. Nas décadas de 1990 e 2000, Washington e Bruxelas consideraram o desenvolvimento da indústria de semicondutores como um exemplo de que a globalização funcionou conforme pretendido. A cadeia de fornecimento de semicondutores é notoriamente complexa, incorporando múltiplas empresas através de inúmeras fronteiras nacionais. Os produtores no Reino Unido são especializados no software que sustenta a fabricação moderna de chips; o Vale do Silício domina o design de chips de alto valor agregado; Taiwan exerce um monopólio efetivo sobre a fabricação de chips de última geração; a fabricação back-end é terceirizada para países como Malásia e Vietnã. As elites ocidentais apostaram que a expansão das cadeias de abastecimento para Leste consolidaria a primazia das empresas norte-americanas e europeias, reduzindo custos proibitivos de arranque, permitindo-lhes concentrar-se na I&D e garantindo um fornecimento contínuo de componentes de baixo custo.

Mas o impulso das escolas de gestão que sustentou esta visão da globalização se desfez. Em vez de uma esfera de trocas de mercado contínuas, a cadeia de abastecimento de semicondutores tornou-se uma zona de rivalidade econômica e conflito geopolítico. A China, determinada a reduzir a sua dependência do Ocidente em termos de tecnologias de ponta, desenvolveu rapidamente as suas capacidades de fabricação doméstica. Em 2000, um ano antes da sua adesão à OMC, a China lançou a Shanghai Manufacturing International Corporation (SMIC), uma fábrica apoiada pelo Estado que visa desafiar o seu rival através do Estreito de Taiwan. Em 2014, sob os auspícios do programa "Made in China 2025", Pequim reservou 170 bilhões de dólares para apoiar o desenvolvimento dos “campeões nacionais” chineses - sendo o SMIC um dos principais beneficiários. Em 2019, a China representava 20% das exportações globais de semicondutores, um número que se prevê que continue aumentando nas décadas seguintes.

A administração Obama inicialmente se mostrou relaxada relativamente a esta rápida ascensão, mas alguns membros do establishment da segurança nacional rapidamente começaram a manifestar preocupação. Os semicondutores são uma tecnologia de “dupla utilização”, capaz de ser implantada tanto civil como militarmente, e o esforço da China para garantir a independência tecnológica também ameaçou minar um dos “pontos de estrangulamento” críticos que Washington mantinha sobre Pequim. Com a Lei de Reforma do Controle das Exportações de 2018, as autoridades dos EUA começaram a frustrar sistematicamente o avanço tecnológico da China. Trump colocou a Huawei na "entity list" dos EUA e Biden expandiu as restrições, obrigando os aliados dos EUA - incluindo a empresa holandesa ASML - a limitar a exportação de máquinas-ferramentas críticas e propriedade intelectual para empresas chinesas de alta tecnologia. Ao mesmo tempo, a administração Biden aumentou o apoio aos fabricantes nacionais de chips, canalizando 280 bilhões de dólares através da Lei CHIPS para a indústria dos EUA.

A escalada da guerra de chips entre os EUA e a China enviou ondas de choque através do núcleo industrial da Europa. Os controles às exportações, a escassez de chips e a concorrência feroz pelos subsídios ameaçaram minar a primazia tecnológica da indústria europeia. A principal vítima foi a Alemanha. Nos anos de expansão das décadas de 2000 e 2010, a Alemanha consolidou a sua posição como plataforma de produção globalizada. Mas os triunfos de ontem lançam uma sombra sobre a sua hoje debilitada economia liderada pelas exportações: dependência da energia russa, inflação persistente acima da média da Zona Euro, fraco poder de compra dos consumidores agravado por elevados custos de financiamento e um colapso na procura de exportações alemãs. "O risco de desglobalização é particularmente grave para as perspectivas de crescimento da Alemanha", observou Joachim Nagel, Presidente do Bundesbank. "A sua economia é muito mais aberta ao comércio do que a de muitos outros países."

Por esta razão, as crenças que dominaram a economia política da Europa ao longo da era neoliberal - multilateralismo, política de concorrência, reforma do lado da oferta - já não servirão. Um mundo de “interdependência armada”, como disseram os cientistas políticos Henry Farrell e Abraham Newman, valoriza a capacidade estratégica, o poder estatal e a escala. Para o capital europeu, o que é necessário é um novo quadro para a integração na UE, capaz de garantir a posição do bloco comercial no centro da economia mundial. Como afirmou uma declaração conjunta dos governos francês e alemão de 2019, a escolha é “unir as nossas forças ou permitir que a nossa base industrial e capacidade desapareçam gradualmente”.

A Lei dos Chips da UE, com a sua ambição de criar um quadro pan-europeu capaz de competir com os EUA e a China, é uma expressão desta lógica de “unificar ou morrer”. Mas aspira a um tipo peculiar de unificação. A UE, claro, ainda está altamente fragmentada. O seu orçamento continua representando apenas 1% do PIB global do bloco, o que significa que não há recursos suficientes à escala supranacional para apoiar uma política industrial expansiva à escala continental. Reunir recursos, com efeito, significa criar as condições para que os clusters industriais já existentes e os Estados com poder de fogo fiscal consolidem ainda mais as suas posições dominantes. A convergência em torno de uma política industrial comum da UE ameaça acelerar a divergência entre os Estados-Membros. Desde que a UE relaxou as suas restrições, a Alemanha foi responsável por impressionantes 53% do total de 672 bilhões de euros emitidos em auxílios estatais. A Alemanha também beneficiou de novos quadros pan-europeus concebidos para apoiar setores estratégicos, absorvendo metade dos auxílios estatais associados aos "Important Projects of Common European Interest" na microeletrônica.

Na sequência da crise da Zona Euro, surgiu uma clivagem entre o núcleo norte da Europa, liderado pelas exportações, e a sua periferia sul, liderada pela dívida. As elites tinham prometido que a integração europeia apoiaria a convergência ascendente no desempenho econômico entre os Estados-membros. Mas sob o euro, com as suas regras rigorosas em matéria de dívida e défice e a falta de mecanismos de transferência fiscal, tornou-se claro que a integração estava produzindo exatamente o oposto. A indústria alemã cresceu enquanto os estados devedores do sul da zona euro sofriam a penúria da austeridade permanente. Hoje, as condições que permitiram este surto de dinamismo liderado pelas exportações estão se desfazendo, com implicações deletérias para o capitalismo alemão. Mas a resposta da UE - uma nova política industrial pan-europeia, que permita um intervencionismo estatal mais musculado - representa uma tentativa de reforçar o núcleo industrial da Europa.

Os mitos que impulsionaram a globalização neoliberal foram agora destruídos pela batalha sobre os semicondutores e outros setores estratégicos. Regras que antes eram aplicadas de forma rígida estão sendo contornadas para permitir novas ondas de intervencionismo estatal; as “condições de concorrência equitativas” do Mercado Único estão sendo contornadas para reforçar frações dominantes do capital europeu. Entretanto, novos mitos estão sendo forjados: uma união cada vez mais integrada e autônoma, unida pelo desafio colocado pela China e pela Rússia. À medida que os decisores políticos da UE se mobilizam contra os seus rivais externos, as divisões internas do bloco - entre o núcleo industrial e a periferia subdesenvolvida - continuam aumentando.

Kurt Cobain, herói da classe trabalhadora

A raiva de classe informa a raiva encontrada nos álbuns de estúdio do Nirvana. Trinta anos após a morte de Kurt Cobain, devemos recordar a sua crítica ao mainstream corporativo - uma postura política moldada pela sua origem na classe trabalhadora.

Christopher J. Lee

Jacobin

Kurt Cobain do Nirvana durante a gravação do MTV Unplugged no Sony Studios em Nova York, 18 de novembro de 1993. (Frank Micelotta / Getty Images)

Em 1991, Kurt Cobain, o vocalista do Nirvana que morreu há trinta anos neste mês, escreveu uma carta à Rolling Stone, expressando o que pensava sobre o público e o pedigree político da revista. “Neste ponto da nossa carreira, antes do tratamento para queda de cabelo e crédito ruim, decidi que não tenho vontade de dar uma entrevista”, escreveu Cobain. "Não nos beneficiaríamos com uma entrevista porque o leitor médio da Rolling Stone é um ex-hippie de meia-idade que se tornou hippócrita, que abraça o passado como 'os dias de glória' e tem uma abordagem mais gentil, mais gentil e mais adulta em relação ao novo liberalismo. conservadorismo. O leitor médio da Rolling Stone sempre acumulou musgo."

A carta de Cobain nunca foi enviada. Ele e os outros membros do Nirvana - Krist Novoselic (baixo) e Dave Grohl (bateria) - eventualmente concordaram em aparecer na Rolling Stone, embora com Cobain famosamente vestindo uma camiseta estampada com "Corporate Magazines Still Suck", algo como "revistas corporativas ainda são uma porcaria", na capa. No entanto, esta carta, extraída da excelente biografia de Cobain escrita por Charles R. Cross, Heavier Than Heaven (2001), captura a amarga sensibilidade política do cantor e compositor - um espírito que muitas vezes foi minimizado pelos críticos e perdido entre os ouvintes da música dele.

A raiva de classe é, fundamentalmente, a raiva encontrada nos álbuns de estúdio do Nirvana. Desde a estreia, Bleach (1989), até o canto do cisne, In Utero (1993), o som e a atitude da música de Cobain estavam profundamente enraizados em sua origem de classe trabalhadora, centrada na cidade madeireira de Aberdeen, Washington, onde ele morava. durante a maior parte de sua vida abreviada. Suas letras raramente abordavam esse contexto diretamente. Mas a sua visão do mundo e a sua perspectiva crítica foram vitalmente moldadas pela economia madeireira, pela desigualdade de riqueza e pela subsequente falta de oportunidades para a classe média que ele experimentou ao crescer em uma pequena cidade no noroeste do Pacífico.

Grandes probabilidades

Cobain nasceu em fevereiro de 1967, filho de pai de 21 anos, que trabalhava como mecânico em uma estação da Chevron, e mãe de apenas dezenove. Conforme descrito por Cross, o dinheiro era um problema constante, tanto para a família Cobain como para os habitantes locais em geral. A economia madeireira de Aberdeen atingiu o seu pico no início da década de 1970 e muitos dos seus quase vinte mil residentes estavam optando por procurar emprego em outro local. As pressões financeiras sobrecarregaram os pais de Cobain, contribuindo em última análise para o seu divórcio - uma experiência que prejudicou Cobain emocionalmente quando era jovem e da qual ele nunca se recuperou totalmente.

As escolas públicas, especialmente as aulas de arte, ofereciam algum alívio, embora ele tenha frequentado dez lares diferentes, tanto de adoção quanto de família, enquanto estava no ensino médio. Cobain também passou pela situação de rua, rejeitando seus pais em favor de ficar sozinho. Ele mitologizou esse período de aproximadamente quatro meses na música "Something in the Way" do LP de sucesso do Nirvana, Nevermind (1991), na qual menciona dormir debaixo de uma ponte em Aberdeen - uma afirmação contestada por Novoselic, entre outros. Mesmo assim, Cobain dormia regularmente em prédios vazios e até mesmo na sala de espera do Hospital Comunitário de Grays Harbour, às vezes pedindo comida do refeitório para números de quartos inventados.

Cobain também se reconectou com seu interesse infantil pela música durante esse período. Notavelmente, Buzz Osborne do Melvins estava alguns anos à frente dele na escola e se tornou um mentor, apresentando-o ao punk rock. Depois de outro período de falta de moradia, durante o qual Cobain recebeu vale-refeição e trabalhou como zelador na escola que frequentou - um trabalho do qual mais tarde zombaria no vídeo do hit do Nirvana, "Smells Like Teen Spirit" - ele comprometeu-se mais plenamente com a música através do modelo fornecido por Osborne e ao conhecer Novoselic, que frequentou a escola secundária em Aberdeen. Embora o dinheiro continuasse sendo um problema constante, Cobain encontrou um propósito.

Os anos que se seguiram, aproximadamente de 1987 a 1991 - o ano em que Nevermind foi lançado - foram uma mistura de ambição estridente e grandes probabilidades. Cobain e Novoselic pagaram suas dívidas vivendo vários clichês de bandas de rock, seja tocando em festas de fraternidades, alternando entre bateristas ou dormindo no chão durante turnês regionais. A Sub Pop, a primeira gravadora do Nirvana, forneceu validação para Cobain, mas também enganou a banda devido às suas próprias dificuldades financeiras: pagou pelos custos de gravação, mas também ficou com os lucros.

A essa altura, o Noroeste do Pacífico estava rapidamente se estabelecendo como um centro para a cena musical alternativa. Bandas como Green River, Mudhoney e Soundgarden definiram o gênero grunge, enquanto bandas como Bikini Kill, Bratmobile e 7 Year Bitch deram início à cena riot grrrl. Cobain gravitou em torno de Olympia, sede do Evergreen State College, e de seu papel na promoção dessas tendências por meio de gravadoras como K Records e Kill Rock Stars. Ele namorou Tobi Vail, baterista do Bikini Kill, na época - um relacionamento que inspirou "Smells Like Teen Spirit" de um graffit improvisado de Kathleen Hanna, vocalista do Bikini Kill. Grohl, que já havia se juntado ao Nirvana naquela época, também estava namorando Hanna. No entanto, apesar destas associações estreitas, Cobain sentiu uma insegurança de classe ao conviver com esta multidão com formação universitária. Ele sentiu que tinha algo a provar a eles.

Nevermind, gravado em Los Angeles na primavera de 1991, foi essa prova. O Nirvana ganhou atenção com seu primeiro álbum Bleach, turnês constantes e o reconhecimento de bandas mais antigas como Sonic Youth. Cobain, Novoselic e Grohl assinaram com a DGC, uma marca da Geffen Records, uma grande gravadora. Apesar deste contrato lucrativo, Cobain regressou a Olympia depois de uma viagem a Los Angeles em julho, apenas para descobrir que tinha sido despejado do seu apartamento. Por várias semanas, ele morou em seu carro, como havia feito antes, apenas alguns meses antes de Nevermind ganhar disco de platina. Seu sucesso aparentemente resolveria as circunstâncias da vida de Cobain, financeiras e outras. Mas, no final das contas, isso não aconteceu.

Expressão e fuga

Não existe uma explicação única para o suicídio de Cobain em abril de 1994. Um papel fundamental foi, sem dúvida, desempenhado pelo seu grave vício em heroína, que amigos, familiares e a sua esposa, Courtney Love, tentaram combater. Mas as pressões da fama repentina e extrema e os traumas emocionais persistentes da infância também devem ser levados em conta. As ansiedades ao longo da vida, incluindo a ansiedade de classe, provavelmente também moldaram seu sentimento de limitação.

Em fevereiro de 1991, antes das sessões de gravação em Los Angeles, Cobain iniciou um ensaio autobiográfico inacabado, que é brevemente extraído do livro de Cross. "Olá, tenho 24 anos", começa Cobain. "Eu nasci como um homem branco, de classe média baixa, na costa do estado de Washington... Meus pais se divorciaram, então fui morar com meu pai em um estacionamento de trailers em uma comunidade madeireira ainda menor. Os amigos do meu pai o convenceram a ingressar no Columbia Record Club e logo os discos começaram a aparecer no meu trailer uma vez por semana, tornando uma coleção bastante grande."

A música proporcionou uma fuga para Cobain e, tal como os seus heróis, John Lennon e Paul McCartney, que vieram de origens semelhantes da classe trabalhadora, proporcionou um meio de expressão, incluindo uma raiva de classe. Cobain expressaria seu apreço pelo hip-hop na mesma linha, embora criticasse sua misoginia, com artistas de rap como Jay-Z mais tarde desmontando respeito. Na verdade, Cobain foi abertamente contra o sexismo, a homofobia e o racismo que encontrou na cena rock, especialmente por parte de outros músicos brancos do sexo masculino, incluindo figuras estimadas como Eddie Van Halen.

De diferentes maneiras, ao longo da sua vida, Cobain procurou trabalhar contra um sistema - artístico, social e econômico - que o tinha colocado em desvantagem desde o início. Ele também procurou criar um espaço para outras vozes, fossem bandas lideradas por mulheres como Shonen Knife ou artistas marginalizados como Daniel Johnston.

Trinta anos depois, é importante lembrar Cobain não apenas pela sua música ou pelo seu trágico falecimento, mas pela política progressista, baseada nas suas próprias experiências, que ele tentou articular e trazer para o primeiro plano durante a sua vida.

Colaborador

Christopher J. Lee atualmente leciona na Bard Prison Initiative. É editor-chefe da revista Safundi.

25 de abril de 2024

Regras do jogo

Irã versus Israel.

Eskandar Sadeghi-Boroujerdi



Em 17 de fevereiro de 1979, apenas seis dias após a Revolução Iraniana, Yasser Arafat fez uma visita não programada a Teerã, onde se dirigiu a uma audiência jubilosa e admiradora. "Em nome dos revolucionários e dos combatentes palestinos, prometo-me que, sob a liderança do grande Imam Khomeini, libertaremos juntos a pátria palestiniana... Estamos travando a mesma luta, a mesma revolução... Somos todos muçulmanos, somos todos revolucionários islâmicos". Com as câmaras de televisão apontadas para ele, Arafat entrou na embaixada israelense saqueada e hasteou a bandeira palestina da varanda diante de uma enorme multidão, que gritava "Arafat, Khomeini!" e "Viva a Palestina!" A gravação repercutiu em todo o mundo árabe. Por um momento, o Irã parecia estar inaugurando uma nova era de revolução anticolonial, na qual a libertação da Palestina estaria no centro das atenções. Hoje, é difícil compreender a abordagem da República Islâmica ao Estado israelense e à sua campanha assassina em Gaza sem primeiro voltarmos a este período.

Os laços que unem militantes palestinos e iranianos podem ser rastreados até o início da década de 1950. No entanto, não foi até o final dos anos 1960 que os revolucionários associados ao que eventualmente se tornaria os Guerrilheiros Fada'i do Povo Marxista-Leninista e os Mujahedin do Povo, bem como futuros oficiais do Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica, começaram a viajar para campos palestinos no Líbano para adquirir treinamento na arte da guerra de guerrilha. Em 1970, outro grupo de jovens idealistas iranianos, que mais tarde ficou conhecido como Grupo Palestina, partiu em sua própria peregrinação para os campos com o objetivo de eventualmente lançar uma guerra nacional de libertação em sua pátria. Foram capturados pelo SAVAK, o temido aparato de segurança do Xá, e levados perante um tribunal militar, onde seu caso os trouxe fama internacional - chegando às páginas de Les Temps modernes e inspirando a geração de ativistas que finalmente derrubou o regime no final da década.

A causa da libertação palestina foi uma parte constituinte dos movimentos políticos e intelectuais - desde os marxistas-leninistas até os islâmicos e populistas religiosos - que moldaram o processo revolucionário do Irã durante os longos anos 1970. As massas palestinas e iranianas viam-se como tendo um inimigo em comum. Não apenas o Xá e Israel eram apoiados pelo poder imperial dos Estados Unidos; o Mossad também era amplamente visto como tendo apoiado e treinado o SAVAK, tornando-o indiretamente responsável pela morte de inúmeros revolucionários iranianos. Quatro décadas depois, os sinais dessa herança ainda são visíveis. O Irã continua a celebrar o Dia de Al-Quds - uma ocasião anual "para os fracos e oprimidos confrontarem os poderes arrogantes" - e muitas das ruas, praças e cinemas de Teerã têm o nome da Palestina, servindo como monumentos a esse período de solidariedade terceiromundista e pan-islâmica. "Morte a Israel" é entoado em sermões de sexta-feira sancionados oficialmente, e o aiatolá Ali Khamenei ainda usa o keffiyeh ao redor do pescoço durante aparições públicas. No entanto, muito mudou desde fevereiro de 1979. Os dias de fervor revolucionário e possibilidade passaram, e este mundo histórico tornou-se uma sombra do que era antes.

Foi só na guerra com o Iraque, de 1980 a 1988, que o movimento transnacional de resistência anticolonial do Irã pareceu se transformar - gradual e desigualmente - em um projeto de Estado islâmico despojado do pluralismo ideológico que definiu as décadas anteriores. Houve uma série de razões para esta mudança: a expansão da presença naval americana no Golfo Pérsico, que começou sob Carter e se intensificou sob Reagan; sanções e embargos de armas impostos pelos EUA; o apoio econômico, diplomático, militar e de inteligência do Ocidente a Saddam Hussein; além das tentativas da República Islâmica de estabelecer um monopólio interno sobre a violência, implicando uma forte repressão contra a oposição interna. Tudo isto criou um Estado que estava internacionalmente isolado e genuinamente em apuros, além de ser propenso a ataques de extrema paranoia e autoritarismo em nome da segurança nacional. A guerra Irã-Iraque infligiu danos imensos a ambas as partes e atingiu o seu desfecho ignóbil quando proclamações triunfalistas como "a libertação de Jerusalém passa por Karbala" deram lugar à aceitação relutante da Resolução 598 do Conselho de Segurança.

O conflito ensinou à liderança iraniana que tentar exportar a revolução sob a sua própria égide faria com que os seus muitos inimigos unissem forças contra eles, e que o Estado não poderia garantir a sua segurança apenas através de meios militares convencionais. Teria forçosamente de prosseguir uma estratégia assimétrica - um processo que já tinha começado durante a década de 1980. Dado que a República Islâmica estava agora fortemente sancionada e embargada, e não tinha nem o desejo nem a capacidade de comprar caças F-14 Tomcat ao seu antigo patrono imperial, começou a investir recursos no seu programa de mísseis balísticos e outras capacidades assimétricas. Uma parte ainda mais importante desta estratégia, que emergiu da dialética da revolução, da guerra, da consolidação do regime e do cerco imperial, foi o cultivo de relações orgânicas profundas com grupos políticos e elementos populares que procuravam resistir à dominação dos EUA e de Israel.

Entre eles estava o Hezbollah, agora a força paramilitar não estatal mais poderosa do mundo, que emergiu da invasão israelense do Líbano em 1982, enquanto a República Islâmica e os seus Guardas Revolucionários respondiam aos apelos de apoio de clérigos ativistas e militantes no terreno. Duas décadas mais tarde, a invasão do Iraque liderada pelos EUA e a derrubada de Saddam Hussein permitiram que o Irã se insinuasse no país, forjando laços com grupos politicamente alinhados que desejavam ver as forças militares ocidentais expulsas. Este processo foi consolidado em 2014, quando o Estado Islâmico derrotou o exército iraquiano em Mossul, levando à formação de Unidades de Mobilização Popular a mando do Grande Aiatolá Ali al-Sistani, que obteve o apoio do Irã na luta contra os insurgentes. Foi assim que o "Eixo da Resistência" tomou forma: através de uma série de alianças contingentes, muitas vezes possibilitadas pelo alcance imperial e pela oposição que inevitavelmente suscitou. Os aparelhos estatais do Irã se revelaram notavelmente hábeis na exploração de vazios políticos e de segurança para trabalhar com atores que partilham um amplo conjunto de objetivos, como ilustrado pelos "Iran Cables" do Intercept.

O Irã - ou, mais especificamente, a Força Quds do IRGC - não "controla" simplesmente estes atores estrangeiros, apesar do que dizem os meios de comunicação ocidentais. A extensão da sua influência varia dependendo do contexto e da organização em questão. A sua relação com o Hezbollah é profundamente diferente da sua relação com o Ansarullah do Iêmen ou com o Kata'ib Sayyid al-Shuhada do Iraque, e os seus laços com o Hamas são ainda mais complexos (os dois tomaram lados opostos na Guerra Civil Síria, colocando uma pressão intensa sobre os seus relações). Tais grupos têm os seus próprios motivos para resistir à penetração imperial dos EUA, à ocupação israelense ou à dominação saudita. Eles estão muito longe de serem meros "representantes" de Teerã.

A visão do Líder Supremo para o Oriente Médio, que o IRGC está incumbido de concretizar, envolve acabar com a presença militar dos EUA e desmantelar o Estado-guarnição colonial de povoamento em Israel. O apoio financeiro e militar do Irã aos seus aliados é uma parte essencial desta estratégia. No entanto, a República Islâmica deve caminhar em uma linha tênue entre a prossecução destes objetivos políticos e evitar uma guerra regional devastadora, na qual os EUA quase certamente assumiriam um papel de liderança. Isto requer uma abordagem racional e pragmática. Significa manter a "profundidade estratégica" com os aliados iranianos no estrangeiro, evitando ao mesmo tempo reações adversas a nível interno. Este curso de ação é bem recebido por alguns círculos eleitorais nestes países estrangeiros e amargamente ressentido por outros.

Neste momento, a chamada “guerra sombra” entre o Irã e Israel já dura há décadas, travada principalmente por meios indiretos. Antes da Revolução de 1979, os dois países tinham uma longa história de cooperação em matéria de inteligência, militar e econômica. Na sua esteira, Israel ainda esperava poder consertar as barreiras com o seu antigo aliado como parte da festejada “doutrina da periferia” de Ben-Gurion, que visava estabelecer laços estratégicos com nações não árabes, incluindo o Irã, a Turquia e a Etiópia. No entanto, depois dos Acordos de Oslo, os políticos israelenses, desde Shimon Peres a Benjamin Netanyahu, adotaram cada vez mais o discurso da “Iranofobia” no meio de um pânico moral sobre a crescente influência do país. A partir de então, Israel fez o seu melhor para alimentar a histeria sobre o Irão, de modo a justificar o seu projeto em curso de ocupação militar e colonização. Poderíamos dizer que se o Irã não existisse, Israel teria de inventá-lo como uma bête noire politicamente útil. Isto não significa negar que a República Islâmica representava um problema genuíno para um regime expansionista israelense que procurava a hegemonia regional. Isso aconteceu. Mas os cínicos políticos israelenses, entre os quais Netanyahu permanece incomparável, têm explorado e exagerado rotineiramente esse problema para promover os seus objetivos em casa e nos territórios ocupados.

A relação Irã-Israel é aquela em que ambos os lados têm uma compreensão firme das “regras do jogo” não escritas. O modus operandi de Israel tem sido assassinar cientistas nucleares iranianos, IRGC e pessoal militar aliado, sabotar instalações nucleares e outros alvos industriais, montar ataques de drones em diversas instalações militares e lançar surtidas contra alegados alvos do IRGC na Síria. O Irã, por seu lado, continuou apoiando os seus aliados ao longo das fronteiras de Israel, na esperança de dissuadi-lo de atacar os estados vizinhos e minar a sua determinação de prosseguir o seu empreendimento colonial na Palestina.

Nos seis meses desde a inundação de Al-Aqsa, as ações do Irã têm sido largamente consistentes com esta doutrina de segurança. Imediatamente após o ataque, Khamenei sublinhou que o Irã não tinha conhecimento prévio nem qualquer participação no seu planeamento: "Claro, nós defendemos a Palestina e sua luta... mas aqueles que dizem que o trabalho dos palestinos vem de não-palestinos não conhecem a nação palestina e a subestimam... É aí que está o erro deles e onde eles calculam mal." Esta rara intervenção pública refletiu o seu desejo de impedir uma tentativa do Estado israelense de atribuir a responsabilidade ao Irã e, assim, desencadear uma guerra mais ampla. Tanto a liderança iraniana como o Hezbollah têm sido cautelosos em cair nesta armadilha, que poderia desviar a atenção da catástrofe que se desenrola em Gaza e arrastá-los para um confronto com os EUA. Em vez disso, estão jogando um jogo muito mais longo: manter um equilíbrio de dissuasão com Israel, mas evitando qualquer ação que possa causar uma conflagração regional.

A contenção do Irã é parcialmente determinada pela sua situação política interna, que permanece frágil e repleta de contradições. Instalou-se um sentimento generalizado de mal-estar, no meio do declínio dos padrões de vida, dos escândalos de corrupção e dos ataques de repressão brutal contra a agitação social - que se manifestaram de forma dramática durante as revoltas lideradas por mulheres no Outono de 2022. A nação foi dominada pela inércia política, com a incerteza sobre o sucessor de Khamenei alimentando lutas internas entre as elites e disputas por posição. Para muitos iranianos, parece que a “ameaça à segurança” mais grave provém do tumulto social e político dentro das fronteiras do país, e não fora delas. Dada esta instabilidade, tem havido um intenso debate público sobre os custos de entrar em conflito com as potências imperiais e se o país pode suportá-los. Além disso, embora o povo iraniano esteja horrorizado com os crimes de Israel, as tentativas do Estado de transformar o anti-sionismo em uma componente da sua própria identidade islâmica geraram um ressentimento considerável em alguns setores. Isto é talvez mais evidente entre uma geração mais jovem que se irrita com as políticas culturais e políticas restritivas do governo e com o aparelho de vigilância invasivo.

No entanto, Israel tem testando os limites da relutância do Irã em se envolver em hostilidades diretas. O seu recente ataque aéreo ao complexo diplomático do Irã em Damasco, matando vários oficiais de alta patente da Força Quds e violando normas diplomáticas básicas, foi o tipo de escalada que Teerã não podia ignorar. Tal como foi forçado a responder ao assassinato de Qassem Soleimani em janeiro de 2020, foi obrigado a fazer o mesmo este mês, nem que seja apenas para restabelecer os parâmetros básicos da sua doutrina de dissuasão. A liderança lançou a Operação True Promise em 14 de abril, marcando o primeiro ataque militar iraniano a Israel a partir do seu próprio território: um ataque complexo e de múltiplas camadas, incluindo mais de trezentos drones, mísseis balísticos e de cruzeiro produzidos internamente, que a mídia estatal iraniana mostrou sobrevoando Karbala, no Iraque, e a Mesquita Al-Aqsa, em Jerusalém. O Ir avisou antecipadamente sobre a operação aos seus vizinhos e aos americanos. Com o apoio dos EUA, Reino Unido, França e Jordânia, as autoridades israelenses afirmaram ter abatido 99% de todos os projéteis que se aproximavam, embora esse número tenha sido posteriormente revisto em baixa.

Felizmente, este confronto sem precedentes teve uma “rampa de saída” para todas as partes envolvidas. Nem um único cidadão israelense foi morto, reduzindo a necessidade de uma grande retaliação por parte de Tel Aviv, mas a República Islâmica ainda foi capaz de afirmar que tinha reafirmado as suas linhas vermelhas e restaurado a dissuasão. Antes mesmo da operação ter terminado, a Missão Permanente do Irã junto das Nações Unidas declarou que “o assunto pode ser considerado concluído”. O chefe das forças armadas iranianas, major-general Mohammad Baqeri, afirmou que “as operações terminaram e não temos intenção de continua-las”. No entanto, ele também insistiu que se Israel decidisse retaliar, o Irã lançaria um ataque muito maior sem dar aviso prévio.

Embora o ataque iraniano se destinasse principalmente a reafirmar as linhas de combate anteriores, o fato de cerca de nove dos trinta mísseis balísticos (os números exatos permanecem contestados) terem sido capazes de penetrar nas defesas da Cúpula de Ferro de Israel e atingir diretamente duas bases militares, incluindo a base aérea de Nevatim - a mesma a partir da qual foi lançado o ataque ao consulado de Damasco - irá certamente afetar o cálculo da liderança israelense no futuro. A extensão do contra-ataque de Israel em 19 de abril, perto de uma importante base aérea na cidade de Isfahan, permanece obscura, mas foi obviamente calculada para evitar provocar novas retaliações por parte do Irã. Embora seja pouco provável que a recente troca de tiros conduza a uma guerra total, pôs ainda assim em evidência a vulnerabilidade de Israel em um momento político decisivo.

Tal como a Operação Al-Aqsa Flood demonstrou a tolice de ignorar a situação atual de milhões de palestinos que vivem sob bloqueio, ocupação e apartheid, a Operação True Promise estabeleceu um novo precedente que Israel e os seus aliados irão ignorar por sua conta e risco. Já sancionado ao máximo pelas potências ocidentais, o Irã mostrou que está pronto para retaliar a partir do seu território se Israel decidir escalar imprudentemente os combates e derrubar as regras de combate estabelecidas. A questão é se o Estado israelense aprenderá a lição e sairá do abismo. Embora nesta ocasião Biden tenha recusado apoiar uma resposta enérgica de Israel, este pode não ser o caso no futuro - ou mesmo, sob uma futura administração. Enquanto Israel continuar a sua guerra total contra os palestinos, o espectro de um conflito regional mais amplo continuará sendo uma possibilidade assustadoramente real.

Milei transformou a economia argentina numa panela de pressão

Produzido quase inteiramente pela inflação, superávit fiscal agrava a crise social

André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de S.Paulo

A inflação argentina desacelerou de 25%, em dezembro, para 11%, em março, mas acumula 276% em 12 meses. Analistas apontaram o primeiro superávit fiscal em 15 anos (0,2% do PIB no primeiro trimestre de 2024) como causa da perda de ritmo da inflação.

É claramente uma falácia. Com gastos públicos congelados e remarcação de preços liberada (que produzem mais arrecadação ao governo), a inflação produz quase sozinha esse resultado positivo (o efeito Olivera-Tanzi às avessas).

Segundo dados oficiais, entre os meses de março de 2023 e de 2024, a arrecadação cresceu 254%, enquanto as despesas avançaram 177%. Os investimentos mergulharam 48% no período em termos nominais. A calamidade fica nítida se descontarmos a inflação de 300%.

A economia argentina é uma panela de pressão. A contração do PIB é prevista em 2,8%, e a pobreza já atinge 57% da população. Salários, pensões e gastos sociais correm muito atrás dos preços de energia, transportes, alimentos e itens de saúde. Neste primeiro trimestre, o consumo recuou 10% e derrubou as vendas no varejo.

Manifestação contra medidas econômicas do governo em janeiro, em Buenos Aires - Martín Zabala/Xinhua

O sincericídio dos preços e a retórica incendiária do presidente elevam a temperatura da sociedade. A válvula de escape é a frágil e insustentável combinação de minidesvalorizações cambiais e uma taxa real de juros negativa. Vejamos.

A taxa de câmbio argentina é fixada pelo banco central, o qual vem aplicando uma desvalorização rastejante ("crawling peg") do câmbio oficial —hoje, em 820 pesos por dólar— para reduzir a diferença com a taxa do mercado paralelo (1.150 pesos/US$). Quanto maior for essa diferença, mais dólares ficam fora das reservas oficiais.

De olho no início da safra agrícola, agora em abril, o ministro da Economia, Luis Caputo, vem depreciando a moeda ao ritmo de 2% a cada mês para incentivar os exportadores a repatriar os dólares obtidos com as vendas no exterior. Com isso, o aumento das reservas em moeda forte do país diminui o risco de crise cambial.

Todavia, a cada rodada de depreciação cambial administrada, os preços dos bens importados se elevam e disseminam a inflação para o restante da economia. A indexação formal e informal de preços e salários aumenta a pressão por novas rodadas de elevação de preços, realimentando a inflação. Lembra muito o Brasil pré-Plano Real.

Com isso, Milei ganha tempo para que a inflação em queda reúna força política para aprovar um plano de estabilização mais sólido. Contornando a resistência parlamentar em casa, Milei seduziu a elite financeira global e obteve um voto de confiança.

Sem o controle da taxa de câmbio, seria impraticável a redução da taxa de juros pelo banco central, de 133% em dezembro para 70% em abril, que busca contrair o pagamento de juros da dívida pública; ao reduzir a pressão fiscal (Faria Lima, fica a dica!), cai o financiamento por meio da emissão monetária.

Por outro lado, a taxa de juros real negativa afugenta os dólares do país e bloqueia a queda da moeda no mercado paralelo. Os capitais retornarão quando Milei convencer a comunidade internacional de que a inflação esperada cairá muito abaixo de 70% (a taxa básica de juros), produzindo ganhos financeiros que compensem o risco embutido nos títulos do país.

A celebração do superávit fiscal busca construir essa confiança para obter mais US$ 15 bilhões do FMI. Contudo, a queda da inflação ameaça os superávits fiscais, enquanto se acumulam as pressões pela recomposição dos gastos públicos.

Sem aliviar a escassez de dólares, a austeridade aguda agravará a crise social sem abater a inflação. A Praça de Maio ficará pequena para tamanha insatisfação.

Filmando a história da revolução de Amílcar Cabral

Há meio século, Amílcar Cabral pediu a um grupo de jovens cineastas da Guiné-Bissau que levassem a luta pela independência do seu país para a telona. Eles agora estão concluindo o projeto como uma homenagem a um dos maiores revolucionários da África.

Uma entrevista de
Flora Gomes

Jacobin

Amílcar Cabral em 1971. (Lehtikuva/AFP via Getty Images)

Entrevista de
Michael Galant

No início da década de 1970, o líder da libertação africana, Amílcar Cabral, confiou a um grupo de quatro jovens cineastas da Guiné-Bissau a documentação da guerra do país pela independência contra o regime fascista em Portugal. O movimento de Cabral deu um contributo vital para a luta contra a ditadura portuguesa que culminou na Revolução dos Cravos há hoje cinquenta anos.

Antes que pudessem terminar o filme, porém, Cabral foi assassinado. Flora Gomes e Sana Na N'Hada são os dois últimos membros sobreviventes do grupo original, e agora ambos cineastas lendários por direito próprio. Eles agora estão arrecadando fundos esta semana através do Kickstarter para finalmente terminar seu documentário e cumprir sua promessa ao falecido revolucionário.

Michael Galant da Internacional Progressista (PI), com a facilitação do escritor e investigador Ricci Shryock, falou com Gomes sobre este último projeto, a sua experiência na luta de libertação da Guiné-Bissau e a relação entre cinema e revolução. Esta entrevista foi republicada do Internationalist, o boletim informativo do PI.

MICHAEL GALANT

Vamos começar do início. Sua trajetória no cinema fala muito da importância que os movimentos revolucionários atribuíam ao cinema da época. Como você se tornou cineasta?

FLORA GOMES

Fui estudante do ensino secundário na Escola Piloto [uma escola fundada pelo Partido Africano para a Independência da Guinê e Cabo Verde (PAIGC) para educar os membros do partido e os seus filhos]. Amílcar Cabral enviou-nos para Cuba com um grupo de jovens para estudar. Cada um tinha o seu destino, mas foi Cabral quem disse: "Você vai fazer medicina". "Você vai fazer agronomia".

E entre nós ele escolheu quatro pessoas que iriam fazer filmes. Ele nos disse claramente: “Vocês vão estudar cinema. Você vai estudar cinema aqui em Cuba para registrar a proclamação da independência. Quero que seja um filho do meu país a registar este ato histórico, a proclamação do Estado.” Foi em 1967 que fui para Cuba. Voltei em 1972. [A proclamação aconteceria em 1973.]

MICHAEL GALANT

Então foi o próprio Cabral quem lhe encarregou de documentar a luta pela independência. O que você pode nos contar sobre esse tempo - sobre a guerra de libertação, Cabral, e o que veio a seguir?

FLORA GOMES

Sim, era o Cabral, mas o Cabral não queria que falássemos dele. Ele sempre falava no plural. Ele sempre dizia: “nós”, “nosso povo”, “nosso hospital”, “nossa escola”. Isso significa que sim, ele estava lá, mas foi levado pela dinâmica mais ampla. Para ele, tratava-se da luta de libertação.

Imagino que quando ele nos pediu para fazer isto, foi para ver e registar o sacrifício do povo da Guiné-Bissau e do povo de Cabo Verde. Foi isso que ele nos pediu para gravar. Porque a luta foi muito violenta. Como qualquer luta de libertação, teve o seu lado muito cruel.

Na zona libertada vimos crianças que estavam na escola, no carro escolar, que tiveram que fugir dos aviões que vieram bombardear. Tinha enfermeiros que estavam no trabalho, nos hospitais de campanha, que estavam lá cuidando, mas tinham que estar sempre prontos para fugir. E foi isso que Cabral quis mostrar. Queria mostrar ao mundo que fomos nós, os guineenses e os cabo-verdianos, que libertamos o nosso país.

É verdade que tivemos o apoio dos cubanos nessa altura, da União Soviética, da Suécia e de outros países amigos, para não falar da República da Guiné-Conacri, do Senegal, da Gâmbia, do Mali - todos estes países nos deram o que tinham. Cabral queria que lembrássemos disso. Ele sempre disse: nunca devemos esquecer as pessoas que nos apoiaram durante esta guerra.

Acho que, de um modo geral, era isso que Cabral queria. Se falamos do próprio Cabral é porque ele foi o líder — foi o homem que liderou uma inovação na forma de pensar de uma geração, uma geração à qual pertenço.

MICHAEL GALANT

E depois da guerra?

FLORA GOMES

Como sabem, perdemos Cabral naquela marcha pela libertação. Perdemos Cabral nessa jornada. O que isso significa? Significa que perdemos Cabral justamente quando mais precisávamos dele, porque estava quase na data da proclamação unilateral do Estado.

Assassinaram Cabral apenas uma semana ou alguns dias depois de ele ter enviado uma mensagem aos combatentes, às pessoas do mundo que nos ajudavam nesta luta, dizendo que em breve faríamos parte dos estados livres da África. Foi assassinado a 20 de janeiro de 1973. E depois, a 24 de setembro do mesmo ano, houve aquela histórica reunião da Assembleia que proclamou o Estado da Guiné-Bissau.

É preciso dizer que sofremos com a perda do Cabral, porque ninguém mais poderia substituí-lo. Ele era único. Doeu-nos tanto que ele tivesse morrido, depois da independência. E alguns anos depois, na década de 1980, houve o golpe de Estado na Guiné-Bissau, liderado por Nino [João Bernardo “Nino” Vieira].

MICHAEL GALANT

Desde então, você e Sana se tornaram lendas do cinema africano e do cinema em geral, com obras que muitas vezes cobrem a luta anticolonial - incluindo o seu último filme, para o qual está agora angariando fundos. Eis a grande questão: como você concebe a relação entre cinema e política? Como você aborda a produção de filmes com o objetivo de avançar na luta?

FLORA GOMES

É verdade que para fazer filmes são necessários meios para fazê-lo. Cinema é muito caro. Mas não queremos dinheiro apenas para fazer um filme. Queremos dinheiro para contar uma história específica.

Não creio que haja dúvidas de que hoje temos experiência para contar a história que queremos contar. Mas não acho que seja realmente uma lenda do cinema. Eu apenas me considero alguém que quer pintar um quadro, mas não tem pincel. Não estamos interessados ​​em dinheiro. O que nos interessa é a história que vamos contar - como vai ficar o quadro, como vai ser compreendido.

Pessoalmente, sou um produto da luta e da política. Tudo o que digo hoje é o que vivi. Pessoalmente, a política me moldou. A vida é política. Você não pode separar essas duas coisas. O cinema é importante porque as imagens são mais livres e você pode interpretá-las como quiser.

MICHAEL GALANT

Porque agora? Olhando para a Guiné-Bissau, para a África Ocidental e, na verdade, para o mundo inteiro, o que temos hoje a aprender com este filme?

FLORA GOMES

Acho que este filme tem um objetivo simples, que é homenagear as pessoas, começando pelo Cabral e pelas pessoas com quem Cabral criou uma história inesquecível na África. É muito importante que hoje nos agarremos a esta história — que falemos sobre ela — porque há muita desinformação circulando nos nossos meios de comunicação, nas redes sociais.

Penso que gerações de africanos, jovens, precisam compreender que este país não teve a sorte de alcançar a independência como os senegaleses, sem uma luta [violenta]. Tivemos uma luta que durou onze anos, na qual perdemos amigos, familiares, colegas, conhecidos. E não podemos deixar essa memória desaparecer. Cabral completará cem anos em breve, em setembro. Queríamos registar algo que permanecesse na memória da juventude da África — e (por que não) da juventude do mundo.

No que diz respeito às lições a aprender, penso que há uma coisa óbvia: Cabral imaginou um novo papel para as mulheres na luta. Isso é algo sobre o qual ninguém estava falando. Falamos hoje sobre o papel da mulher, mas de onde vem essa história?

A possibilidade de reservar às mulheres um determinado lugar em um governo ou numa organização — Cabral teve essa ideia. Paridade. Cabral fez isso na década de 1960. Houve uma organização de partidos — ele disse: “Deve, obrigatoriamente, haver um número mínimo de mulheres em cada comissão”.

Outra coisa que Cabral ensinou, na minha opinião, é não ter medo. Porque as pessoas viviam com muitos medos — de marabus, de espíritos, coisas assim. Cabral sempre acreditou que o homem deveria ser livre no seu pensamento.

Ele não tinha medo de que alguém pudesse atirar nele - da Kalashnikov, do exército. Ele nos ensinou a pensar com a própria cabeça e a andar com seus próprios pés. Essa é a ideia de Cabral. Você não deve esperar que as pessoas lhe digam o que você vai fazer. Foi assim que proclamamos a independência como o fizemos.

No que diz respeito à luta contra o colonialismo, Cabral foi muito claro sobre a palavra “colonialismo”. Disse: “Estamos lutando contra o colonialismo, contra o fascismo português. Não estamos lutando contra o povo português.” E penso que foi muito inteligente da parte dele marcar esta diferença, dizer: “Estamos lutando porque o povo português também está sofrendo como nós”.

Não eram apenas os povos guineense e cabo-verdiano que iriam combater. Disse que a luta contra o fascismo era a luta do povo português. Estávamos lutando contra o colonialismo. Nesta luta, nos encontrávamos ao lado do povo português.

Era muito importante não confundir os portugueses com o sistema colonial. Também era importante não pensar que lutávamos contra os portugueses porque eles eram brancos. Ele disse que também estávamos lutando contra os negros africanos que queriam substituir os colonizadores brancos.

Estas são coisas que penso que valem a pena para os jovens adotarem e cultivarem. Cabral cultivou uma prática de levar todos os dias, de respeitar, de valorizar a cultura. Ele foi muito profundo, Cabral. Ele era como qualquer outro ser humano - gostava de música, gostava de estar com mulheres e tudo mais. Ele não era um deus. Mas estou completamente interessado em seus pensamentos. Por isso convido todos os jovens a ler e ouvir Cabral.

Colaboradores

Flora Gomes é uma cineasta guineense cujo trabalho recebeu vários prêmios.

Michael Galant ajuda a liderar o Subcomitê de Economia e Comércio do Comité Internacional da DSA e é membro do secretariado da Internacional Progressista.

Como os revolucionários de Portugal derrubaram a ditadura

Em The Carnation Revolution, Alex Fernandes faz um relato do movimento que derrubou décadas de ditadura, escrito com o talento e a sensibilidade dramática de um thriller de espionagem.

Morgan Jones

Jacobin

Soldados do Movimento das Forças Armadas são recebidos pela multidão nas ruas de Lisboa, dois dias depois do golpe de 25 de abril de 1974 que derrubou a ditadura do Estado Novo. (Henri Bureau/Sygma/Corbis/VCG via Getty Images)

Resenha de The Carnation Revolution de Alex Fernandes (Simon & Schuster, 2024)

Em Brighton, no início de abril de 1974, o ABBA ganhou o Eurovision para a Suécia. Seria a primeira das sete vitórias do país até o momento. A entrada de Portugal, "E depois do adeus", cantada por Paulo de Carvalho, empatou em último lugar. Apesar do fraco desempenho, a canção teve grande rotação nas rádios portuguesas nas semanas seguintes ao concurso. A sua natureza inócua e a disponibilidade imediata em fita na estação de rádio EAL de Lisboa levaram o quase sucesso de Carvalho a ser selecionado por um grupo de jovens oficiais militares como o sinal de que o seu planejado golpe de estado estava em curso.

De Carvalho entraria nos livros de história cantando em um palco muito maior que o da Eurovision. Vinte e quatro horas depois, no dia 25 de abril, Portugal estaria livre de quarenta e oito anos de ditadura. A maioria das pessoas provavelmente está mais familiarizada com “Waterloo” do que com “E depois do adeus”, mas como Alex Fernandes nos diz em sua nova história do golpe de 1974, “o ABBA nunca iniciou uma revolução”.

Lançado a tempo de assinalar o quinquagésimo aniversário da derrubada da ditadura, The Carnation Revolution parece mais um thriller do que um livro de história, conduzindo o leitor através da conspiração de jovens capitães que deram origem a um Portugal democrático.

Em 1974, Marcelo Caetano liderou Portugal, tendo substituído António Salazar como primeiro-ministro seis anos antes. Apesar de algumas esperanças de uma “Primavera Marcelina”, a mudança de pessoal no topo não afrouxou o domínio do Estado Novo, ou “Estado Novo”, o regime intensamente repressivo que vigorava desde 1926. Sob o regime, apenas um uma pequena fração da população - a elite rica e conservadora - tinha o direito de voto, tornando as eleições uma farsa. Uma extensa força policial secreta, a PIDE, manteve um olhar sempre atento aos dissidentes. Os opositores do regime - muitos comunistas, mas não todos - encontravam-se frequentemente na famosa prisão do Aljube, em Lisboa, sujeitos a privação de sono, espancamentos e outras formas de tortura, na sua maioria retiradas do manual da CIA.

Na década de 1950, apesar das densas redes de informadores do governo, das ameaças de prisão e de um sistema político concebido para fazer com que a remoção de Salazar parecesse “tão absurda como a remoção da própria cabeça”, o descontentamento crescia dentro do Estado Novo. Em 1958, a candidatura do General Humberto Delgado à presidência atraiu o apoio popular nas ruas antes de ser esmagada por fraude eleitoral nas urnas. Delgado exilou-se no Brasil, e o fracasso da sua tentativa honesta de desafiar a ditadura estimulou uma série de desafios mais drásticos ao regime na década de 1960, entre os quais se destaca o sequestro do navio de cruzeiro Santa Maria, completo com quase mil passageiros e tripulantes, por combatentes instruídos pelo opositor ao regime Henrique Galvão.

Apesar dos sequestros dramáticos e das fugas improváveis ​​da década de 1960 e início da década de 1970, muitos dos quais o livro de Fernandes expõe com detalhes de roer as unhas, o apelo que acabaria por derrubar o regime viria de dentro de casa: a classe de oficiais do exército português.

Tendo perdido a sua colônia indiana em 1961, ao longo das décadas de 1960 e 1970 o país esteve envolvido em guerras coloniais opressivas em várias frentes na África. Portugal tentou suprimir os movimentos de independência em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau e manter as colônias que eram fundamentais para a auto-imagem do regime. As guerras iam mal e um número cada vez maior era recrutado: em 1973, diz-nos Fernandes, “uma maioria significativa da população masculina de Portugal em idade recrutável [estava] lutando no exterior”.

Os jovens oficiais enviados para essas frentes retornaram experientes em combate, muitas vezes radicalizados politicamente e sem fé no comando que os enviou para lá. A propaganda de mais um empurrão do regime não conseguiu enganar aqueles que realmente lutavam nas guerras, e a relação entre o Estado e os seus oficiais tornou-se cada vez mais tensa. Um grupo de oficiais, inicialmente na sua maioria jovens capitães, começou a se reunir no final de 1973. A princípio, sem intenção revolucionária concreta, a conspiração acabou por chegar à conclusão de que, nas palavras de um oficial, “o governo só sairá com tiros, e os únicos capazes de fazê-los partir somos nós.”

O livro de Fernandes parece o roteiro de uma manobra de espionagem dos anos 70, ou a base de uma - talvez não seja surpreendente, dada a experiência do autor trabalhando no teatro. Depois de passar alguns capítulos mais lentos estabelecendo o contexto que levou os membros do Movimento das Forças Armadas (MFA) a contemplar a revolta armada, ele entra em ação para descrever como, exatamente, os oficiais conseguiram se encontrar, planejar e executar a derrubada do ditadura.

Com a limitada tecnologia de comunicação do início da década de 1970 e a necessidade de sigilo, as descrições de como os dissidentes conspiraram contra o regime - cartas fúteis com assinaturas significativamente sublinhadas, mensagens enigmáticas nas páginas de futebol do jornal - têm uma estranha sensação analógica.

O plano de operações para o dia do golpe foi rabiscado à mão em vinte e seis páginas. Seções inteiras do livro parecem estar acontecendo em um carro cheio de fumaça à noite, e nenhuma oportunidade de tensionar é perdida: conspiradores dormem com alarmes e elementos não confiáveis ​​fogem para clubes de strip em momentos importantes. Todo mundo está estressado, um policial tão estressado que passa toda a reunião de planejamento deitado de bruços no tapete. Mesmo a deixa musical que deu início aos acontecimentos não aconteceu sem contratempos: o MFA combinou com o locutor da rádio que a música tocaria às 22h55, mas às 22h48 a emissora encontrou dificuldades técnicas, e o conspiradores, aglomerados em torno de rádios por toda a cidade, suportaram agonizantes três minutos de estática. A emissora voltou a ficar online e antes de apertar o play da música, o apresentador falou a frase combinada: “são cinco para as onze...”

A corrida do grupo por munições antes do dia 24 de abril teve apenas algum sucesso: no dia da operação, muitos soldados saíram com armas vazias. No entanto, quando desceram às ruas de Lisboa, encontraram o apoio do público e das milícias comunistas que lutaram com os agentes da PIDE nos telhados, enquanto os soldados revolucionários enfrentavam seções do exército leais ao regime lá em baixo.

Os oficiais de ambos os lados conhecem-se uns aos outros e muitos dos homens do governo partilhavam a insatisfação dos conspiradores com a situação. Embora muitos leais ao regime não estivessem dispostos a aderir ao golpe, também não estavam dispostos a reprimi-lo. No final do dia, Caetano rendeu-se à figura ambígua do general António de Spínola, que em breve se tornaria o primeiro presidente pós-ditadura, sem quaisquer confrontos militares. As quatro vítimas da revolução - três civis e um soldado fora de serviço - foram mortas na sede da PIDE, onde agentes dispararam contra a multidão de manifestantes na rua, enquanto no interior os seus colegas rasgavam documentos freneticamente.

A The Carnation Revolution é um relato claro e rápido da construção e execução de um golpe. O que oferece menos é a análise política. Do programa dos oficiais (“Isto é um golpe para derrubar o regime, fazer eleições livres, acabar com a guerra colonial, libertar os presos políticos e acabar com a PIDE e a censura”, diz um soldado na rua a um jornalista) temos um tratamento mínimo; da mesma forma, as opiniões de outros dissidentes e as diferentes análises e motivações daqueles que tentaram e conseguiram derrubar o Estado Novo.

Os capítulos finais do livro abordam o que aconteceu nos primeiros dezoito meses agitados e caóticos após a queda do regime, enquanto o MFA trabalhava a sua relação com a democracia nascente e com Spínola, que pressionou contra a agenda de descolonização dos jovens oficiais de esquerda que havia liderado a derrubada. Nessas seções finais, politicamente mais complicadas, o livro perde um pouco de sua lucidez e atmosfera. No entanto, esta parece ser uma crítica mesquinha a um livro que consegue contar a história da revolução com tanta propulsão, tensão e intriga vívidas quanto merece.

Portugal prepara-se para assinalar cinquenta anos desde a revolução, e o livro de Fernandes termina com uma discussão sobre as recentes tentativas de desfigurar e reformular a Revolução dos Cravos, incluindo classificá-la como uma “evolução” - uma tentativa, diz o autor, de "higienizar e compartimentar" os acontecimentos radicais de 1974. Fernandes também emite um alerta sobre a ascensão da extrema direita à medida que os acontecimentos de 1974 e a realidade da ditadura desaparecem da memória viva dos mais jovens. Este é um aviso que já se revelou presciente: nas eleições gerais do início de março, o reacionário partido Chega subiu para o terceiro lugar.

Colaborador

Morgan Jones é um escritor que mora em Londres e é editor colaborador da Renewal.

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